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“Via verde” do Papa fez disparar


anulação de casamentos católicos
NATÁLIA FARIA  21/11/2016 ­ 06:30

Querem casar de novo diante de um altar, apagar aquilo que um dia
quiseram para a vida: em 2016, o PÚBLICO contou 196 pedidos de nulidade
do casamento católico. Mais 50% do que em 2015.

Até aqui, a declaração de nulidade poderia custar entre 2500 e dez mil euros. Hoje, com o
processo mais simples, ficará entre os 600 e os 1500 euros PEDRO CUNHA/ARQUIVO
Os pedidos de anulação do casamento católico duplicaram, e nalguns casos
triplicaram, na maioria das dioceses portuguesas, desde que o Papa Francisco
anunciou, em Setembro do ano passado, uma espécie de “via verde” para
simplificar e acelerar o processo. Em Portugal, a Igreja Católica não tem
nenhuma entidade que centralize os dados nacionais (as 20 dioceses
respondem directamente perante a Santa Sé), mas os dados que o PÚBLICO
recolheu junto de 11 dos 14 tribunais eclesiásticos existentes no país mostram
que entraram este ano 196 pedidos de declaração de nulidade, o que traduz
um aumento de 50% relativamente aos 129 do ano passado.

 “Só nos últimos três meses, entraram seis processos. É um aumento em
duplicado ou em triplicado do que se passava nos outros anos, em que a média
era de dois ou três processos por ano”, adiantou José Gomes de Sousa,
vigário­judicial do Tribunal Eclesiástico de Viana do Castelo. Para responder
ao aumento da procura, mas também ao decreto papal que, há um ano,
introduziu maior celeridade nos processos, este tribunal “recrutou” agora
mais três juízes diocesanos, elevando para sete o número de padres que se
dedicam a ajuizar sobre a legitimidade de se declarar nulo aquilo que um dia
se quis para toda a vida.

No Tribunal Eclesiástico do Porto, o aumento foi de quase 138%. “Passámos
de 15 processos em 2014, para 13 em 2015 e para 31 em 2016”, adiantou o
respectivo notário. No Tribunal Metropolitano Patriarcal de Lisboa, que
abrange também as dioceses de Santarém e Setúbal, o aumento foi menos
expressivo. Contavam­se, até quarta­feira, 84 pedidos de declaração de
nulidade. Em 2015, tinham sido 69, contra os 66 de 2014. Já em Viseu,
entraram este ano 11 pedidos, contra os cinco do ano anterior e os dois de
2014. E em Aveiro, adianta o vigário Manuel Rocha, “o tribunal está com
cinco pedidos até agora, o que significa o dobro do normal”, sendo que no que
se sentiu mais procura foi no pedido de informações. “Aqui já estaremos a
falar de 15 casos”. À excepção de Vila Real e de Leiria­Fátima ­ onde o
aumento da procura de informação não se traduziu em mais pedidos entrados
­, os vigários judiciais dos tribunais eclesiásticos contactados pelo PÚBLICO
apontam para um inequívoco aumento da procura.

“A iniciativa do Papa teve o mérito de ajudar a encarar estas declarações de
nulidade matrimonial como parte da pastoral. Antes, dava a impressão que
era quase como um tabu, algo de que se falava em surdina, baixinho. Ao falar
abertamente sobre este assunto, o Papa reconheceu que havia um problema,
um estigma, e que as pessoas que sofriam por causa disso mereciam ser
ajudadas”, sustenta o padre Fernando Clemente Varela, vigário judicial do
Tribunal Eclesiástico de Leiria­Fátima. Aqui, entraram até agora 11 processos,
contra os 16 de 2015 e os 10 de 2014. “Não tivemos um aumento mais
expressivo este ano, porque, mesmo antes de o Papa se ter pronunciado sobre
esta matéria, tínhamos promovido um momento de formação e de reciclagem
para o clero sobre a temática – muitos padres não sabiam como encaminhar
as pessoas –, o que talvez ajude a explicar a subida verificada de 2014 para
2015”, contextualiza.

“Vergonha”
Para este padre, os tempos são de mudança. “Isto era motivo de vergonha. As
próprias pessoas envolvidas, e com desejo de pedir a nulidade do matrimónio,
tinham receio. Medo de se expor. E é preciso que lhes continuemos a explicar
que o processo é sigiloso, que o único réu é o matrimónio, não as pessoas, e
que não vão enfrentar nenhum juiz a bater com o martelo em cima da mesa.
Quando se põe a pensar “na reforma do Papa”, Clemente Varela ri­se. “Parece
uma coisa tão revolucionária, mas afinal é simples. E a gente olha para trás e
questiona­se: ‘Mas por que é que os outros Papas não pensaram nisto antes?”.

