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Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Campo Grande

Direito

Do Controle Jurisdicional do Mérito dos Atos Administrativos - Função


Social

Pedro Henrique Luz de Souza

Campo Grande

2013
Pedro Henrique Luz de Souza

Do Controle Jurisdicional do Mérito dos Atos Administrativos - Função


Social

Monografia apresentada como exigência para


obtenção do grau de Bacharelado em Direito
da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul.

Orientador: Professor Msc. Márcio Antônio


Magalhães Canedo

Campo Grande

2013
RESUMO

Este estudo visa aferir a possibilidade de o Poder Judiciário controlar o mérito do Ato
Administrativo, mormente ao se considerar o posicionamento doutrinário e jurisprudencial,
fazendo breve análise da doutrina moderna. Por muito tempo o mérito administrativo revestiu-se
de um manto de intangibilidade, instransponível pela atividade jurisdicional. Era liberdade
conferida pela Lei ao Administrador, e tão somente a este caberia sua valoração. Resumia-se o
Juiz à análise do preenchimento dos pressupostos necessários à existência e validade da atuação
administrativa. Todavia, a evolução do pensamento científico e a gênese de novas teorias,
mormente com a implantação do neoconstitucionalismo, têm causado a rediscussão da matéria,
de maneira que, hodiernamente, tal hipótese não é de todo descartada: embora restrita a poucas
hipóteses, há possibilidade de controle jurisdicional da discricionariedade administrativa.

Ao fim, analisa-se a possibilidade de ampliação do controle jurisdicional do mérito


administrativo, sobretudo porque a Administração também deve obediência aos preceitos
estabelecidos na Constituição (procedimentais e substanciais), bem como a função social de que
se revestiria tal atuação.

Palavras-chave: Estado, Constituição, Função Administrativa, Discricionariedade


Administrativa, Controle Jurisdicional.
ABSTRACT

This study aims to assess the ability of the judiciary to control the merits of the
Administrative Act, especially when considering the doctrinal and jurisprudential positioning,
making brief analysis of the modern doctrine. For long the administrative merit stood on a
mantle of intangibility, insurmountable by the jurisdictional activity. Freedom was granted by
Law to the Administrator, and only he would fit his opinion about it. The Judge would be
summed up to the analysis of the fulfillment of the necessary conditions to the existence and
validity of the administrative action. However, the evolution of scientific thought and the genesis
of new theories, especially with the implementation of neoconstitutionalism have caused a
renewed discussion of the matter, so that, today, this hypothesis is not entirely ruled out:
although restricted to a few cases, there is possibility judicial control of administrative discretion.

At the end, we analyze the possibility of broadening the jurisdictional control of the
administrative merit, especially since management also owes obedience to the precepts
established in the Constitution (procedural and substantive) as well as the social function that
would imbue such action.

Keywords: State, Constitution, Administrative Function, Administrative Discretion,


Constitutional Control.
Sumário

1. INTRODUÇÃO .........................................................................................................6

2. DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO .......................................................................7

3. DA TRIPARTIÇÃO DE PODERES E DO SISTEMA DE FREIOS E


CONTRAPESOS. ..........................................................................................................................14

4. DOS ATOS ADMINISTRATIVOS ........................................................................24

5. DO CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..........................................41

6. CONCLUSÃO .........................................................................................................56

BIBLIOGRAFIA: ..............................................................................................................59
6

1. INTRODUÇÃO

Para a consecução de suas finalidades, a Administração dispõe de instrumentos e poderes.


Utilizando-se de tais prerrogativas, o Administrador pratica os atos ditos discricionários, ou atos
praticados no uso do poder discricionário, que são marcados por liberdade institucionalizada nos
elementos motivo e objeto (juízo de conveniência e oportunidade).

Tal instrumento, que surgiu de forma a evitar o engessamento da máquina estatal para o
atendimento ao interesse público, mormente ao se considerar a complexidade das relações
sociais e a pluralidade de necessidades humanas, cada uma com suas particularidades, porém,
tem sido utilizado com finalidades sub-reptícias, de maneira a atender ao alvedrio de quem
deveria trabalhar em prol do interesse público.

Tal cenário, somado à ainda insuficiente estrutura de controle de que dispõe o Estado
Brasileiro, acarreta o abuso de prerrogativas e a segregação do interesse social, que resta à
sarjeta.

Assim, após o advento do Neoconstitucionalismo e da teoria constitucional


substancialista, muito se discute na doutrina e na jurisprudência acerca da possibilidade de o
Poder Judiciário controlar o chamado juízo de mérito realizado pela Administração para a prática
dos atos discricionários.

Tal tema é aqui analisado sob enfoque doutrinário e jurisprudencial, e pretende analisar-
se todos os aspectos necessários para a total compreensão da matéria. Ao final, expõe-se
sucintamente a finalidade social da atuação positiva jurisdicional, que hoje é embasada pela
doutrina moderna.
7

2. DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO

A noção de Estado é plurívoca. Conforme a evolução social, o Estado é percebido sob


diferentes enfoques. Porém, a Maquiavel se deve a concepção de Estado no sentido de unidade
política, como leciona Kildare Gonçalves Carvalho (2012, pg. 66):

“Na Antiguidade romana, a palavra Estado denotava situação ou


condição de uma coisa ou pessoa. (...) Na Idade Média, ‘Estado’ eram os
estamentos, corpos sociais segundo rígida hierarquia, que seriam
posteriormente o clero, a nobreza e o povo. (...) Mas foi Maquiavel quem
empregou o termo Estado (stato) com o sentido de unidade política total,
em sua obra ‘Il principe’, escrita em 1513: ‘todos os Estados, todos os
domínios que tiverem e têm império sobre os homens são Estados e são
ou república ou principados.”

Para os operadores do Direito, a visão de Maquiavel serviu de base para o


desenvolvimento de outros conceitos, uma vez que possui em seu âmago a noção de soberania
sobre o particular. Para Dalmo de Abreu Dallari (2005, pg. 119), o Estado é “a ordem jurídica
soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”.

