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A greste : uma dramaturgia desejante

A g rree s t e : uma dramaturgia desejante

A ntônio Rogério Toscano

A
greste (2001), de Newton Moreno, é uma desconfiada aproximação, corre por um longo
dramaturgia-desejo. Costura dolorosa, em e ressecado estradão de terra árida – que leva ao
que forma e tema se entrelaçam e se ras- sertão mais fundo do Brasil – para proteger a
gam continuamente, às vezes para bordar fragilidade de seu amor, numa segunda etapa –
um mesmo fio narrativo, em outras para de camadas mais profundas, reveladoras do de-
dar ressonância ao grito híbrido daquele que sejo –, o recorte narrativo se concentra em es-
vive na margem do que é aceitável para o mun- cavar segredos e em flagrar o casamento lésbico
do, a obra permanece em perpétuo movimento de duas mulheres de vidas secas que guardam
e não se acomoda à convenção. Faz isso para se escondido, inclusive para si mesmas, um amor
aproximar, com seu formato aparentemente que não pode ser nomeado.
simplório (mas muito sofisticado) e com sua de- Na fábula: a ambigüidade, evidenciada
licadeza provocadora, da fábula tímida cujo re- pela reviravolta.
cheio é o homoerotismo. Mas, ao migrar o foco do tema (homo-
Inquieta, a peça possui tensões internas, erotismo) para levá-lo de volta à formalização
construídas com dinamismo dramatúrgico, que da dramaturgia, o que se nota é que nada do
não se resolvem na superfície de um primeiro que se narra pertence, de fato, à diegese dramá-
olhar. O que aparenta pertencer a determinado tica da cena: não há drama, senão aquele relem-
gênero, de fato esconde facetas ambíguas, e, nas brado pela textura narrativa. Na concretude da
camadas profundas, um gênero pode degenerar cena, um mediador conduz até o público o que
em outro, em assumido recorte como “transgê- só pode ser imaginado, na consagração do rito
nero” e contemporâneo. teatral.
Em síntese, Agreste é formalmente um tra- No ápice da narrativa, o velho contador
vesti cujo corpo estrutural é transitivo, de gênero de histórias tenta tornar visível o que é imaterial,
móvel, tanto quanto o é a figura de Etevaldo, pura imagem abstrata:
presença cênica de um nordestino mítico, apenas
narrado e inexistente como matéria concreta. “Se pudesse falaria no ouvido de Deus. Can-
Se, na aparência, a peça trata do drama tou sua fé com devoção sincera, o que dá no
romântico de um casal sertanejo que, depois de mesmo. Olhe, música e Deus ninguém vê.

Antônio Rogério Toscano é dramaturgo e pesquisador, mestre pelo Instituto de Artes da Unicamp.

