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CINZAS DO NORTE
Copyr ight do texto © 2005 by Milton Hatoum
Capa
Jeff Fisher
Preparação
Márcia Copola
Revisão
Adriana Moretto
Juliane Kaori
Hatoum, Milton
Cinzas do Norte / Milton Hatoum. — São Paulo : Companhia
das Letras, 2010.
isbn 978-85-359-1722-2
2010
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“Naiá, esse aí é o sobrinho do Ranulfo?”
A moça o agarrou pela cintura, e os dois se afastaram, o
rosto de Mundo voltado para mim e em seg uida para o monu
mento.
Foi o primeiro desenho que ganhei dele: um barco aderna
do, rumando para um espaço vazio, e toda vez que passava perto
da nau Europa, lembrava do desenho de Mundo.
Só fui tornar a encontrá-lo em meados de abril de 1964,
quando as aulas do ginásio Pedro ii iam recomeçar depois do
golpe militar. Os bedéis pareciam mais arrogantes e ferozes,
cumpriam a disciplina à risca, nos tratavam com escárnio. Bom
bom de Aço, o chefe deles, mex ia com as alunas, zombava dos
mais tímidos, eng rossava a voz antes de fazer a vistoria da farda:
“Bora logo, seus idiotas: calados e em fila indiana”.
Naquela manhã, o portão do colég io estava fechado duran
te o recreio, e a chuva confinava os ginasianos sob os pórt icos
revest idos de mármore. Antes de soar a sirene, apareceu uma
mulher seg urando uma sombrinha vermelha que proteg ia ape
nas o corpo do est udante que a acompanhava; tinham quase a
mesma alt ura. Bombom se precipitou para abrir o portão para
os dois, que subiram lentamente a escadaria. Os alunos se dis
persaram para que eles atravessassem o sag uão; não olharam
para ning uém, foram observados por todos. O bedel os con
duziu à sala do diretor, e quando a sirene disparou, a mulher
reapareceu, sozinha, o cabelo ondulado úmido; a blusa de seda,
molhada, provocou assobios dos veteranos. A morena de cerca
de trinta anos desceu com pressa a escadaria; na calçada, abriu
a sombrinha e aprox imou o rosto das grades de ferro. Viu-me
encostado a uma coluna e me chamou: era um absurdo não ir
visitá-la, mas de agora em diante eu não teria mais desculpas,
seu filho ia est udar no Pedro ii. Concordei com um gesto tím i
do, e ela ainda disse: “Penso na tua mãe como se est ivesse viva”.
Era Alícia, a mãe de Mundo.
No começo ele foi apenas um colega de sala. Esquivo, o mais
estranho de todos, e dono de certas regalias. Nas manhãs chuvo
sas, um dkw preto vinha pela Rui Barbosa e estacionava no pátio
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lateral. Mundo subia a escada, protegido por um guarda-chuva
que o chofer segurava. Este dizia ao bedel: “Aí está o menino”.
Mas, quando Mundo chegava atrasado, tinha que esperar o inter
valo seguinte. Nós o víamos rondar o coreto da praça das Acácias,
depois sentar num banco e desenhar um bicho-preguiça, uma
garça, o rosto de um transeunte. As regras disciplinares o trans
tornavam; mesmo assim, o desleixo da farda e do corpo crescia,
enraivecendo os bedéis: cabelo despenteado, rosto sonolento,
mãos sujas de tinta; a insígnia dourada inclinada na gravata, o
nó frouxo no colarinho, ombreiras desabotoadas. Ele usava uma
meia de cada cor, arregaçava as mangas, não polia a fivela do cin
turão. Bombom o barrava e ameaçava: preguiçoso, displicente,
pensava que filhote de papai tinha vez ali? Mundo não respondia:
sentava atrás da última fila, isolado, perto da janela aberta para a
praça. Nos dias de chuva forte, passava o recreio em pé, diante
dessa janela, observando as árvores que a tempestade derrubara,
os jacarés entre as pedras, as aves aninhadas à beira do pequeno
lago, alguém sentado num banco, solitário, à mercê das rajadas, e,
mais longe — naquela época o horizonte ainda era visível —, as
casinhas de madeira inundadas ou submersas e os barcos e canoas
emborcados ou à deriva nos igarapés do centro de Manaus.