No ramo da ciência política, Max Weber introduziu interessante conceito de estado em


conferência realizada a estudantes da Universidade de Munique, em 1918:

“’Todo Estado se fundamenta na força’, disse Trotski a Brest-Litovsk. Isso é


realmente certo. Se não existissem instituições sociais que conhecessem o uso
da violência, então o conceito de ‘Estado’ seria eliminado, e surgiria uma
situação que poderíamos designar como ‘anarquia’, no sentido específico da
palavra. É claro que a força não é, certamente o meio normal, nem o único, do
Estado – ninguém o afirma – mas um meio específico ao Estado. Hoje, as
relações entre o Estado e a violência são especialmente íntimas. No passado, as
instituições mais variadas – a partir do clã – conheceram o uso da força física
como perfeitamente normal.”(WEBER,1919)

E arremata logo em seguida:

“(...) o Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o


monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território.
8

(...) Especificamente, no momento presente, o direito de usar a força física é


atribuído a outras instituições ou pessoas apenas na medida em que o Estado o
permite. O Estado é considerado como a única fonte do 'direito' de usar a
violência.”(WEBER, 1919)

Sob prisma diverso, a visão contratualista defendida por Hobbes define o Estado como
sendo o fruto de um contrato social que objetiva à segurança da coletividade. Defende o filósofo
que a união de pequenos ou grandes números de pessoas não assegura a defesa da sociedade,
uma vez que a constituição de pequenos grupos não assegura defesa contra invasões estrangeiras,
e a constituição de grandes grupos significa a existência de interesses e vontades individuais que
podem acarretar a insustentabilidade da convivência. Portanto, propõe:

“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das


invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim
uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos
frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua
força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir
suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. (...) Isto é
mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos
eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com
todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada
homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este
homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele
teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto,
à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. (...).
É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma
pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com
os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a
força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para
assegurara paz e a defesa comum.” (HOBBES, pg. 61)

Na doutrina pátria, Kildare Gonçalves defende que, muito embora a noção de Estado
contemporânea se construa sobre três pilares básicos – povo, território e poder político,
denominado por parte da doutrina de soberania – “são vários os conceitos de Estado, segundo se
procure dar ênfase ao elemento poder ou se atenda à sua natureza jurídica, sem ainda se
desconhecer o substrato social para a sua formulação" (CARVALHO, 2012, pg. 67).

Portanto, entende-se o Estado como sendo a personificação da organização política do


poder e dos ideais do povo, entidade que dispõe de poder e legitimidade para traçar os rumos da
sociedade e fazer impor a vontade da Lei.
9

2.1 Estado e Constituição.

A Constituição pode ser comperendida como a peculiar forma de ser de um Estado. É o


elemento que lhe dá corpo e vida, e lhe permite desenvolver-se de maneira a atingir as
finalidades para o qual o foi criado. Por serem umbilicalmente interligados, o conceito de
Constituição também é polissêmico. No sentir de Paulo Bonavides (2012, pg. 84):

“A palavra Constituição abrange toda uma gradação de significados, desde o


mais amplo possível – a Constituição em sentido etimológico ou seja relativo ao
modo de ser das coisas, sua essência e qualidades distintivas – até este outro
em que a expressão se delimita pelo adjetivo que a qualifica, a saber, a
Constituição política, insto é, a Constituição do Estado, objeto aqui de exame.”

Sem prejuízo das diversas possíveis acepções de Constituição (sentido sociológico –


Ferdinand Lassale; Sentido Político - Carl Schmitt; Constituição enquanto ordem aberta da
sociedade – Konrad Hesse; Sentido Jurídico-Positivo, Hans Kelsen...), a doutrina clássica assim
define a Constituição:

“Constituição, lato sensu, é o ato de constituir, de estabelecer, de firmar; ou,


ainda, o modo pelo qual se constitui uma coisa, um ser vivo, um grupo de
pessoas; organização, formação. Juridicamente, porém, Constituição deve ser
entendida como a Lei fundamental e suprema de um Estado, que contém
normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos,
forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de
competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a
Constituição que individualiza os órgãos competentes para a edição de normas
jurídicas, legislativas ou administrativas” (MORAES, 2010, pg. 6).

“Um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma


do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder,
o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos
fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é
o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.”
(SILVA, 2004, pg. 37-38).

“Organização sistemática dos elementos constitutivos do Estado, através da


qual se definem a forma e a estrutura deste, o sistema de governo, a divisão e o
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funcionamento dos poderes, o modelo econômico e os direitos, deveres e


garantias fundamentais, sendo que qualquer outra maneira que for agregada a
ela será considerada formalmente constitucional”. (ARAÚJO E JUNIOR, 2006,
pg. 3).

E, por fim, ensina o professor Uadi Lammêgo Bulos:

“Constituição é o organismo vivo delimitador da organização estrutural do


Estado, da forma de governo, da garantia das liberdades públicas, do modo de
aquisição e exercício do poder. Traduz-se por um conjunto de normas jurídicas
que estatuem direitos, prerrogativas, garantias, competências, deveres e
encargos, consistindo na lei fundamental da sociedade.” (BULOS, 2008, pg.
28)

Com efeito, não há dúvidas de que na modernidade as Constituições são verdadeiros


organismos vivos que, concomitantemente, condicionam a realidade social e por ela são
condicionadas. Tal fenômeno, inicialmente defendido por Konrad Hesse, teve sua atuação
elucidada no trabalho de Kildare Gonçalves Carvalho (2012, pg. 254), com grifos do autor:

“A Constituição é concebida, por isso mesmo, como ordem fundamental,


material e aberta de uma comunidade. Como ordem fundamental revela sua
posição de supremacia, e como ordem material contém, além de normas, uma
ordem de valores, que se expressa no conteúdo de direito que não pode ser
desatendido pelas normas infraconstitucionais. Considere-se ainda que a
Constituição traduz uma ordem aberta, porquanto mantém uma permanente
interação com a realidade. Há, desse modo, uma conexão de sentido entre os
valores compartilhados e aceitos pela comunidade política e a ordenação
fundamental e suprema representada pela Constituição, cujo sentido jurídico
somente pode ser apreciado em relação à totalidade da vida coletiva. (...) pois
o que importa é a noção de relevância constitucional, ou seja, ter o sistema
normativo assimilado suficientemente as questões consideradas relevantes pela
comunidade ao tempo do processo constituinte. Advirta-se, no entanto, que se
por um lado a Constituição conforma a realidade, por outro lado, é por ela
conformada.”

Assim, em síntese, compreende-se que a Constituição é o Estatuto que confere forma,


vida e energia motriz ao Estado. É o elemento que, ambivalentemente, conforma a realidade e
por ela é conformada, em uma verdadeira relação simbiótica. A mutabilidade de seu conteúdo se
deve a simples motivo: a vontade popular, embasadora da legitimidade normativa, é volátil, e a
noção de bem estar social é evolutiva. Não há como se sustentar ordem constitucional
denominada aberta que não possua visão proativa ao desenvolvimento social.
11

Por tal motivo, todos os conceitos apresentados de Constituição possuem em seu bojo
referência ao elemento humano constituinte do Estado. A própria Carta da República, no seu
parágrafo único de seu artigo 1º, estabelece que “todo poder emana do povo, que o exerce
mediante representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Não por mero
acaso: o homem é o valor supremo do Estado. É o titular do poder soberano, por quem e para
quem toda atividade estatal é dirigida. Vale dizer: O Estado não vale de per si; é um instrumento
colocado à disposição do titular do poder para a realização de seus interesses. E tal acepção é
fruto do Neoconstitucionalismo.

