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Bonnaud, Hélène.

L’inconscient de l’enfant – du symptôme au désir


de savoir. Paris: Navarin/Le Champ Freudien. 2014.

A demanda travada de Sarah

Sarah tem exatamente 3 anos quando me falam dela. Na sala de


espera, disseram-me que Sarah não se move, não fala, não brinca. Ela é,
então acompanhada por um outro serviço onde tem sessões de
psicomotricidade. Falamos de psicose ou autismo infantil.

A primeira vez que eu a recebi, fiquei impressionada com duas


coisas: Sarah não me olha, ela evita meu olhar, mas sabe que seu pai fala
dela e que eu escuto o que ele me diz. Ela me pareceu muito presente,
explorando o lugar, antes de tomar um lugar nos braços de seu pai. De
imediato, o diagnóstico de autismo me pareceu mal fundamentado.

Sarah é a terceira filha de seus pais. O mais velho morreu muito


pequeno, deixando os pais em desespero. A segunda foi muito mimada; ela
é hoje uma menina inteligente, exigente, com uma imaginação
transbordante. Em seguida, chegou Sarah. Para ela, o entorno familiar foi
menos inquieto. Sarah foi um bebê tranquilo, uma menina que não
apresentava nenhum problema, que dormia, comia e vivia sua vida. Ela
cresceu e então perceberam que ela não falava, que ela se mexia pouco. “O
que era doloroso, acrescenta o pai, é que ela choramingava muito”. No
momento desta primeira entrevista, o pai está sob o choque do que
aconteceu na semana anterior: sua filha caiu da cama e fez uma fratura de
um osso temporal. Ele escutou ainda, disse-me ele, o barulho da queda,
lembrando-se de seu medo, quando chegou no quarto e viu sua filha no
chão. Não era sem reativar a angústia de morte ligada à perda de seu
primeiro filho. Felizmente, depois de três dias de hospitalização onde os
enfermeiros ficaram impressionados com a “coragem” de Sarah, que não
chorava, nem reclamava, esta se recuperou bem da queda.

Os pais discutem, cada um a seu modo, o divórcio em curso. Uma


decisão que é tomada na terapia de casal, depois da morte do primeiro filho
deles.

A mãe volta a viver na região natal. É ela que deixa a primeira casa
para morar fora de Paris, na metade da semana. Um novo ritmo se
instaura, assim, na vida de Sarah. A mãe deixa Paris domingo de noite e
retorna terça de tarde. É ela que acompanha Sarah nas sessões, nas
quartas de manhã. Será um ponto de referência para a mãe que se apoia
sobre este encontro para sua filha, como tempo de escansão na semana. “Ir
encontrar Madame Bonnaud” se torna o significante da transferência. A mãe
fala a sua filha deste encontro particular, momento que ela lhe dá e toma
uma função de desejo para ela. Como diz Lacan, no Seminário As
Formações do inconsciente, “no nível da demanda, há entre o sujeito e o
Outro uma situação de reciprocidade”. Mas “o que deve ser introduzido, e
que está ali desde o começo, latente desde a origem, é que para-além
daquilo que o sujeito demanda, além daquilo que o Outro demanda ao
sujeito, deve haver a presença e a dimensão do que o Outro deseja1 ”.

É porque a mãe pôde manifestar esta demanda de outra coisa a seu


filho, uma demanda que não é somente que Sarah se alimente bem, que
esteja limpa, durma bem e seja adorável, é então porque há um mais além
desta demanda, que nós chamamos de desejo, que a análise pôde tomar
esta função de reencontro com o desejo do Outro para Sarah.

Assim, em poucos meses, Sarah saiu de seu mutismo e instaura uma


relação de palavra comigo. Ela me surpreende no dia em que me diz:
”Madame Bonnaud-lista” (Madame Bonnaud-lyste). Ela nomeia, assim, a
pessoa que vem ver a cada quarta-feira. Desde o início de nossos
encontros, para lhe indicar nosso horário semanal, eu lhe dou um cartão de
visita que ela coloca, orgulhosamente, em seu bolso. Ela sai com este
“objeto-lista’ no bolso. Eu dou também um para sua mãe, que o coloca em
sua bolsa. Sarah está contente porque sua mãe tem também o cartão de
“Madame Bonnaud-lista”.

O tempo de reencontro com sua mãe é marcado pelos nossos


encontros. Assim, o cartão de visita em que Sarah adora ler meu nome
serve agora para apresentar uma pequena brincadeira: o cartão se
transforma em um bilhete de trem para Marseille, a cidade de sua mãe,
onde vai construir sua próxima vida. A cadeia significante se instala. O
cartão em que está escrito o nome da analista pode se fazer de bilhete de

1Lacan, J. (1957-1958). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. RJ:


Zahar. 1998. P.350.
trem para a mãe. E é muito divertido para Sarah descobrir tudo que
podemos fazer com este. Ela vai, ela vem, eu sou a vendedora de bilhetes e
depois, pouco a pouco, eu serei a mãe que compra um bilhete para viajar.
Ela simboliza assim, em sua brincadeira, as idas e vindas da mãe. Esta
operação é essencial para a criança, porque ela dá sentido à ausência, ela
permite situar a perda em um ciclo que devolve o objeto em um trajeto de
ir e vir.

