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A

Rossano Pecoraro*∗

Revista de Filosofia
Por que o ser e não o nada?
A Grundfrage em Leibniz,
Schelling e Heidegger

Resumo

Este artigo pretende discutir as diversas reflexões de Leibniz, Schelling e Heidegger sobre a
“pergunta fundamental” (Grundfrage) da filosofia: “Por que o ser e não o nada?”

Palavras-chave: Ontologia; Nada; Filosofia alemã; Metafísica.

Abstract

This article aims to analyze three different reflections (Leibniz, Schelling and Heidegger)
about the “fundamental question” (Grudfrage) of Philosophy: “Why is there something
rather than nothing?”

Keywords: Ontology; Nothing; German Philosophy; Metaphysics.

* Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor do quadro permanente do Mestrado em Ética e Epistemologia da UFPI, bolsista de Pós-
Doutorado CAPES/PNPD.

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É nos Princípios da natureza e da dade do nada, como se realmente pudesse
graça (1714) que Leibniz enfrenta uma das haver o não-ser no lugar do ser, mas sim de
questões fundamentais da filosofia: por que um artifício para afirmar, “para além de
o ser e não, antes, o nada? Por que existe toda dúvida, que, dado o existente, é dado
algo ao invés do abismo do não-ser? Em junto com ele o seu fundamento.” (GIVONE,
verdade, ao contrário de Schelling e Heide- 2003, p. 182).
gger, o pensador de Lípsia põe a Grundfrage Há duas ordens de questões ligadas à
com um tom retórico, visando menos a Grundfrage: a primeira deriva dos argu-
aprofundá-la ou interrogá-la do que a con- mentos com os quais se enfrentam a per-
firmar e reforçar a resposta implícita nela gunta: por que o ser e não, antes, o nada?; a
compreendida. Os motivos abrigam-se na segunda é relativa a certo “desvio” do
lúcida percepção do perigo que o nada e a Grund: por que tudo aquilo que existe é
sua potência ontológica representariam pela assim e não de outro modo? Leibniz res-
solidez do seu esplêndido edifício filosófico. ponde à pergunta fundamental sustentando
O nada, “voragem tenebrosa e abismo sem que a razão que funda o ser não pode ser
fundo [...] alteraria o aspecto tão luminoso e encontrada na contingência das coisas que
solar do seu pensamento” escreveu o filó- são, pois cada coisa contingente precisa de
sofo italiano Luigi Pareyson, ao qual se deve uma razão ulterior que a fundamente e a ex-
a decisiva observação de que a hipótese do plique e assim por diante. É preciso, assim,
nada é alheia, absolutamente incompatível instituir algo que escape a este círculo vi-
com o sistema de Leibniz (PAREYSON, cioso; é
1992, nº 8). necessário que a razão suficiente, que
É verdade, decerto, que ele não só não precisa de nenhuma outra razão,
perguntou sobre o não-ser, formulando cla- esteja fora da série das coisas contingen-
ramente a hipótese do nada, como ressaltou tes e se encontre em uma substância que
a maior correspondência do nada à lei de lhes seja causa ou então que seja um ser
simplicidade e de economicidade (“o nada necessário, portando em si a razão da sua
existência; caso contrário não teríamos
é mais fácil e simples do que alguma coisa”)
ainda uma razão suficiente na qual nos
que governa o universo ao ponto que deve- determos. Esta última razão das coisas é
ríamos nos interrogar sobre a razão pela chamada Deus. (LEIBNIZ, 1997, p. 34).
qual Deus preferiu percorrer a via mais di-
fícil e complexa ao invés de escolher a mais A segunda questão (por que tudo
linear. Mas estes argumentos são igual- aquilo que existe é assim e não de outro
mente retóricos e defensivos, já que a pos- modo?) é resolvida apelando para a per-
sibilidade do nada não é formulada de ma- feição de Deus, o único ser necessário, no
neira séria e radical, não chega a qual coincidem essência e existência, inte-
problematizar realmente a alternativa entre lecto e vontade, o ens purissimum que não
ser e não-ser. Em outras palavras: por que admite contradição nem contraste. Deus é
existe alguma coisa e não, antes, o nada? princípio tanto das essências (todas as
Significa para Leibniz apenas que algo coisas que são pensáveis sem contradição,
existe e, se existe, tem de existir a razão isto é, todas as coisas possíveis) como das
pela qual ele existe necessariamente, em existências (as coisas que são, que existem
virtude do grand principe, o supremo de fato). Há infinitos possíveis, que se orga-
axioma representado pelo “princípio de nizam em infinitos mundos cuja caracterís-
razão suficiente” que afirma: nada existe tica fundamental é que um exclui o outro,
sem que exista e possa, portanto, ser esta- ou seja, a realização de um implica a não-
belecida uma razão suficiente para deter- -realização do outro. Só o intelecto divino
minar o fato de que uma coisa exista, acon- torna possível o possível e realiza a exis-
tecendo assim e não de outra maneira. Não tência da essência. Deus pensa infinitos e
se trata, portanto, de investigar a possibili- diferentes mundos possíveis dos quais,