2.2 Do Neoconstitucionalismo.

Até a Segunda Guerra, prevalecia a corrente do positivismo, segundo a qual a lei editada
pelo legislativo era fonte principal, praticamente exclusiva, de Direito. A doutrina prevalecente
era a da superioridade legislativa, onde ao Juiz caberia tão somente o papel de “bouche de la loi”,
dizer a Lei. Não havia margem para a interpretação normativa, conforme leciona Rodrigo
Padilha:

“As atrocidades cometidas por Adolf Hitler só foram possíveis graças a este
entendimento. e.g. através de Decreto expedido em 7/4/1933 os Judeus foram
afastados do funcionalismo público, do exército e das universidades; através de
Lei publicada em 14/7/1933 foram retirados os direito de cidadão dos Judeus
imigrantes no Leste Europeu; a chamada ‘Lei da Cidadania’ tirou aos judeus
alemães a cidadania alemã; a ‘Lei da Proteção da Honra e Sangue Alemão’
proibia os casamentos dos Judeus com não Judeus, proibia o emprego de
Judeus na Alemanha e proibia os Judeus de exibirem a bandeira Alemã entre
outras medidas. Por fim através de Decreto assinado pelo então presidente
Paul Von Hindenburg foram suspensos sete seções da Constituição de 1919 da
República de Weimar que garantiam liberdades individuais e civis ao povo. Por
mais estarrecedor que seja, Hitler não praticou muitas ilegalidades ou
inconstitucionalidades, quase todas as atrocidades eram legitimadas por
normas jurídicas.”

Assim, na lição de Daniel Sarmento (2009, pg. 13):


12

“A percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-se


com a barbárie, levou as novas Constituições a criarem ou fortalecerem a
jurisdição constitucional, instituindo mecanismos potentes de proteção dos
direitos fundamentais mesmo em face do legislador.”

Neste cenário, surge o Neoconstitucionalismo, que, nas palavras de Walber de Moura


Agra (2005, pg. 31):

“(...) tem como uma de suas marcas a concretização das prestações materiais
prometidas pela sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de
um Estado Democrático Social de Direito. Ele pode ser considerado como um
movimento caudatário do pós-modernismo. Dentre suas principais
características podem ser mencionadas: a) positivação e concretização de um
catálogo de direitos fundamentais; b) onipresença dos princípios e das regras;
c) inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do Estado; e)
desenvolvimento da justiça distributiva. (...) o seu modelo normativo não é o
descritivo ou deontológico, mas o axiológico. No constitucionalismo moderno a
diferença entre normas constitucionais e infraconstitucionais era apenas de
grau, no neoconstitucionalismo a diferença é também axiológica. A
‘Constituição como valor em si’ . O caráter ideológico do constitucionalismo
moderno era apenas o de limitar o poder, o caráter ideológico do
neoconstitucionalismo é o de concretizar os direitos fundamentais”.

O Neoconstitucionalismo (pós-positivismo) é corrente do Direito cujo cerne repousa


sobre os direitos e garantias fundamentais e a tripartição de poderes, surgida em oposição ao
juspositivismo. No sentir de Pedro Lenza (2012, pg. 62):

Busca-se, dentro dessa nova realidade, não mais apenas atrelar o


constitucionalismo à ideia de limitação do poder político, mas, acima de tudo,
buscar a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter
meramente retórico e passando a ser mais efetivo, especialmente diante da
expectativa de concretização dos direitos fundamentais.

Trata-se de doutrina que, em oposição ao positivismo e ao apego à literalidade normativa,


preconiza a efetividade da norma constitucional, através do reconhecimento da normatividade
principiológica, da superioridade dos direitos e garantias fundamentais e do fortalecimento dos
mecanismos de controle da atuação estatal, mormente no que diz respeito à tripartição de
poderes.

Tal ideologia possui ligação com as dimensões dos direitos e garantias fundamentais:
além de ser combustível para a gênese dos direitos fundamentais de terceira dimensão, o
13

Neoconstitucionalismo também foi responsável pelo espraiamento com maior intensidade dos
direitos de segunda dimensão, existentes desde o final do século XIX. Para Dirley Da Cunha
Júnior (2010, pg. 41):

“... foi marcadamente decisivo para o delineamento desse novo Direito


Constitucional, a reaproximação entre o Direito e a Ética, o Direito e a Moral,
o Direito e a Justiça e demais valores substantivos, a revelar a importância do
homem e a sua ascendência a filtro axiológico de todo o sistema político e
jurídico, com a consequente proteção dos direitos fundamentais e da dignidade
da pessoa humana.

Esta nova visão do Direito confere ao homem distinto espaço na organização do Estado,
ao torna-lo seu valor máximo. Por conseguinte, o Estado deixa de ser Leviatã para tornar-se
instrumento de edificação social, de consecução do interesse público.

Além disso, esta nova visão tem ocasionado a reavaliação da teoria da tripartição
funcional do poder, uma vez que preconiza os preceitos substantivos da Constituição, tomando-
se o procedimentalismo como mero instrumento de atuação. Vale dizer: discute-se a redefinição
das funções do Estado para que melhor se possa atingir a finalidade proposta na Constituição.
Aponta Lênio Luiz Streck (2002, pg. 128):

“A democracização social, fruto das políticas do ‘Welfare State’, o advento da


democracia no segundo pós-guerra e a redemocratização de países que saíram
de regimes autoritários/ditatoriais, trazem à luz Constituições cujos textos
positivam os direitos fundamentais e sociais. Esse conjunto de fatores redefine
a relação entre os Poderes do Estado, passando o Judiciário (ou os tribunais
constitucionais) a fazer parte da arena política, isto porque o ‘Welfare State’
lhe facultou o acesso à administração do futuro, e o constitucionalismo
moderno, a partir da experiência negativa de legitimação do nazi-fascismo pela
vontade da maioria, confiou à justiça constitucional a guarda da vontade geral,
encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na
ordem jurídica. Tais fatores provocam um redimensionamento na clássica
relação entre os Poderes do Estado, surgindo o Judiciário (e suas variantes de
justiça constitucional, nos países que adotaram a fórmula de tribunais ‘ad
hoc’) como uma alternativa para o resgate das promessas da modernidade,
onde o acesso à justiça assume um papel de fundamental importância, através
do deslocamento da esfera de tensão, até então calcada nos procedimentos
políticos, para os procedimentos judiciais.”
14

3. DA TRIPARTIÇÃO DE PODERES E DO SISTEMA DE FREIOS E


CONTRAPESOS.