Quando, em Agosto de 2015, assinou
o decreto Mitis Iudex Dominus Iesus,
Jorge Mario Bergoglio forçou a Igreja
a olhar de novo para o processo
Por tribunal eclesiástico canónico para declaração de nulidade
matrimonial, ao fim de um hiato de
2014 2015 2016
quase 100 anos. O objectivo do Papa
foi simplificar um processo que podia
Aveiro
demorar anos e custar milhares de
5
euros. Assim, desde 8 de Dezembro,
2
4 dia em que as mudanças entraram
em vigor, deixaram de ser
Viseu necessárias duas sentenças
11 conformes para ser efectivada a
5 nulidade do casamento, tendo
2 passado a bastar uma.
Lisboa
Do mesmo modo, e tal como no
84
divórcio civil, basta a vontade de um
69
66 para que a nulidade possa ser
decretada, desde que o pedido esteja
Vila Real devidamente fundamentado e
6 comprovado e desde que a outra
4 parte tenha sido citada. E, nos casos
12 em que ambos os implicados
Viana do Castelo convirjam no pedido, o processo
6 pode seguir a chamada via mais
1 breve e ficar concluído em 45 dias,
1 por decisão de um único juiz – antes
era preciso um colectivo de três ­,
Leiria­Fátima
11
11 conquanto na fundamentação do
16 pedido estejam questões de peso
10 como, por exemplo, o aborto
Évora procurado para impedir a procriação,
14 a “ocultação dolosa” de esterilidade,
8 de uma grave doença contagiosa, de
6 filhos nascidos de uma relação
anterior ou de um encarceramento,
Braga bem como a falta de uso da razão
12 comprovada por documentos
8 médicos, a violência física infligida
10 para extorquir consentimento ou a
Porto “permanência obstinada” numa
31 relação extraconjugal no momento
13 do matrimónio ou imediatamente
15 depois.

Guarda O vigário judicial do Tribunal
12 Interdiocesano de Évora, Algarve e
2 Beja, Silvestre Marques, que registou
2 “um acréscimo de novos processos
Nota: existem 
Coimbra 14 tribunais esclesiásticos  significativamente superior a 50%”,
no país, um dos quais  adiantou ao PÚBLICO que alguns
4 militar, ou seja, não lida 
1 com estes processos.  destes novos pedidos estão a ser já
2 Apenas Angra e Funchal  conduzidos segundo a chamada
não forneceram dados
“fórmula mais breve”. Mas mesmo os
Fonte: PÚBLICO
pedidos que seguem a via ordinária,
têm tido uma resposta mais célere.
(https://static.publico.pt/infografia/2016/portugal/casamentos_catolicos_anulados.svg)
“Tendo­se acabado com a
obrigatoriedade de uma segunda
sentença conforme, a decisão torna­se executória a partir do momento em que
há uma sentença afirmativa, o que, torna mais célere a possibilidade de passar
a novas núpcias, sem prejuízo de um eventual recurso”, explica, para precisar
que “normalmente, os casos resolvem­se em menos de um ano”.

O papa Francisco pediu também que o processo passasse a ser
tendencialmente grátis, à excepção das custas administrativas. Até aqui,
dependendo da existência de recurso a advogados e da necessidade ou não de
perícias psicológicas ou psiquiátricas, a declaração de nulidade poderia pesar
entre 2500 e 10 mil euros no bolso dos requerentes. Ao PÚBLICO, os vigários
judiciais apontam agora preços substancialmente abaixo: entre os 600 e os
1500 euros. De resto, todos garantem que a possibilidade de redução ou
isenção de custas era já uma realidade, desde que o requerente comprovasse a
sua incapacidade de custear o processo, através da declaração de IRS.
“Pensava­se que isto era uma coisa só para alguns, os ricos, o que, mais do que
uma mentira, era uma calúnia. A diferença é que quando são pobres, não
aparecem na comunicação social”, comenta o vigário judicial de Viana do
Castelo, José Gomes de Sousa, para lembrar que a sua primeira sentença
favorável à nulidade foi dada em 1992, precisamente no ano em que Carolina
do Mónaco obteve a anulação do seu primeiro casamento. “Como era um
padeiro pobre, não apareceu nas revistas”, brinca.

Quanto ao que leva alguém a querer apagar da sua história o “Até que a morte
nos separe”, José Gomes de Sousa aponta os motivos mais comuns.
“Imaturidade afectiva, falta de liberdade interna, pessoas que ocultam a prole
ou a infidelidade, mas também o medo associado à violência que
normalmente não é física mas muito mais subtil e difícil de provar…”. O
vigário judicial de Viseu e presidente da Associação Portuguesa de Canonistas,
João Martins Marques, que este ano já proferiu dez sentenças favoráveis à
declaração de nulidade, contra as quatro do ano passado, aponta outro
fundamento admissível. “Imagine um rapaz que quer casar com uma rapariga
virgem e, antes de casar, lhe perguntou se o era e ela garantiu que sim. Se
concluir que, afinal, não era, isso configura dolo”, descreve, para acrescentar
que “normalmente, as pessoas já estão separadas, alguns até já estão numa
nova relação e decidem verificar se o casamento foi válido ou não para
poderem casar novamente pela Igreja”.

Mas também “há muitas pessoas para quem é uma questão de Justiça e de
apuramento da verdade”, adianta Sérgio Dinis, vigário do Tribunal
Eclesiástico de Vila Real. “Aparecem­nos pessoas muito feridas, que rasgam
fotografias e estragam o vídeo do casamento e que, no fundo, o que procuram
é obter paz e tranquilidade”, acrescenta, por seu turno, o vigário de Viana do
Castelo. A partir de Aveiro, o padre Manuel Rocha, concorda. “As pessoas
procuram ficar de bem com elas mesmas e, por outro lado, normalizar a sua
relação com a Igreja”.

        
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