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COMUNICAÇÕES/PAPERS
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QUANDO O ASSUNTO É religião afro-brasileira, o caráter folcló- A primeira versão
deste artigo foi apre-
rico ocupa espaço significativo no imaginário popular. Ainda mais sentada no II Simpó-
quando estamos diante de um imenso espectro de religiosidades sio Internacional so-
bre Religiões, Religi-
entendidas como tal: candomblé, jurema, macumba, tambor de osidades e Culturas,
mina, umbanda, xangô do Nordeste etc. A umbanda, entretanto, promovido pela
UFMS, em Doura-
apresenta uma peculiaridade que a diferencia das demais: en- dos/MS, 2006. Texto
quanto os adeptos das religiosidades mais africanizadas busca- recebido em 23/5/
2006 e aprovado
vam legitimar suas práticas exaltando a pureza das tradições nagô, com parecer para co-
os líderes do movimento umbandista1 fizeram questão de apre- municação em 6/9/
2006.
sentá-la como uma religião brasileira. Acreditamos que o caráter
*
nacionalista atribuído à umbanda fazia parte de um conjunto de Mestrando em His-
tória Comparada do
estratégias de legitimação que incluíam também a institucionali- IFCS/UFRJ; e-mail:
zação da nova religião e a adoção de um discurso evolucionista, temporeal@uol.com.br.
ciou que no dia se- sincretismo espontâneo e promover um sincretismo refletido das
guinte iniciaria, na
casa de seu médium, diversas religiões que se afrontaram no Brasil em 400 anos de
a prática de uma colonização. A nova religiosidade nasceria, portanto, do proces-
nova religião, na qual
os espíritos não seri- so de bricolagem2 entre as manifestações religiosas das culturas
am avaliados pela ameríndias, mais a influência da catequese jesuítica, mais o con-
condição social de
sua vida pretérita, tato com os cultos de matriz africana e a influência da doutrina
mas pelas mensagens kardecista. O autor adverte, entretanto, que a religião umban-
e ensinamentos que
trouxessem. Essa dista é mais do que uma síntese desses elementos históricos, é
nova religião se cha- também um produto simbólico, mediatizado pelos intelectuais
maria umbanda. Pela
orientação dessa en- umbandistas3 em determinado momento histórico da sociedade
tidade foram criados brasileira. Isso significa, para Ortiz (1984, p. 41), que sem o
outros templos pelo
país (principalmente movimento dos intelectuais, que estabelece as normas de orien-
na região Sudeste), tação da religião, a umbanda não existiria, pois o que encontra-
nos quais se profes-
sava o “espiritismo ríamos seriam somente manifestações heterogêneas de rituais
de umbanda”. No fi- de origem afro-brasileira. Por outro lado, o antropólogo argu-
nal da década de
1930, também sob a menta que, sem a presença de uma herança cultural afro-brasi-
orientação do cabo- leira, não seria possível o bricolage do pensamento kardecista
clo das Sete Encruzi-
lhadas, esses e outros sobre essa realidade.
templos fundaram a O conceito de “religião endógena” permite-nos ir além das
Federação Espírita de
Umbanda, a fim de interpretações que classificavam a umbanda como manifestações
se protegerem da rituais de origem multicultural. Porque as religiões – mesmo
pressão policial
(TRINDADE, 1991). quando consideradas como sistema de práticas simbólicas e de
2
crenças relativas ao mundo invisível – não se constituem senão
Segundo Lévi-
Strauss (apud MAG- como formas de expressão profundamente relacionadas às ex-
NANI, 1991, p. 42), periências sociais dos grupos que as praticam. Como escreve
o que caracteriza a
bricolagem é a elabo- Dominique Júlia (1976), “as mudanças religiosas só se explicam
ração de conjuntos se admitirmos que as mudanças sociais produzem, nos fiéis,
estruturados com re-
síduos e fragmentos modificações de idéias e de desejos tais que os obrigam a modi-
de outros conjuntos. ficar as diversas partes de seu sistema religioso” (p. 106). Sem
3
Para Renato Ortiz dúvida, foi esse o papel desempenhado pelos intelectuais um-
(1984, p. 40), os in- bandistas: reestruturar a herança multicultural de modo que fosse
telectuais umbandis-
tas inserem-se na ca- possível construir um sistema religioso que permitisse à umban-
tegoria de “intelectu- da atingir o status de religião – forma institucionalizada de culto
ais eclesiásticos”, que
Gramsci (2001, p. – ao mesmo tempo em que refletia o desejo de reconhecimento
16) considerava or- (e ascensão) social de uma parcela dos seus adeptos.