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Fé ninguém toca, nem se mede. Mas juro: Lá, onde dramaturgo, encenador, ator-
acontecia livre cada centímetro de Jesus, na criador e público (além dos demais criadores
voz dela.” por ventura envolvidos no projeto) se reúnem
para cravar no espaço e no tempo a sua escritu-
O invisível – e, portanto, sagrado (Brook, ra espetacular. Lá, onde os procedimentos cola-
1970) – é o que eleva a cena para a dimensão borativos modificam o próprio conceito de dra-
do rito. O texto projeta, com seu desejo intrín- maturgia. Mais longe ainda, lá, onde a relação
seco, a chegada do (outro) artista cênico que entre texto e cena está por ser (re-) inventada, é
encontrará a medida de sua encenação. Assim é que está a morada do trabalho de Newton Mo-
o que a dramaturgia de Newton Moreno pede, reno como dramaturgo contemporâneo.
ou exige: um defloramento que corrompa sua Assim, Agreste nasceu como uma narrativa
forma original. Eroticamente, coloca-se em jogo dramática. Mas cresceu e se transformou mui-
o desejo da transitividade, do devir criativo. to, de casulo a borboleta.
Não há padrões anteriores que garantam, Mesmo como peça de forte tonalidade
para a dramaturgia contemporânea, uma forma épica, continha, desde a origem, em seu for-
teatral exata. Se ela é, sobretudo, pulsão não há malismo depurado, elementos ambíguos: in-
porque se temer invadi-la. Se ela chama para o quietos, desejantes, irredutíveis à classificação
jogo, só resta ao artista do palco jogar com suas tradicional.
arestas, com suas lacunas e com suas incorre- Pois estes elementos – carga lírica inco-
ções premeditadas. mum, palavra de impacto sensorial, abstracio-
Disforme, Agreste não se enquadra aos nismo narrativo, imagens simbólicas incongru-
padrões convencionais da dramaturgia tradicio- entes: “Ele desapareceu a ela” – não permitiam
nal. Transitiva, projeta sobre si a intervenção e que se firmassem, como parte de sua ossatura
a necessidade de diálogo criativo com a alterida- dramatúrgica, os valores categóricos de uma
de – tanto de outros artistas como também do narração teatral – ou, ao menos, daquilo a que
espectador. se acostumou chamar de teatro narrativo: frag-
Dona de textualidade, portanto aberta, a mentário, distanciado, político etc.
peça deseja a re-semantização elaborada pelo Ainda distante da cena1, em sua versão
outro, que a complete. Escapa dos territórios escrita, o bloco de texto agreste do autor reci-
mapeados e vai buscar o belo em um limite do fense chegava ao leitor como uma ferida ambi-
palco, que é a fronteira entre a simples narrati- valente: na sua própria linguagem, um pouco
va e a abstração cênica. como cicatriz, outro tanto como flor.2

1 Antes de qualquer outro comentário, é preciso revelar ao leitor a situação privilegiada em que me en-
contro, ao observar o trabalho artístico de Newton Moreno.
Em diversas situações, desde as primeiras parcerias (na época de nossa formação, na Unicamp do início
dos anos 90, quando dividimos uma república na moradia estudantil), estive próximo de sua criação.
Depois, fosse como intérprete de um texto meu (em Sacromaquia, espetáculo dirigido por Maria Thaís
em 2000), fosse como dramaturgo com quem dividi a pena, colaborativamente (em Santa Luzia passou