Depois de dez meses em análise, apesar da inquietude que ela ainda


manifesta, de tempos em tempos, Sarah se transforma. Ela fala muito bem
e aprende com uma facilidade surpreendente. Ela é muito viva,
entusiasmada por uma determinação que impacta todo mundo, embora às
vezes ela ainda tenha momentos de fechamento onde, com o olhar baixo,
ela pareça uma criança triste.

Quando ela sai para viver no interior, ela entende que partir é pegar o
trem e que fazemos sempre uma ida e uma volta. Ela sabe que sua mãe
retorna, que seu pai vai e vem, que viajar é como a análise, escrevemos
seu nome em um bilhete e isto quer dizer “até amanhã”.

A sucessão de sessões com Sarah mostra que temos trabalhado a


questão da demanda de uma presença e esta de uma ausência: instalação
de encontros com a alternância de idas e vindas da mãe permitiu
significantizar o que estava sofrido para ela. De fato, o nascimento de Sarah
parece ter atualizado para a mãe a perda de seu primeiro bebê, do sexo
masculino. Dar novamente um filho a seu marido teria atenuado o luto
ligado à perda de seu primeiro bebê. Inconscientemente, a mãe se sentiu
culpada de não ter podido substituir o menino perdido. A demanda de Sarah
ficando sem resposta, ela se tornou uma criança que não se manifesta. Esta
ausência de demanda da criança apenas foi a resposta à tristeza materna,
vindo se inscrever como um fracasso de amor. Impossível para a mãe
investir na filha, tanto seu desejo en berne a deixou na dor.

Além do mais, a separação do marido velava seu destino de mulher.


Ela se sentia abandonada como objeto de desejo e só podia ver a perda e o
abandono invadir sua vida, reativando assim a castração que é a privação
de amor para uma mulher. Sarah tinha “colado”, por assim dizer, nesta
perda; sua dependência vital do desejo do Outro se tornou
consideravelmente maior.

O fort-da freudiano é a demonstração de uma demanda de presença


sobre o fundo da ausência. Freud isolou o fenômeno mostrando que o
pequenino usava uma brincadeira com um carretel2 para suportar a
ausência da mãe. A criança repete a experiência que consiste em lançar a
bobina e a fazer retornar pronunciando as sílabas fort, em seguida, da que
são um: aqui, em seguida, ali. Há repetição do ato, porque o sujeito obtém
dele uma satisfação. Aliás, todo mundo sabe como os pequeninhos têm um
prazer malicioso de deixar cair os objetos para que alguém os traga, ou
brincar mais e mais com a mesma coisa. Há na repetição um prazer em
recomeçar. Próprio a nossa introdução na linguagem e à satisfação pulsional
que comanda. Esta brincadeira do fort-da mostra que a criança faz uso dos
significantes “partido, adeus” bem antes de todos os outros. Isto
testemunha a importância da questão da presença e da ausência na
estruturação do sujeito, e do modo como ele utiliza o objeto que ele escolhe
para simbolizar o binário modulado da presença e da ausência. Lacan e
Freud mostraram que a satisfação que o pequeno obtém na repetição de
sua brincadeira introduz a relação do sujeito com o gozo.

Lacan vai distinguir dois tipos de demandas: a demanda de um


objeto – o sujeito experimenta as necessidades e demanda o objeto da
necessidade – e a demanda de amor, que não é demanda de um objeto,
mas demanda de nada, demanda de signos endereçados pelo Outro. Por
conseguinte, é necessário distinguir a demanda de um objeto que vem
satisfazer uma necessidade, de uma outra forma de demanda que é esta do
amor. Por que Lacan nos fala do objeto como nada? O nada é para ele um
objeto inteiro. Ele serve para nomear o que não pode se dar, o que não
pode preencher, o que não pode responder por um objeto-tampão à
demanda da criança. Assim, é fundamental para a construção da criança
que exista lugar para o nada na resposta a suas demandas. Se a mãe
responde a cada apelo alimentando-a ou dando a ela o que beber, ela dá
lugar a uma resposta que exclui a falta e que pode ter por consequência
fazer a criança incapaz de suportar a frustração.

2 Freud, S. (1920) Além do princípio do prazer. Obras Completas. Lacan J. “Função


e campo da palavra e da linguagem”. Escritos. RJ: Zahar. 1998. P.320.
Entre estas duas demandas, a demanda que tem por objeto alguma
coisa e a demanda de amor, Lacan inscreve o desejo: “ o desejo se esboça
na margem em que a demanda se rasga da necessidade: essa margem é a
que a demanda, cujo apelo não pode ser incondicional senão em relação ao
Outro, abre sob a forma da possível falha que a necessidade pode aí
introduzir, por não haver satisfação universal (o que é chamado de
angústia)3”.

Tradução: Ana Martha Wilson Maia

Tradução livre, sem a autorização dos autores, para uso exclusivo no


Seminário "Autismo e Psicose Infantil - da clínica à política, e retorno", coordenado por
Ana Martha Wilson Maia (EBP/AMP), na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio.

3 Lacan, J. (1960/1966) “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente


freudiano”. Escritos. RJ: Zahar. 1998. P.828.

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