ganicamente ligados
à elite dominante. Ainda guiados por Renato Ortiz, identificamos no processo
Seu perfil não diferia de legitimação da umbanda duas estratégias que refletem clara-
dos demais intelectu-
ais brasileiros da pri- mente a liderança de um grupo de “pais de santo” (sacerdotes)
meira metade do sé- que Ortiz (1984) classificou como “intelectuais da religião” (p.
culo XX. Mesmo não
desfrutando de igual 40). Primeiro, temos a fundação da Federação Espírita de Um-
prestígio no cenário banda (1939), cujo objetivo primordial era servir de interlocutor
10
trina mínima que fosse capaz de atenuar o preconceito existente Habermas (1980,
p. 101) define a ação
entre as parcelas mais conservadoras da sociedade nacional. comunicativa como o
A análise do historiador Jorge Ferreira sobre as relações dos meio pelo qual os ho-
mens se relacionam
trabalhadores com o Estado Novo reforça nossa hipótese de que entre si a fim de bus-
as estratégias adotadas pelos umbandistas não poderiam estar car o entendimento
mútuo.
dissociadas da ideologia estadonovista. Ferreira (1990, p. 193)
11
explica que a hegemonia da ditadura Vargas não impedia as pes- O conceito de ide-
ologia admite pelo
soas de defenderem seus interesses, buscarem saídas alternati- menos três defini-
vas, procurarem brechas nas regulamentações autoritárias, nem ções: (1) sistema de
crenças característico
as impedia de perceber os limites impostos pelo governo. Assim, de um grupo ou clas-
nos padrões políticos e culturais da época, as pessoas davam se social ligados aos
meios de produção;
novos e diferentes significados aos códigos, normas e valores (2) sistema de idéias
autoritários e, de acordo com suas experiências, procuravam re- falsas (falsa consci-
ência) contrapostas
direcioná-los em seu próprio benefício. Portanto, ao pleitearem ao conhecimento ci-
a legitimidade do novo culto, os intelectuais da umbanda não entífico ou verdadei-
ro; (3) processo geral
deveriam adotar uma política de enfrentamento, mas utilizar a de produção de sig-
mesma estratégia dos trabalhadores nas correspondências man- nificados e idéias.
Mesmo reconhecen-
tidas com o regime personalista de Getúlio Vargas: assimilar o do que as três defini-
projeto político-ideológico estadonovista de modo a facilitar sua ções podem se reve-
lar frágeis diante de
inserção na sociedade nacional. questionamentos
Ao criar uma federação para negociar com o Estado a regula- possíveis, tanto a pri-
meira quanto a últi-
mentação da umbanda e, conseqüentemente, o fim da repressão ma podem nos ajudar
policial e médico-sanitarista, os líderes do movimento apropria- a compreender o
processo de legitima-
vam-se do caráter simbólico que o vocábulo “federação” em- ção da religião um-
prestava à idéia de unidade nacional. Isto é, souberam apreender bandista. Vejamos:
existe em primeiro
elementos-chave do discurso estatal e redirecioná-los a seu fa- lugar a “ideologia es-
vor, inserindo a umbanda na estrutura do Estado pela via insti- tadonovista”, que re-
presenta o sistema de
tucional. Como ensina Aline Coutrot, os movimentos confessio- crença da elite brasi-
nais, enquanto representativos das aspirações de seus membros, leira que ascendeu ao
poder junto com Var-
“são lugares de formação total, particularmente cívica, extrema- gas; segundo, existe a
mente rica, pois se encarna em ações concretas desenvolvidas “ideologia dos inte-
lectuais umbandis-
em comunidade” (2003, p. 244). Mesmo que a essência desses tas”, que se caracte-
movimentos não passe pelo engajamento político-partidário, a rizou pela ressignifi-
cação da doutrina
autora sublinha que são reconhecidos com freqüência pelo po- kardecista e das prá-
der público como engrenagens importantes de uma sociedade ticas mágicas manti-
das na umbanda,
democrática, uma vez que capazes de exercer pressão sobre a adequando-as àquele
opinião pública e, como alerta Jean-Jacques Becker (2003, p. momento histórico a
fim de obter liberda-
204), os governos que não mantêm uma simbiose entre suas de de culto. Segundo
ações e os clamores da opinião pública correm risco de desmo- Leandro Konder
(2002, p. 252), um
ronar.12 Desse modo, as negociações para se obter maior liber- discurso que preten-
dade de culto devem ser analisadas como via de “mão dupla”, da uma aliança entre
classes sociais dife- pois o Estado varguista buscava também legitimar-se como um
rentes pode subordi-
nar o apoio às reivin- governo atento aos anseios populares, uma vez que mantinha
dicações populares canais de diálogo com os movimentos organizacionais. O pró-
igualitárias à manu-
tenção da ordem e do prio Vargas reconhecia as organizações de classe como colabo-
progresso. Isto é, radoras da administração pública. O ditador gabava-se de ter
manter o controle nas
mãos da elite nacional. estabelecido no Brasil a “verdadeira” democracia, que não seria
12
a dos parlamentos, mas a que “atende aos interesses do povo e
O autor chega a es-
sa conclusão ao ana- consulta as suas tendências, através das organizações sindicais e
lisar o desempenho associações produtoras” (VARGAS apud PÉCAUT, 1990, p. 72).
