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9.

A democracia transformada: a Europa


ocidental, 1950-75

MAZOWER, Mark. Continente sombrio:


a Europa no séuclo XX.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

O número de eleitores comunistas nos países europeus é inversamente pro-


porcional ao número de moradias por mil habitantes.
Eberhard Wildermuth
(ministro da Habitação da Alemanha Ocidental)'

Alto nível de emprego, rápido crescimento econômico e estabilidade agora


são considerados normais no capitalismo ocidental.
Michael Kidron, 19682

A vastidão de seus desejos paralisou-os.


Georges Perec3

O R E S S U R G I M E N T O DA D E M O C R A C I A

Depois de 1945, a E u r o p a ocidental redescobriu a democracia. Os remanes-


centes da direita autoritária d o entreguerras — a Espanha de Franco e Portugal de
Salazar — f o r a m vistos c o m o seqüelas de u m passado indesejado e excluídos das
novas organizações internacionais — as Nações Unidas, a C o m u n i d a d e Econô-

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mica Européia (CEE) e até m e s m o o Plano Marshall — pelo m e n o s até que a G u e r r a
Fria os convertesse n o v a m e n t e e m a m b í g u o s aliados do m u n d o livre. N o Reino
Unido, na Irlanda, na Suécia e na Suíça suspenderam-se as restrições da época da
g u e r r a e o Parlamento r e t o m o u suas f u n ç õ e s normais. Os baluartes antidemocrá-
ticos da Nova O r d e m — França, A l e m a n h a e Itália — e n t e r r a r a m o passado e ela-
b o r a r a m novos sistemas constitucionais. Na Grécia, abandonou-se o legado auto-
ritário da década de 1930, apesar de u m a g u e r r a civil, e restabeleceu-se o regime
parlamentar.
Entretanto, esse renascimento da democracia n ã o foi u m simples r e t o r n o a
1919; ao contrário, o que surgiu depois de 1945 foi algo p r o f u n d a m e n t e alterado
e m f u n ç ã o das lembranças da g u e r r a e da crise democrática nos anos anteriores ao
conflito. O papel d o Parlamento, a natureza dos partidos políticos e da própria polí-
tica saíram t r a n s f o r m a d o s da luta contra o fascismo. Agora a democracia engloba-
va u m sufrágio mais amplo — j á que as mulheres haviam conquistado o direito de
votar o n d e n ã o o t i n h a m (exceto na Suíça e e m Liechtenstein, socialmente atrasa-
dos) — e u r r f g r a u maior de compromisso, e m t o d o o espectro político, c o m os ver-
dadeiros direitos sociais e econômicos. 4
C o m o depois de 1918, podia-se m a p e a r a m u d a n ç a de atitudes pelas r e f o r m a s
constitucionais, q u e d e m o n s t r a v a m u m a p r e o c u p a ç ã o c o m direitos h u m a n o s
resultante da amarga experiência da g u e r r a e u m a consciência da necessidade de
defender o indivíduo contra o poder d o Estado. 'A República reconhece e garante
os direitos invioláveis do h o m e m " , rezava o segundo artigo da Constituição italia-
na de 1948. "O povo alemão [...] reconhece q u e os direitos h u m a n o s , invioláveis e
inalienáveis, constituem a base de toda c o m u n i d a d e h u m a n a " , afirmava o artigo
primeiro da nova Lei F u n d a m e n t a l alemã, q u e fornecia m a i o r proteção contra as
arbitrariedades d o Estado, e s o b r e t u d o c o n t r a a polícia, q u e a C o n s t i t u i ç ã o de
Weimar. 5

Considerando a f i r m e convicção de que n o período de entreguerras as assem-


bléias supêrpoderosas e litigantes destruíram a democracia, n ã o s u r p r e e n d e q u e
m u i t a gente t a m b é m quisesse u m Executivo mais forte. A A l e m a n h a Ocidental
criou o q u e alguns c h a m a r a m de "democracia d o chanceler" e outros — mais con-
t u n d e n t e m e n t e — de " D e m o k r a t u r " ( u m m i s t o de d e m o c r a c i a e ditadura). A
França, p o r é m , m o s t r o u c o m o era difícil pedir aos parlamentares q u e renuncias-
sem v o l u n t a r i a m e n t e ao poder. Nesse aspecto, a Q u a r t a República p o u c o diferia
d e sua predecessora: conferiu mais p o d e r ao P a r l a m e n t o , e só e m 1958, c o m o

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apoio de u m a população exasperada, De Gaulle conseguiu criar u m regime mais
presidencial. N a Itália t a m b é m o n o v o r e f e r e n d o de 1946 aboliu a m o n a r q u i a ,
e n t r e t a n t o alterou poucas f o r m a s do p r o c e d i m e n t o parlamentar pré-fascista.
A m o d e r a ç ã o era a nova v i r t u d e : explicitamente na Itália e na A l e m a n h a
(onde os aliados previram forte oposição da direita depois da guerra) e implicita-
m e n t e e m outros países, os governos c o m p r o m e t e r a m - s e a reprimir m o v i m e n t o s
políticos antidemocráticos. A Lei F u n d a m e n t a l da Alemanha Ocidental, p o r exem-
plo, r e g u l a m e n t o u o papel d o partido político, definiu sua estrutura democrática
e lhe impôs a obrigação de obedecer à Constituição. E m alguns casos suas disposi-
ções l e v a r a m a C o r t e Federal C o n s t i t u c i o n a l a banir p a r t i d o s neonazistas. N o
entanto, tais medidas n ã o devem ter sido o principal motivo do d e s e m p e n h o rela-
tivamente medíocre da extrema direita nas eleições d o pós-guerra. Mais significa-
tivo, além da antipatia popular, foi o sucesso da direita tradicional e m atrair para
*

suas fileiras os partidários naturais dos extremistas. A indulgência de Adenauer e


, dos democrata-cristãos italianos a j u d o u a neutralizar a extrema direita.
Apesar de toda a repulsa q u e essas táticas inspiram hoje e m dia, n ã o é eviden-
te que, n o longo prazo, u m a completa marginalização da direita teria proporcio-
n a d o m a i o r segurança às novas e fragilíssimas democracias. Cabe l e m b r a r q u e a
direita antidemocrática p r e d o m i n a r a e m boa p a r t e da Europa nos anos 1930. N ã o
parecia impossível q u e recuperasse sua popularidade n o pós-guerra imediato: as
pesquisas de opinião dos aliados indicavam q u e os alemães n ã o t i n h a m g r a n d e
apego à democracia. Refugiados nacionalistas da Prússia Oriental, da Silésia e dos
Sudetos relutavam e m renunciar a seus sonhos de Heimat. "Os refugiados são para
u m d e m a g o g o o que o sangue n a água é para u m tubarão, e o p r o b l e m a criado p o r
eles é s u f i c i e n t e m e n t e grave p a r a p r o v o c a r u m a situação revolucionária", The
Times alertou e m d e z e m b r o de 1950, p e n s a n d o n o passado. A d e n a u e r p o d e ter
d a d o e m p r e g o e p r o t e ç ã o a u m n ú m e r o escandaloso de ex-nazistas (em 1952, cerca
de 34% dos funcionários do Ministério do Exterior haviam sido m e m b r o s d o par-
tido), mas foi magistral e m d e s a r m a r o voto potencialmente explosivo dos refugia-
dos na década de 1950 e início da de 1960. Se n ã o tivesse desmantelado o naciona-
lista Partido dos Refugiados e levado u m a de suas facções para a CDU, os milhões
de alemães p r o c e d e n t e s da E u r o p a oriental possivelmente t e r i a m a m e a ç a d o as
próprias bases da nova República Federal. 6

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tf
ft óbvio que houve m e n o s transigência c o m a extrema esquerda: na primeira
década da G u e r r a Fria, governos de tendência conservadora sentiram-se mais à
vontade excluindo a esquerda q u e a direita. O Partido Comunista foi proibido na
f Alemanha Ocidental e na Grécia e tolerado p o r é m hostilizado e m outros lugares.
E m toda a E u r o p a ocidental os guardiães nacionais d o a n t i c o m u n i s m o — sobretu-
do na polícia e nos serviços de segurança — a t u a r a m j u n t o c o m os c o m b a t e n t e s
americanos da G u e r r a Fria, cujo centro, o D e p a r t a m e n t o de Coordenação Tática
da CIA, viu seu o r ç a m e n t o passar de 4,7 milhões de dólares n o início de 1949 para
200 milhões e m 1953. O a n t i c o m u n i s m o era u m a indústria florescente.'/
/Os governos e u r o p e u s a j u d a r a m a j o v e m CIA a testar suas novas teorias de
\ g u e r r a psicológica contra a esquerda, atacando o c o m u n i s m o p o r m e i o de anún-
cios, publicações culturais, exposições itinerantes e filmes. Os partidos Socialista e
Trabalhista receberam ajuda e m sua disputa c o m os comunistas pelo controle dos
sindicatos. N o auge da G u e r r a Fria, t e m e n d o que os russos invadissem o Ocidente,
os americanos f o r n e c e r a m recursos a p o u c o s comunistas confiáveis para que orga-
nizassem a resistência a r m a d a , e x a t a m e n t e c o m o o c o r r e r a d u r a n t e a o c u p a ç ã o
nazista. Só n o final dos anos 1980 e início dos 1990 o público t o m o u conhecimen-
to dessas células bizarras, de suas ligações c o m os serviços secretos na Itália e na
Bélgica e de seu envolvimento c o m o t e r r o r i s m o de direita. 8
Essa paranóia desapareceu ao t e r m i n a r a G u e r r a da Coréia, c o n t u d o muitas
instituições do novo Estado de "segurança nacional" p e r m a n e c e r a m : os serviços de
espionagem da Europa ocidental expandiram-se e n o r m e m e n t e e o exame para car-
gos públicos tornou-se praxe. N o Reino Unido, p o r exemplo, o governo Attlee rejei-
t o u propostas de u m parlamentar conservador para f o r m a r u m a comissão parla-
m e n t a r de i n q u é r i t o sobre atividades não-britânicas, m a s criou u m a comissão
secreta para investigar atividades subversivas e deu início à avaliação negativa" n o
funcionalismo. A "avaliação positiva", m u i t o mais voltada para as opiniões e o pas-
sado dos candidatos, iniciou-se e m 1950 por insistência dos americanos: u m proces-
so originalmente previsto para cerca de mil postos envolveu 68 mil deles e m 1982.9
A p o p u l a ç ã o n ã o d e m o n s t r o u g r a n d e p r e o c u p a ç ã o c o m as c o n s e q ü e n t e s
violações das liberdades civis. E m p a r t e p o r q u e desconfiava das i n t e n ç õ e s dos
soviéticos e m relação à E u r o p a ocidental e s o b r e t u d o p o r q u e achava q u e "todos
os -ismos agora p e r t e n c e m ao passado". A g u e r r a lhe inspirara p r o f u n d a antipa-
tia à política ideológica. Refletiam isso as novas atitudes dos principais partidos
políticos, q u e se afastavam da antiga radicalização para adotar a conciliação. A
esquerda e a direita estavam se e n t e n d e n d o c o m a democracia p a r l a m e n t a r e dei-
x a n d o de lado suas ressalvas. 10

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Para a esquerda o f i m da g u e r r a originalmente anunciou o "período triunfal"
do socialismo, nas palavras de Léon Blum. "Depois de Hitler, nós!", p r o c l a m o u o
social-democrata alemão Rudolf Breitscheid. N ã o seria b e m assim. A nova era de
reconstrução social n ã o se basearia e m princípios socialistas, c o m o Blum pensara.
O fascismo fora derrotado, p o r é m a ameaça comunista apresentava sérios proble-
m a s para os socialistas; fora d o Reino Unido o marxismo era o cordão umbilical
que os unia, e até os socialistas anticomunistas — u m a raça cada vez mais c o m u m
— achavam difícil cortá-lo. Além disso, t a n t o o capitalismo c o m o o conservadoris-
m o revelaram-se mais persistentes e até m e s m o mais populares na Europa ociden-
tal do q u e parecia possível na época tenebrosa da ocupação nazista, e os socialistas
t i n h a m de conviver c o m essa realidade. Assim, a euforia inicial da esquerda cedeu
lugar a u m a d e m o r a d a revisão da relação entre socialismo, capitalismo e classe."
''Em alguns países o a f a s t a m e n t o d o marxismo c o m e ç o u praticamente quan-
do a g u e r r a t e r m i n o u . Na Holanda, p o r exemplo, o Partido Social-Democrata dos
Trabalhadores m u d o u o n o m e para Partido Trabalhista Holandês, t e n t a n d o tor-
nar-se mais a t r a e n t e e atenuar seu caráter classista. Na A l e m a n h a Ocidental, na
Suécia e na Áustria o processo o c u p o u os social-democratas e m fins da década de
1950 e nos anos 1960. A oposição a r e f o r m a s p e r d u r o u ainda mais na França e na
Itália, c o m suas fortes tradições marxistas, e s o b r e t u d o n o P a r t i d o Trabalhista
inglês, esse baluarte d o não-marxismo. Entretanto, m e s m o nesses países os socia-
listas tiveram de reconhecer, de u m m o d o ou de outro, a verdade das u r n a s e da
economia: o único jeito de evitar a extinção gradativa consistia e m deixar o g u e t o
da política classista e f i r m a r - s e e m bases mais amplas.^Gaitskell, p o r e x e m p l o ,
advertiu q u e o Partido Trabalhista estava fadado à derrota se n ã o considerasse o
"caráter cambiante da classe trabalhadora, o pleno emprego, o novo sistema habi-
tacional, o novo estilo de vida centrado na televisão, na geladeira, n o carro e nas
revistas enganosas". Por sua vez, Richard Crossman a r g u m e n t o u q u e o capitalis-
m o controlado n ã o conseguiria resultados equiparáveis aos da planificação à m o d a
soviética vigente na E u r o p a oriental; mas na realidade n e m o Partido Trabalhista
britânico n e m qualquer o u t r o m o v i m e n t o socialista de peso atacou radicalmente
as virtudes d o capitalismo d o pós-guerra. 1 2

A direita explorou a G u e r r a Fria c o m maior eficácia. Menos carregada de teo-


rias e d o g m a s q u e a esquerda, capaz de abraçar o a n t i c o m u n i s m o c o m m a i o r faci-
lidade e mais sintonizada c o m o desejo geral de tranqüilidade política, estabilidade
familiar e privacidade na década de 1950, a direita pragmática reconsiderou seus

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i m p u l s o s a u t o r i t á r i o s e criou m o v i m e n t o s p o d e r o s o s , e m p e n h a d o s na d e m o -
cracia e p a r t i l h a n d o m u i t a s das p r e o c u p a ç õ e s sociais da esquerda. O P a r t i d o
Conservador britânico, cauteloso c o m a política fiscal n o entreguerras, sucumbiu ao
toryism de " U m a só nação": os governos conservadores da década de 1950 dedi-
caram-se t a n t o q u a n t o os trabalhistas a u m a política nacional da habitação, p o r
exemplo. O n d e o liberalismo e c o n ô m i c o sobreviveu, c o m o na A l e m a n h a Oci-
dental e na Itália, competiu e conciliou-se c o m tradições m u i t o diferentes: pater-
nalismo católico, preocupação social, antimaterialismo. A ascensão dos partidos
democráticos católicos foi crucial. A CDU alemã, p o r exemplo, propôs u m a "econo-
mia de m e r c a d o socialmente c o m p r o m e t i d a " c o m o u m a terceira via entre o lais-
sez-faire e a planificação estatal."