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porém, só pode escolher um; apenas um – tipicamente metafísica de um fundamento,
que em virtude da sua onipotência é o me- da sua fixação e elucidação. Leibniz não diz
lhor dos mundos possíveis – será levado à que o mundo escolhido por Deus (o melhor
existência por Ele. de todos os mundos possíveis) é, mas po-
Da perfeição suprema de Deus segue-se deria não ser; é assim, mas poderia não ser
que, produzindo o universo, ele escolheu assim: “fato” perfeitamente compatível com
o melhor plano possível, no qual há a a onipotência divina, mas que teria aberto
maior variedade unida à máxima ordem, uma brecha decisiva no seu sistema. Ele
no qual o terreno, o lugar e o tempo são afirma que as coisas do mundo são as me-
os mais bem preparados, no qual o efeito lhores possíveis, e “são assim e não de
obtém-se com os meios mais simples e as outro modo”. Este “de outro modo” não
criaturas têm a maior potência, conhe-
alude à possibilidade do Nada, mas, como
cimento, felicidade e bondade que o
universo podia permitir. Com efeito, como é óbvio, à possibilidade de todos os outros
todos os possíveis almejam a existência no possíveis pensados por Deus que – em sua
intelecto de Deus, o resultado de todas perfeição, onipotência, etc. – aniquilou por
essas pretensões deve ser o mais perfeito serem inferiores àquele possível (o melhor
mundo concreto possível. Sem isso não se de todos, vale dizer, este universo) que de-
poderia explicar por que as coisas são cidiu levar à existência.
assim e não de outro modo. (LEIBNIZ, A hipótese do nada, ressalta Pareyson,
1997, p. 34).
transformaria em um “verdadeiro drama”
Mas, a escolha de Deus é livre ou ne- dois pontos “fixos e pacíficos” da filosofia de
cessária? Ele possui a liberdade absoluta Leibniz: a relação entre tudo o que existe e o
para escolher – dentre todos os infinitos possível, e a distinção da vontade divina da
mundos possíveis – o melhor, ou seja, este mente de Deus. Com o possível confundido
mundo, ou é obrigado pela necessidade, com o nada e a vontade divina separada do
não podendo escolher senão o melhor? Lei- intelecto divino sendo, portanto, destituída
bniz explica que se trata de necessidade e de critério e fundamento, tanto o possível
de obrigação, mas não no sentido metafísico quanto a perfeição e a unidade de Deus as-
(qualquer outra escolha seria impensável sumiriam um “caráter abissal e imprevisível
porque contraditória e, portanto, impossível) que chegaria a desconectar e pulverizar o
e sim moral (Deus pretende realizar o maior sistema”. A possibilidade do Nada revelaria
bem e a máxima perfeição possível; todas as que o mundo não só poderia ser “de outro
alternativas representadas pelos outros infi- modo”, como poderia não-ser; colocaria a
nitos mundos logicamente e não-contradito- ontologia, a metafísica, a teodicéia leibni-
riamente pensáveis, isto é, possíveis são ziana à beira do báratro do nada (niente), do
aniquiladas por serem inferiores). absoluto não-ser e não apenas à margem da
Leibniz afirma que o universo é ge- infinitude dos possíveis alternativos. É por
rado pela perfeição suprema de Deus que isso que
escolhe o melhor dos mundos possíveis; ou a hipótese do nada é um corpo estranho
seja, este mundo que é “assim e não de no pensamento de Leibniz, que é sufi-
outro modo”. Um mundo que é, e se é, e ciente para abalar os seus fundamentos,
com base no princípio de razão suficiente, lançando uma sombra e introduzindo
tem de existir a razão pela qual ele é; isto é, uma dúvida nos princípios essenciais
o motivo em virtude do qual é como é, não é da existência e da criação. (PAREYSON,
diferente, é “assim e não de outro modo”. 1992, p. 15).
Esta passagem é decisiva porque deixa Admitir a hipótese do nada signifi-
transparecer o temor do filósofo e revela as caria admitir que a realidade seria abissal-
suas verdadeiras intenções: o não ser “de mente infundada; as coisas do mundo esta-
outro modo” não indica a admissão da pos- riam apoiadas não na razão última e no ser
sibilidade do Nada, mas sim a necessidade único e necessário, mas no mais puro e in-