por aqui com seu cavalinho comendo capim, sob direção de Georgette Fadel, em 2004), sua obra sempre
ressoou em meus ouvidos, sobretudo, como algo próximo e familiar.
No caso específico de Agreste, coube justamente a mim a coordenação e a direção de sua primeira
leitura pública, em 2002, para o projeto Devassos na dramaturgia, que inventamos e levamos juntos ao
Festival de Teatro de Curitiba. Realizamos essa apresentação, sob a forma de mise-en-space, também em
São Paulo e na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT), em 2003.

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Flor porque, como seu viu, seu desabro- “Ele deixava sangue no arame da cerca, Ela ia
char épico aproximava-a do campo ritual, como enxugá-lo”.
na tradicional cena oriental, quando pedia que Desde a nascente, este rio “de areia e de
narrativa, movimento, música, dança, poesia e sede”, desenhado no vento pela correria e pela
outros fatores expressivos preenchessem o espa- fuga dos amantes, marcava, na memória de quem
ço vazio com o requinte de um gesto/pétala de lia a obra, que “tinha alguma coisa no amor de-
um ator/sacerdote nô. les que não devia acontecer. Mas aconteceu”.
Cicatriz porque a beleza vazava do texto Na origem, o pecado. Na escolha do pa-
carregada de culpa. O desejo homoerótico tra- lavreado cortante, entretanto simples e possível,
vestido criava camadas de desconfiança entre as cotidiano, a sublimação.
personagens, mas também entre leitor e texto: Agreste – ou Malva-rosa, seu contraditó-
“Uma cerca os separava”. rio e eclipsado subtítulo – era, desde sempre,
Em uma primeira leitura, o corpo – tem- uma dramaturgia ambígua e incorreta. Fron-
plo do rito erótico – tornava-se então reduto de teiriça, não aceitava mostrar-se conforme as re-
doloridos desejos mascarados, amalgamados a gras da convenção. Surgia, desde a leitura, como
perseguições e ao medo. Houvesse um único um problema para o palco: que ator – ou proje-
toque físico entre os amantes – dramaturgo e to de interpretação – seria esse capaz de levar
leitor? – e tudo podia escorrer em mentira. Pre- adiante sua poesia árida, sem macular a narrati-
cisão milimétrica para afugentar o arriscado va com artificialismos desnecessários?
contato, ainda perigoso: O texto exigiria uma linguagem cênica
específica: qual seria ela?
“Ele andava muito para encontrá-la. Mas Agreste assustava os sentidos com sua po-
quando se viam, ficavam, no mínimo, a cin- tência poética e com sua capacidade de alimen-
co metros de distância. Nem um centímetro tar imagens deslocadas (Barthes, 1978) – ver-
a mais ou a menos. Exatos cinco metros. Sem- dadeiras trapaças, invenções: um furo na cerca,
pre. Uma cerca os separava.” que crescia conforme o compasso do amor; ou
um sorriso desdentado perfeito, “de uma fileira
Mistura inquietante entre culpa e liber- só”; ou ainda uma corrida incansável, sertão
dade – afinal, se a peça era desejante, o melhor adentro, como a contrariar a busca do mar glau-
a fazer seria penetrá-la com a fúria invasiva de beriano de Deus e o diabo na terra do sol.
quem quer pôr pingos nos is –, a força da pala- Tudo isso em espaço de palco nu, eroti-
vra rasgava a pele em que se escrevia o amor: camente aberto à intervenção do intérprete que,