Assim, a velha polarização e o a n t a g o n i s m o de classes entre a esquerda e a


direita p o u c o a p o u c o cederam lugar à ênfase n o consenso. N o caso extremo, c o m o
na Áustria, o resultado foi u m a g r a n d e coalizão de esquerda e direita (1945-66), cuja
durabilidade refletiu a determinação de evitar o conflito ideológico depois da guer-
ra civil e m que ambas as partes se c o n f r o n t a r a m , na década de 1930: o Estado bipar-
tidário de Viena revelou-se, de fato, m u i t o mais invulnerável q u e o m o n o p a r t i -
dário. A coalizão t o r n o u - s e p r a x e nos p a r l a m e n t o s ocidentais, u m a f o n t e de
instabilidade na França, p o r é m não e m países c o m o a Itália ou a Dinamarca, o n d e
as freqüentes m u d a n ç a s de governo encobriam a p e r m a n ê n c i a de pelo m e n o s u m
dos principais p a r t i d o s n o poder. Na m é d i a , os g o v e r n o s da E u r o p a ocidental
f o r a m u m t a n t o e f ê m e r o s e m boa parte do pós-guerra, m a s parece que isso n ã o
provocou insatisfação c o m a política democrática e h o u v e relativamente p o u c o s
protestos ou explosões de violência popular. Essa tolerância pública — tão oposta
à atitude hostil d o entreguerras—deveu-se principalmente ao fato de que o ressur-
g i m e n t o da democracia coincidiu c o m o p e r í o d o mais extraordinário de cresci-
m e n t o e c o n ô m i c o sustentado da história. E n q u a n t o a população vivia c o m mais
c o n f o r t o e prosperidade, o sistema político colhia os frutos. 14

O MILAGRE DO CRESCIMENTO

A princípio não foi fácil prever o extenso crescimento e c o n ô m i c o que trans-


formaria o Ocidente nas duas décadas posteriores a 1950. L e m b r a n d o a experiên-
cia dos anos q u e se seguiram à Primeira G u e r r a Mundial, a maioria dos especialis-

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tas prognosticava u m boom n o pós-guerra e logo depois u m declínio. Caindo de
12% ao ano, e m 1947-8, para 5% e m 1949-50, a produção industrial da Europa oci-
dental parecia confirmar seu ceticismo. E m 1951, o Economist observou com tris-
teza que "no terceiro ano do Plano Marshall, cujo êxito superou a expectativa, e m
condições de prosperidade e recuperação de padrões de vida — e m suma, n o que
devia ser u m b o m ano —, u m quarto dos eleitorados francês e italiano votou nos
comunistas [...] Praticamente ninguém partilha a crença dos russos e dos america-
nos nas possibilidades de progresso".
O desânimo c o m o f u t u r o mais distante era evidente. O governo holandês
incentivou a emigração, considerando que o país provavelmente não conseguiria
resolver seu p r o b l e m a de d e s e m p r e g o p o r m e i o d o crescimento i n t e r n o ; e m
m e n o s de u m a década a Holanda estaria importando mão-de-obra. Na Alemanha
Ocidental muitos economistas profetizaram que a perda de terras produtivas na
Prússia Oriental e na Silésia acarretaria u m a escassez de alimentos crônica e que os
desempregados percorreriam as ruas c o m o antes da guerra, carregando cartazes
q u e indicavam seu desejo de e n c o n t r a r trabalho. O impacto da G u e r r a Fria na
segurança dos negócios refletiu-se n o ceticismo do agricultor francês Lucien
Bourdin, que disse a u m estudioso americano: "Plantar u m p o m a r de abricó para
os russos e os americanos o usarem c o m o campo de batalha? Muito obrigado. Não
sou tão burro". 15
/ E m 1953, a Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa concluiu
friamente que o "progresso geral da economia da Europa ocidental n ã o foi encora-
jador"/As pressões dos balanços de pagamentos freavam a expansão. A comissão
mostrou-se pessimista q u a n t o às possibilidades de ocorrer u m crescimento do
emprego sem que a inflação fugisse ao controle no que chamou de "economia da
empresa privada". Até então o crescimento fora desigual e se baseara e m fatores
internos, havendo poucos indícios de cooperação internacional, de m o d o que "não
está claro que se tenha revertido a histórica tendência para a autarquia nacional". 16
A experiência de alguns países da Europa ocidental c o n f i r m o u a sombria con-
clusão. A "autarquia nacional" foi j u s t a m e n t e a estratégia e c o n ô m i c a adotada
pelos fósseis autoritários da península Ibérica e pelo governo conservador católico
da Irlanda. O resultado foi u m inequívoco fracasso, c o m crescimento lento e altos
níveis de desemprego ou subemprego, o que chamava menos a atenção à medida
que a década avançava e o restante da Europa ocidental progredia. Exportar deze-
nas de milhares de trabalhadores a n u a l m e n t e — c o m o esses países f i z e r a m — p a r a

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aproveitar o boom equivaleu a r e c o n h e c e r a d e r r o t a . N o final dos a n o s 1950, a
Irlanda e a Espanha d e r a m u m a guinada espetacular e abraçaram a modernização:
Portugal — sob o governo de Salazar, seu professor de economia pré-keynesiana
— manteve-se à margem. 17 1!
y , A essa altura n ã o podia haver dúvida sobre a natureza excepcional do cresci-
m e n t o e c o n ô m i c o (mais rápido e fácil q u e nunca) n o resto da Europa ocidental.
Entre 1913 e 1950, o crescimento per capita na região foi de 1% ao ano; entre 1950
e 1970, subiu para incríveis 4% J/Em geral, as oscilações nos negócios que tanto aba-
l a r a m os empresários antes de 1939 c e d e r a m lugar a flutuações mais suaves. O
desemprego maciço do pré-guerra parecia ter acabado para sempre: suas taxas caí-
r a m de u m a média de 7,5% nos anos 1930 para m e n o s de 3% e m 1950-60 e para
1,5% na década seguinte. "Hoje e m dia, considera-se que 1 milhão de desemprega-
dos, ou mais, é u m a possibilidade desastrosa", escreveu e m 1967 u m observador
inglês. "Significaria decisivamente u m fracasso nacional." Logo se passou a ver o
pleno e m p r e g o não c o m o u m a conquista precária e difícil, e sim c o m o parte natu-
ral de u m a economia capitalista m o d e r n a e cientificamente administrada. "V
H o u v e substanciais diferenças de d e s e m p e n h o entre os países. Na Áustria, na
Alemanha Ocidental, na França, na Itália e na H o l a n d a o crescimento foi relativa-
m e n t e rápido; na Inglaterra e na Bélgica foi u m p o u c o mais lento. Algumas econo-
mias saíram-se m e l h o r na década de 1950 que na de 1960; e m outras ocorreu o con-
trário. O q u e realmente importa, p o r é m , é que e m todos os casos o crescimento
superou todos os níveis registrados até então. M e s m o a vagarosa Inglaterra, cujo
d e s e m p e n h o assustava os analistas locais, cresceu mais depois de 1950 — 3% ao
ano — q u e entre 1913 e 1950, período e m que a média foi de 1,3%, ou que entre
1870 e 1913 — c o m média de 1,9%."
Ainda se discutem calorosamente as causas dessa façanha inédita, c h a m a d a
"milagre econômico". U m a mão-de-obra a b u n d a n t e — na f o r m a de refugiados e
camponeses desempregados — pode ter m a n t i d o os salários baixos e estimulado
os investimentos. Mas na península Ibérica n ã o bastou para p r o m o v e r o crescimen-
to, assim c o m o não bastara para gerar prosperidade na década de 1930. Trata-se de
u m fator positivo, q u e contribuiu para o crescimento o n d e havia outras circunstân-
cias favoráveis.
/ / C o m o capital ocorreu algo semelhante. A destruição de fábricas d u r a n t e a
guerra foi m u i t o m e n o r do que se acreditava a princípio. Na verdade, consideran-
d o a t r e m e n d a expansão de capacidade na época do conflito, restam poucas dúvi-

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v< , ,
das de que depois de 1945 a E u r o p a ocidental possuía u m estoque de capital m a i o r
que e m 1939 e o via crescer r a p i d a m e n t e . O rígido controle de crédito e investi-
m e n t o p o r p a r t e d o governo, b e m c o m o o r a c i o n a m e n t o e outras f o r m a s de pou-
pança compulsória, m a n t i n h a o c o n s u m o baixo e os investimentos altos — 1 6 , 8 %
d o PNB e m 1950-70, contra 9,6% e m 1928-38. Entretanto, esse q u a d r o refletia n ã o
só a disponibilidade de capital, mas t a m b é m a disposição das autoridades para dire-
cionar seu e m p r e g o e a disposição da população para renunciar ao c o n s u m o por
u m f u t u r o melhor. 20
/ A mitologia da época g e r a l m e n t e atribuía a recuperação européia ao Plano
Marshall, a maciça contribuição financeira que n o verão de 1947 os Estados Unidos
se p r o p u s e r a m a dar à E u r o p a ocidental p o r iniciativa d o secretário de Estado
George Marshall. Sem dúvida, o sólido c o m p r o m i s s o econômico, político e mili-
tar dos Estados Unidos c o m a E u r o p a ocidental foi f u n d a m e n t a l para que a recu-
peração n o segundo pós-guerra tivesse m a i o r sucesso q u e n o primeiro. C o n t u d o ,
e m t e r m o s p u r a m e n t e quantitativos, h o j e está claro que, exceto na Grécia e, tal-
vez, na Itália, o Plano Marshall teve m e n o s importância econômica que seus pro-
pagandistas — o u seus opositores — alardearam. A maior parte dos investimentos
e u r o p e u s foi gerada i n t e r n a m e n t e , e os índices de crescimento n ã o s u p e r a r a m os
da E u r o p a oriental, cujos países, longe de usufruir o Plano Marshall, financiavam
sua s u p e r p o t ê n c i a , da q u a l n ã o r e c e b i a m ajuda n e n h u m a . O q u e os f u n d o s d o
Plano Marshall r e a l m e n t e f i z e r a m foi m i n o r a r o p r o b l e m a das divisas, f o r n e c e n d o
dólares escassos e p e r m i t i n d o a continuidade d o crescimento. 2 ^'
.. Os americanos a j u d a r a m a m u d a r o capitalismo e u r o p e u ( c o m e ç a r a m a fazê-
lo antes da guerra), t r a n s f o r m a n d o as relações industriais, p r e g a n d o o evangelho
da administração científica e m o d e r n i z a n d o m é t o d o s de trabalho e equipamentos.
O a u m e n t o da produtividade, n u m a média de a p r o x i m a d a m e n t e 4% ao ano, sem
dúvida corroborava o boom. Os artífices d o plano e outros propagandistas do "esti-
lo americano" criaram u m a infinidade de conselhos de produtividade, p r o g r a m a s
de intercâmbio de líderes sindicais e administradores, publicações e exposições. N o
final da década de 1940, u m a época de considerável agitação entre os trabalhado-
res, exaltou-se a "produtividade" c o m o u m a alternativa ideológica para a luta de
classes, u m m e i o de a u m e n t a r salários e lucros. 22
/o
debate sobre o Plano Marshall evidenciou a importância de outros aspec-
tos da influência econômica americana — n ã o só o novo evangelho da produtivi-
dade c o m o atitudes relativas a política fiscal, estratégia de investimentos e h a r m o -
290
nia social. Os planejadores g e r a l m e n t e tentavam incentivar os políticos d o Velho
M u n d o a p r o m o v e r o a u m e n t o do c o n s u m o (para reduzir a insatisfação social e a
possível disseminação do vírus do c o m u n i s m o ) e a libertar-se das rígidas hierar-
quias sociais d o passado, n u m a espécie de N e w Deal e u r o p e u .
h Mais importante, talvez, n o longo prazo, foi o impacto político da presença
americana na Europa ocidental. A G u e r r a Fria — que atingiu o auge n o início dos
anos 1950 — provocou m e d o e susto, mas t a m b é m u m g r a u maior de cooperação
e n t r e os Estados-nação da região. E u r o p e u s astutos, c o m o Bevin e S c h u m a n ,
A ç o d e m ter f r u s t r a d o a planificação coordenada q u e W a s h i n g t o n desejava para o
<s
Xv> ^ continente. Entretanto, os americanos n ã o ofereceram dinheiro e segurança sem
i m p o r condições que — obrigando os beneficiários a alguma f o r m a de diálogo entre
as nações — m u d a r a m o contexto econômico internacional da Europa ocidental.
Principalmente, lançaram as bases da extraordinária revivescência d o comércio que
esteve n o centro do boom ocorrido e m m e a d o s da década de 1950. Às voltas c o m seus
dispendiosos compromissos imperiais, a França e sobretudo a Inglaterra estavam
m e n o s p r o p e n s a s a aproveitar essas o p o r t u n i d a d e s q u e o Benelux, a A l e m a n h a
Ocidental ou a Itália. Todavia, p o r intermédio da União Européia de Pagamentos e,
mais tarde, da C o m u n i d a d e Econômica Européia — encorajadas por políticos ame-
ricanos —, o comércio internacional floresceu n o Velho Mundo. Assinalando a rapi-
dez c o m q u e os alemães a b a n d o n a r a m suas obsessões p o r t e r r a e autarquia,
-AjtElizabeth W i s k e m a n n c o m e n t o u , e m 1956: ' N u m a E u r o p a q u e p r e t e n d e evitar
.o*" grandes recessões n o comércio e suas conseqüências, que se esforça para chegar à
integração pacífica e cujas comunicações parecem eliminar distâncias, o objetivo da
auto-suficiência nacional, ao que t u d o indica, tornou-se irrelevante".23,.^