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sondável abismo; e Deus seria este abismo. Já implicado em sua concepção da
É evidente que tal perspectiva aparece a arte (a intuição estética que apreende o
Leibniz “repugnante” (GIVONE, 2003, p. ideal e o real na sua unidade) um novo con-
184). Deus é abismo (a abissalidade de ceito de absoluto – entendido como coinci-
Deus) apenas porque ele pensa a infinitude dentia oppositorum, unidade, identidade
dos possíveis. Trata-se, porém, de um originária entre Eu e Não-Eu, Sujeito e Ob-
abismo transparente, que irradia a luz da jeto, Espírito e Natureza, etc. – que deveria
graça ao deixar lugar à admirável ordem e à superar as formulações unilaterais (e oposi-
esplendida harmonia do universo que a oni- tivas) de Kant e Fichte é elaborado por
potência divina escolheu para a nossa felici- Schelling na “filosofia da identidade”. Fun-
dade. O Deus abissal de Leibniz é o Deus da dada na intuição do Absoluto, a filosofia é o
luz e das superfícies, da criação e – princi- saber absoluto do Absoluto, é ciência, é
palmente – do triunfo sobre o nada. O Deus condição de todos os outros saberes:
bibliotecário que tudo sabe e tudo conhece; O primeiro passo para a filosofia e a
o Deus da aniquilação e da anulação do condição sem a qual nem sequer é pos-
nada. Em verdade a Grundfrage leibniziana, sível entrar nela – é a compreensão de
como sugere Givone na sua Storia del nulla, que o absolutamente ideal é também o
reduz-se a uma peremptória afirmação: ti- absolutamente real, e de que, fora disso,
remos da pergunta o ponto de interrogação só há, em geral, realidade sensível e
condicionada, mas nenhuma realidade
e lhe acrescentemos antes o axioma: Deus é
absoluta e incondicionada. (SCHELLING,
o fundamento do ser. Obteremos o que o fi-
1979, p. 47).
lósofo de Lípsia pretendia sustentar: Deus é
o fundamento do ser, porque existe alguma A intuição do Absoluto (a identidade
coisa e não, antes, o nada. de real e ideal) é indemonstrável, não pode
É na ultimíssima fase do seu pensa- ser provada diretamente, “pois é, pelo con-
mento (a partir de 1841, nas obras publicadas trário, o fundamento e princípio de toda de-
póstumas) que a questão do nada é enfren- monstração.” (IBIDEM). Esta identidade,
tada por Schelling de maneira decisiva. A este Absoluto passa a ser chamado por
pergunta fundamental, na verdade, já apare- Schelling de “Razão”. Fora da razão não há
cera antes, na etapa intermediária da sua re- nada, tudo está nela; a razão é una e igual a
flexão, no ponto culminante da “filosofia da si mesma; trata-se de uma identidade abso-
identidade” precisamente no System der ge- luta e infinita que produz tudo o que existe
samten Philosophie, de 1804, e nos Apho- (o finito nasce de uma diferenciação quali-
rismen, de 1806. Sendo o oposto do nada não tativa entre os opostos conciliados na iden-
o “alguma coisa”, mas o “todo”, a totalidade tidade absoluta, o Uno-Todo). Escutemos as
que exclui do seu seio o não-ser, Schelling programáticas palavras de Schelling no
desacredita o nihil e a sua potência: o nada apêndice da introdução à edição de 1803
não é, é impossível; a “hipótese do nada é das Idéias para uma filosofia da natureza:
completamente exorcizada pela necessidade A filosofia tem exigências mais altas a
do ser” escreve Pareyson, “a filosofia da iden- cumprir e deve abrir, enfim, os olhos da
tidade nega o nada, ou antes: contesta a sua humanidade, que já viveu por tempo
própria pensabilidade.” (PAREYSON, 1992, suficiente, seja na crença ou na des-
p. 28-30). A perspectiva muda radicalmente crença, indigna e insatisfatoriamente.
em seguida. Na Filosofia da revelação, publi- O caráter de todo o tempo moderno é
cada póstuma, Schelling formula a Grun- idealista, o espírito dominante é o retorno
à interioridade. O mundo ideal move-se
dfrage sem temor; invocando o nada ante o
poderosamente para a luz, mas o que
desespero e a angústia existencial, a insen- ainda o retém é que a natureza se retirou
satez e o absurdo da condição humana: “por como mistério. Os próprios segredos que
que existe alguma coisa? Por que não o estão naquele mundo não podem tornar-
nada?” (SCHELLING, 1972, p. 103). -se verdadeiramente objetivos, a não ser

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no mistério da natureza enunciado. As os mesmos dois princípios (definidos como
divindades ainda desconhecidas, que o “um inconsciente e obscuro, outro cons-
mundo ideal prepara, não podem entrar ciente”) que o homem tem em si. O conflito,
em cena como tais antes de poderem to-
divino e terreno, é resolvido pelo triunfo do
mar posse da natureza. Depois que todas
as formas finitas forem desmanteladas e
bem, da inteligência e do amor, presentes
no vasto mundo não houver mais nada no mundo porque já presentes em Deus.
que unifique os homens como intuição Mas se a vitória em Deus – que permite que
comum, somente a intuição da identida- Ele se faça “pessoa” – realiza-se eterna-
de absoluta na mais completa totalidade mente, a promessa de vitória no mundo e na
objetiva pode, de novo e na última con- existência permanece absurdamente não
figuração da religião, unificá-los para cumprida. Schelling parece esquivar-se
sempre. (Ibdem, p. 55).
desta evidência essencial à qual Emil Cioran
no Funesto demiurgo fornece ao menos um
As viradas, as transformações, as mu- vislumbre de explicação: o mal é inovação,
danças radicais de rumo do pensamento progresso, força, potência, o bem é inércia,
schellinguiano são conhecidas. Com efeito, estabilidade, esperança, piedade; o bem
da filosofia da identidade passa-se rapida- não podia gerar esse universo corrupto e
mente para a fase teosófica na qual Schelling podre. Sim, há umas gotas de bem que
tenta enfrentar o grave problema de como e fazem com que a criação não seja total-
por que da identidade absoluta e infinita se mente má. Mas a sua função é tão-somente
geram a diferença e o finito, ou antes, o pro- a de provar eternamente que o mal, apesar
blema da origem do finito no infinito. Des- do triunfo, teve de sofrer o “contágio do
cartados criacionismo e espinosismo, o filó- bem.” (CIORAN, 1995, p. 1170).
sofo retoma as doutrinas gnósticas e resolve A partir de 1841, chamado pelo rei da
o problema explicando a origem e a exis- Prússia Frederico Guilherme IV, Shelling en-
tência de todas as coisas recorrendo à idéia sina na Universidade de Berlim; o aspecto
da queda, do “afastamento do Absoluto”. É existencial, crítico e corrosivo do seu pensa-
uma espécie de panteísmo em que tudo mento logo desperta a atenção de um dos
está em Deus (Absoluto). Deus “faz-se a si seus mais atentos espectadores: Kierke-
mesmo”, é pessoa que se faz, é o campo de gaard. As obras publicadas póstumas re-
batalha em que lutam dois princípios anta- montam a estes anos de relativo sucesso e
gônicos (os mesmos que, na fase prece- de rápida e “progressiva” desilusão: em
dente, eram unificados e conciliados). Deus 1847 o filósofo interrompe o ensino; em
é devastado por este conflito originário entre 1854, às margens do mundo acadêmico,
uma força obscura, cega, negativa e uma cultural e filosófico morre, totalmente es-
força racional, positiva que consegue preva- quecido, na Suíça. Na Filosofia da revelação
lecer explicando assim a própria vida de é o espanto (maravilha e terror) perante a
Deus e do mundo. Desencanto, angústia; o natureza e a sua inexaurível multiplicidade
drama humano com a luta entre o mal e o de formas, cores, criaturas, imagens a pro-
bem nada mais é do que repetição do con- vocar a reflexão; é a pergunta sobre o porquê
flito originário que está na base da vida de das coisas e da sua maneira de ser, que
Deus. Existe mal no mundo porque o mal já constitui a angustiante origem de todo in-
existe em Deus. O sofrimento, o desespero, terrogar. A resposta da tradição (a natureza
o absurdo, o insensato, o negativo assolam foi criada em função do homem; é ele – es-
o mundo porque já assolam a Deus. copo último e supremo – que a habita e lhe
Todo o processo de criação do mundo, atribui sentido) não é satisfatória. O homem
afirma Schelling nas Lições de Stuttgart não possui as respostas para todas as per-
(1810), “nada mais é do que o processo da guntas nem a solução de todos os enigmas,
plena tomada de consciência e da completa pois ele é apenas o ponto de chegada de um
personalização de Deus”, no qual coexistem processo e não o fim: “se para o homem a