Quando, em 2004, fui curador da Mostra Santo André do Teatro Contemporâneo, cujo foco era
Com(Unidade) – Teatro livre e cenas de identidade, convidei a Cia. Razões Inversas para que mostrasse o
espetáculo Agreste no Teatro Conchita de Moraes, agora sob direção de Marcio Aurélio – além de tre-
chos de mais um texto inédito de Newton Moreno, Assombrações do Recife velho, com o grupo Os Fofos
Encenam, na Casa da Palavra.
Nesta caminhada, pude conhecer de perto a perplexidade dos espectadores e dos artistas-aprendizes da
ELT diante do fenômeno que foi a passagem de Agreste, do plano da narrativa até a sua emancipação,
como escritura espetacular. E, novamente, com seus novos textos, o contato do ouvido com a palavra
pura de um texto inédito do autor.
2 O texto A cicatriz é a flor cumpriu temporada em sessão maldita no Teatro de Arena Eugênio Kusnet,
em São Paulo, sob direção de Georgette Fadel.

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elevado à condição de compositor (de uma leitor que penetrasse, deflorasse e constituísse,
dramaturgia do corpo?), deveria ser dançarino, à sua maneira, a própria criação. Participante,
e fazer pintura com seu movimento – mas, prin- esse espectador ideal de Agreste seria um co-
cipalmente, ser o sujeito que, em cada detalhe, criador, necessário para dar suporte à abertura
pudesse extrair e exalar conceito. de possibilidades, típica de uma dramaturgia
Conceitual, esse era o problema para o contemporânea.
sacerdócio do ator: sobrepostas, as imagens nar- Nesta atividade lúdica, em que o sujeito
radas pulavam para fora da palavra, como numa deveria ser chamado sensualmente pela obra de
dança de véus. Revelavam e escondiam o eróti- volta a uma espécie de paraíso perdido para re-
co choque de intimidades – entre personagens, construir a trajetória de Adão e de Eva, é que
primeiramente, mas também entre leitor e tex- está a grande armadilha forjada por Newton
to, é preciso repetir – sugerido pela meta-narra- Moreno. Porque o dramaturgo dá corda à iden-
tiva, quase a propor um fetichismo para o olhar tificação e permite, pela participação ativa na
pictórico que seria cobrado do espectador. criação de imagens apenas sugeridas pelo pro-
Pois, no palco, nada se concretizava como cesso narrativo, que o leitor interfira com o seu
realidade dramática (Szondi, 1987). Tudo vin- próprio erotismo na recuperação do pecado ori-
gava como pintura imaginária: sugestão, liris- ginal que mancha com culpa o mundo primevo
mo e narração – ou, de volta, inquieta poesia das criaturas do texto.
dramática. Entretanto, quando se mordem as maçãs
Nunca drama. Em Agreste, até mesmo os vermelhas, que são as palavras compostas pelo
diálogos, insistia a rubrica, poderiam surgir dramaturgo, ele – de volta à condição de cria-
como desabrochar da flor, nas expressões do dor, ou como o Deus cristão que manda à Terra
narrador central – um contador de histórias – o seu representante (ou filho; o narrador?) – re-
ou dos atores-dançarinos, responsáveis pelo des- vela-se. Então impõe, a todos, que convivam
locamento da cena para a fronteira com a fisi- com os elementos que justificam a sua criação.
calidade, com a oralidade e com a construção Diz quais são os seus pontos inegociáveis. Evi-
performática, plástica. dencia o irredutível de sua presença.
Era exigência no texto ainda não encena- Que o espectador participe, mas que aca-
do que o espectador imaginasse um mundo des- te as condições do jogo. A serpente dá o “bote/
conhecido, puramente ficcional. Este mundo, arataca”.
quase secreto, primordial, podia apenas ser en- Com as iscas certeiras, as suas figuras cen-
trevisto pelas frestas do discurso originado na trais – Etevaldo e Maria, que, como propõe
boca da única testemunha a que se tinha acesso Roland Barthes (1987, p. 24): 1. não chegam a
concreto no palco – o narrador, representante ser personagens, mas figuras cênicas, porque são
do dramaturgo dentro da cena. emanações de uma matriz única: o autor/nar-
Este espaço-tempo abstrato – interno, rador; 2. que não possuem autonomia fora da
múltiplo e fragmentário como a memória; pura narrativa; e 3. que não possuem dramática subs-
invenção ou documento de identidade para tantiva (Rosenfeld, 1985) –, a dramaturgia apri-
quem narra; mito; deslocamento poético em sionava e fazia aceitar, a todo custo, uma grande
que a “cultura era o sol”, em que “a família era reviravolta: a peripécia do casal lésbico, conta-
o sol” – nunca se mostrava imediato, pois enla- da mil vezes pela fala popular em histórias se-
çava compromisso com o componente épico, melhantes às do Recife velho, ou da mitologia
para que somente ele realizasse a sua mediação do sertão.
até a realidade cênica. Ao olhar, a dramaturgia se insinuava
Metalinguagem obsessiva, não se conten- como um poema feito em prosa, dramatizado
tava com uma imaginação qualquer. Pedia ao pelo cordel, pela língua nordestina do sertanejo.