Os governos e u r o p e u s não foram, p o r é m , beneficiários passivos da generosi-


dade americana. C o n s e g u i r a m impedir u m r e t o r n o ao isolacionismo, a t r a i n d o
n o v a m e n t e Washington c o m suas histórias tenebrosas sobre a ameaça comunista.
Se agora os americanos e r a m os imperialistas, estavam ali "a convite", segundo a
expressão usada p o r Lundestad. Os europeus t a m b é m t i n h a m suas prioridades e
suas estratégias, e devemos analisar o boom d o pós-guerra à luz de suas escolhas
internas. Por certo as velhas preocupações c o m inflação (em especial d u r a n t e a
G u e r r a da Coréia), balanço de p a g a m e n t o s e o r ç a m e n t o equilibrado n ã o se dissi-
p a r a m : sobreviveram particularmente e m países c o m o a Itália e a Alemanha, que
*

y - saíram do passado recente c o m u m a p r o f u n d a desconfiança d o étatismefNa déca-


r y. da de 1960, c o n t u d o , os governos da E u r o p a ocidental colocavam o controle da
r J
^>5r ,
N 291

vf
demanda, o pleno emprego e o crescimento econômico acima da estabilidade de
preço. E m outras palavras, dispunham-se, mais que nunca, a aceitar determinado
nível de inflação e m troca da prosperidade. "Em todos os países europeus o cresci-
m e n t o econômico tornou-se u m credo universal e u m a expectativa geral que os
governos deviam acatar", escreveu Postan. "Nessa medida o crescimento econô-
mico foi p r o d u t o da capacidade de crescer economicamente." 2 4
Podemos mapear c o m razoável precisão o desenvolvimento do novo credo.
N o início da década de 1950, os relatórios anuais da recém-criada OECE (Organi-
zação Européia de Cooperação Econômica) ressaltaram a necessidade de aumen-
tar a produtividade para viabilizar a expansão. E m 1956, utilizaram pela primeira
vez o t e r m o "crescimento econômico". Q u a n d o se transformou na OCDE [Organi-
zação de Cooperação e Desenvolvimento Econômico], e m 1960, o artigo primeiro
da carta de fundação definiu seu objetivo nos seguintes termos: 'Alcançar o maior
crescimento econômico e o maior nível de emprego sustentáveis e u m padrão de
vida ascendente nos países-membros". O credo do crescimento e n c o n t r o u seu
evangelho e m The stages of economic growth, de Walt Rostow. Subintitulada
"Manifesto não-comunista", a obra explica o "salto" para a prosperidade c o m o u m
processo histórico universal. 2 |'
//A. "capacidade de crescer economicamente" não se restringia aos círculos ofi-
ciais. N o setor privado t a m b é m a incerteza do início dos anos 1950 cedeu lugar à
confiança, e os investimentos particulares a u m e n t a r a m j u n t o com os públicos. Na
verdade, o que há de surpreendente n o boom do pós-guerra é a maneira c o m o os
setores público e privado chegaram a u m a simbiose m u t u a m e n t e aceitável e bené-
fica. Ò espírito igualitário da libertação desapareceu, e o ataque socialista ao capi-
talismo não se materializou; a planificação cedeu lugar à nacionalização, depois à
"direção" e à "orientação". A economia planificada q u e a CDU p r o m e t e r a à Ale-
m a n h a n o c o m e ç o de 1947 se esvaiu ante o triunfo da " e c o n o m i a de m e r c a d o
social", de Ludwig Erhard. Na Inglaterra, o n d e os trabalhistas pareciam inicial-
m e n t e tão hostis ao setor privado, os empregadores receberam u m t r a t a m e n t o res-
peitoso que teria surpreendido, por exemplo, as autoridades holandesas, mais dire-
tivas; até m e s m o na França a "planification" g o z o u de g r a n d e independência e
n e m por isso teve m e n o s sucesso. Andrew Shonfield, talvez o analista mais arguto
da nova economia européia, perguntou: "O que fez o capitalismo passar do fracas-
so cataclísmico q u e parecia ser na década de 1930 ao g r a n d e m o t o r da prosperi-

292
dade no m u n d o do pós-guerra?". E respondeu: "O instável equilíbrio dos poderes
público e privado". 26
Contrariando os receios expressos em 1953 pela Comissão Econômica das
Nações Unidas para a Europa, as economias de livre empresa atingiram altos índi-
ces de investimento e crescimento, rivalizando com as do Leste europeu. Empre-
sários beneficiaram-se com o controle da demanda e a política de pleno emprego
e puderam investir com maior segurança, cientes de que a administração contrací-
clica da economia pelo Estado estava atenuando as flutuações do mercado que
tinham infernizado a vida econômica do entreguerras. C o m o se acreditava que essa
administração repousava em bases científicas, não surpreende que Shonfield con-
cluísse, confiante, que não havia "motivo para supor que os padrões do passado [...]
se reafirmem no futuro". Política sensata, solidariedade social e cooperação insti-
tucional adaptável garantiram à Europa ocidental uma das mais notáveis realiza-
ções de sua história. 27

OS E S T A D O S D O B E M - E S T A R S O C I A L

fessa revivescência "inesperadamente estonteante" do capitalismo ocorreu


> • num mundo que aceitava a extensão do poder do Estado não só na esfera econô-
mica mas t a m b é m na área do bem-estar social. Muitos comentaristas da época
viram estreita ligação entre uma economia florescente e u m Estado assistencial
extenso. "Sem o fundamento de políticas governamentais assistencialistas", afir-
m o u o reformista social-democrata Karl Schiller, "o sistema econômico de livre
mercado poderia ter soçobrado [...] O Estado do bem-estar social e a dinâmica eco-
nomia de mercado são mutuamente indispensáveis". 28 /
No período Thatcher tais idéias foram atacadas. Dizia-se que os gastos com o
bem-estar social haviam retardado o crescimento econômico, ao invés de promo-
vê-lo. O registro histórico não corrobora esse tipo de argumento, menos condizen-
te com a economia da década de 1950 que com a política da década de 1980. Na
Inglaterra os gastos com o bem-estar social correspondiam a uma proporção do PIB
m e n o r que na Alemanha Ocidental, por exemplo. Baixos gastos c o m serviços
sociais acompanhavam baixos índices de crescimento na Europa ocidental como
u m todo. 29

293
O envolvimento do Estado n o bem-estar social coincidiu c o m a consolidação
da democracia européia, e p o r isso alguns definiram o Estado d o bem-estar social
c o m o u m f e n ô m e n o essencialmente democrático. Afinal, o t e r m o surgiu e m opo-
' r v y sição a Hitler. E m 1950 Attlee declarou q u e seu g o v e r n o assentara "as bases d o
' 'A
Estado do bem-estar social", e ao cabo de poucos anos a expressão popularizou-se.
y
Parecia constituir u m m a r c o na relação entre o Estado e o indivíduo e talvez, c o m o
a p o n t o u o sociólogo T. H . Marshall, inaugurar u m novo e n t e n d i m e n t o da n o ç ã o
de cidadania n u m a democracia, c o m direitos sociais e econômicos acrescentados
aos políticos. 30
» ^ / M a s essa conexão entre democracia e bem-estar social, assinalada p o r Mar-
shall, refletia as experiências específicas da Inglaterra e da Suécia. E m outros países
a organização do bem-estar social n o pós-guerra demonstrava forte continuidade
c o m os r e g i m e s c o n s e r v a d o r e s e fascistas anteriores ao conflito, e n q u a n t o na
-r r Europa oriental surgiu sob o c o m u n i s m o . C o n v é m lembrar que o t e r m o "Estado
guardião da vida", que o advogado constitucional Ernst Forsthoff introduziu nas
discussões dos alemães ocidentais sobre política social, fora usado pela primeira vez
— e de m o d o a p r o v a d o r — p o r ele m e s m o e m 1938, n o contexto d o Terceiro Reich.
Na Itália do pós-guerra, os serviços sociais t a m b é m funcionavam basicamente p o r
m e i o da rede de agências semi-autônomas criadas na época de Mussolini."y
/No e n t a n t o , apesar dessas c o n t i n u i d a d e s de tradição, a S e g u n d a G u e r r a
M u n d i a l r e a l m e n t e s e p a r o u dois c o n t e x t o s políticos m u i t o diferentes. N o pós-

x r g u e r r a o m u n d o do Estado d o bem-estar social era de pleno emprego, rápido cres-


c i m e n t o d e m o g r á f i c o e relativa paz interna e externa. A política social d o entre-
guerras, p o r é m , atuara n u m cenário de d e s e m p r e g o maciço, receios de declínio
populacional, revolução, e x t r e m i s m o político e g u e r r a . E m a m b a s as épocas o
Estado t o m o u a iniciativa, mas, se antes de 1940 visava proteger a saúde da coleti-
vidade, da família e s o b r e t u d o da nação, depois de 1945 buscava principalmente
~ ~ r l , expandir as o p o r t u n i d a d e s e as escolhas do cidadão c o m o indivíduo. Cada período
reagiu contra seu predecessor: o pós-1918 contra o individualismo liberalista de
m e a d o s d o século xix; o pós-1945 c o n t r a o coletivismo d o e n t r e g u e r r a s . Nessa
medida, Marshall a c e r t o u e m cheio ao enfatizar a cidadania.

v
O Estado d o bem-estar social do pós-guerra refletia, e m toda a E u r o p a ociden-
' tal, a l g u m a s diferenças reais n o t o c a n t e a filosofia e instituição. E n q u a n t o a

294

<
Alemanha Ocidental, c o m o o Reino Unido, tinha u m a política habitacional ambi-
ciosa e c o n s t r u í a a n u a l m e n t e c e n t e n a s de milhares de m o r a d i a s populares, o
"saque de R o m a " e a selva de concreto que se erguia ao redor de Atenas atestavam
o desinteresse d o Estado pela habitação na E u r o p a meridional. O sistema de b e m -
estar social britânico era financiado pela tributação nacional, prestava serviços gra-
tuitos e tinha p o r objetivo proporcionar u m m í n i m o básico a todos os cidadãos. Já
na França, na Bélgica e na Alemanha o governo apoiava planos de seguro voluntá-
rios e m q u e as contribuições e r a m proporcionais à renda. Nesses sistemas, as con-
dições d o bem-estar social p e r p e t u a v a m diferenças de renda e de status — eram,
portanto, basicamente conservadoras e m seu impacto social —, ao passo que na
Suécia o Estado atuava n o extremo oposto, intervindo para reduzir a desigualdade
salarial. Assim havia, segundo u m estudioso, pelo m e n o s "três m u n d o s " ou mode-
los de capitalismo do bem-estar social na Europa ocidental: o católico conservador,
o liberal e o social-democrata.

/ E m toda parte, p o r é m , as despesas do Estado c o m os serviços sociais a u m e n -


tavam. N o Reino Unido, correspondiam a 11,3% d o PIB e m 1938,16,3% e m 1955 e
23,2% e m 1970. N o m e s m o período, o total dos gastos públicos passou de 30% d o
PIB para 47,1% e m 1970, sendo p r a t i c a m e n t e a m e t a d e c o m serviços sociais. Na
maior parte da Europa ocidental os gastos públicos cresceram p r o p o r c i o n a l m e n t e
à renda nacional, e ao m e s m o t e m p o sua c o m p o s i ç ã o m u d o u : a p o r c e n t a g e m
reservada à defesa baixou e a destinada ao bem-estar social subiu. C o m o a renda
nacional a u m e n t a v a r a p i d a m e n t e , e m f u n ç ã o d o boom, as despesas c o m o b e m -
estar social per capita dispararam, sobretudo n a década de 1960, voltando a cair n o
c o m e ç o da década seguinte. Ademais, d u r a n t e os dois decênios d o boom econômi-
co as diferenças entre vários países t o r n a r a m - s e m e n o s evidentes. E m 1950, p o r
exemplo, só na Dinamarca, na Inglaterra, n a N o r u e g a e na Suécia a p r o p o r ç ã o de
trabalhadores c o m cobertura contra acidente, saúde, velhice e d e s e m p r e g o supe-
rava 70%; e m 1970, esse n ú m e r o fora alcançado e m toda a E u r o p a ocidental, exce-
to na Grécia, e m Portugal e na Espanha.' 2

Generalizando, a g u e r r a parecia ter criado — ou i n t e n s i f i c a d o — u m a d e m a n -


da de solidariedade social, e n q u a n t o o crescimento e c o n ô m i c o gerava os recursos
q u e sustentavam esse quadro. N ã o se deve esquecer, n a t u r a l m e n t e , que a m u d a n -
ça de a t i t u d e s se aplicava à receita, b e m c o m o aos gastos: e m o u t r a s palavras,
depois de 1945 as pessoas que contavam c o m a segurança do pleno e m p r e g o acei-
t a v a m índices tributários impensáveis dez o u vinte anos antes. O m o t i v o dessa

295
aceitação continua sendo u m a incógnita para os historiadores — a história da tri-
butação não é das mais sedutoras —, p o r é m constitui u m a característica funda-
mental da evolução da sociedade européia ocidental do pós-guerra, estabelecendo
a distinção entre sua experiência do capitalismo e a dos Estados Unidos ou da Asia.33
Curiosamente, talvez, a expansão das responsabilidades do Estado nos anos
1950 e 1960 fez-se acompanhar de u m a crescente desilusão. "Todos os impulsos e
ideais de recriar, reconstruir e replanejar, presentes na década de 1940, desapare-
ceram", l a m e n t o u o teórico social Richard Titmuss. As expectativas crescentes
decerto alimentaram as esperanças e as demandas e elevaram os limiares da pobre-
za. E n t r e t a n t o , n ã o f o r a m i n t e i r a m e n t e responsáveis pela " r e d e s c o b e r t a da
pobreza", n o início dos anos 1960, n e m pela preocupação mais c o m u m com a natu-
reza do bem-estar social disponível. Os limites da nova democracia do bem-estar
social tornavam-se claros. 34
À medida que se evaporavam as esperanças igualitárias da década de 1940,
' y constatava-se que o Estado assistencial pouco fizera para atenuar as desigualdades
econômicas. A distribuição de renda n ã o se alterou significativamente (fora da
• *

Escandinávia), já que não houve maiores tentativas de utilizar os impostos ou o sis-


f'" f* '
t e m a de benefícios para u m a redistribuição mais ampla. Então para q u e m foi cria-
(
do o Estado do bem-estar social? Parecia cada vez mais que não para os pobres, e
sim para os abastados, para a classe média e para aqueles elementos do velho pro-
f-x vj letariado que desfrutavam o pleno emprego. Essa suspeita corrobora u m a nova
visão das origens do Estado assistencial, que se tende a considerar hoje c o m o o
resultado não tanto da pressão do heróico proletariado quanto de grupos de inte-
resse da classe média, de intelectuais paternalistas e da aversão a riscos de todas as
yV camadas sociais. 3 ^
f
O que isso tinha de tão surpreendente? Era apenas mais u m exemplo de c o m o
a classe média do pós-guerra estabilizara a democracia na Europa ocidental utili-
zando agendas radicais e m benefício próprio. "À primeira vista pode parecer que a
bourgeoisie surrupiara, c o m o sempre, o q u e deveria ir para os trabalhadores",
Marshall escreveu. "Em tais circunstâncias, contudo, isso acabaria acontecendo
n u m a democracia livre e provavelmente continuará acontecendo n o Estado do
bem-estar social. Pois o Estado do bem-estar social não é a ditadura do proletaria-
do n e m se c o m p r o m e t e u a liquidar a bourgeoisie."36
O que alguns viam c o m o f r u t o do individualismo, da irresponsabilidade e do
egoísmo vigentes na década de 1950 outros, mais neutros, viam c o m o u m g r a u

296
maior de c o n s u m i s m o e afluência. C o n t u d o , o s u r g i m e n t o da sociedade afluente
propôs novos desafios ao Estado do bem-estar social, associado p o p u l a r m e n t e aos
anos de austeridade e baseado n u m princípio de universalidade que, e m face da ele-
vação dos padrões de vida, parecia m e n o s urgente e até "meio b o b o " . 'A socieda-
de consumista conseguiu expandir suas fronteiras e converter a seu próprio credo
seus antagonistas naturais", concluiu Marshall.