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natureza é impenetrável, por outro lado o vendo-se, em um báratro. Ora, na realidade
homem é alheio à natureza.” (SCHELLING, Schelling, embora formule a Grundfrage
1992, p. 101). Ela demonstra absoluta indi- atravessado por um sofrido sentimento de
ferença pela existência humana e pelas desespero e angústia (bem diferente do tom
suas “realizações” que não possuem sentido retórico e otimista de Leibniz), parece querer
algum; por sua vez o homem, no seu delírio engajar-se na tentativa de superar a lace-
de onipotência, afasta-se do plano natural e ração e o conflito; vale dizer, ultrapassar
afirma a sua vontade em uma dimensão que aquilo que Givone (o filósofo italiano insiste
não lhe pertence, diversa, superior e mais muito neste aspecto) define como “nii-
uma vez alheia à natureza. A Freiheit des lismo”, isto é, o declínio e o descrédito da
Willens, a liberdade do querer e da vontade, questão fundamental (“por que não o
o desejo de potência e domínio, que se pen- nada?”); da sua queda em um plano não-
sava capaz de conhecer a razão última, res- -problemático, de simples lamentação, re-
ponder a todas as perguntas e solucionar os signação, abandono, “de uma vaga invo-
enigmas, revela-se impotente e precipita o cação nostálgica do não-ser como preferível
homem em um novo e mais espantoso ao ser.” (GIVONE, 2003, p. 190).
abismo. Basta um veloz olhar sobre o A superação torna-se possível graças
homem e a sua história para desesperar: à liberdade, à Freiheit des Willens, causa de
tudo é vão, absurdo, sem sentido. todos os males, razão última do desespero e
Uma geração desaparece, outra se segue da angústia que, agora, é deslocada para
para desaparecer por sua vez. Nós espe- um nível radicalmente ontológico e origi-
ramos em vão que aconteça algo novo nário no qual está em jogo “o infundado fun-
em que esta inquietação possa encontrar damento da razão, o infundado fundamento
finalmente a sua conclusão; tudo o que do ser: em uma palavra o nada” (Ibidem,
acontece, só acontece a fim de que possa p.192). Tudo aquilo que existe veio a ser, é
acontecer novamente alguma coisa, que
potência realizada, é ato. Mas a autêntica li-
por sua vez, indo rumo a outra coisa,
transcorre no passado; no fundo, assim, berdade, diz Schelling, não reside “no poder
tudo acontece em vão, e cada operar, ser, no poder manifestar-se, mas no poder
cada trabalho e fadiga do homem nada não ser, no poder em si de não manifestar-
mais é do que vaidade: tudo é vão, pois -se”. A liberdade é a potência de não ser e
é vão tudo aquilo que carece de um ver- de ser, é o infundado fundador desvincu-
dadeiro fim (Ibidem, p. 102-103). lado de qualquer princípio e necessidade, é
A ausência de sentido; a insignifi- a possibilidade que abre (mas poderia não
cância universal; a existência, “presença ín- abrir) o caminho para o ser. O nada, a magia
fima” como a definiu Cioran; a consciência deste nada, a potência que pode livremente,
da infelicidade. Eis a origem da Grundfrage; sem ser obrigada ou fundada pela razão, ne-
da dolorosa invocação, ou nas palavras do cessidade alguma, traduzir-se em ato (ou
próprio Shelling, “da pergunta suprema re- seja: passar a ser do não-ser que era) porque
pleta de desespero: por que existe alguma pode também fincar-se em si mesma, não
coisa? Por que não o nada?”. traduzir-se em ato, recolher-se no não-ser.
A laceração, o hiato incomensurável Na conclusão de Givone:
entre a experiência da insignificância da No fundo (no abismo? no báratro?) da
vida e a invocação nostálgica de um funda- razão ou, antes, do próprio ser há a pos-
mento; entre a constatação lancinante do sibilidade que o ser não seja e é a partir
“tudo é vão” e a evocação de um remédio, desta possibilidade extrema que o ser e
de uma ilusão qualquer para (sobre)viver, o não ser aparecem inseparavelmente
vale dizer, de uma transcendência, de uma ligados. Ao ponto que o nada é posto a
fundamento do ser. (Ibidem, p. 194).
fundação metafísica, absoluta. O grande
problema é que todo tipo de fundamentação Heidegger enfrenta a metafísica e a
revela-se ilusório, vão; precipita, dissol- sua pergunta fundamental de uma forma