A teoria da tripartição de poderes é aquela segundo a qual as funções estatais estariam


dividas em três grupos distintos: a função de edição de normas gerais de caráter obrigatório, a
função de aplicação de tais normas (administrar) e a função de julgamento dos dissídios oriundos
da aplicação normativa. Neste sentido, leciona Pedro Lenza (2012, pg. 481):

“As primeiras bases teóricas para a “tripartição de Poderes” foram lançadas


na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra Política, em que o pensador
vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder
soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas
por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e
a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das
normas gerais nos casos concretos.”

No mesmo sentido, ressalta Kildare Gonçalves Carvalho (2012, pg. 149):

“O princípio da separação de Poderes encontrou em Montesquieu seu expoente


máximo. Antes, porém, Aristóteles, na Antiguidade grega, havia tratado do
tema, ao distinguir a assembléia-geral, o corpo de magistrados e o corpo
judiciário (deliberação, mando e julgamento).”

As balizas estabelecidas por Aristóteles seriam, posteriormente, melhor definidas por


Montesquieu, em “O espírito das leis”:

“Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder


executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo
daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o
magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas
que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe
embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele
castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a
este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado.
(...) Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder
legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se
pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para
executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não
for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder
15

legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário,


pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz
poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem,
ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três
poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os
crimes ou as querelas entre os particulares.”(MONTESQUIEU, 2000, pg.
167/168)

Ressaltando a importância de tal sistema para a defesa das liberdades, arremata:

“Nas repúblicas da Itália, onde estes três poderes estão reunidos, se encontra
menos liberdade do que em nossas monarquias. Assim, o governo precisa, para
se manter, de meios tão violentos quanto o governo dos turcos; prova disto são
os inquisidores de Estado e o tronco onde qualquer delator pode, a qualquer
momento, lançar um bilhete, com sua acusação. Vejam qual pode ser a situação
de um cidadã nestas repúblicas. O mesmo corpo de magistratura possui, como
executor das leis, todo o poder que se atribuiu como legislador. Pode arrasar o
Estado com suas vontades gerais e, como também possui o poder de julgar,
pode destruir cada cidadão com suas vontades particulares. Ali, todo o poder é
um só e, ainda que não tenha a pompa exterior que revela um príncipe
despótico, ele faz-se sentir a todo instante.”(MONTESQUIEU, 2000, pg. 168)

Assim, aqui cabe a ressalva de que, no Brasil, a divisão a que se refere Montesquieu não
é do Poder em si, mormente porquanto este é uno e indivisível, além de pertencente ao povo.
Trata-se, sim, de mera divisão funcional, de sorte que não há superioridade entre um poder e
outro, mas tão somente discussão para saber se a prática de determinado ato político integra o rol
de funções precípuas de um poder ou de outro. Neste sentido, leciona Uadi Lammêgo Bulos
(2012, p. 396):

“Veja-se que, em rigor, o poder político é uno (não se biparte, esfacelando seu
conteúdo) e indecomponível (não se divide, cindindo a sua forma). Por isso,
quando falamos em separação de Poderes estamos nos reportando a uma
separação de funções estatais, conferidas a órgãos especializados para cada
atribuição.”

Arremata José Cretella Júnior (1998, pg. 5) ao dizer que:

“Na verdade, não existe nem divisão, nem separação, mas partilha de Poderes,
ou melhor, interpenetração de funções. O Estado administra pelos três poderes,
embora, por excelência, a função de administrar caiba à Administração, ao
Poder Executivo. Assim, também o Estado julga pelos três Poderes, não
16

obstante, por excelência, a função jurisdicional seja afeta ao Poder Judiciário.


Por fim, o Estado legisla pelos três Poderes, mas a função de legislar compete,
primordialmente, ao Poder Legislativo.”

Com efeito, a divisão das funções do poder entre Legislativo, Executivo e Judiciário,
realizada pela Constituição de 1988 (Art. 2º), não institui separação rígida e estanque de
atribuições. Em verdade, a divisão do exercício do poder é funcional, orgânica, relativa (também
denominada flexível) e não exclusiva. Conforme leciona Pedro Lenza (2012, pg. 482):

A teoria da “tripartição de Poderes”, exposta por Montesquieu, foi adotada


por grande parte dos Estados modernos, só que de maneira abrandada. Isso
porque, diante das realidades sociais e históricas, passou -se a permitir maior
interpenetração entre os Poderes, atenuando a teoria que pregava a separação
pura e absoluta dos mesmos. Dessa forma, além do exercício de funções típicas
(predominantes), inerentes e ínsitas à sua natureza, cada órgão exerce,
também, outras duas funções atípicas (de natureza típica dos outros dois
órgãos). Assim, o Legislativo, por exemplo, além de exercer uma função típica,
inerente à sua natureza, exerce, também, uma função atípica de natureza
executiva e outra função atípica de natureza jurisdicional.

Neste viés, mormente pela leitura da obra de Montesquieu, nota-se que a divisão dos
poderes consubstancia mecanismo de controle de atuação estatal à medida que submete a prática
de determinados atos políticos à manifestação de vontade de mais de um poder, possibilitando a
tomada de decisão com maior equilíbrio e em maior conformidade com o Ordenamento Jurídico,
além de evitar a prevalência de um poder sobre outro. Neste sentido ensina Maldonado:

“Desta forma, dividido o poder e individuados seus órgãos, assim como


superada a ideia da prevalência de um sobre o outro, através da compreensão
da necessidade de equilíbrio, independência e harmonia entre eles, admitindo-
se, inclusive a interferência entre eles, ganha força a ideia de controle e
vigilância recíprocos de um poder sobre o outro relativamente ao cumprimento
dos deveres constitucionais de cada um. Aí estão presentes os elementos
essenciais caracterizadores do moderno conceito do princípio da separação
dos poderes. Deste conceito, com o fito de darmos continuidade aos nossos
estudos, destacamos a ideia de CONTROLE, aqui entendido ‘tanto o exercício
como o resultado de funções específicas que destinam a realizar a contenção do
poder do Estado, seja qual for sua manifestação, dentro do quadro
constitucional que lhe for adscrito’.”
17

A este mecanismo de controle deu-se o nome de Freios e Contrapesos (checks and


balances), que, na lição de Montesquieu (2000, p. 173 e 174), é exemplificada no seguinte
excerto, dentre outros:

“(...) é preciso que seja o poder executivo que regulamente a época e a duração
destas assembleias, em relação às circunstâncias que conhece. Se o poder
executivo não tiver o direito de limitar as iniciativas do corpo legislativo, este
será despótico; pois, como ele poderá outorgar-se todo o poder que puder
imaginar, anulará os outros poderes. Mas não é preciso que o poder legislativo
tenha reciprocamente a faculdade de limitar o poder executivo. Pois, sendo a
execução limitada por natureza, é inútil limitá-la: além do que o poder
executivo exerce-se sempre sobre coisas momentâneas. (...) Mas, se, num
Estado livre, o poder legislativo não deve ter o direito de frear o poder
executivo, tem o, direito e deve ter a faculdade de examinar de que maneira as
leis que criou foram executadas;”

E o sistema constitucional pátrio também é rico em exemplos, v.g. a nomeação do


Procurador Geral da República pelo Presidente, após a aprovação pela maioria absoluta do
Senado Federal; sanção ou veto presidencial de projetos de lei oriundos do Congresso Nacional;
Julgamento do Presidente e do Vice Presidente da República pelo Senado Federal nos crimes de
Responsabilidade.

Com efeito, referido sistema é de caráter ambivalente: para a perfeição do ato, faz-se
necessária a manifestação de vontade de dois órgãos distintos, que se fundem para formar um
único ato. Veja-se que, embora autônomas, suas existências não são independentes: não há
votação pelo Senado sem que haja a indicação pelo Presidente da República do cidadão a
preencher a vaga de Procurador Geral da República, da mesma forma que não há o poder de
nomear sem que haja aprovação por aquele órgão colegiado. Em qualquer caso, intrinsicamente à
faculdade de decidir encontra-se o poder de impedir.

Assim, a tripartição de poderes também é vista pela Doutrina como elemento


fundamental para a efetiva tutela dos direitos e garantias fundamentais, porquanto possibilita
alcançar o equilíbrio necessário para a realização do interesse público e evita arbitrariedades e
desmando de um poder em detrimento de outro ou dos governados. Afinal, se competência pode
ser conceituada como poder para a prática de determinado ato, a concentração de competências
(não distribuição) significa concentração de poder e equivalente extinção de limites.
18

3.1 Do Poder Judiciário – breves comentários acerca da função


jurisdicional.

A função jurisdicional pode ser compreendida como o poder dever de aplicar o Direito ao
caso concreto, além de dirimir os conflitos que lhe são apresentados. Para a doutrina, jurisdição
pode ser conceituada como:

“ (...) uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares
dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do
conflito que os envolve, com justiça. Essa pacificação é feita mediante a
atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em
concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre por
meio do processo, seja expressando imperativamente o preceito (através de
uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito
estabelece (através da execução forçada)”. (CINTRA, GRINOVER e
DINAMARCO, 2002, pg.131)

Na visão de BERMUDES (1996, pg. 67), “nisso consiste a jurisdição na sua essência:
dizer o direito, no sentido de identificar a norma de direito objetivo preexistente (ou de elaborá-
la, se inexistente) e de fazê-la atuar numa determinada situação”.

Na lição de MOURA, MAIA e SÁ (2004, pg. 46-47):

“De fato, a jurisdição é manifestação do poder do Estado, assim como os


demais poderes (Executivo e Legislativo), devendo-se entender o poder estatal
como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. É também
função, visto que, representa o dever de pacificação, com justiça, dos conflitos
nascidos na sociedade, de onde provém sua expressão como atividade, já que
abrange um complexo de atos direcionados para a satisfação de fins próprios
do Estado. Neste sistema de exercício do poder, como atributo da soberania, a
atividade jurisdicional se coloca como instrumento hábil, pois o Estado
soberano impõe o seu Direito através da jurisdição, dizendo o direito aplicável
ao caso concreto. Por seu intermédio, o Estado, substituindo os titulares dos
interesses em confronto busca de forma imparcial, a plena consecução de sua
missão social de eliminar conflitos e fazer justiça.”

De pronto, percebe-se que a atividade jurisdicional liga-se à função de controle. Em um


Estado de Direito, há a submissão de tudo e de todos ao império da Lei. Assim, para que esta se
19

faça valer, faz-se necessária a existência de um guardião, que lhe assegure a aplicabilidade e lhe
imponha cogência. A este guardião corresponde o Poder Judiciário.

Por tal motivo é que, conforme já foi dito, até poucos anos atrás, o Juiz era considerado
“la bouche de la loi”, a boca da Lei, sendo-lhe vedado o desenvolvimento de qualquer atividade
hermenêutica. Àquela época, a legitimidade estatal residia na literalidade normativa, não em
qualquer elemento fruto da cognição do magistrado. Assim, o juris dicere que não se embasasse
expressamente em norma não consistia em legítima atividade jurisdicional, vale dizer, não se
impunha enquanto vontade estatal. Não era jurisdição.

Com o advento do Neoconstitucionalismo, a posição da Constituição no ápice do


Ordenamento Jurídico e o reconhecimento da normatividade principiológica, tal acepção mudou
sensivelmente. A jurisdição principiológica confere ao Magistrado maior liberdade em sua
atividade, à medida que este os utiliza não somente como elementos a colmatar lacunas, mas
também como elementos de integração e de solução de conflitos. Porém, embora possuam
espaço crescente no Direito Privado, tais inovações ainda pelejam a serem aplicadas na solução
de conflitos de Direito Público.

Enquanto na solução de litígio submetido a legislação privada faz-se o possível para


preservar a vontade das partes (princípio da autonomia da vontade), havendo, por conseguinte,
inúmeras possíveis soluções ao caso concreto – afinal, ao particular tudo é permitido desde que a
Lei não o proíba - quando se está sob a égide do Direito Público o que se faz respeitar é a
vontade da Lei (princípio da legalidade ou vinculação positiva (positive bindungen). Assim,
havendo eventual conflito a ser dirimido pelo Juiz, a legítima solução pode ser apenas uma: a
que a Lei expressamente autorizar.

Assim, embora a boa doutrina já defenda a força normativa da Constituição para as


atividades Administrativas, legitimando - desde que haja suficiente preceito constitucional a
autorizar - a atuação do Poder Público ainda que inexista expressa lei a fazer a devida
regulamentação, vale, para a Administração, o mesmo pensamento vigorante no século 18. Em
posicionamento vanguardista, leciona Gustavo Binenbojm (2008, pg 36-37):

“(...)propõe-se como resposta a constitucionalização do direito administrativo.