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Mas, escorregadia, ela era também música, que e torna-se material cênico aberto, chama para si
vibrava com forte impacto, nascida dos sons do a intervenção de outros artistas. Por isso a dra-
palavreado requintado e da melodia seca) e que maturgia de Newton Moreno freqüenta os can-
ecoava na cadência de uma mesma rubrica – tos não-mapeados das formas e categorias tea-
aquela que, precisamente, de tempos em tem- trais, aqueles espaços sagrados em que se escon-
pos, pedia: tempo! dem dramaturgias body art, como são A cicatriz
O tempo marcava o ritmo e a palavra ex- é a flor (2002) ou Dentro (2002). Por isso seu
plodia em música. O tempo marcava o ritmo e texto deseja, com libido neotropicalista e múl-
o gesto se desdobrava em dança. O tempo mar- tipla, deslocar-se para aquela zona transitiva, em
cava o ritmo e a narrativa se construía em ca- que moram as perpétuas transformações dos se-
madas sucessivas, fazendo ver que o épico se res não-terminados, onde brincam as criaturas
abria em diferentes níveis de composição. inadequadas e feitas de devir: o paraíso original
Opção contemporânea para uma cena da arte.
pós-dramática, Agreste veio ao mundo como Destas primeiras contradições entre apa-
dramaturgia aberta à restauração de estímulos rência e tecido profundo da obra, surgem ou-
épicos perdidos, com vocação para aquilo que tras, que desafiam o olhar crítico: (1) a aposta
Luis Alberto de Abreu nomeou – inspirado por radical no plano narrativo – nem diálogos há; e
Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin – como uma estranha narração domina toda a primeira
busca de um imaginário comum (Abreu, 2003). parte do jogo cênico, como a insistir que o pú-
No caso de Agreste, esse imaginário co- blico aceite as imagens, inclusive aquelas inco-
mum era, sem dúvida, o de matriz nordestina – muns, que virão depois, na finalização homo-
árida, dolorosamente ressecada pela experiência erótica – e (2) a linguagem sugestiva, feita com
histórica, ancestral para o autor de Pernambuco. o cinismo de uma única rubrica, para que a en-
Mas, ambiguamente, o comum de seu cenação traga a cena à fronteira do teatro, para
imaginário também era aquele – fértil, regado que os atores possam pintar no palco imagens
nos jardins de sua formação teatral (ligada ao corporais e cênicas, além de dançar um jogo
conceito de grupo, na Unicamp), em trabalhos abstrato, proposto pela narração.
com mestres do porte de João das Neves, Enfim, o texto coloca-se como uma crip-
Marcio Aurelio, Verônica Fabrini, para citar so- tografia que deseja ser desvendada pelos artistas
mente alguns – capaz de reunir artistas em pro- da prática do palco.
cessos comunitários, dotados de dinâmicas co-
laborativas e coletivas. Ou seja, preocupado – ***
ainda que no trabalho textual – com a escritura
espetacular. Na primeira versão que foi a público, na
Por isso a escritura, embora aparentemen- mise-en-space elaborada para o projeto Devassos
te simples – trata-se apenas de uma narrativa, na dramaturgia 3, essa massa poética que é Agres-
poderiam acusar –, pula o trampolim da poesia te já indicava o seu caráter “desejante”, pois exi-

3 Esse projeto, inspirado pela obra Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan, foi concretizado pela
primeira vez em 2002, no Festival de Teatro de Curitiba. Repetiu-se, sempre produzido por Eloísa
Elena e sob curadoria de Newton Moreno e Antônio Rogério Toscano, na cidade de São Paulo, nos
dois anos seguintes, como parte da programação da Parada do Orgulho GLBT. Estes encontros foram
realizados, respectivamente, nas dependências do TUSP (Teatro da Universidade de São Paulo) e no
Teatro X, na Praça Roosevelt. Trata-se de um ciclo de leituras de textos teatrais inéditos que propo-
nham reflexões focadas no debate contemporâneo sobre os gêneros sexuais e suas diversas variações.

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gia do espectador (que até ali era somente um Isso não quer dizer que a cena do espetá-
ouvinte do grupo Os Fofos Encenam) uma ati- culo Agreste suplante ou contradiga a sua tex-
vidade de construção e de colaboração para o tualidade matricial. Pelo contrário, o que se afir-
que viria a ser sua teatralidade concreta, ainda ma aqui é a natureza desejante da dramaturgia
escondida atrás do radicalismo épico do texto. contemporânea, que justamente quer, com suas
O encenador Marcio Aurelio, que há lacunas formais, chamar para junto de si parce-
mais de uma década experimenta e transita com rias artísticas que potencializem seu campo
muita liberdade por territórios abertos à narrati- aberto de possibilidades poéticas.
vidade com a Cia. Razões Inversas, encontrou Newton Moreno montou a trajetória de
neste princípio desejante de Agreste a chave para sua narrativa amarrada a um contador de his-
a emancipação (Dort, 1988) da textualidade: foi tórias: segundo sua indicação, ele poderia colo-
em busca de um vigor que a cena só poderia car-se solitário e mimético na cena, com a úni-
assumir quando se tornasse uma escritura cêni- ca condição de que fosse um bom condutor; e
ca autônoma. também que fosse um respeitoso guia, orienta-
Assim, o que no material textual (e a no- do pelas sonoridades absorvidas das fendas
ção de texto-material é determinante para com- poéticas da fábula. Sua marcação sonora: uma
preender a dramaturgia contemporânea como sanfona.
processual, liberta de seus tradicionais vínculos Mas o grau de abertura proposto ao en-
textocêntricos) se apontava como um “exercí- cenador é tamanho que o autor explicita que a
cio de narrativa” para a formulação experimen- forma convencional e mimética – ou realista,
tal de partituras físicas, como fusão das “duas com um contador de histórias e uma fogueira –
linguagens” – a oralidade e a dança-teatro; ver- é somente uma pista, um trampolim, uma den-
bo e movimento (rubrica inicial do texto) – tre todas as demais possibilidades vertiginosas
amplifica-se com o mergulho na polifonia dos sugeridas por sua cena desejante:
recursos multimidiáticos utilizados na cena pe-
los atores Joca Andreazza e Paulo Marcelo. “O narrador pode fazer as vozes de todas as
Tanto assim, que um espectador que des- outras personagens, até mesmo do casal, e
conhecesse a natureza original do texto prova- ainda representar o padre, o delegado, ou as
velmente perderia a noção exata dos formatos vozes dos moradores, entrando na cena para
estruturais da obra escrita quando assistisse ao contracenar com a atriz e depois voltar ao seu
espetáculo4. posto de narrador”.