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profunda, pondo-se decididamente “contra acontece com este nada agora “admitido”?
Parmênides” e o veto de pensar o não-ser O que é o nada? A elaboração da questão se
(TAUBES, 2000). O tom do confronto (“Aus- complica, torna-se “impossível” formulá-la
-einander-setzung”) alude não ao discurso dado que, sempre, o nada “é” isto ou aquilo.
otimista e retórico de Leibniz, mas àquele É neste momento que nos deparamos com a
inovador, tormentoso e profundo do último dificuldade maior:
Schelling.1. Na preleção de 1929 de Que é a A regra fundamental do pensamento a
metafísica, a interrogação se desenvolve em que comumente se recorre, o princípio
um contexto concreto, “na totalidade e na de não-contradição, a ‘lógica’ universal,
situação fundamental da existência que in- arrasa esta pergunta. Pois o pensamento,
terroga” e que é determinada pela ciência. que essencialmente sempre é pensado de
O trabalho científico tem como seu propó- alguma coisa, deveria, enquanto pensa-
sito conhecer o ente, e nada mais. “A ciência mento do nada, agir contra sua própria
essência (Ibidem, p. 54).
nada quer saber do nada”, que para ela é
“horror e fantasmagoria” escreve Hei­degger. Teríamos chegado, pois, ao término da
Devemos dizer, então: nossa interrogação? Não, responde Heide-
Aquilo para onde se dirige a referência gger porque a lógica não é a “última ins-
ao mundo é o próprio ente – e nada mais. tância”, o “entendimento” é o senhor na per-
gunta pelo nada e nos ajuda a colocá-lo
Aquilo de onde todo o comportamento como problema através de uma figura cen-
recebe sua orientação é o próprio ente tral do procedimento lógico: a negação, “ato
– e além dele nada. específico do entendimento”. O nada é “a
negação da totalidade do ente, o absoluta-
Aquilo com que a discussão investigadora
acontece na irrupção é o próprio ente – e
mente não-ente”; mas a negação não deter-
além dele nada. mina o nada:
“Nós afirmamos: o nada é mais originário
Mas o estranho é que precisamente, no que o ‘não’ e a negação [...] A possibi-
modo como o cientista se assegura o que lidade da negação, como atividade do
lhe é mais próprio, ele fala de outra coisa. entendimento, e, com isso, o próprio en-
Pesquisado deve ser apenas o ente (das tendimento, dependem, de algum modo
Seiende) e mais – nada (nichts); somente do nada.” (Ibidem).
o ente e além dele – nada (nichts); unica-
mente o ente e além disso – nada (nichts). O problema de como o entendimento
poderá decidir sobre o nada, porém, parece
Que acontece com este nada (dieses permanecer intacto.
nichts)? É, por acaso, que espontanea- A solução de Heidegger é conhecida:
mente falamos assim? É apenas um modo indicar os traços de uma experiência funda-
de falar – e mais nada (sonst nichts)? mental do nada. “Se apesar [da formal impos-
(HEIDEGGER, 2005, p. 52-53).
sibilidade da questão do nada] ainda a for-
Paradoxalmente é a própria ciência, mulamos, então devemos satisfazer ao menos
em sua essência, a “recorrer ao nada” na àquilo que permanece válido como exigência
medida em que o exclui e o bane; “Aquilo fundamental para a possível formulação de
que ela rejeita, ela leva em consideração”. qualquer questão. Se o nada deve ser ques-
Uma coisa é indiscutível: a ciência nada tionado – o nada mesmo –, então deverá estar
quer saber do nada. E “esta é, afinal, a rigo- primeiramente dado. Devemos poder en-
rosa concepção científica do nada” (Ibidem, contrá-lo. Onde procuramos o nada? Onde
p. 53). Mas, interroga-se o filósofo: o que encontramos o nada?” (Ibidem). Por mais

1
A quebra da tradição ocorre com Schelling, do qual Heidegger – embora não reconhecendo-o explicitamente – é devedor. Neste
sentido ver o ensaio já citado de Jacob Taubes e a Storia del nulla, di Givone.