Deve ser a Cosntituição, seus princípios e especialmente seu sistema de direitos
fundamentais, o elo de unidade a costurar todo o arcabouço normativo que
compõe o regime jurídico administrativo. A superação do paradigma da
legalidade administrativa só pode dar-se com a substituição da lei pela
Constituição como cerne da vinculação administrativa à juridicidade. Tal
20

postura científica assenta na superação do dogma da imprescindibilidade da lei


para mediar a relação entre a Constituição e a Administração Pública. Com
efeito, em vez de a eficácia operativa das normas constitucionais –
especialmente as instituidoras de princípios e definidoras de direitos
fundamentais – depender sempre de lei para vincular o admninistrador, tem-se
hoje a Constituição como fundamento primeiro do agir administrativo. (...)
Verifica-se, assim, o surgimento de uma verdadeira Constituição
administrativa, que, por um processo de autodeterminação constitucional, se
emancipou da lei na sua relação com a Administração Pública, passando a
consagrar princípios e regras que, sem dependencia da interpositio legislatoris,
vinculam direta e imediatamente as autoridades administrativas. A
Constituição, assim, deixa de ser mero programa político genérico à espera de
concretização pelo legislador e passa a ser vista como norma diretamente
habilitadora da competência administrativa e como critério imediato de
fundamentaçào e legitimação da decisão administrativa.”

3.2 Da função administrativa.

O homem, enquanto titular do Poder Soberano que orienta e domina as atuações estatais,
é sujeito de diversas necessidades, que incluem segurança, moradia, alimentação, propriedade e
outros. O Estado, enquanto garantidor do bem estar social, a fim de assegurar o suprimento de
tais necessidades, desenvolve, dentre outras, a função administrativa. Neste sentido, explica o
professor Nivaldo Azevedo (2011, p. 42):

“O Estado é a forma de organização social criada pelo titular do poder


(POVO) para viabilizar o convívio social e promover a satisfação das
necessidades individuais e coletivas dos cidadãos. Portanto, não há como se
estabelecer a concepção de Estado desarraigado da satisfação de interesses
públicos. Diante desta constatação, podemos concluir que O ESTADO É O
GARANTIDOR DO SUCESSO SOCIAL.”

Governo e Administração não se confundem. Governo é atividade política, independente,


regulada pelo Direito Constitucional, mediante a qual se tomam as decisões fundamentais da
vida política, delineando-se os rumos a serem perseguidos pelo Estado. Administração, por sua
vez, é atividade subordinada ao governo, guiada por regime jurídico específico (RJA), para a
realização em concreto das metas traçadas pelo Governo em abstrato. Do exercício da função de
21

governo decorrem os Atos Políticos; do exercício da função administrativa decorrem os Atos


Administrativos ou os Atos da Administração.

Deste introito, nota-se que aquele incumbido das funções de governo pode titularizar
competências administrativas: ao contrário do Governo, a função administrativa é mero
instrumento que não possui existência autônoma. Assim, como fazer para que se estabeleça a
linha mestra a explicitar o limiar entre Governo e Administração? Em resposta a tal
questionamento, a Doutrina conceitua a Administração basicamente sob dois aspectos:
Administração em sentido subjetivo, formal ou orgânico, e Administração em sentido objetivo,
material ou funcional.

Defende a Doutrina que a Administração seria o aparelhamento estatal (entidades, órgãos


e agentes) de que dispõe o Estado para o desempenho da atividade administrativa. A esta
acepção denominou-se Administração em Sentido subjetivo, formal ou orgânico. Para de Di
Pietro (2010, pg. 49):

“(...) em sentido subjetivo, formal ou orgânico, ela designa os entes que


exercem atividade administrativa; compreende pessoas jurídicas, órgãos e
agentes públicos incumbidos de exercer uma das funções em que se triparte a
atividade estatal: a função administrativa.”

No sentir de José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 12-13):

“A expressão pode também significar o conjunto de agentes, órgãos e


pessoas jurídicas que tenham a incumbência de executar as atividades
administrativas. Toma-se aqui em consideração o sujeito da função
administrativa, ou seja, quem a exerce de fato. Para diferenciar este sentido do
da noção anterior, deve a expressão conter as iniciais maiúsculas:
Administração Pública.”

Em seguida, ressalva o professor:

“A Administração Pública, sob ângulo subjetivo, não deve ser confundida com
qualquer dos Poderes estruturais do Estado, sobretudo o Poder Executivo, ao
qual se atribui usualmente a função administrativa. Para a perfeita noção de
sua extensão é necessário pôr em relevo a função administrativa em si, e não o
Poder em que é ela exercida. Embora seja o Poder Executivo o administrador
por excelência, nos Poderes Legislativo e Judiciário há numerosas tarefas que
22

constituem atividade administrativa, como é o caso, por exemplo, das que se


referem à organização interna dos seus serviços e dos seus servidores. Desse
modo, todos os órgãos e agentes que, em qualquer desses Poderes, estejam
exercendo função administrativa, serão integrantes da Administração Pública.”

Tal acepção não é a mais adequada para a finalidade exposta. Afinal, os mesmos órgãos
que desempenham funções de governo também desempenham, em algum momento, atividades
administrativas, tais como gestão de servidores, realização de procedimento licitatório para
aquisição de material de escritório, ou até mesmo a realização de concurso público para
contratação de agentes. Com efeito, embora nem todo órgão da Administração exerça funções de
Governo, é certo que os órgãos de Governo exercem funções administrativas.

Administração, por outro lado, pode ser compreendida como a atividade exercida pelos
entes públicos, ou por quem faça as vezes de Poder Público. Para Di Pietro (2010, p. 49):

“(...) em sentido objetivo, material ou funcional, ela designa a natureza da


atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração
Pública é a própria função administrativa que incumbe, predominantemente, ao
Poder Executivo.”

No sentir de José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 12):

“O sentido objetivo, pois, da expressão – que aqui deve ser gravada com
iniciais minúsculas – deve consistir na própria atividade administrativa
exercida pelo Estado por seus órgãos e agentes, caracterizando, enfim, a
função administrativa (...) Trata-se da própria gestão dos interesses públicos
executada pelo Estado, seja através da prestação de serviços públicos, seja por
sua organização interna, ou ainda pela intervenção no campo privado, algumas
vezes até de forma restritiva (poder de polícia).”