M O B I L I Z A Ç Ã O I N D I V I D U A L I S T A DA E U R O P A

"Muita gente de minha geração, que na década de 1930 considerava irremo-


vível o caráter deletério do capitalismo, viveu u m a i m p o r t a n t e experiência pessoal
ao t e s t e m u n h a r a m e t a m o r f o s e do sistema após a guerra", Shonfield escreveu e m
1965. Essa m e t a m o r f o s e podia ser interpretada negativamente — p o r socialistas
desiludidos — e m t e r m o s de u m a decrescente responsabilidade social e do declí-
nio dos objetivos igualitários da época d o conflito; e t a m b é m podia ser vista sob
u m a luz mais positiva, c o m o parte de u m a p r o f u n d a t r a n s f o r m a ç ã o social — que
Alessandra Pizzorno c h a m o u de "mobilização individualista" da Europa. O suces-
so d o capitalismo desgastou as rivalidades entre as classes e substituiu a política de
massas d o entreguerras, ativista e visionária, p o r u m a política de c o n s u m o e admi-
nistração mais fria. As pessoas queriam bens, n ã o d e u s e s . 3 /
É claro q u e as origens da sociedade de c o n s u m o e u r o p é i a são anteriores à
Segunda G u e r r a Mundial. Se os Estados Unidos de H e n r y Ford constituíram o pro-
tótipo, já na E u r o p a d o entreguerras podiam-se observar os primeiros sinais da
m u d a n ç a nas atitudes e aspirações que se tornaria tão evidente nas décadas de 1950
e 1960. Ao inaugurar o Salão do Automóvel de Berlim, e m 1934, Hitler declarara:

Visto que o automóvel continua sendo um meio de transporte exclusivo de círculos


particularmente privilegiados, milhões de indivíduos obedientes, diligentes e com-
petentes, que em muitos casos levam uma vida de oportunidades restritas, constatam
com azedume que lhes é vedado o acesso a um modo de transporte capaz de propor-
cionar-lhes um prazer desconhecido, sobretudo aos domingos e feriados. [...] É pre-
ciso retirar do automóvel o caráter de distintivo—e, portanto, de divisor—social que
lhe foi atribuído; o carro tem de deixar de ser um objeto de luxo para se tornar um
objeto de uso!38

297
Esse tipo de declaração esbarrava, p o r é m , nas realidades dos anos 193.0. As
dificuldades econômicas e a mobilização para a g u e r r a i m p e d i r a m q u e se vendes-
se u m único Volkswagen aos habitantes d o Terceiro Reich. Terminada a guerra,
entretanto, a tolerância popular c o m o r a c i o n a m e n t o e a austeridade desapareceu
r a p i d a m e n t e . E m b o r a reconhecesse o r a c i o n a m e n t o c o m o justo, o povo cada vez
mais exigia seu f i m e o restabelecimento do mercado. A partir de 1950, q u a n d o os
controles da época d o conflito caíram p o r terra, as características da nova cultura
de c o n s u m o t o r n a r a m - s e mais claras.
À p r o d u ç ã o de desejos precedeu a aquisição de mercadorias. Muito antes de
u m a minoria conseguir c o m p r a r os novos bens duráveis, publicitários e lojistas
revolucionaram suas práticas. E m 1953, o Guia d o Gerente, de Burton, aconselha-
va: "Crie u m desejo de possuir forte o bastante para superar u m a aversão natural a
gastar dinheiro, e você fará u m a venda após outra". O vendedor tradicional trans-
f o r m o u - s e . As m u l h e r e s , l o n g e d e ser ignoradas, r e c e b e r a m d e s t a q u e c o m o o
" m o t o r " da "vida m o d e r n a " : na década de 1950, os anunciantes viam-nas basica-
m e n t e c o m o donas-de-casas e nesses t e r m o s p r o c u r a v a m atingi-las. "Você n ã o
p o d e mais viver s e m eletricidade, café expresso e Coca-Cola", dizia u m anúncio
^ . " a l e m ã o . "Mas p o d e viver s e m cozinhar! Todas essas maravilhas agora são suas,
querida dona-de-casa! O q u e sua avó e sua m ã e padeciam para fazer c o m as pró-
prias mãos, u m a p e q u e n a m á q u i n a miraculosa conseguirá fazer e m q u e s t ã o de
segundos [...] M a n d e seu m a r i d o p ô r a m ã o n o bolso c o m u m p o u c o mais de entu-
siasmo!" "Para m i m a m u l h e r vinha e m primeiro lugar", c o m e n t o u u m empresá-
rio italiano; "depois dela, o cachorro, o cavalo e p o r f i m o h o m e m . " N o c o m e ç o da
década de 1960 a publicidade passou a distinguir as "mãezinhas" das "garotas tími-
das" e da j o v e m sexy, solteira, "cosmopolita", que as m o d e l o s popularizavam c o m
o novo estilo "saltitante". 3 ®

//O anúncio esnobe e antiquado, q u e de certo m o d o reconhecia a p e r m a n ê n c i a


d o status e das diferenças sociais, agora competia c o m o anúncio que fazia o com-
p r a d o r acreditar na possibilidade de subir alguns degraus na escala social. Os méto-
»

dos publicitários "americanos" visavam aos "novos caçadores de status [...] aos tra-
r- balhadores s u b u r b a n o s q u e t o m a m cerveja envelhecida e m vez de cerveja c o m u m ,
f u m a m cigarro c o m filtro e m vez de cigarro simples, c o m e m chocolate c o m u m e m
vez de chocolate ao leite, e aos jovens executivos q u e a c a b a r a m de adquirir u m a
casa c o m j a r d i m nos s u b ú r b i o s " . E m 1937, a p e n a s q u a t r o agências a m e r i c a n a s

298
t i n h a m filiais fora dos Estados Unidos; e m 1960, esse n ú m e r o saltou para 36, c o m
mais de 280 endereços. 40
Suas técnicas de classificar os c o m p r a d o r e s potenciais baseavam-se e m novas
disciplinas — pesquisa de mercado, testes e psicologia aplicada —, dissecadas p o r
' Georges Perec e m Les choses, r o m a n c e sobre o c o n s u m i s m o dos anos 1960. "A psi-
cologia, ciência que pensávamos estar a serviço da educação, t e m sido prostituída
para servir aos objetivos do vendedor, o manda-chuva da economia inflada", escre-
veu u m observador assustado. Vozes c o m o essa clamavam n o deserto: a publicida-
de p e r d e u a m á r e p u t a ç ã o q u e tinha antes da g u e r r a e se t o r n o u u m a atividade
e m p o l g a n t e e até glamourosa. 4 1
A revolução da publicidade alastrou-se pelos novos meios de comunicação: o
comercial de televisão surgiu e m m e a d o s da década de 1950, e n q u a n t o o n ú m e r o
crescente dos assinantes de telefone e s t i m u l o u o a p a r e c i m e n t o das Páginas
Amarelas, n o início dos anos 1960. N o m e s m o período, os j o r n a i s de d o m i n g o
c o m e ç a r a m a publicar suplementos coloridos c o m artigos e anúncios que exalta-
v a m os novos "estilos de vida" disponíveis. E o c o m p r a d o r ansioso até recebia ajuda
para se situar e m m e i o a essa proliferação de bens. E m 1957 a nova Association for
C o n s u m e r Research, apoiada pela American C o n s u m e r s ' Union, passou a publicar
Which?, que e m poucos anos conquistou quase m e i o milhão de leitores.
\</> /Satisfaziam-se mais depressa q u e antes os novos desejos assim criados e difun-
didos. As atitudes c o m relação a crédito e débito estavam m u d a n d o . O agricultor

J* francês via o crediário c o m o " u m a chaga p u r u l e n t a n o c o r p o do comércio", mas


sua opinião era contestada n ã o só pela difusão dos planos de vendas a p r a z o c o m o
pelos próprios bancos, p o r m e i o do "merchandising ativo de u m a série de serviços
cada vez mais voltados para clientes que n u n c a tiveram conta bancária". Graças a
essas inovações financeiras, teve início a revolução d o c o n s u m o . U m a inflação
m o d e r a d a a t u o u c o m o incentivo. "Do jeito c o m o os preços c o n t i n u a m subindo, é
burrice n ã o c o m p r a r o que se quer q u a n d o se quer — d e n t r o do razoável, é claro",
sentenciou e m 1961 u m cauteloso aldeão francês. njf

O " b e m viver" começava e m casa: t u d o indica q u e a c o m p r a de geladeira,


A m á q u i n a de lavar, televisor e o u t r o s eletrodomésticos constituía prioridade. As
V
vendas d o setor a u m e n t a r a m rapidamente, ressaltando-se, p o r é m , que as camadas
mais pobres d e m o r a r a m a desfrutar tais produtos. Nesse aspecto, os anúncios da
década de 1950 e início da de 1960 n ã o retratavam a realidade t a n t o q u a n t o propu-
n h a m o f u t u r o . E m 1959, p o r exemplo, cerca de três quartos dos executivos fran-

299
ceses t i n h a m carro, u m b e m acessível a u m quinto dos trabalhadores u r b a n o s e a
u m oitavo dos agricultores; m e n o r ainda era a p r o p o r ç ã o das pessoas que possuíam
televisor, u m aparelho q u e só se difundiu a m p l a m e n t e n o final dos anos 1960.
O carro era talvez o b e m de c o n s u m o mais importante. A p r o d u ç ã o anual da
indústria automobilística da E u r o p a ocidental saltou de 500 mil unidades e m 1947
para mais de 9 milhões e m 1967. Os proprietários passaram de 51 314 e m 1950 para
404 042 e m 1960 e para 876 913 e m 1966 na Áustria; de 342 mil para 4,7 m i l h õ e s
n a Itália e n t r e 1950 e 1964; de 1,4 m i l h ã o e m 1949 para 9,5 milhões e m 1962 na
Alemanha Ocidental. C o m o declínio d o uso das ferrovias, a rede rodoviária expan-
diu-se e m t o d o o continente. As obras da Paris Périphérique iniciaram-se já e m
1956; as da via expressa na m a r g e m direita d o Sena, e m 1967; e m o u t u b r o de 1964,
o arcebispo de Florença celebrou n u m posto de gasolina, ao n o r t e da cidade, u m a
ação de graças pela conclusão da Autostrada dei Sole, que u n e Milão e Nápoles. 4 3 /
Os c o n g e s t i o n a m e n t o s c r i a r a m a necessidade de especialistas e m planeja-
m e n t o de tráfego — q u e c o m p e t e m c o m os bombardeiros da época da g u e r r a na
devastação dos centros históricos das cidades européias —, de guardas de trânsito,
p a r q u í m e t r o s (que apareceram p o r volta de 1959) e sinalização de estacionamento
p r o i b i d o / Â partir do final da década de 1960, os carros t a m b é m e s t i m u l a r a m o
d e s e n v o l v i m e n t o de c o m p r a s f o r a das cidades, atingindo p e q u e n o s lojistas nos
centros u r b a n o s e reforçando a difusão dos novos supermercados. Na França, p o r
J^ exemplo, havia apenas quarenta supermercados e m 1960 e mais de mil e m 1970:
chegara a era dos Prisunic e dos M o n o p r i x / /
/ A elevação do p a d r ã o de vida t a m b é m estimulou os gastos c o m lazer. N ã o foi
p o r acaso q u e a Coca-Cola m a n t e v e d u r a n t e duas décadas seu slogan dirigido ao
y X* c o n s u m i d o r alemão: "Mach m a l Pause" ("Faça u m a pausa"). E m 1948, cerca de 3,1
m i l h õ e s de o p e r á r i o s ingleses t i n h a m duas s e m a n a s de descanso r e m u n e r a d o
p o r ano; e m m e a d o s dos anos 1950, esse n ú m e r o chegou a 12,3 milhões — pratica-
m e n t e toda a força de trabalho braçal. U m n ú m e r o m a i o r de pessoas tirava férias e
gastava mais c o m isso. A partir do final da década de 1960, pacotes de viagem para
o e x t e r i o r p o p u l a r i z a r a m - s e : e m 1971, a p e n a s u m t e r ç o d o s ingleses a d u l t o s
/ j á havia v i a j a d o p a r a fora d o país; e m 1984, apenas u m terço n ã o havia viajado.
C o m o as Nações Unidas r e c o n h e c e r a m ao proclamar 1967 "O A n o Internacional
d o Turista", o t u r i s m o era agora u m a indústria i m p o r t a n t e , e a E u r o p a estava e m
seu centro, f o r n e c e n d o e recebendo o m a i o r n ú m e r o de turistas mundiais. Para a
OCDE, o t u r i s m o era " u m dos aspectos mais espetaculares da 'civilização do lazer'

300
que p o u c o a p o u c o se desenvolve n o m u n d o ocidental". T a m b é m era redistributi-
vo, canalizando dinheiro — c o m a l g u m custo para o m e i o a m b i e n t e — para as
áreas que n ã o a c o m p a n h a r a m o boom, lugares c o m o a orla meridional d o continen-
te, agora c o b e r t a de novos e s t a b e l e c i m e n t o s turísticos, ou para suas paisagens
rurais, antes intatas e agora tão trabalhadas q u a n t o visitadas. 45 /
Esses turistas e r a m presa fácil para os críticos culturais, que r a r a m e n t e admi-
tiam qualquer mérito do turismo e m acabar c o m provincianismos d o passado. O
a m e r i c a n o Paul Fussell opôs o "viajante" e d u c a d o e sensível da safra anterior à
.. g u e r r a aos m o d e r n o s bárbaros dos pacotes. E m sua Theorie des tourismus, H a n s
Magnus Enzensberger considera inútil e f u n d a m e n t a l m e n t e b u r g u ê s o e m p e n h o
dos turistas e m tentar libertar-se das agruras da sociedade industrial. Para outros,
eles apenas integravam aquela "fuga da liberdade" que, s e g u n d o Erich F r o m m ,
denunciava a suscetibilidade da burguesia a o fascismo. 46
Esses ataques inclementes, n o entanto, faziam parte de u m a investida m u i t o
m a i o r contra o novo c o n s u m i s m o q u e reunia o clero católico, assustado c o m a
ameaça à "família e à o r d e m moral", e marxistas desprendidos, c o m o Pasolini, que
desprezavam o fetichismo dos bens materiais. Na Espanha de Franco, os conserva-
dores achavam q u e o boom dos anos 1960 estava c o r r o e n d o sua "democracia orgâ-
nica", afastando dos velhos valores católicos os novos "consumidores viciados e m
televisão". C o n t u d o , m e s m o nas democracias autênticas, as dramáticas repercus-
sões sociais d o "milagre econômico" alimentavam o m e d o e t a m b é m a satisfação.
E m La scoperta delVItalia [A descoberta da Itália] (1963), Giorgio Bocca descreve a
"Itália [...] transformada, hipnotizada pela benessere [prosperidade]".
" ^ <* O c o n s u m i d o r — o b j e t o passivo e c o n f o r m i s t a das pressões comerciais —
parecia ter substituído o cidadão ativo que os teóricos sociais i m a g i n a r a m nos anos
fcí1
1940. Agora — nesse admirável m u n d o novo da pesquisa de m e r c a d o e d o comer-
/ c i a l da televisão — talvez n e m os desejos das pessoas fossem realmente seus. Para
' . / os primeiros e influentes teóricos do consumismo, centrados e m t o r n o da escola
><v marxista de Frankfurt, a "sociedade de massas" permitia q u e as forças do capitalis-
m o m o d e r n o j o g a s s e m c o m a "falsa consciência" das pessoas c o m u n s . S e g u n d o
esses elitistas da esquerda, as m e s m a s massas que antes da g u e r r a r e n u n c i a r a m ao
próprio j u l g a m e n t o para seguir Hitler agora acorriam e s t u p i d a m e n t e às lojas.
Tais interpretações estribavam-se n o esnobismo e exageravam as tendências
t/ / h o m o g e n e i z a d o r a s e conformistas do novo c o n s u m i s m o ; na v e r d a d e — c o n f o r m e
y" assinalaria u m a g e r a ç ã o p o s t e r i o r de críticos culturais —, o m e r c h a n d i s i n g d o
? J
301
"estilo de vida" na década de 1960 estava destruindo a estandardização dos anos
1950. Para alguns otimistas, c o m o Baudrillard e Bourdieu, as culturas do c o n s u m o
realmente p r o p o r c i o n a v a m às pessoas a liberdade de se definirem e de m o l d a r a
própria identidade.
/ O s u r g i m e n t o do novo individualismo a p a r e n t e m e n t e m i n a r a as solidarieda-
des coletivistas d o passado. A o n d a de greves q u e ocorreu n o final dos anos 1940 —
-i r;