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dispersa, fragmentada, confusa que seja a velada como aquela totalidade que de-
nossa existência retém o ente em uma “uni- vém, decai, desaparece. (Ibidem, p. 54).
dade de totalidade” que pode sobrevir e nos O “nada nadifica”. É uma “rejeição que
invadir no tédio propriamente dito, que não afasta de si”, isto é, um “remeter (que faz
é provocado por isso ou aquilo, mas sim um fugir) ao ente em sua totalidade que desapa-
sentimento profundo que rece”, é uma “remissão que rejeita em sua
como névoa silenciosa desliza para cá e totalidade, remetendo ao ente em sua totali-
para lá nos abismos da existência, nivela dade em fuga.” (Cf. HEIDEGGER, 2005,
todas as coisas, os homens e a gente p. 58). Ser (do ente) e nada se co-pertencem;
mesmo com elas, em uma estranha indi- aquele é mostrado como infundado por este
ferença. (Ibidem, p. 55).
e o nada é o horizonte do qual o ser provém e
O tédio autêntico, assim como a ale- no qual afunda. Mais precisamente: “So-
gria pela existência de uma pessoa querida, mente na clara noite do nada da angústia
manifestam o ente em sua totalidade (o surge a originária abertura do ente enquanto
nada, como vimos, é a plena negação da to- tal: o fato de que é ente – e não nada.”
talidade do ente). (Ibidem). O ente descobre que é ente e não
Mas essas “disposições de humor” ou nada; mas, ressalta Heidegger, o nada, o fato
estados de alma (Stimmungen) ao nos con- de que o ente é ente e não nada, não deve ser
duzir diante do ente em sua totalidade, pensado como secundário e tardio, mas sim
ocultam-nos o nada. Só um sentimento mais como “a possibilidade prévia da revelação do
profundo e radical, ainda que bastante raro, ente em geral. A essência do nada originaria-
poderá levar o Dasein (que o experimenta e mente nadificante consiste em: conduzir pri-
o padece) à presença do nada: a angústia; meiramente o ser-aí (Dasein) diante do ente
que não é ansiedade, temor disto ou aquilo, enquanto tal” (Ibidem). O ser-aí não é o ente,
mas sim uma “estranha tranqüilidade” na que é rejeitado, afastado. A totalidade do
qual experimentamos não apenas uma sim- ente foge, a angústia revela o nada que nadi-
ples falta de determinação, mas a “essen- fica, isto é, nas sintéticas palavras de Um-
cial impossibilidade de determinação”. berto Galimberti, “revela aquele não-ente
Trata-se do [ni-ente, em italiano] que é o ser a qual o ser-
afastar-se do ser em sua totalidade, que
-aí é originariamente aberto e graças ao qual
nos assedia na angústia, nos oprime. Não o ente se revela.” (GALIMBERTI, 1986, p. 50).
resta nenhum apoio. Só resta e nos sobre- E, concluindo, nas próprias palavras de Hei-
vém – na fuga do ente – este ‘nenhum’. A degger: “Sem a originária revelação do nada
angústia manifesta o nada [...] Na posse não há ser-si-mesmo, nem liberdade”
da claridade do olhar [quando a angústia (Ibidem, p. 59); e logo em seguida, com uma
se afastou], a lembrança recente nos leva definição lapidar que indica o essencial:
a dizer: diante de que e por que nós nos
angustiávamos era ‘propriamente’ – nada. O nada é a possibilidade da revelação do
Efetivamente: o nada mesmo – enquanto ente enquanto tal para o ser-aí humano.
O nada não é um conceito oposto ao ente,
tal – estava aí. (Ibidem, p. 57).
mas pertence originariamente à essência
mesma (do ser). No ser do ente acontece
A angústia revela o nada; mas não en-
o nadificar do nada. (Ibidem, p. 59);
quanto ente, nem como objeto, nem me-
diante uma apreensão. O nada não é uma ou – nos termos de Givone – o nada é um
coisa entre as outras coisas, a angústia não princípio ativo, uma potência no seio do ser:
destrói o ente para deixar, como seu resto, o aquela que ‘nadifica’, isto é, torna possível, à
nada. Acontece que são os entes luz do nada, o aparecer do ente ‘enquanto tal’”
a serem postos em relação com a sua
(GIVONE, 2003, p. 199-200).
negação, com o seu poder não ser; é a Nas páginas finais da preleção Hei­
totalidade do ente a ser posta em relação degger, como é sabido, enfrenta sumaria-
com o nada ao qual pertence e a ser des- mente as questões ligadas à afirmação da