Apoiados na temática gay dos textos apresentados, os debates investiam nas questões ligadas à queer
culture e às conseqüências éticas e poéticas de se construir cenas focadas tematicamente. Havia quem
defendesse que a cena gay era capaz de instituir uma pesquisa formal específica, com identidade pró-
pria: tradicionalmente elaborada a partir de sua perspectiva marginal, recheada de elementos grotescos,
resultantes das tensões vivenciadas pelo artista gay. Por outro lado, havia quem defendesse que pensar
em um teatro gay consistia em fazer um recorte meramente temático; estes, em sua argumentação,
evidenciavam os riscos de estigmatização decorrentes desta distinção antropológica para a arte. Partici-
param do projeto Devassos na dramaturgia, como autores de obras inéditas, os criadores Alberto Guzik,
Antônio Rogério Toscano, Fernando Bonassi, João Silvério Trevisan, Luque Daltrozo, Mário Vianna,
Newton Moreno, Sérgio Pires, Sérgio Roveri e Vange Leonel.
4 Na Escola Livre de Teatro, esse relato foi repetidamente colocado, nas discussões acerca do processo de
criação deste espetáculo – uma vez que os aprendizes-artistas tinham ali um primeiro olhar voltado
para a dramaturgia e um outro, posterior, atento à cena do espetáculo Agreste.

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É bem verdade que a pura indicação em gerar fluxos e estímulos para os caminhos inu-
rubrica não garantiria à dramaturgia esse teor sitados da criação.
de sofisticação que se aponta aqui. E há muitos Portanto, é preciso avisar quanto ao risco
casos de releituras de textos por parte de ence- mais banal: uma leitura conservadora do Agres-
nadores talentosos. Mas releitura não é o caso te pode, sem dúvida, reduzir sua potencialidade
que se aplica a Agreste. cênica e afrouxar sua faceta desejante. Mais do
Como dramaturgia contemporânea aber- que tudo, corre-se o risco de impossibilitar que
ta, é mais coerente falar mesmo em máquina de se veja com clareza o sentido orgânico existente
sentidos (Deleuze, 2000), ou em dramaturgia no trânsito de Newton Moreno entre a palavra
desejante. Coisa, aliás, que deve ser considerada e o palco.
como um pilar para que fosse firmada a feliz par- Por outro lado, bastante mais confortá-
ceria entre o trabalho (de formalização e escrita) vel: a perspectiva aberta do texto comprova-se
do texto e sua relação (generosa e aberta) com quando se assiste ao espetáculo que essa drama-
os esforços subseqüentes, de ensaios e de cons- turgia gera – especialmente se confrontada, em
trução da encenação, pela Cia. Razões Inversas. uma relação de horizontalidade, com os demais
O que se pretende dizer aqui, finalmen- agentes da escritura espetacular, como foi o caso
te, é que Newton Moreno aceita e remodela, à da montagem da Cia. Razões Inversas. Vê-se,
sua maneira, a compreensão mais contemporâ- no palco, que Agreste é obra transitiva e genero-
nea do trabalho do dramaturgo. Essa profissão, sa, feita para o diálogo criador.
antes mitificada como a de literatos de gabine- Em 2004, Newton Moreno participou de
te, transformou-se em nosso tempo em uma das um processo colaborativo5 para a realização do
partes ativas do processo de construção do es- espetáculo Santa Luzia passou por aqui com seu
petáculo. Apenas uma. cavalinho comendo capim, no Teatro Popular do
Longe de perder espaço, o dramaturgo SESI, em que se lê no programa:
tornou-se agora uma figura em trânsito (Abreu,
2003), não cristalizada. Viva, sua participação “Construir a dramaturgia de um espetáculo,
no contexto criativo é muito mais vibrante, ao hoje, impõe a escolha de caminhos, trajetó-
respirar dos mesmos ares que incomodam as cri- rias. É um permanente cavoucar, na tentativa
ses do processo. Mesmo quando escreve um tex- de abrir canais para fluxos de saída e de en-
to em sua solidão, o novo dramaturgo (que trada do material expressivo que deve ser ex-
pode ser também – e simultaneamente – um traído de nossas galáxias interiores e das re-
dramaturg, ou um dramaturgista – ou coorde- presentações que encontramos no mundo,
nador de roteiros, orientador de mapas etc) tra- fora de nós; são estas, aliás, as que chegam
balha para abrir-se à intervenção do encenador para nos modificar e para dar novo sentido
– ou do ator, ou ainda de outro artista capaz de ao que é ser artista.