Nos intervalos, cam inhava sem medo no meio dos vete
ranos valentões, ignorando as ameaças, arriscando-se a levar
um empurrão ou tapa. No silêncio nervoso de uma prova de
matemát ica, ouv íamos o ruído da ponta do lápis no papel, rabis
cando seres e objetos; mesmo assim, ele respondia às questões e
era o primeiro a term inar a prova. No fim do ano, Mundo nos
surpreendeu: aprovado em todas as disciplinas.
Quando eu me aprox imava para puxar conversa, most rava
umas caricat uras a bico de pena e perg untava se eu tinha gos
tado. Fechava o caderno se via certos colegas por perto, despre
zando-os com uma alt ivez que os irritava.
“A gente est uda que nem condenado, como é que ele conse
gue passar de ano?”, reclamava o Minotauro. E o Delmo: “Os
pais dele devem dar uma boa gorjeta aos professores e bedéis.
Já se liv rou até dos Jogos da Arena”.
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Jogos da Arena era um torneio de luta liv re num círculo de
areia suja. Nas tardes de sábado, o professor de educação física
sorteava os part icipantes ent re veteranos e calouros. Os est u
dantes do Pedro ii cercavam o areal, e, na calçada, alunos de
out ros colég ios e soldados de folga assist iam ao espetáculo pela
grade, torcendo e se divert indo, como se fossem bichos fora da
nossa jaula. Aos poucos os lutadores perdiam o medo, ficavam
ferozes, compet iam que nem animais acurralados.
Num desses torneios morreu Chiado. Seu adversário, um
veterano do último ano, foi tão aplaudido que nem notou a
cabeça engastada nas barras de ferro. Erg ueu os braços vito
riosos enquanto o out ro sang rava; alg uém soltou um grito, ele
virou o corpo e deparou com os olhos fechados de Chiado. Com
mãos de gancho separou as barras, a cabeça esmagada caiu, e
vimos a boca ensang uentada e depois o corpo sendo carregado
até o professor.
Uma semana de luto, o círculo de areia em silêncio. Olháva
mos para a arena e lembrávamos do Chiado, o rosto esmurrado
e chutado pelo aluno parr udo. Sua morte foi comentada duran
te o ano inteiro. Em novembro, depois de um processo que
não deu em nada, o veterano foi expulso do Pedro ii, os jogos
recomeçaram, ainda mais violentos: lutadores que promet iam
vingança e apontavam as barras de ferro retorcidas, evocando a
valent ia do amigo punido, e os covardes que se cuidassem.
Mundo não part icipava dos torneios, nem prat icava os
demais esportes: fora dispensado graças a um atestado médico
arranjado por Alícia; mas tin ha que ficar na quadra e respon
der à chamada nas aulas de educação física. Ela ainda apareceu
duas ou três vezes com o filho: chegavam abraçados, no portão
se despediam com beijos e afagos; ele subia a escada virando
o rosto para a mãe, e a cada deg rau seu sofrimento parecia
aumentar. Ela ia embora antes que ele ent rasse; andava com
pressa até o carro, enquanto Mundo a seg uia com os olhos,
esperando um aceno. Aos treze anos já era mais alto que Alí
cia, de quem herdara o rosto ang uloso e os olhos grandes e
escuros, meio repu xados, “de alg uma tribo esquecida”, como
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ele próprio escreveu anos depois. Quando chov ia, os veteranos
o cercavam no sag uão: “Tua mãe não veio? Molhada é ainda
mais bon ita”, e ele, com o rosto crispado, mordia os lábios e
devolv ia com um olhar desaf iador os gracejos idiotas. E logo
percebemos que seu poder, além de emanar das mãos, vin ha
também do olhar.