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metafísica clássica ex nihilo nihil fit (do nada cada qual possui e para onde costuma
nada vem) e ao enunciado da teologia cristã refugiar-se sub-repticiamente; e, por
último, permitir que se desenvolva este
que a nega asseverando que Deus criou o
estar suspenso para que constantemente
mundo do nada (o filósofo usa a expressão retorne à questão fundamental da metafí-
ex nihilo fit – ens creatum, para indicar essa sica que domina o próprio nada (Ibidem).
oposição que influi sobre a própria con-
cepção do nada que passa a significar “a ab- Perseveremos na nossa insistência:
soluta ausência de ente fora de Deus”)2. Hei- por que o ente e não, antes, o nada? Na In-
degger insiste em outro sentido da frase ex trodução à metafísica (1935; publicada em
nihilo nihil fit cunhando a expressão ex 1953) Heidegger retorna à Grundfrage e à
nihilo omne ens qua ens fit: do nada vem o sua essencial ambiguidade. A metafísica
ente enquanto ente. O nada não é o prin- ocidental, a partir de Platão conserva o que
cípio, a “causa” do nada, mas sim a con- deveria logicamente eliminar. O perguntar,
dição do desvelamento do ente3. No final da com efeito, refere-se à causa primeira do
preleção Heidegger nega tanto a antiga con- ente, ao seu fundamento. Mas esse empo-
cepção do ser quanto a doutrina bíblica da brecimento da questão provoca a total dis-
criação; apenas com a destruição dos dois solução (e desaparecimento) da filosofia,
pilares da tradição a pergunta fundamental que não só permite o nascimento da ciência,
da metafísica pode ser finalmente posta como se retrai diante dela: é a ciência que
responde hoje à pergunta sobre o porquê
que não é uma disciplina da filosofia
das coisas consideradas em sua totalidade
‘acadêmica’, nem um campo de idéias
como algo que é o que é, e nada mais além
arbitrariamente excogitadas. A metafísica
é o acontecimento essencial no âmbito do disso. Como vimos na Preleção, porém, a ci-
ser-aí. Ela é o próprio ser-aí e nenhum ência pressupõe o mesmo nada que exclui
rigor de qualquer ciência alcança a (ela recorre ao nada na medida em que o
seriedade da metafísica. (HEIDEGGER, bane. “Aquilo que ela rejeita, ela leva em
2005, p. 63). consideração”). É necessário, diz Heidegger,
Mas: e o Nada? O que houve com ele? pôr a “pergunta filosófica fundamental” de
O bojo da preocupação de Heidegger, uma maneira diferente, mais radical, procu-
apesar da centralidade das questões postas rando compreender o sentido do próprio in-
pela Grundfrage e da dissolução da proi- terrogar. A pergunta deve ser subtraída ao
bição parmenidiana, é, ainda, o ser e o seu mecanismo causal, ao porquê explicativo
esquecimento. A função, a utilidade, a ser- em uma tentativa de procurar uma di-
ventia, o caráter instrumental do nada, da mensão (filosófica) em que ela conserve in-
sua potência, do seu sentido parecem – tacta a sua própria força. “E não, antes, o
apesar de tudo – não abandonar a reflexão nada” não é um acréscimo secundário, uma
heideggeriana: elucidação sobre a primeira parte da per-
gunta, mas sim algo que a precede e lhe
A filosofia somente se põe em movimento atribui sentido.
por um peculiar salto da própria existên- O ente é porque não é nada. O não
cia nas possibilidades fundamentais do
nada (o não ser nada do ente) é, portanto, a
ser-aí, em sua totalidade. Para este salto
são decisivos: primeiro, o dar espaço revelação do ser do ente. O Dasein abre-se à
para o ente em sua totalidade; segundo, compreensão do ser do ente exatamente
o abandonar-se para dentro do nada, porque, no retrair-se, no ausentar-se do
quer dizer, o libertar-se dos ídolos que ente, experimenta o nada. O Dasein é aquele

2
Vale a pena lembrar com o intuito de evitar eventuais equívocos, e embora os estudos críticos a respeito sejam muito consistentes
e conhecidos, que tanto a leitura histórica de Heidegger quanto as questões por ele examinadas são altamente problemáticas,
permanecendo ainda muitas e significativas discordâncias entre os intérpretes.
3
Cf. os dois escritos de Heidegger Sobre a essência do fundamento e Sobre a essência da verdade; ambos foram publicados no volume
da coleção “Os pensadores” já referida.

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ente aberto à compreensão da totalidade Heidegger descobre no coração da per-
dos entes, portanto, aberto ao nada, sem o gunta fundamental a questão do nada e,
qual o ente permanece incompreensível portanto, do sentido do ser. Em ambos [os
escritos analisados: a preleção de Que é
quanto ao seu “é”. Tratar-se-ia do ente em
a metafísica e Introdução à metafísica] o
sua totalidade sacudido até o extremo, da sentido do ser é pensado em relação ao
máxima oscilação entre ser e não-ser, do ‘fundamento abissal’ (Ab-grund), é pen-
seu “estar suspenso a uma decisão livre em sado a partir do nada” (GIVONE, 2003,
favor do ser contra o nada” (GIVONE, 2003, p. 206 – grifo nosso). O que está em jogo
p. 204-205). Uma decisão que não deve ser é “o sentido do ser. (Ibidem).
confundida com a manifestação de vontade Escutemos, pois, as palavras do pró-
de um sujeito, porque precede qualquer prio Heidegger. No posfácio (1943) a Que é a
subjetividade que livremente age. É uma metafísica o significado da preleção é escla-
decisão “mais originária”; é a “abertura de recido. Diante das “objeções e falsas opi-
um horizonte que tem o seu fundamento niões.” (HEIDEGGER, 2005, p. 68) sobre o
(Grund) na ausência de fundamento (Ab- texto de 1929 o filósofo precisa que o nada
-grund)”; é o abismo da liberdade no qual “o não é “o único objeto da metafísica”, a sua
ser é o ser que não é precedido por nada, não é uma “filosofia do nada” nem um “aca-
que não é determinado por nada, que no bado niilismo” ou uma “filosofia da an-
fundo é como o nada” (Ibidem, p. 205). A de- gústia” que “paralisa a vontade para a ação”,
cisão pertence, originariamente, ao ser in- tampouco é “uma filosofia do puro senti-
fundado, ao ser como Ab-grund. Se metafí- mento” a qual “põe em perigo o pensamento
sica e ciência sempre se ocuparam com o ‘exato’ e a segurança do agir.” (HEIDEGGER,
ente, esquecendo tanto o ser quanto o nada, 2005, p. 68). A preleção deve ser objeto de
então é preciso, diz Heidegger, reformular uma renovada meditação em que se deve
de um modo diverso e mais radical a Grun- “examinar se o nada [...] se esgota em uma
dfrage rumo ao impensado que deve ser vazia negação de tudo o que é, ou se – o que
pensado, isto é, a identidade de ser e nada. jamais e em parte algum é um ente – se des-
Não refletindo sobre o problema do nada, a vela como aquilo que se distingue de todo
metafísica não consegue pensar o ser, que ente e que nós chamamos o ser” (Ibidem, p.
foi o ponto de partida da sua história. É o es- 68-69). É preciso “armar-nos com a dispo-
quecimento do ser e a concentração no ente sição única de experimentarmos no nada a
que determina a redução do ser a nada, o nii- amplidão daquilo que garante a todo ente (a
lismo. Mas, como repetir a pergunta funda- possibilidade de) ser. Isto é o próprio ser”
mental evitando que não seja um interrogar (Ibidem, p. 69). A preleção, elucida Hei­
sobre o ente, mas, sim, sobre a identidade degger,
entre ser e nada? O filósofo alemão fala em
pensa a partir da atenção à voz do ser; ela
um novo começo; em algo obscuro, arris- assume a disposição de humor [a angús-
cado, inseguro, que não depende essencial- tia] que vem desta voz; esta disposição de
mente do homem; trata-se, antes, de um humor apela ao homem em sua essência
evento, de um envio, de um destino. para que aprenda a experimentar o ser
Ora, já acenamos ao caráter instru- no nada. (Ibidem, grifos nossos).
mental da reflexão de Heidegger sobre o Somente o homem pode experimentar
nada. Uma hipótese interpretativa que, – “chamado para a verdade do ser” e “pela
cremos, encontrou uma série de pontos de voz do ser” – a “maravilha de todas as mara-
apoio que nem a “revelação” da identidade vilhas: que o ente é” (Ibidem). Continuando
de ser e nada – no sentido que sumaria- na defesa da preleção, Heidegger esclarece
mente expomos e que é considerado “canô- que ela pensa o essencial que foi esque-
nico” pelos estudiosos – consegue corroer. cido: o ser. “Mas o ser não é produto do pen-
O ser – e nada além disso, é aquilo que pre- samento. Pelo contrário, o pensamento es-
ocupa, inquieta, obceca. Antes de tudo: sencial é um acontecimento provocado pelo