p a r t i c u l a r m e n t e na França e na Bélgica — refluiu na década seguinte. " N ã o há


m u i t o motivo para falar do 'proletariado' [...] p o r q u e ele simplesmente deixou de
existir", c o m e n t o u u m observador e m 1958. C o m o u m ex-mineiro explicou a u m
jornalista americano: "Olho a m i n h a volta, aqui e m Doncaster. Até p o u c o t e m p o
atrás e u via g e n t e m a l n u t r i d a , malvestida, m o r a n d o e m casas m a l equipadas.
\f y* Agora vejo as pessoas b e m vestidas, b e m alimentadas, c o m a casa b e m decorada;
elas t ê m piano, tapete, rádio; algumas estão c o m p r a n d o televisor. T u d o mudou", 4 7
T a n t o o operariado q u a n t o a classe média dividiram -se e m duas categorias: a
dos q u e p o d i a m u s u f r u i r a nova riqueza e a dos q u e viviam ao deus-dará. O setor
administrativo expandiu-se, e o agrícola encolheu r a p i d a m e n t e . E m seu estudo
sobre o trabalhador inglês, Ferdynand Z w e i g constatou que a conotação de "clas-
se" estava m u d a n d o . O t e r m o era "invariavelmente relacionado c o m esnobismo,
p o r é m r a r a m e n t e ou n u n c a c o m luta de classes". Seu leque de associações dimi-
nuíra, restringindo-se cada vez mais ao local de trabalho. "Sou proletário só n a
fábrica; fora dela sou igual a qualquer outro", disse u m operário a Zweig. As classes
.' n o sentido antigo — envolvendo ação coletiva, identidades e atividades d e n t r o e
fora da fábrica — estavam desaparecendo. Padrões de c o n s u m o (e r e p r o d u ç ã o )
^ V convergentes estavam eliminando as velhas fronteiras sociais.'18
Os observadores alemães pareciam particularmente conscientes dos perigos
de u m a sociedade q u e passara de u m e x t r e m o — fanatismo político, violência — a
o u t r o — passividade, apatia. U m a sociedade antes dividida pela luta de classes
agora parecia adormecida. Karl Bracher c h a m o u a atenção para "a i m a g e m assus-
tadora de u m a tecnocracia" levando a u m a "reformulação autoritária da democra-
cia parlamentar". Sem cidadãos ativos a E u r o p a degeneraria n u m a "peritocracia
e n f a t u a d a " q u e depositava t o d a a sua fé e m soluções administrativas. J ü r g e n
H a b e r m a s dizia q u e a tecnologia e a ciência converteram-se n u m a espécie de ideo-
logia "que p e n e t r a na consciência das massas despolitizadas". Os cientistas políti-
cos americanos q u e s a u d a r a m o "fim da ideologia" falavam d o m e s m o processo,
p o r é m de m o d o mais positivo. 49

302
Se os americanos pretendiam de fato eliminar as tensões sociais da Europa oci-
dental por m e i o de sua "política da produtividade", aparentemente — na década de
1950 — alcançaram seu objetivo. E m 1947, u m f u n c i o n á r i o a m e r i c a n o na Itália
declarara: " E n q u a n t o os italianos n ã o c o m e ç a r e m a se interessar mais pelos respec-
tivos méritos dos flocos de milho e dos cigarros que pelas habilidades relativas de
seus líderes políticos, há pouca esperança de que c h e g u e m a u m a situação de pros-
peridade e calma interna". Agora essa esperança se concretizara? A Europa ociden-
tal abandonara a política e se transformara na sociedade de "escravos felizes" que,
segundo os franceses antiamericanos, existia n o o u t r o lado do Atlântico? 50

A A M E R I C A N I Z A Ç Ã O DA E U R O P A ?

"Dez anos atrás ainda p o d í a m o s torcer o nariz para as lanchonetes, os super-


mercados, as casas de strip-tease e toda a sociedade consumista", escreveu u m críti-
0
i 3
CO francês e m 1960. 'Agora t u d o isso está t o m a n d o conta da Europa. Essa socieda-
de ainda n ã o é a nossa, mas ela — ou u m a parecida — poderá ser a de nossos filhos.

o Os Estados Unidos são u m laboratório de f o r m a s de vida n o qual entramos, que-


r e n d o ou não.'
Na década de 1950, a h o m o g e n e i z a ç ã o dos padrões de vida além das frontei-
ras nacionais e sociais sinalizava para muita gente u m a perda de identidade e a evo-
lução de u m m o d e l o de sociedade tipicamente americano. Se o c o n s u m o de mas-
sas era u m a invenção americana, a difusão d o carro, da Coca-Cola e da televisão
n ã o anunciavam o f i m da individualidade européia? "O q u e v e m o s aqui é a tendên-
cia de u m a nova era, que nos p e r m i t e divisar o padrão de f u t u r a s sociedades, ou
apenas u m vislumbre passageiro, ao qual sucederá provavelmente o r e t o r n o dos
velhos p r o b l e m a s e impasses, das velhas c o n t r a d i ç õ e s e conflitos?", p e r g u n t o u
Pizzorno. 5 2
, Para a maioria dos políticos americanos, a americanização constituía real-
y ^ / m e n t e o objetivo. E m o u t r a s palavras, eles acreditavam q u e os Estados Unidos
f o r n e c i a m u m m o d e l o para a resolução de conflitos sociais e e c o n ô m i c o s que, se
possível, deveria ser fielmente aplicado à E u r o p a ocidental: nessa convicção basea-
v a m - s e o e v a n g e l h o da p r o d u t i v i d a d e , a p r o m o ç ã o d o f e d e r a l i s m o e d o livre-
comércio e a defesa de novos tipos de tecnologia ( c o m o a televisão) e m a r k e t i n g
(administração científica, publicidade agressiva)

303
/ M a s até q u e p o n t o os e u r o p e u s e n t r a r a m nesse m u n d o novo? C e r t a m e n t e
expressaram seus protestos e m alto e b o m som; a h e g e m o n i a americana suscitou
u m antiamericanismo crescente, s o b r e t u d o na França. Excluir a Coca-Cola, empe-
nhada e m conquistar u m a base f i r m e na França, era c o m o lutar pela "Danzig da
cultura européia", c o n f o r m e a m e t á f o r a de Le Monde. D o o u t r o lado d o canal da
Mancha, c o n t r a c e n a n d o n o papel de Grécia c o m Washington n o papel de Roma,
os ingleses t a m b é m se v i a m divididos e n t r e a h u m i l h a ç ã o e o o r g u l h o c o m sua
subordinação n o "relacionamento especial"."
Nos níveis mais baixos da escala social, contudo, entre aqueles q u e aprecia-
v a m as novas culturas populares, o antiamericanismo era nitidamente m e n o s pro-
n u n c i a d o q u e e n t r e os intelectuais e os d e f e n s o r e s da velha c u l t u r a e r u d i t a .
T a m b é m era mais fraco nos países que p e r d e r a m a g u e r r a (Alemanha, Áustria e
Itália) q u e nos q u e se julgavam vencedores., Isso se devia c e r t a m e n t e a sua estreita
relação (e, p o r extensão, ao m e d o da "americanização") c o m o objetivo d o neutra-
lismo ( " n e m Coca-Cola, n e m vodca"), e m primeiro lugar, e, e m segundo, c o m u m
s e n t i m e n t o de h u m i l h a ç ã o pós-imperial. A l é m de p e r d e r suas possessões colo-
niais, as antigas potências imperiais — ou suas elites — agora se viam transforma-
das e m colônias. Por o u t r o lado, n a A l e m a n h a e na Áustria os Amis e r a m tidos
c o m o u m a força positiva que oferecia u m a nova identidade m o d e r n a para masca-
rar as desastrosas lembranças nacionais d o passado recente.
A criação de u m a sociedade m e n o s deferente, mais igualitária e progressista
n ã o foi apenas n e m basicamente p r o d u t o da influência americana. As imagens da
vida americana, c o m o nos filmes posteriores à década de 1920, p o r certo a j u d a r a m .
P o r é m a democracia de massas, o fascismo, a g u e r r a e a ocupação nazista haviam
efetivamente banido g r a n d e p a r t e da velha o r d e m antes de os americanos chega-
r e m à Europa. O processo c o n t i n u o u sob seu olhar hegemônico, sem dúvida, m a s
t a m b é m refletiu forças p r o f u n d a m e n t e arraigadas na política européia. O cinema
— v i s t o e m geral c o m o o e l e m e n t o pioneiro da a m e r i c a n i z a ç ã o — n a verdade reve-
lava u m a relação mais complexa: os f i l m e s de H o l l y w o o d e r a m i m e n s a m e n t e
populares na Europa. Entretanto, as tradições cinematográficas locais — as farsas
inglesas, os Heimatfilm alemães e a nouvelle vague francesa — sobreviveram e flores-
ceram, ainda que n ã o tivessem sucesso na exportação/
^ E m geral, as influências americanas modificavam-se ao e n t r a r e m c o n t a t o
c o m as tradições e os anseios e u r o p e u s . A Coca-Cola tinha o m e s m o g o s t o e m
a m b o s os lados d o Atlântico, p o r é m outros p r o d u t o s s o f r e r a m alterações. Os car-
ros, p o r e x e m p l o , e r a m m e n o r e s e mais m o d e s t o s : os e u r o p e u s a d o t a r a m o
Volkswagen, o Fiat 500, o Morris M i n o r e o Mini, p a r a n ã o falar n a Vespa e na
- >
Lambretta, q u e n ã o t i n h a m paralelo evidente nos Estados Unidos. M e s m o os car-
ros g r a n d e s e r a m diferentes: preservavam u m certo "ar e u r o p e u " de luxo e capri-
cho — c o m o o Jaguar XK 140, o G o r d o n Keeble e o Bristol; os S u n b e a m Rapiers,
Vauxhall Victors e Ford Zephyrs — "carros dos sonhos" populares, c o m seus rabos
de peixe — dificilmente f a z i a m sucesso. O s vistosos Cresta e Z o d i a c v e n d i a m
m e n o s n o Reino Unido, p o r exemplo, que o tradicional Austin Westminster.
 história se repetia na arquitetura. O m o d e r n i s m o r e t o r n o u d o exílio, levan-
do consigo arranha-céus e prédios de apartamentos, os edifícios diplomáticos e os
QGS americanos. Todavia, o resultante perfil das cidades n ã o era exatamente ame-
ricano; os edifícios tendiam a ser mais baixos e a se h a r m o n i z a r c o m o recuo exis-
tente. Os subúrbios nunca destruíram a vida dos centros urbanos, c o m o f i z e r a m
nos Estados Unidos, talvez p o r q u e a f u g a para os bairros afastados não tinha cono-
tação racial "fj
Os Estados Unidos n ã o constituíam u m c o n j u n t o h o m o g ê n e o de influências;
e r a m u m a m á l g a m a de tendências diversas, muitas vezes contraditórias, algumas
reais, outras míticas. E r a m tanto u m a idéia q u a n t o u m a realidade, capazes de se
t r a n s f o r m a r n o veículo para as fantasias criativas de d e t e r m i n a d o s e u r o p e u s —
vítimas da m o d a j o v e m , astros do rock'n'roll, c o m o "Freddy Q u i n n " ( n o m e verda-
deiro: M a n f r e d Nidl-Petz) e Ray Miller (Rainer Müller), e o d i r e t o r de c i n e m a
Sérgio Leone, q u e reinventava o w e s t e r n c o m o épico h o m é r i c o na Espanha ou na
Cine-Città. 55
Os e u r o p e u s encontravam nos americanos u m a variedade de m o d e l o s para
as próprias lutas sociais e políticas. Havia, p o r exemplo, o Estado da "segurança
nacional" (naturalmente f u n d a m e n t a d o e m tradições autóctones de anticomunis-
m o presentes e m toda a E u r o p a ocidental) e o novo c o n s u m i s m o / M a s havia tam-
b é m o m o v i m e n t o antipublicidade, que se b e n e f i c i o u c o m críticos americanos,
c o m o Vance Packard, cujo best-seller The hiddenpersuaders foi lançado n o m o m e n -
. y to e m q u e o comercial de televisão surgiu n o Reino Unido. A luta pelos direitos
civis, principalmente, a j u d o u a formular o protesto local e a legislação nacional na
Europa e m m e a d o s dos anos 1960 e na década de 1970.
O q u e impressiona n o debate sobre a "americanização" é a m a n e i r a c o m o ter-
m i n o u na década de 1960. Parece q u e nessa época a maioria dos e u r o p e u s supe-
rara seu s e n t i m e n t o de inferioridade e m relação a seu p r o t e t o r transatlântico.

305
Estava mais claro q u e a perda d o império n ã o acarretara o declínio econômico; ao
contrário, a E u r o p a tornava-se u m a potência cada vez mais f o r t e na e c o n o m i a
internacional, e n q u a n t o o p o d e r i o americano apresentava sinais de decadência. Os
velhos receios de q u e as m u l t i n a c i o n a i s a m e r i c a n a s a s s u m i s s e m o c o n t r o l e
(expressos v e e m e n t e m e n t e p o r Servan-Schreiber e m Le défi américain) a t e n u a r a m -
se ante a constatação de q u e a Europa ocidental agora investia nos Estados Unidos.
O velho Estado-nação n ã o desaparecera, c o m o muitos t e m e r a m q u a n d o se con-
f r o n t a r a m c o m o entusiasmo federalista dos idealizadores d o Plano Marshall n o
final da década de 1940. Ao contrário, sobrevivera e se fortalecera. M e s m o a televi-
são, a p o n t a d a a princípio c o m o d e s i n t e g r a d o r a das culturas nacionais, acabara
criando u m s e n t i m e n t o mais forte de nacionalidade e destruindo o s e n t i m e n t o de
lealdade a u m local e u m a região. A E u r o p a ocidental aceitara p l e n a m e n t e o novo
consumismo. 5 6

P R O T E S T O NA S O C I E D A D E D O C R E S C I M E N T O

E m 1955, o jurista Piero Calamandrei, u m dos arquitetos da Constituição ita-


liana do pós-guerra, criticou a extensão da recente conquista democrática de seu
país. Disse q u e a o b s t r u ç ã o dos conservadores f r u s t r a r a as esperanças da Resis-
tência; q u e a Constituição ficara "irrealizada"; e q u e a fachada de "democracia
f o r m a l " escondia os continuísmos e os c o m p r o m i s s o s c o m o fascismo e o "Estado
policial". O uso contínuo da Lei de Segurança Pública, datada de 1931, era apenas
o e x e m p l o m a i s g r i t a n t e das i m p e r f e i ç õ e s da d e m o c r a c i a italiana; n ã o havia
autêntica liberdade de m o v i m e n t o o u de assembléia n e m genuína igualdade entre
os sexos. 57
/ N a década de 1960, u m a Europa mais j o v e m e mais u r b a n a t o m o u consciên-
cia das amplas m u d a n ç a s sociais ocorridas desde a g u e r r a e exigiu q u e a política e
a lei c a m i n h a s s e m lado a lado. Graças ao crescimento econômico, o velho m u n d o
de c a m p o n e s e s e aristocratas estava desaparecendo, o n d e n ã o fora destruído pela
g u e r r a , e emergia u m a sociedade c o m mais mobilidade e m e n o s submissão. Essa
A ^ sociedade queria verdadeira liberdade n o m u n d o livre e n ã o aceitava mais que fos-
sem consideradas subversão comunista as reivindicações de r e f o r m a social. Favo-
receram-na as m u d a n ç a s operadas e m Washington, o n d e Kennedy e os democra-
tas substituíram o velho Eisenhower.