As primeiras caricat uras causaram alvoroço no Pedro ii:
apareceram na capa dos quat rocentos exemplares do Elemento
106, o jornaleco do grêm io. Destacava-se o desenho do sem
blante carrancudo do marechal-presidente: a cabeça rombuda,
espinhenta e pré-histórica de um quelônio, o corpo baixote e
fardado envolto numa carapaça. Ao redor das patas, uma horda
de filhotes de bichos de casco com feições grotescas; o maior
deles, o Bombom de Aço, seg urava uma vara e ostentava na
testa o emblema do Pedro ii. Um mês de suspensão para os
redatores, dez dias para o art ista, e apreensão do jornal. Mes
mo assim, a capa do Elemento 106 ficou exposta por toda par
te: nos banheiros, na cantina, nas lousas, na porta da sala da
direção. Era arrancada e rasgada, e reaparecia no dia seg uinte,
apesar das rondas dos bedéis, e das ameaças de punição e até
de expulsão.
Quando Mundo voltou, o professor de educação física o
repreen deu: mais uma brin ca
dei
ra co mo aque la, e rua! Foi
xingado de subversivo pelo Delmo, insultado pelo Minotauro:
art ista de araque, neto de galegos. Ficava sozinho no fundo da
sala, atento aos nossos gestos, os olhos fisgando um e outro;
depois inclinava a cadeira, encostando-a na parede, abaixava a
cabeça, concent rado, o rosto perto do papel.
No bate-bola do aquecimento, sentava à sombra da marqui
se dos laboratórios e espiava; os olhos graúdos e pestanudos nos
seg uiam, mangando talvez do nosso esforço, alheio às ordens
do professor: “Bora, rapaz, entra no jogo, porra”. Quando o
apito trilava, e os bandos se precipitavam na quadra de cimento,
Mundo se deslocava para a arquibancada, abria a caix inha de
lápis e desenhava os corpos que corriam, trombavam, se con
torciam, giravam, caíam.
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Corpos caídos foi a primeira sequência que ele deixou sobre
sua carteira numa manhã em que foi à cantina. Vimos nossos
corpos tombados, nossos rostos fazendo caretas medonhas: o
Minotauro, meio monst ruoso e o único sem cabeça, o Delmo
com cara de gafanhoto, e o professor, no cent ro da quadra, um
arlequim atarracado, a cabeça separada do corpo. Os desenhos
distorciam e mist uravam nossos corpos, reconhecíamos traços
de nós mesmos e dos outros, de modo que todos se sentiram
ult rajados. Delmo, enfezado, quis rasgar tudo e part ir pra por
rada: “Que tal umas cacholetas? um sabacu?”. Minotauro, mui
to mais forte, pinçou com os dedos da mãozorra o pescoço do
Delmo: “Nada disso, rapaz. Tenho uma ideia melhor”.
Foi na manhã de um sábado de novembro, antes dos exames
finais do seg undo ano. Minotauro se aprox imou de Mundo: por
que não iam até a praça? As meninas estavam loucas para ver os
desenhos. Ele concordou. Uma roda de alunas cercou o banco
enquanto Mundo most rava os corpos caídos; Minotauro colou
com carrapicho um chumaço de rabiola na traseira do art ista,
tocou fogo com álcool e se afastou; eu ia correr para alertá-lo,
Minotauro me seg urou, tapou minha boca com a mãozorra e
curvou com força minha cabeça. Mundo est ranhou a risada
das garotas, viu a fumaça entre suas pernas, deu um pinote e
se atirou no lago. Depois sentou na pequena ponte de pedra,
tirou os sapatos e o cint urão, e ficou ali, todo molhado, fitando
os bichos, ouv indo a zombaria dos ginasianos. Dezenas. Não se
mexeu; esperou o sinal do fim do recreio, a praça sem fardas,
urros ou gargalhadas. Parecia mais triste que raivoso. “Estou
acos t umado”, disse, sem olhar pa ra mim. E não res pon deu
quando perg untei se ia dar queixa à diretoria.
Mais tarde, da janela da sala, eu o vi cam inhar descalço, sem
camisa, o cint urão no pescoço, os cadarços dos sapatos enrosca
dos nas mãos. Seu corpo sum ia nos cam inhos sinuosos da praça
e reaparecia na sombra das acácias. Passou perto das sent inelas
de bronze do quartel da Polícia Militar e contornou o edif ício,
como se rumasse para o porto.
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