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ser” (Ibidem, p. 70). Trata-se de um pensa- desvios da tradição; portanto, devemos
mento fundamental em que “se responde ao pensar que a pergunta da preleção é formu-
apelo do ser” enquanto o homem entrega a lada em um sentido totalmente diverso:
sua essência à simplicidade da Se ela não interroga pelo ente e não es-
única necessidade (...) que se plenifica na clarece a última causa ôntica deste, então
liberdade do sacrifício. É preciso que seja deve a pergunta partir daquilo que não
preservada a verdade do ser, aconteça o é o ente. Tal coisa a pergunta nomeia e o
que acontecer ao homem e a todo ente. escreve com letra maiúscula: o Nada que
O sacrifício é destituído de toda violên- a preleção meditou como seu único tema
cia porque é a dissipação da essência (Ibidem, p. 87).
do homem – que emana do abismo da
liberdade – para a defesa da verdade do Referências bibliográficas
ser para o ente. No sacrifício se realiza o
oculto reconhecimento, único capaz de CIORAN, E. Le mauvais démiurge. “Luvres”,
honrar o dom em que o ser se entrega
Paris: Gallimard, 1995.
à essência do homem, no pensamento,
para que o homem assuma, na referência GALIMBERTI, U. Invito al pensiero di Heide-
ao ser, a guarda do ser.4 gger. Milão: Mursia, 1986.
GIVONE, S. Storia del nulla, Roma-Bari: La-
Em 1949 é publicada a introdução a terza, 2003.
Que é a metafísica; o seu propósito é tratar
HEIDEGGER, M. Que é a metafísica?, tra-
do “retorno ao fundamento da metafísica”,
dução do port. de Ernildo Stein. São Paulo,
isto é, ao ser esquecido, olvidado em prol do
Editora Nova Cultural, 2005. Coleção “Os
ente. Tudo depende de que o pensamento
pensadores”
se torne mais pensamento, dirigindo-se
para outra origem e almejando ser um “pen- LEIBNIZ, Monadologia. Principi della natura
samento instaurado pelo próprio ser e por e della grazia. Milão: Rusconi, 1997.
isso dócil à voz do ser” (Ibidem, p. 81). É ne- PAREYSON, L. La ‘domanda fondamentale’:
cessário insistir na questão fundamental da ‘Perché l’essere piuttosto che il nulla?’. In:
metafísica na qual desemboca, não por um Annuario filosofico, 1992, n. 8.
mero acaso, a preleção. Defendendo-se,
mais uma vez, Heidegger diz que muito se SCHELLING, F.W.J. La filosofia della rivela-
discutiu sobre a angústia e o nada que o zione. Bolonha: Zanichelli, 1972.
texto de 1929 abordara, SCHELLING, F.W.J. Exposição da idéia uni-
versal da filosofia em geral e da filosofia da
Mas ninguém teve a idéia de meditar
natureza como parte integrante da primeira.
por que a preleção que procura pensar,
a partir do pensamento da verdade do Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho.
ser, no nada, e a partir deste, na essên- São Paulo: Abril Cultural, 1979. Coleção “Os
cia da metafísica, considera a questão pensadores”
formulada como a questão fundamental
TAUBES, Jacob. Dall’avverbio ‘nulla’ al sos-
da metafísica (Ibidem, p. 86-87).
tantivo ‘il Nulla’. Alcune riflessioni sulla
Se o interrogar se deixasse guiar ainda questione del nulla in Heidegger. In: ESPO-
pelo princípio causal, pelo por que explica- SITO, R-GALLI, C-VITIELLO,V. Nichilismo e
tivo, não deixaria de repetir os erros e os Politica. Roma-Bari: Laterza, 2000.

4
IBIDEM, p. 71. Grifo nosso. Mas, antes (piuttosto, plutôt) não é o Nada que (já) assumiu a guarda do ser, do homem, e das coisas
do mundo?

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