306
À medida q u e os m e d o s da G u e r r a Fria d i m i n u í a m , os conservadores q u e
estavam n o p o d e r pareciam mais e mais c o n t a m i n a d o s pelo passado. Por p o u c o
n ã o h o u v e u m a guerra civil na Itália, e m 1960, q u a n d o o governo T a m b r o n i t o m o u
posse, c o m o apoio dos neofascistas. Na França, a guerra da Argélia expandiu-se
para a metrópole. Q u a n d o a polícia dispersou u m a manifestação e m Paris e m a t o u
dezenas de participantes, jogando-os n o Sena, n u m dos atos de violência de massa
mais brutais e m e n o s divulgados q u e o c o r r e r a m na Europa ocidental d o pós-guer-
ra, q u e m estava n o c o m a n d o era Maurice Papon, ex-funcionário de destaque n o
governo de Vichy. Na Grécia, denúncias de colaboracionismo contra velhos minis-
tros abalaram o governo Karamanlis, que só se manteve n o p o d e r mediante elei-
ções fraudulentas. Na Alemanha Ocidental, o caso Spiegel, e m 1962, avivou a lem-
brança da Gestapo, e n q u a n t o o chanceler Kiesinger e o presidente Lübke se viam
assombrados p o r seu passado nazista. O j u l g a m e n t o de Adolf Eichmann, e m 1961,
colocou a questão na o r d e m do dia. Cada vez mais parecia que a normalidade e a
prosperidade da G u e r r a Fria possibilitaram u m a democracia apenas parcial, ou até
m e s m o nominal, espreitada p o r velhas forças autoritárias,/

/ / O s beneficiários políticos desse n o v o espírito f o r a m os partidos de centro-


e s q u e r d a — H a r o l d Wilson n o Reino Unido, o SPD na Alemanha Ocidental, a "aber-
y 1
v

y tura para a esquerda" na Itália e George P a p a n d r e o u c o m sua "luta incessante" na


e' ±r _ .... . . .
Grécia. Os partidos trabalhista e social-democrata r e t o r n a r a m ao p o d e r c o m o
administradores de u m a sociedade mais m o d e r n a . Seguindo o exemplo da direita
conservadora, p o u c o a p o u c o se desvencilharam da conotação de classe e torna-
ram-se mais amplos e abrangentes, capazes de responder a m u d a n ç a s p r o f u n d a s e
gradativas da opinião pública. Esses governos estavam mais ansiosos que seus pre-
decessores para usar o Estado na melhoria da educação e da saúde e para p r o m o -
ver r e f o r m a s nas áreas dos direitos sociais e civis. Por sua vez, a perspectiva de
m u d a n ç a s a n i m o u m o v i m e n t o s e lobbies que reivindicavam r e f o r m a s e moderni-
zação. Assim, a década de 1960 assinalou o início do a p r o f u n d a m e n t o da democra-
cia na E u r o p a ocidental, a verdadeira r u p t u r a c o m valores e instituições sociais tra-
dicionais e — para muitos — o limiar da modernidade,-
E m d e z e m b r o de 1965, o caso de u m a j o v e m c a m p o n e s a siciliana c h a m a d a
Franca Viola o c u p o u as manchetes dos jornais italianos; ela havia rejeitado a pro-
posta de casamento de u m rapaz que a raptara e violentara. E m tais situações —
que n ã o e r a m a b s o l u t a m e n t e i n c o m u n s —, a m u l h e r deveria aceitar que o h o m e m
corrigisse seu e r r o c o m o q u e o Código Penal italiano definia c o m o matrimonio

307
riparatore. Pela primeira vez, n o entanto, a m u l h e r violentada se recusou a casar-se.
C o n s e q ü e n t e m e n t e , seu agressor foi detido e depois c o n d e n a d o à prisão. A cidade
natal de Viola considerou desonrosa sua obstinação. N o resto da Itália, p o r é m , o
caso provocou sensação e ressaltou a desigualdade de status e dignidade das mulhe-
res p e r a n t e a lei.58
: / ' / N a década de 1960, a crescente consciência da subordinação social e econô-
\ , mica das mulheres estava à frente da reivindicação por maior democracia. As cons-
tituições p o d i a m p r o m e t e r igualdade a todos os cidadãos, i n d e p e n d e n t e m e n t e de
sexo, mas e m geral os códigos penais existentes prescreviam t r a t a m e n t o s b e m dis-
tintos para h o m e n s e mulheres. O s h o m e n s p o d i a m c o m e t e r adultério impune-
m e n t e , e n q u a n t o as m u l h e r e s se e x p u n h a m ao castigo. Os maridos t i n h a m o direi-
to de proibir a esposa de trabalhar fora, e os pais t i n h a m p o d e r absoluto sobre os
filhos. Na Suíça, as mulheres só conquistaram o direito de votar na década de 1970;
na França, muitas não p o d i a m abrir u m a conta corrente. As m u l h e r e s continua-
v a m ingressando e m g r a n d e n ú m e r o n o m e r c a d o de trabalho, e n t r e t a n t o convi-
viam c o m r e m u n e r a ç õ e s e perspectivas de carreira discriminatórias.
Sob m u i t o s aspectos, o m o v i m e n t o pela emancipação feminina recuara na
E u r o p a desde o c o m e ç o dos anos 1920; os direitos das mulheres c e r t a m e n t e se res-
tringiram n o período de entreguerras, d o m i n a d o s pelo m e d o de declínio nacional
e m f u n ç ã o da queda dos índices de natalidade e pelo desemprego e m massa. Até a
Rússia soviética, q u e depois de 1918 concedera às mulheres u m a igualdade legal
sem precedentes, converteu-se à ideologia da m a t e r n i d a d e e m m e a d o s da década
de 1930, Agora as r e f o r m a s q u e visavam beneficiar as mulheres e ampliar sua auto-
n o m i a , sua i n d e p e n d ê n c i a e sua igualdade p e r a n t e a lei a m e a ç a v a m a base da tra-
dicional família e u r o p é i a s a c r a m e n t a d a n o e n t r e g u e r r a s e r e a f i r m a d a nos con-
s e r v a d o r e s a n o s 1950. As reivindicações de liberdade sexual e r a m ainda mais
assustadoras. U m sociólogo italiano católico criticou "o individualismo exasperado
q u e está levando a família americana e norte-européia à beira da desintegração
total" e c o n d e n o u "a c o n c e p ç ã o do m a t r i m ô n i o c o m o simples benefício sexual
f para o indivíduo". 5 /'
E n t r e t a n t o , o clima t o r n o u - s e favorável à r e f o r m a q u a n d o u m exército de
comentaristas sociais e psiquiatras descobriu os custos do isolamento doméstico e
o q u e os franceses c h a m a v a m de "síndrome de M a d a m e Bovary". E m Thecaptive
wife, a socióloga H a n n a h Gavron subverteu o ideal de domesticidade da década de
1950 ao a p o n t a r as depressões e frustrações causadas p o r ele; ao m e s m o t e m p o q u e

308
os laços c o m a família extensa e a c o m u n i d a d e se afrouxavam, a televisão e o trân-
sito e m p u r r a v a m a família nuclear para d e n t r o de casa.
A m u d a n ç a nas práticas sexuais (sobretudo c o m o uso da pílula, que chegou à
Europa ocidental n o início dos anos 1960) e o s u r g i m e n t o de u m a geração indepen-
dente, que queria ter instrução superior e a u t o n o m i a profissional, p r e f i g u r a r a m as
r e f o r m a s legais do final da década. O controle da natalidade desvinculou-se das
implicações eugênicas do pré-guerra, e as clínicas de p l a n e j a m e n t o familiar espa-
lharam-se pela Europa. A ínaioria dos países escandinavos já legalizara o aborto; a
Inglaterra seguiu esse exemplo e m 1967. Mas na E u r o p a católica a luta prolongou-
se, mobilizou centenas de milhares de mulheres e provocou grandes conflitos polí-
ticos antes de ocorrer a descriminação, s o b r e t u d o — e de m o d o m u i t o hesitante —
na década de 1970. M e s m o hoje o aborto é permitido na Alemanha e e m Portugal
e m circunstâncias estritas, e sua prática ilegal continua m u i t o disseminada.

As leis m u d a r a m mais r a p i d a m e n t e n o q u e dizia respeito aos anticoncepcio-


nais, s e m dúvida p o r q u e c o m o baby boom os velhos m e d o s de declínio populacio-
nal t o r n a r a m - s e absurdos. E m 1961, a A l e m a n h a Ocidental f i n a l m e n t e revogou
as n o r m a s nazistas c o n t r a a venda de anticoncepcionais; a França relaxou suas
p r o i b i ç õ e s e m 1967; a Itália r e v o g o u a legislação fascista q u a t r o a n o s depois.
Q u a n t o à igualdade das mulheres n o casamento e na família, a r e f o r m a dos proce-
d i m e n t o s de divórcio e da legislação familiar o c o r r e u b a s i c a m e n t e nas décadas
de 1970 e — na E u r o p a meridional pós-ditadura — de 1980, mais de sessenta anos
depois q u e a Suécia e a Rússia bolchevique a d o t a r a m o divórcio civil p o r consen-
t i m e n t o mútuo. 6 0
Mais lenta foi a ação efetiva para assegurar direitos iguais n o local de trabalho.
As garantias constitucionais e as diretrizes do Mercado C o m u m n ã o passavam de
promessas vazias, e, e m b o r a alguns poucos países, c o m o o Reino Unido, a Holanda
e a França, b e m c o m o o n o r t e da Escandinávia, a d o t a s s e m
u m a legislação q u e
i m p u n h a r e m u n e r a ç ã o e t r a t a m e n t o iguais, muitas vezes a lei n ã o era cumprida o u
o era depois de longas batalhas judiciais. Na Alemanha Ocidental e na Áustria, o
conservadorismo arraigado tornava as perspectivas ainda mais sombrias. 61
E m suma, as batalhas pela emancipação e pela igualdade femininas confirma-
v a m a crítica de Calamandrei à democracia do pós-guerra: as garantias formais dos
direitos constitucionais p o u c o significavam s e m u m a efetiva ação política q ú e
g a r a n t i s s e sua c o l o c a ç ã o e m prática. Isso se aplicava t a n t o às c o n s t i t u i ç õ e s da
Europa meridional pós-ditadura (Espanha, Portugal e Grécia) q u a n t o aos primei-
309
ros m o d e l o s posteriores a 1945. As constituições até p o d i a m conceder às mulheres
^r ^ plenos direitos políticos, mas, sem igualdade n o direito privado e na prática comer-
cial, elas continuavam subordinadas aos h o m e n s . Nas décadas de 1960 e 1970, a luta
p o r essa igualdade constituiu u m dos exemplos mais notáveis e constantes de pro-
testo social na E u r o p a ocidental. As mulheres n ã o c o n q u i s t a r a m igualdade total
n e m muitos dos direitos q u e consideravam necessários a sua proteção e a seu b e m -
estar, p o r é m a base paternalista das instituições sociais veio à luz e p o u c o a p o u c o
foi reformada. C o m o sói acontecer, o p o n t o de partida para as r e f o r m a s nas d e m o -
cracias liberais consistiu e m expor a distância entre o q u e elas p r o m e t i a m e o q u e
realmente proporcionavam.

Nada revelou t a n t o o contínuo autoritarismo da política européia conserva-


dora d o pós-guerra q u a n t o a g u e r r a de gerações que eclodiu d u r a n t e o boom. E m
1957, a Áustria a p r o v o u u m a lei q u e p r o t e g i a os jovens de influências imorais,
c o m o "perigos nas ruas, visitas indiscriminadas a restaurantes e eventos, c o n s u m o
de álcool e nicotina, e de todas as influências nocivas externas". Para as autorida-
des, tais medidas e r a m u r g e n t e m e n t e necessárias. Q u a n d o esteve na Europa, Elvis
Presley t r a n s f o r m o u adolescentes e m "selvagens extasiadas" o u até m e s m o e m
"pajés de u m a tribo governada apenas pela música", a m e a ç o u a civilização ociden-
tal c o m u m primitivismo africano e levou as jovens a u m a "embriagadora" delin-
qüência sexual. 62
Por trás da histeria d o rock'n'roll nos anos 1950 e da reação igualmente histé-
rica da imprensa e dos políticos, havia u m desafio b e m real ao conservadorismo d o
pós-guerra. Abriu-se uma, nova frente de batalha entre os adultos q u e passaram
pela g u e r r a e seus filhos. O crescimento e c o n ô m i c o d o pós-guerra a j u d o u a ali-
m e n t a r o conflito. A autoridade dos mais velhos viu-se ameaçada pela emergência
de u m a cultura j o v e m distinta, baseada na quadruplicação dos g a n h o s dos adoles-
centes entre 1938 e 1960. Os e m p r e g a d o r e s p r o c u r a v a m os jovens — a maioria dos
quais resultara d o baby boom d o pós-guerra. O que intrigava e preocupava os obser-
vadores n o final dos anos 1950 e r a m a violência e a ilegalidade q u e pareciam acom-
p a n h a r essa crescente afluência. Os alemães, confrontados c o m as desordens nos
cinemas, c h a m a r a m isso de "criminalidade da p r o s p e r i d a d e " (Wohlstandskri-
minalitãt). E m 1956, o m i n i s t r o d o Interior da Baviera d e c l a r o u q u e , c o m o os
"maricas humanitários" n ã o conseguiram fazer os Halbstarken [moleques] se com-