Esta visão, mais adequada à distinção entre Governo e Administração, preconiza a


Administração através da atividade desenvolvida. Pouco importa quem a desempenha: se agente
político, servidor de um órgão ou autarquia, concessionário de serviço público ou até mesmo um
agente de fato, sem qualquer investidura. O que vale é a desenvoltura de atividades típicas de
Estado, o exercício da função administrativa. Mas, o que é a Função Administrativa?
23

Ora, a Função Administrativa é toda atividade concreta voltada ao atendimento de


finalidades públicas, carente de lei, produtora de efeitos imediatos e submetida ao controle
jurisdicional. Na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2006, pg. 24):

“A função administrativa é toda aquela exercida pelo Estado, que não


seja destinada à formulação da regra legal nem à expressão da decisão
jurisdicional, em seus respectivos sentidos formais. As atividades
administrativas atendem, assim, materialmente, às necessidades de
planejamento, decisão, execução e controle que devam ser desenvolvidas para
a gestão de interesses que são aqueles especificamente cometidos por lei à
administração estatal. A função administrativa é, por isso, uma atividade
remanescente, definida por exclusão da normativa e da jurisdicional, de modo
que, como se pode antever, se estende sobre um vasto campo de competências,
tão amplo e elástico conforme a doutrina política adotada confira ao Estado
maior ou menor fama de atribuições administrativas.”

E a própria função administrativa manifesta-se mediante alguns instrumentos, como atos,


declarações, contratos, procedimentos e outros. Dentre eles, cumpre o destaque ao Ato
Administrativo, principal ferramenta utilizada pela Administração para manifestar sua vontade e
exercer seu mister.
24

4. DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

Em um Estado Democrático de Direito, há a sujeição da Administração à lei. A


Administração não atua mais por operações imediatas decorrentes da vontade pessoal do
governante, mas devem atender a um prévio comando legal, representativo do interesse público;
ademais, as decisões devem ser tomadas através de manifestação prévia ao resultado, conforme
parâmetros antes fixados, os quais visam a assegurar os direitos dos usuários. Neste sentido,
leciona Nivaldo Azevedo (2011, pg. 228):

“A título de introdução, é curial esclarecer que, em um Estado de Direito,


ocorre a sujeição da Administração à lei. Desse modo, a Administração não
atua mais por operações imediatas decorrentes da vontade pessoal do
governante; as decisões devem ser firmadas por manifestação prévia ao
resultado, de acordo com parâmetros antes fixados, que visam a assegurar o
respeito a direitos dos particulares. Esse modo de expressão das decisões
adquire interesse jurídico relevante, tornando-se um dos grandes temas do
Direito Administrativo. O ato administrativo constitui, assim, um dos principais
meios pelos quais atuam e se expressam as autoridades e órgãos
administrativos.”

O ato Administrativo constitui, assim, um dos principais meios pelos quais atuam e se
expressam as autoridades e órgãos administrativos. Por tal motivo, debruça-se aqui sobre
determinados aspectos do mesmo, com vistas a esclarecer-lhe seu processo de formação e
algumas de suas modalidades.

Seu estudo, todavia, torna-se assaz complexo. É que a Lei não conceituou o que seria Ato
Administrativo; coube à doutrina fazê-lo. Desta forma, lidam-se com diversas divergências
doutrinárias. Aqui, abordaram-se apenas alguns aspectos já consolidados, não restando abarcados
os temas controversos.

4.1 Conceito de Ato Administrativo.


25

O Ato Administrativo é uma modalidade de ato jurídico. Os Atos Jurídicos, aqui


compreendidos como os eventos decorrentes da manifestação de vontade que acarretam
consequências jurídicas, existem em todos os ramos do Direito. Vg., o particular, ao causar dano
a outrem, comete ato jurídico ilícito; a atuação dolosa ou culposa que resulta em dano ao
patrimônio de outrem é ato jurídico ilícito; a manifestação de vontade testamentária constitui ato
jurídico.

Assim, os Atos Jurídicos no âmbito do Direito Público adquirem contornos específicos,


adequados à especial relação a que visam tutelar. Neste sentido, assim ensina Celso Antônio
Bandeira de Mello (2010, pg. 371):

“O que particulariza o ato administrativo e justifica que se formule um


conceito que o isole dentre os demais atos jurídicos, é a circunstância de que
ele tem peculiaridades (a) no que concerte às condições de sua válida produção
e (b) no que atina à eficácia que lhe é própria.”

Assim, surge a definição de Ato Administrativo, como sendo a manifestação unilateral de


vontade, a fala prescritiva do Estado, visando, sob o manto do regime jurídico administrativo, à
produção de efeitos jurídicos imediatos e concretos, sujeitos ao controle jurisdicional.

Na lição de Bandeira de Mello (2010, pg. 385), Ato Administrativo é a:

“Declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um
concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas,
manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de
lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão
jurisdicional.”

Maria Sylvia Zanella Di Pietro define o ato administrativo como a declaração do Estado
ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob
regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário. (DI PIETRO, 2010,
p. 196)

Na mesma esteira, leciona Fernanda Marinella:

“Com efeito, Ato Administrativo é toda declaração unilateral de


vontade do Estado, no exercício de prerrogativas públicas, manifestada
mediante comandos concretos complementares da lei, expedidos a título de lhe
26

dar cumprimento e sujeitos a controle pelo Poder Judiciário, ficando, assim,


excluídos, os atos abstratos e os convencionais.” (MARINELA, 2010, pg. 233)

Para Dirley da Cunha Júnior (2009, pg. 109):

“(...) cuida-se o ato administrativo de um ato jurídico por meio do qual


os agentes públicos, no desempenho de uma determinada função
administrativa, exteriorizam, com observância das normas legais, sob certa
forma com autoridade, o querer do Estado, consistente em, juridicamente,
criar, reconhecer, enunciar, modificar e extinguir vantagens e impor
obrigações.”

Trata-se do instrumento que foi conferido à Administração para a consecução de suas


finalidades, concretizando no mundo fenomênico o que foi previsto em abstrato pela norma
jurídica. Porém, cabe aqui a ressalva de que nem todos os atos praticados pela Administração
podem ser considerados Atos Administrativos.

4.2 Atos da administração que não são Atos Administrativos.

Com efeito, nem todos os atos emanados do Poder Público merecem a alcunha de Atos
Administrativos, uma vez que não preenchem todos os requisitos que o configuram. Em tais
casos, referidos atos são denominados meramente Atos da Administração. Afim de justificar tal
premissa, assinale-se que a noção de Ato Administrativo é constituída:

a) De uma MANIFESTAÇÃO DE VONTADE UNILATERAL;


b) Emanados no desempenho da FUNÇÃO ADMINISTRATIVA;
c) Submetidos ao RJA – REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO;
d) SUBMETIDO a prévio comando legal.