5 Diferentemente de Agreste, que foi escrito e somente depois encenado, em Santa Luzia... Newton Mo-
reno partilhou, comigo (mais uma vez é preciso aqui me revelar, já que escrevi, também, a quatro
mãos, este manifesto) e com os atores-criadores, o trabalho de dramaturgia, sob direção de Georgette
Fadel. Neste processo houve ainda a participação de uma série de outros artistas, em suas respectivas
áreas, todos criadores que interferiram diretamente na definição do material textual e, mais amplamen-
te, na escritura cênica do espetáculo final: Alessandra Domingues (iluminação), Claudia Schapira (fi-
gurinos), Emerson Mostacco (produção executiva), Julio Docjsar (criação cenográfica); Lincoln Antô-
nio (direção musical), Luaa Gabanini (assistência de direção), Lu Favoretto (criação coreográfica),
Marcelo Romagnoli (assistência de direção) e Tica Lemos (preparação corporal).

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Em linhagem pedagógica que assimila o ris- Deles partiram as concepções iniciais das
co da transformação, o trabalho do drama- cenas, neles explodiram as crises. Mas como
turgo inscreve-se em campo plástico, sonoro, o fluxo não pode ser interrompido, toda a
rítmico: pois é um desenhar, com diversos expressão migrou, em vai-e-vem, para os ou-
instrumentos, grandes mapas abstratos, espe- tros pólos da criação. Por isso, para toda a
taculares... Polifônicos. Que são abandona- equipe, esse processo assume a sua postura
dos conforme a viagem transcorre e novos de formação, com radicalismo. Os aprendi-
horizontes precisam ser explorados. zados, na cegueira dos dias, esclarecem mui-
O texto teatral, agora múltiplo, transfor- to mais do que idéias brilhantes, mas solitári-
ma-se em uma espécie de guia, em uma das as, que não iluminam olhos alheios.”
forças ativas que permitem que os vários cria-
dores – atores, encenadores, músicos, dança- Esse pequeno manifesto dá a idéia exata
rinos, figurinistas, iluminadores etc – entrem de alguns dos princípios, agora assumidos, do
em contato com outros intérpretes da obra que se pretende enquanto se escreve uma dra-
de arte: os espectadores. maturgia contemporânea. Embora diga respei-
De fato, em algumas ocasiões, a drama- to a um espetáculo posterior, apontam-se nele
turgia pode se tornar um trabalho que exige questões que já freqüentavam o corpo transiti-
mais apuro dos ouvidos do que das mãos, vo e desejante da dramaturgia de Agreste.
mais dos olhos do que da razão ranzinza, acos- Se não fosse por essa perspectiva alargada,
tumada a velhos padrões aprendidos nos talvez Marcio Aurelio pudesse ter hesitado dian-
cânones. Mais do diálogo do que da emissão. te da hipótese, comprovadamente eloqüente, de
Mais ainda da integração entre a cabeça e o utilizar múltiplos recursos poéticos – polifonia,
coração. microfones, distanciamento, narrativas sobre-
Abandonada a antiga premissa textocên- postas, fragmentação, descontinuidade, pro-
trica em que a dramaturgia é palavra de gabi- jeção de slides, metonímias gestuais etc. – para
nete, é canal unilateral produzida em territó- dar vazão à sua pesquisa de linguagem própria
rio de posses demarcadas ou, na mais amarga como encenador.
das confusões, num feudo literário em que o Marcio Aurelio encontrou em Newton