310
portar, agora as autoridades agiriam " c o m brutalidade". Na Itália, as atividades dos
teppisti, adolescentes arruaceiros q u e dirigiam sem autorização n e m cuidado, for-
çaram o governo t e m e r o s o a aprovar "regras para a repressão do vandalismo". (Na
Grécia, os conservadores seguiram seu exemplo.) Os observadores apressaram-se
a apontar a relação entre a paixão dos novos vândalos pelo automóvel e o boom do
c o n s u m o c o m sua cultura do carro. 63 Na Inglaterra — cujos costumes vitorianos
f o r a m m e n o s abalados pela guerra que os hábitos de outros países —, parece q u e
o p r o b l e m a era igualmente sério. "Tire essa roupa e procure tornar-se u m m e m -
b r o decente da sociedade", u m juiz indignado o r d e n o u a u m Teddy boy. "Salões de
baile, cinemas, polícia e público u n e m forças para travar u m a g u e r r a contra os
Teddy boys", noticiou o Sunday Dispatch de 27 d e j u n h o de 1955. "Finalmente as ruas
da Inglaterra c o m e ç a m a ficar livres da ameaça." 6 ^
Alguns atribuíam o problema aos efeitos da guerra sobre a estabilidade fami-
liar. C o n t u d o , foi p o r volta de 1954 — coincidindo c o m o f i m da austeridade — q u e
ocorreu u m a repentina escalada da delinqüência juvenil e da d e s o r d e m provocada
p o r jovens e m cafés e clubes. U m observador solidário c o m a "juventude rebelde"
associou essas tendências c o m a desintegração das velhas n o r m a s sociais: p o r u m
lado, o proletariado estava se dividindo; p o r outro, a "era burguesa" de u m a classe
média d o m i n a n t e cedia lugar a u m a cultura de massa mais ampla. Nesse contexto,
alguns jovens d o operariado p o d i a m ascender socialmente, p o r é m outros estavam
mais marginalizados que antes.
U m a visão retrospectiva m o s t r a que, de fato, se atribuíram proporções irreais
ao p r o b l e m a todo; h o u v e pouca violência juvenil, considerando-se a extensão da
desintegração social d u r a n t e e após a guerra. Os conservadores t r a n s f o r m a r a m
e m d e m ô n i o s os teppisti, os Teddy boys e os Halbstarken e exageraram sua importân-
cia. Na maioria dos países havia longa tradição de desordens urbanas provocadas
p o r j o v e n s / l o d a v i a , na atmosfera letargicamente conformista da década de 1950 e
\.cA início da de 1960, até m e s m o p e q u e n o s distúrbios e sinais de independência amea-
çavam a a u t o r i d a d e de u m a g e r a ç ã o d o m i n a n t e q u e — assim c o m o na E u r o p a
oriental — se sentia cada vez mais incapaz de e n t e n d e r os próprios filhos. Eles e r a m
desobedientes, usavam roupas e penteados escandalosos e n ã o valorizavam — ou
até criticavam — as conquistas que seus pais f i z e r a m d u r a n t e a guerra c o m sacrifi-

"Meus pais, m e u s parentes e os amigos deles vivem c o m o ratos engaiolados


[...] e q u e r e m q u e a gente viva do m e s m o jeito", escreveu u m a j o v e m e m 1965 à

3ii
revista italiana Mondo Beat. " Q u e r e m mais dinheiro e o gastam c o m coisas bobas:
u m televisor maior, abrigo para o carro [...] Mas n ã o sabem divertir-se realmente."
O líder estudantil Rudi Dutschke f u l m i n o u o " c o n s u m í s m o agressivo e fascista".
Os filhos da revolução d o c o n s u m o voltavam-se contra ela e aderiam à política e ao
protesto. O q u e havia de mais enigmático era a f o r m a c o m o c o m b i n a v a m u m a
ênfase anticonsumista ao prazer espiritual, ao "Paz e a m o r " e à realização indivi-
dual c o m visões políticas mais antigas — de revolução social, luta de classes, gre-
ves, barricadas. i
Primeiro e m Berlim Ocidental, depois na França e na Itália, a insatisfação dos
j o v e n s c o m a e s q u e r d a expressou-se n u m a crítica radical ao d e s e n v o l v i m e n t o
social n o pós-guerra. E m d e z e m b r o de 1966, p o u c o antes do Natal, p o r exemplo,
estudantes organizaram u m a d e m o n s t r a ç ã o j u n t o ao K u ' d a m m , símbolo da nova
cultura consumista de Berlim. A t a c a r a m o "mito da democracia ocidental" e recor-
r e r a m a críticas marxistas ao c o n s u m í s m o para expressar o vazio e o autoritarismo
q u e v i a m a seu redor. A G u e r r a d o Vietnã despedaçara o s o n h o a m e r i c a n o até
m e s m o — talvez p a r t i c u l a r m e n t e — e m países c o m o a A l e m a n h a Ocidental e a
Itália, o n d e havia sido tão forte. 66
Os sinais de revivescência do protesto de massa já e r a m visíveis — nas mar-
chas da CND [ C a m p a n h a pelo D e s a r m a m e n t o Nuclear], e m princípios da década
de 1960, e nas violentas m a n i f e s t a ç õ e s c o n t r a o e n v o l v i m e n t o a m e r i c a n o n a
G u e r r a do Vietnã, contra o golpe dos coronéis gregos, e m 1967, contra a tirania d o
xá d o Irã. As i m a g e n s televisivas das m a r c h a s pelos direitos civis, n o s Estados
Unidos, j u n t o c o m o despertar do interesse pelo legado da Resistência da Segunda
G u e r r a Mundial, alimentavam u m crescente antiautoritarismo. E m 1968 ocorreu
a explosão: o c u p a ç ã o de campi, d e s o r d e n s , greves e m a n i f e s t a ç õ e s a b a l a r a m a
E u r o p a e a m e a ç a r a m d e r r u b a r o g o v e r n o De Gaulle; a luta r e t o r n o u às ruas de
Paris, Berlim e Milão. A escala d o t u m u l t o s u r p r e e n d e u e e n c a n t o u os que obser-
v a r a m a apatia e o c o n f o r m i s m o da j u v e n t u d e de classe média na década anterior.
Para as gerações seguintes, "68" assumiu as proporções de u m mito, u m m i t o ali-
m e n t a d o s u b s e q ü e n t e m e n t e p e l o g r a n d e n ú m e r o de seus participantes, q u e ,
c o m o escritores, radialistas, professores o u cineastas, se viram capazes de f o r n e c e r
u m a i n t e r p r e t a ç ã o pública d o significado de t u d o aquilo. " N ã o seria injusto ver
1968 c o m o u m a interpretação à p r o c u r a de u m fato", escreveu Sunil Khilnani e m
seu estudo da esquerda intelectual na França. 67 /

312
Para u m a geração posterior e, talvez, mais cínica, o torvelinho de 1968 era
m e n o s i m p r e s s i o n a n t e que seus protagonistas, mais u m estardalhaço q u e u m a
c o n q u i s t a d u r a d o u r a , u m p r o d u t o q u e era resultado, sob m u i t o s aspectos, d o
m e s m o progresso que os estudantes atacavam e ainda p o r cima u m p r o d u t o não-
representativo. Apesar do rápido crescimento da população estudantil — eviden-
t e m e n t e u m feito da d e m o c r a c i a do pós-guerra —, só u m a p e q u e n a parcela da
j u v e n t u d e envolveu-se de fato nos tumultos: e m m e a d o s da década de 1960, ape-
nas 5,5% dos jovens de vinte anos e r a m universitários n o Reino Unido (8,6% na
Itália, 7,7% na Alemanha Ocidental, 16% na França). Faltava clareza a suas reivin-
dicações: a ênfase n o presente e na liberdade absoluta atrapalhou a f o r m u l a ç ã o de
exigências unânimes e concretas. Q u a n d o p o r f i m se expressaram de m o d o organi-
zado, essas reivindicações t o m a r a m a f o r m a de u m e x t r e m o sectarismo marxista
— "Stalin, Mao e a g r a n d e República Popular da Albânia'" — que não dizia nada a
muitos participantes de 1968.

IjOs a c o n t e c i m e n t o s de 1968 criaram, assim, u m a ala esquerdista periférica,


f r a g m e n t a d a e dogmática, tentada à violência e incapaz ou sem vontade de com-
preender as proporções do triunfo do capitalismo. Essa ala tinha estilo de vida pró-
prio, c o m intermináveis proclamações, críticas e teses públicas e u m a paixão p o r
g u r u s intelectuais cujos p r o n u n c i a m e n t o s n ã o i m p e d i r a m q u e seus seguidores
fizessem u m a leitura totalmente e r r ô n e a da situação política. Tal afastamento das
realidades do p o d e r alcançou sua expressão c u l m i n a n t e na terrorista Facção do
Exército Vermelho, da Alemanha Ocidental, q u e se considerava u m a "guerrilha
urbana", engajada n u m a "luta antiimperialista" sob o slogan "Vitória na G u e r r a do
Povo!". Esses g r u p o s terroristas, b e m c o m o a repressão policial e o contraterroris-
m o da direita q u e p r o v o c a r a m , p r a t i c a m e n t e d e s a p a r e c e r a m n o final dos anos
1970. Mas d u r a n t e algum t e m p o levantaram o espectro daquele extremismo polí-
tico e daquela polarização ideológica do entreguerras que a m a i o r parte da Europa
ocidental esperava ter e n t e r r a d o para sempre." s
E n o e n t a n t o os estudantes radicais f i z e r a m realmente algumas conquistas.
Primeiro, c h a m a r a m a atenção para u m vazio de convicção n o centro da política
do pós-guerra. Seu idealismo apaixonado l e m b r o u ao público a necessidade de u m
debate político e ideológico; n e m todos os problemas p o d e m reduzir-se a questões
de administração científica ou de b a r g a n h a entre g r u p o s de interesse. Segundo,
seus ataques, g e r a l m e n t e sarcásticos, ao autoritarismo d o pós-guerra e r a m b e m
dirigidos, ainda q u e exagerados, e estimularam u m a visão mais crítica dos centros

3i3
d o p o d e r corporativo, militar e político. Por fim, eles a t u a r a m c o m o u m típico
g r u p o de interesse, assegurando recursos para o sistema universitário e abrindo-o
a influências mais democráticas.
C o m o g r u p o de interesse a t u o u t a m b é m o proletariado organizado, orques-
t r a n d o u m a m o v i m e n t a ç ã o eficaz, p o r é m m e n o s atraente, n o m o m e n t o e m que,
paralelamente à insatisfação dos estudantes, cresciam a insatisfação dos trabalha-
dores e as pressões inflacionárias. Os protestos de 1968 m o s t r a r a m que se declara-
ra p r e m a t u r a m e n t e a falência d o ativismo de classes: na verdade, o corporativismo
do pós-guerra estava sendo pressionado c o m o nunca. C o m o pleno emprego, os
sindicatos reivindicavam a u m e n t o s salariais p r o t e l a d o s havia m u i t o e aprovei-
tavam a o p o r t u n i d a d e proporcionada pela ação estudantil para atacar a distribui-
ção de riqueza vigente. Na Itália e na França, o resultado foi que os protestos de
milhares de estudantes logo f o r a m c o m p l e m e n t a d o s p o r u m a onda de greves, c o m
m i l h õ e s de sindicalistas exigindo u m a participação mais j u s t a n a sociedade d o
crescimento.
•^Contudo, se os estudantes q u e r i a m acabar c o m o capitalismo, os trabalhado-
res q u e r i a m desfrutar mais suas benesses. Os dois g r u p o s tinham, p o r t a n t o , obje-
tivos distintos, e n ã o s u r p r e e n d e que, q u a n d o os sindicatos conseguiram satisfazer
a maioria de suas reivindicações, as esperanças de u m a aliança entre estudantes e
operários evaporaram-se r a p i d a m e n t e . O proletariado deixou de ser revolucioná-
rio: seu p o d e r de b a r g a n h a atingiu o auge nesses últimos anos d o boom, e seus seto-
res mais avançados s o u b e r a m utilizá-lo e m v a n t a g e m própria. Assim, n o início da
década de 1970 os líderes sindicais e os conservadores assustados caíram na arma-
dilha de exagerar a força política das classes trabalhadoras. Na realidade, a estrela
dos operários da E u r o p a ocidental brilhou e apagou-se c o m o capitalismo. Seria a
última vitória da velha classe operária n u m século de luta organizada, antes q u e a
recessão, o d e s e m p r e g o e m massa e a r e e s t r u t u r a ç ã o global a d e s t r u í s s e m e m
p o u c o mais de u m a década.

MIGRAÇÕES

/ E m 1964, a revista alemã DerSpiegel dedicou sua capa a u m trabalhador por-


tuguês c h a m a d o A r m a n d o Rodrigues, o milionésimo "imigrante" q u e chegou ao
país e que n ã o só recebeu u m a acolhida oficial e m Colônia c o m o ainda g a n h o u de

3i4
presente u m a motocicleta. Nessa época, os imigrantes e r a m recebidos de braços
abertos e vistos c o m o elementos indispensáveis à manutenção do progresso. 69
O capitalismo do pós-guerra precisava de trabalhadores e requeria mobilida-
de h u m a n a . Por o u t r o lado, os Estados-nação da Europa pretendiam patrulhar
suas fronteiras e estabelecer distinção entre seus próprios cidadãos, aos quais ofe-
reciam u m a série crescente de direitos e benefícios, e os estrangeiros. Assim, n o
que se refere à imigração havia — e ainda há — u m a tensão inerente entre as exi-
gências do capitalismo e o Estado-nação. Depois de 1950, a imigração e m massa
c o m e ç o u c o m o u m a necessidade e c o n ô m i c a , p o r é m logo se converteu n u m a
questão cultural e política que desenterrou o racismo ainda existente na sociedade
européia. O fascismo e o c o m u n i s m o haviam mais ou m e n o s eliminado muitas
minorias étnicas do Leste europeu; agora o capitalismo introduzia na Europa oci-
dental minorias bastante diferentes. A evolução das sociedades multirraciais tor-
nou-se u m desafio tão grande para a democracia européia do pós-guerra quanto a
luta pela igualdade entre os sexos.70
N a t u r a l m e n t e , a Europa ocidental, assim c o m o t o d o o continente, estava
habituada desde longa data à saída e à entrada de grandes contingentes humanos.
A onda migratória posterior à guerra — algo e m t o r n o de 10 milhões a 15 milhões
de pessoas n o total — foi insignificante e m comparação c o m os 55 milhões a 60
milhões de indivíduos que partiram do Velho M u n d o para as Américas antes de
1921. N o que tange à mobilidade da força de trabalho, a indústria e a agricultura
alemãs d o século xix e começo do xx d e p e n d e r a m basicamente dos poloneses,
e n q u a n t o o proletariado francês que evoluiu n o m e s m o período incluía muitos
belgas, italianos, poloneses e suíços. O uso de mão-de-obra migrante, da qual boa
parte se tornaria permanente, não constituía novidade na história européia. 71
A grande imigração do pós-guerra foi, p o r é m , tão inesperada que depois de
1945 sobreveio u m a onda de emigração, c o m os governos se m o s t r a n d o pessi-
mistas q u a n t o às possibilidades de evitar o desemprego maciço n o longo prazo:
por isso as autoridades holandesas, britânicas, italianas e outras estimulavam seus
cidadãos a se estabelecer n o além-mar. Ao m e s m o tempo, contudo, a Alemanha
Ocidental recebia grande n ú m e r o de refugiados, e outros países aceitavam alguns
dos milhões de indivíduos deslocados que se recusaram a voltar para a Europa
oriental. 'As pessoas temiam por seu emprego", lembra u m polonês que depois da
g u e r r a se estabeleceu n o Reino Unido. "Ainda g u a r d a v a m na m e m ó r i a a inati-
vidade de antes de guerra, e isso era compreensível."