dos governos euro-
peus no desenrolar As comunicações apresentadas no congresso associam-se à
da Primeira Guerra conjuntura política da época. A grande dificuldade para a um-
Mundial.
banda se legitimar era o fato de possuir um passado afro-indíge-
13
Ver a esse respeito na no seio de uma sociedade predominantemente católica. Com-
o relatório elaborado
pelo Serviço de In- preende-se, portanto, o esforço dos umbandistas em disseminar
quéritos Políticos e toda uma teoria que os afastasse das teias do candomblé e da
Sociais (MULLER,
1938). “macumba”. Aproximar-se do espiritismo de Kardec represen-
14
tava, naquele momento, o caminho mais viável, principalmente
Os adeptos da um-
banda identificavam- porque o chefe de Polícia do Distrito Federal, Filinto Muller,
se a tal ponto com o pronunciara-se totalmente favorável às atividades do espiritis-
espiritismo que não
se apresentavam co- mo, julgando-as inofensivas ao regime.13 Assim, na lógica da-
mo umbandistas, mas quele momento histórico, o caminho da legitimidade passava pela
como espíritas. Em
todas as teses defen- construção de uma identidade ao mesmo tempo próxima do ca-
didas no congresso, ráter “científico” da religião kardecista14 e o mais distante possí-
seus proponentes
sempre diziam que vel das práticas religiosas de matriz africana. Portanto, quando a
professavam o “espi- nova religião foi apresentada como brasileira, os intelectuais que-
ritismo de umbanda”
ou o “espiritismo na riam dizer à sociedade que a umbanda não era apenas uma reli-
lei de umbanda”. gião de origem afro-indígena, mas o resultado da evolução cul-
15
Aprofunda-se, nes- tural do povo brasileiro. A estratégia era aproximá-la de uma
sa época, o mito de representação mestiça15 da nacionalidade, tão apreciada pelos
que o Brasil vivia em
plena “democracia ideólogos do Estado varguista.
racial”. Esse mito foi Os umbandistas não negavam a herança afro-indígena nas
estimulado pelos ide-
ólogos do Estado práticas rituais, mas justificavam-na numa perspectiva evolucio-
varguista, segundo os nista, própria do discurso kardecista. Isto é, “valorizavam o ín-
quais a viabilidade
socioeconômica do dio e o negro como importantes elementos formadores da naci-
país residia no fato onalidade, mas sob a ótica da evolução constante, capaz de ‘apri-
de que aqui não exis-
tiam conflitos étnicos morar’ o que de ‘selvagem’ e ‘bárbaro’ prendia-os a um passado
e culturais como em distante da civilização” (ISAIA, 1999, p. 105). Essa posição pode
outros países. Gilber-
to Freyre é apontado ser observada, por exemplo, na tese que Martha Justina, repre-
como o principal au- sentante da Cabana de Pai Joaquim de Loanda, defendeu duran-
tor do conceito de
“democracia racial”, te o Primeiro Congresso de Umbanda. Justina (1942) avaliava
embora não haja as práticas africanas como “coisas exóticas e horripilantes”.16
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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