autor é o dono e o senhor, abrem-se perspec- Moreno um vetor poderoso de continuidade
tivas para que a criação espetacular vigore da para sua pesquisa que atravessa décadas. O tom
colaboração criativa de muitas fontes. regionalista da fala e as “incelenças” a serem can-
Neste estágio avançado, somente a confi- tadas no enterro sertanejo foram peneirados
ança nas parcerias pode auxiliar para o ama- pelo formalismo extremado do jogo dos atores.
durecimento de uma idéia. Além do encena- Texturas cênicas foram criadas com linhas e pe-
dor, o ator-criador, neste contexto, emerge sos, evidenciaram os aspectos cruéis da narrati-
como figura fundamental. Ele é o nascedouro va e uma outra escritura, grafada no espaço e
daquilo que pode ser erro, mas também da- no tempo, nos sons e nas luzes, desdobrou-se
quilo que se enraíza como um depoimento do desejo original da fábula homoerótica de
poético vivo. Newton Moreno.
Afinal, o ator é o sacerdote do rito, quem Texto-material, esboço: o desejo está no
se compromete com as palavras ditas no mis- centro gravitacional da dramaturgia do autor. E
sal sagrado que se desdobra no espaço cêni- não só o desejo, o homoerotismo é tema recor-
co. Neste nosso trabalho, em que aguarda- rente na sua dramaturgia, desde a estréia, com
mos para que Santa Luzia venha dar uma es- Deus sabia de tudo e não fez nada (2000), em
piada, o processo colaborativo esteve focado que as matrizes de sua ironia fina (presentes
no material gerado pelos atores. também em Agreste) associavam-se a um discur-

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so de protesto por isonomia e por visibilidade Mesmo Dentro, peça de tema radical que
dos desejos. abre a cena para a prática do fisting, indica esse
Já em seu primeiro texto, o autor dava voz caráter pouco corriqueiro de sua escritura tea-
ao gay pride – que tem atraído, desde os anos tral, que insiste em relativizar, com seu jogo de
90, multidões aos manifestos festivos pelas ruas palavras e idéias, os conceitos ligados ao teatro
de São Paulo. As superposições narrativas, de marginal. Em sua batalha por um novo olhar
fala poética aguda, antecipavam os recursos for- sobre a diferença, o autor lança os dados para
mais e o tema do massacre incendiário da espo- que se consagre no palco a transgressão poética,
sa deste drag king do sertão nordestino que é o com o que é incomum e vive à margem.
Etevaldo de Agreste. Formalmente desejante e inspirada pelo
Em mais esse aspecto desejante, Newton homoerotismo, a dramaturgia de Newton Mo-
Moreno extrapola a pesquisa formal. Mergulha reno – nesses seus primeiros passos – tem reco-
em sua necessidade pessoal de refletir sobre a locado em pauta no teatro brasileiro, sob a con-
questão do homoerotismo, tema de sua disser- dição de militante, tanto uma nova abordagem
tação de mestrado, orientada por Sílvia Fernan- para a função do dramaturgo, como também a
des e defendida na ECA/USP em 2003, intitu- batalha por direitos humanos, avançando de
lada A máscara alegre – Contribuições da cena gay modo mordaz contra a discriminação por orien-
para o teatro paulista. tação sexual.

Referências bibliográficas

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