3i5
Mesmo nesse estágio havia u m a relação evidente entre a política de imigra-
ção e o racismo: n o final da década de 1940, o governo britânico, p o r exemplo,
baseou seu p r o g r a m a de "trabalhadores voluntários europeus" n u m a classificação
racial, d a n d o prioridade aos cidadãos dos países bálticos e b a r r a n d o os judeus.
Ainda a t o r m e n t a d a pelos velhos m e d o s de declínio populacional e preocupada
c o m o e n f r a q u e c i m e n t o nacional diante do expansionismo soviético, a Royal
ry\ Commission on Population advertiu: " N u m a sociedade plenamente estabelecida
c o m o a nossa, a imigração e m larga escala só pode ser bem-vinda sem restrições se
os imigrantes forem de boa cepa e se sua religião ou sua raça não os impedirem de
casar-se c o m habitantes locais e incorporar-se a nossa população". A imigração e
as questões raciais continuaram interligadas. 72
//K dinâmica do capitalismo, todavia, apontava para outra direção. A partir de
meados da década de 1950, o crescimento econômico sustentado alimentava u m a
demanda de mão-de-obra aparentemente insaciável. A princípio satisfez-se essa de-
manda internamente — ou c o m refugiados, c o m o na Alemanha, ou c o m a econo-
mia rural, que anualmente fornecia centenas de milhares de trabalhadores aos cen-
tros u r b a n o s da Europa ocidental. Só na Itália, mais de 9 milhões de indivíduos
deslocaram-se de u m a parte do país para outra. Entre 1950 e 1972, o n ú m e r o de
empregados n o setor agrícola caiu de 30 milhões para 8,4 milhões, ou seja, de u m
terço para u m décimo da mão-de-obra total dos seis países que c o m p u n h a m origi-
nalmente a C o m u n i d a d e Econômica Européia. A cortina fechou-se sobre a histó-
ria secular do campesinato europeu, e só a Política Agrícola C o m u m da CEE atuou
c o m o f o r m a de preservação histórica dessa espécie e m extinção. Nas cidades, os
camponeses e n c o n t r a r a m trabalho, anonimato (para fugir da vigilância repressi-
va de parentes, da polícia e do Estado) e estilos de vida mais m o d e r n o s . " /
Esgotadas essas fontes, os empregadores voltaram-se para o exterior. A Suíça
e a Suécia importavam trabalhadores italianos desde 1945, mas o grande recruta-
m e n t o teve início n o final da década de 1950. Nos anos 1960, a França, a Alemanha
e a Suíça disputavam mão-de-obra n o sul do continente. O Estado tentou, sem
m u i t o sucesso, controlar as operações: o Bundesanstalt f ü r Arbeit, da Alemanha
Ocidental, estabeleceu agências de recrutamento e m seis países do Mediterrâneo;
o Office National d'Immigration francês tinha nada m e n o s que dezesseis agências,
a maioria na África, que atuavam na base de acordos bilaterais entre o país recebe-
dor e o fornecedor. Na Inglaterra, o Estado teve m e n o r envolvimento, e m parte
p o r q u e os próprios cidadãos podiam suprir a demanda e e m parte p o r causa de u m a

316
tradicional relutância e m interferir n o r e c r u t a m e n t o de trabalhadores do império
— m u i t o m e n o s e m incentivá-lo. Coube, portanto, aos empregadores — c o m o o
National Health Service e a L o n d o n Transport — organizar os próprios esquemas.
M e s m o assim, imigrantes de Chipre, do subcontinente indiano e das índias Oci-
dentais logo satisfizeram as necessidades do m e r c a d o de trabalho britânico.
M e s m o na França e na A l e m a n h a Ocidental, o Estado teve p o u c o controle
sobre o processo imigratório e apenas u m a p e q u e n a p r o p o r ç ã o dos trabalhadores
estrangeiros passou por seus órgãos — o que n ã o parecia i m p o r t a n t e na década de
1960. E m 1958, 55 mil imigrantes e n t r a r a m na Alemanha; e m 1960, esse n ú m e r o
saltou para 250 mil. Na França, as cifras a u m e n t a r a m de a p r o x i m a d a m e n t e 150 mil
p o r ano, n o final da década de 1950, para 300 mil e m 1 9 7 0 . 0 que t o r n a esse q u a d r o
ainda mais extraordinário é o fato de q u e a m b o s os países receberam na m e s m a
época levas de refugiados imensas para os padrões ingleses: 3 milhões de jovens
q u e f u g i r a m da Alemanha Oriental e m 1961 e 1 milhão de pieds noirs, franceses pro-
cedentes da Argélia. O d e s e m p r e g o e m massa parecia u m a ficção do passado; a
insaciável d e m a n d a de mão-de-obra p o r parte do capitalismo m o d e r n o absorveu
vários milhões de refugiados, os mais de 20 milhões de e u r o p e u s ocidentais que se
t r a n s f e r i r a m da agricultura para a indústria o u para o setor de serviços mais os
a p r o x i m a d a m e n t e 10 milhões de t r a b a l h a d o r e s da E u r o p a meridional, da orla
m e d i t e r r â n e a e de colônias mais distantes. Os m e r c a d o s de t r a b a l h o e u r o p e u s
internacionalizaram-se, pois e m três décadas o n ú m e r o de estrangeiros que viviam
na E u r o p a ocidental triplicou.

,/Às primeiras levas c o m p u n h a m - s e de jovens solteiros, instalados e m condi-


ções precárias e mal tratados pela população local. Na Suíça, havia placas na entra-
da dos parques públicos proibindo o acesso de "cães e de italianos". Nas pensões
inglesas, as placas avisavam: " N ã o aceitamos negros, irlandeses n e m cães". N a
Alemanha, os imigrantes gregos enfrentavam u m a situação semelhante à dos tra-
balhadores forçados d o Terceiro Reich: às vezes as condições de vida pareciam u m
p o u c o melhores. Os estrangeiros que chegavam à Alemanha e à Suíça e m cumpri-
m e n t o dos acordos bilaterais de trabalho e r a m contratados e m caráter temporá-
rio, alojados e m hospedarias e segregados do restante da população. T i n h a m direi-
tos m í n i m o s e e s t a v a m sujeitos a d e p o r t a ç ã o . N a Inglaterra e na França, os
imigrantes encontravam-se n u m a situação melhor, do p o n t o de vista legal, p o r é m
sofriam o m e s m o g r a u de segregação e discriminação social. E m toda a Europa oci-
dental, t e n d i a m a aglomerar-se nos centros urbanos, c o r r e s p o n d e n d o a 12% da

3i7
população e m Paris, 16% e m Bruxelas, 11% e m Stuttgart e 34% e m Genebra n o
começo da década de 1970.
U m dos motivos pelos quais os governos não planejaram n e n h u m a estratégia
de longo prazo para u m a imigração nessas proporções foi que a consideravam u m
f e n ô m e n o passageiro. D u r a n t e u m século, pelo menos, os migrantes constituíram
u m recurso precioso, ajudando a suprir a demanda por ocasião do boom e resguar-
dando os trabalhadores locais do desemprego n u m a fase de pouca atividade. Na
França, na Alemanha e e m outros países, utilizavam-se tradicionalmente os con-
tratos temporários e até m e s m o sazonais para regular os fluxos de mão-de-obra.
Entretanto, não d e m o r o u a evidenciar-se que n e m todos os estrangeiros preten-
diam voltar logo para sua pátria: muitos italianos, iugoslavos, gregos e espanhóis
tinham essa intenção, contudo muitos trabalhadores procedentes da Turquia, das
índias Ocidentais e da índia não pretendiam voltar a seu país.
C o m o os e u r o p e u s q u e e m i g r a r a m para os Estados Unidos n o século xix,
esses forasteiros m a n d a v a m buscar a mulher e constituíam família. No começo dos
anos 1970, viram-se m e s m o obrigados a isso pela ameaça de novos controles imi-
gratórios. E m b o r a saíssem de hospedarias desconfortáveis para a p a r t a m e n t o s
próprios, continuaram sendo segregados — c o m o nos Estados Unidos, e m b o r a
e m m e n o r escala, muitos brancos preferiam m u d a r de bairro a conviver com vizi-
nhos de outras raças — e c o m e ç a r a m a aparecer enclaves nas cidades. Logo surgiu
u m a segunda geração. Dos a p r o x i m a d a m e n t e 924 mil indivíduos "de cor" que
viviam n o Reino Unido e m 1966,213 mil haviam nascido ali: o que se iniciara c o m o
u m a questão de política imigratória levantou inevitavelmente questões de raça,
cidadania e cultura nacional. 74

E m O medo consome a alma, filme de 1973, Rainer Werner Fassbinder focaliza


u m caso de a m o r entre u m imigrante m a r r o q u i n o e u m a alemã mais velha, Emmi.
Esse pessoal é " u m rebotalho", u m b a n d o de "porcos sujos", os amigos dizem a
Emmi. Apesar dos preconceitos, os dois se casam e c o m e m o r a m sua união n u m
restaurante de Munique outrora freqüentado por Hitler. C o m o Fassbinder indica,
o racismo do pré-guerra estava intimamente ligado ao do pós-guerra, e o influxo
de trabalhadores estrangeiros fez emergir o sentimento de superioridade, a ansie-
dade cultural, o preconceito que nunca estiveram m u i t o abaixo da superfície na
sociedade da Europa ocidental. E m 1955, f o r a m os cipriotas de Londres q u e os

318
Teddy boys atacaram e m n o m e do " h o m e m branco"; três anos depois, chegou a vez
dos forasteiros das índias Ocidentais residentes e m Notting Hill. E m b o r a a violên-
cia racista e a política declaradamente xenófoba fossem até certo p o n t o raras e até
recebessem críticas, u m a f o r m a mais b r a n d a de racismo se propagava e crescia. N o
início da década de 1970, o clima e c o n ô m i c o m u d o u e tornou-se mais hostil à imi-
gração contínua e m larga escala. 75
ifNo final dos anos 1960 e c o m e ç o dos 1970, surgiu u m a série de restrições à
i m i g r a ç ã o e o p r e c o n c e i t o racial evidenciou-se cada vez mais. A Inglaterra e a
França a b a n d o n a r a m sua política relativamente liberal de cidadania imperial; o
império ruíra mais depressa do q u e se poderia prever, e os direitos de cidadania
logo se limitaram à metrópole. Entre 1962 e 1971, a legislação britânica fechou a
p o r t a p a r a os estrangeiros, exceto para os irlandeses, q u e c o n t i n u a r a m sendo a
maior minoria étnica do país. A partir de 1968, condicionou-se a cidadania britâni-
ca à filiação britânica. A situação era semelhante na França, q u e a d o t o u critérios
mais rígidos n o c o m e ç o da década de 1970 e e m 1974 suspendeu a imigração — o
que ocorreu t a m b é m na Alemanha, praticamente nessa m e s m a data.
Acabar c o m a i m i g r a ç ã o era mais fácil q u e t e n t a r a p r i m o r a r as relações
raciais. Ao contrário das antigas potências imperiais, a Alemanha Ocidental sem-
pre distinguira os alemães étnicos dos t r a b a l h a d o r e s estrangeiros. A Lei dos
Estrangeiros (Auslãndergesetz) de 1965 era ainda mais severa q u e a legislação nacio-
nal-socialista que a antecedera; a expulsão já n ã o dependia da conduta individual,
e sim das necessidades do Estado. O governo de Bonn recusava-se t e r m i n a n t e m e n -
te a admitir as novas realidades sociais. Nas palavras resolutas da Comissão Federal
e m 1977: 'A República Federal n ã o é u m país de imigrantes. A Alemanha é u m local
de residência para estrangeiros que a c a b e m voltando v o l u n t a r i a m e n t e para sua
pátria". Abrigava, n o entanto, 1,3 milhão de trabalhadores estrangeiros e m 1966 e
2,6 milhões e m 1973; 4,3% de todas as crianças nascidas n o país e m 1966 e r a m filhas
de imigrantes; e m 1974, essa p r o p o r ç ã o subiu para 1 7 , 3 % . 7 j j
A maioria dos países d e m o r o u a a b o r d a r s e r i a m e n t e o p r e c o n c e i t o racial.
" É r a m o s forasteiros e tratados c o m o tais", l e m b r o u u m e u r o p e u d o Leste que se
instalou e m Yorkshire. "O t e m p o t o d o t í n h a m o s de provar q u e é r a m o s n ã o exata-
m e n t e iguais, m a s quase iguais." G e r a l m e n t e se considerava a existência do pre-
conceito c o m o u m fato lamentável da vida política t a n t o da esquerda q u a n t o da
direita. N ã o havia dispositivos antidiscriminação, e o Estado c o m u m e n t e acredita-
va que incentivar os imigrantes a voltar para sua terra constituía a m e l h o r respos-

3i9
ta às tensões raciais (em 1983, aprovou-se e m Bonn a Lei de Incentivo ao R e t o r n o
dos Trabalhadores Estrangeiros). Pouca gente a r g u m e n t o u q u e esse tipo de políti-
ca só agravava o problema. 7 7
Até na Inglaterra, o n d e havia u m a legislação limitando relações raciais, o estí-
m u l o partia de p e q u e n o s g r u p o s e n ã o de u m protesto público e m larga escala. A
Lei da I m i g r a ç ã o de 1971 t a m b é m c o n t i n h a artigos r e f e r e n t e s à "repatriação",
e m b o r a n u n c a fossem alardeados n e m incentivados para n ã o a m e a ç a r as "boas
relações raciais". Na verdade, as pesquisas de opinião s u g e r e m que, apesar de os
e u r o p e u s ocidentais r e c o n h e c e r e m q u e a expressão do preconceito racial já n ã o
era t ã o aceitável c o m o antes da g u e r r a , g r a n d e p a r t e de sua hostilidade c o n t r a
estrangeiros, principalmente os não-europeus, continuava latente. Os sindicatos
suspeitavam q u e os imigrantes aceitavam salários mais baixos; os conservadores
t e m i a m q u e c o r r o m p e s s e m a cultura nacional. Poucas pessoas pareciam cientes de
q u e a Inglaterra, p o r exemplo, c o n t i n u o u exportando migrantes d u r a n t e boa p a r t e
desse p e r í o d o ; q u e os t r a b a l h a d o r e s estrangeiros g e r a v a m g a n h o s e c o n ô m i c o s
para as sociedades q u e os acolhiam e constituíam apenas 2,3% da população total
da E u r o p a ocidental (1970-1). P o u c o s c o n c o r d a r i a m c o m o imigrante q u e disse:
'Assim c o m o [sua] cultura enriquece a nossa, a nossa t a m b é m enriquece a sua".

/ C o m o desaparecimento do o t i m i s m o e c o n ô m i c o n o c o m e ç o da década de 1970,


os imigrantes deixaram de ser fatores valiosos para se transformar, praticamente
da noite para o dia, e m estrangeiros indesejados, que a m e a ç a v a m o e m p r e g o dos
habitantes locais e exploravam o Estado do bem-estar social. 78

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