Assim, excluem-se da classificação de Atos Administrativos os:


27

1) ATOS DE DIREITO PRIVADO.

Porquanto submetidos a Regime Jurídico privado ou hibrido –a predominância pública ou


privada é indiferente - e não ao RJA, não podem ser considerados Atos Administrativos. Para a
prática destes, a Administração faz uso de toda a sua potestade, razão pela qual reconhece a
Doutrina como elemento conceitual do Ato Administrativo a unilateralidade e, como
característica do mesmo, a imperatividade. Assim, a derrogação parcial ou total da norma
publiscista por norma privada impede a caracterização do Ato Administrativo.

2) ATOS MATERIAIS.

Os atos materiais são acontecimentos, não constituem manifestações de vontade.


Relacionam-se à execução. São os denominados fatos administrativos. Normalmente, é o
resultado da prática do Ato. Ex.: apreensão de mercadoria, desapropriação de um bem etc.

3) ATOS POLÍTICOS ou ATOS DE GOVERNO

Os Atos Políticos/Atos de Governo são submetidos a regime jurídico distinto do RJA,


qual seja, o regime constitucional. Conforme já explicitado alhures, a atividade de governo
caracteriza-se por estabelecer as diretrizes básicas da atuação estatal, de forma discricionária e
independente, submetida unicamente ao império da Constituição. A atuação administrativa, por
sua vez, é instrumento de concretização do desejo governamental, submete-se ao RJA e não
possui existência autônoma. Portanto, por consistirem em atuações de natureza absolutamente
distintas (governo e administração), o fruto de tal atuação (atos) também não merecem ser
confundidos. Portanto, Atos de Governo não constituem, em hipótese alguma, Atos
Administrativos.

4) CONTRATOS

Os contratos, ainda que celebrados pela Administração Pública, exigem, para sua
constituição, a manifestação de vontade de duas ou mais partes (bilateralidade). Portanto, por não
preencher o requisito da Unilateralidade, não podem ser considerados Contratos Administrativos.

5) ATOS NORMATIVOS PRIMÁRIOS.


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Os Atos Normativos Primários são normas incumbidas do papel de inovar o


Ordenamento Jurídico, situando-se hierarquicamente abaixo tão somente das normas
constitucionais, de onde retiram seu fundamento de validade, e dos tratados internacionais sobre
direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional por quórum de votação que não o especial.
Consistem, portanto, em atos legislativos, políticos por sua própria natureza. Não são, portanto,
Atos Administrativos.

Com efeito, a Administração possui competência para a edição de Atos Normativos,


correspondentes ao exercício do Poder Normativo da Administração. Porém, estes são expedidos
no exercício da função administrativa, geralmente visando à disciplina de matérias inatas ao
órgão, submetidos ao império da Lei. Vale dizer: Não podem inovar onde a Lei não inovou.
Corolário da distinção entre Atos legislativos e Atos normativos, a Constituição Federal conferiu
ao Congresso Nacional a competência exclusiva para, mediante Decreto Legislativo (ato
legislativo), sustar os atos normativos do poder executivo que exorbitem da poder regulamentar
(CF, Art. 49, V).

6) ATOS DECLARATÓRIOS OU ENUNCIATIVOS

Os atos enunciativos prestam-se a emissão de juízo de valor ou opinião acerca de


determinada matéria, sendo naturalmente exarados em processos administrativos. Os atos
declaratórios, por sua vez, são aqueles que exprimem situação fática relativa a determinada
pessoa, sem, contudo, constituir nova situação jurídica. Trata-se de mero reconhecimento de
condição pré-existente. Assim, por não consistirem em manifestações de vontade da
Administração – são declarações de opinião, conhecimento ou juízo –, bem como por não
produzirem efeitos imediatos, não podem ser considerados Atos Administrativos.

4.3 Da diferença entre ato e fato administrativo.

Conforme já se apregoou, o Ato consiste em manifestação de vontade da Administração,


enquanto o fato administrativo é acontecimento fenomênico geralmente oriundo de um ato
29

administrativo, podendo originar-se em determinadas hipóteses da omissão administrativa. No


magistério de Nivaldo Azevedo (2011, pg. 233):

“Podemos afirmar que o ato administrativo é uma declaração, um enunciado,


uma pronúncia, uma FALA PRESCRITIVA, vale dizer, um COMANDO
JURÍDICO. Fatos Administrativos não são declarações nem prescrições. Não
sçao falas ou comandos jurídicos. Não pronunciam coisa alguma. O FATO
NÃO DIZ NADA, APENAS OCORRE. A LEI É QUE FALA SOBRE ELE. Logo,
o fato administrativo é a realização material, isto é, o ACONTECIMENTO
JURÍDICO RESULTANTE DO COMANDO JURÍDICO (ato administrativo)
exarado pelo Poder Público. Ex.: construção de uma ponte, demolição de um
edifício, a apreensão de mercadorias, a realização de um serviço público etc.”

Fato jurídico e fato administrativo assim são distinguidos por José dos Santos Carvalho
Filho (2010, pg. 105):

“A noção de fato administrativo não guarda relação com a de fato jurídico,


encontradiça no direito privado. Fato jurídico significa o fato capaz de
produzir efeitos na ordem jurídica, de modo que dele se originem e se extingam
direitos (...) A ideia de fato administrativo não tem correlação com tal conceito,
pois que não leva em consideração a produção de efeitos jurídicos, mas, ao
revés, tem o sentido de atividade material no exercício da função
administrativa, que visa a efeitos de ordem prática para a Administração.”

4.4 Dos requisitos ou elementos do ato administrativos .

A estrutura do Ato Administrativo compreende todos os elementos necessários para sua


formação. São pressupostos necessários de existência, sem os quais não há ato algum, judicial ou
não. Leciona Bandeira de Mello (2010, pg. 384-385) que:

“O ato administrativo pode ser decomposto em elementos, como abstração


visando a facilitar-lhe o estudo. Este procedimento de decomposição
corresponderia a anatomia do ato, tendo em vista exame de sua eventual
patologia, isto é, dos vícios que, porventura, possa apresentar.”
30

A Lei n.º 4.717/65 – Lei da Ação Popular, ao definir os casos de nulidade dos atos
administrativos, permite aferir, contrariu sensu, os elementos que compõem a estrutura do Ato
Administrativo: competência (também denominado sujeito por parte da doutrina), finalidade,
forma, motivo e objeto. Deveras, a doutrina ainda defende que, além dos elementos já citados,
que seriam essenciais, haveriam ainda os acidentais – termo, condição, modo e encargo. Porém,
considerando a via estreita em que se faz o presente trabalho, analisam-se tão somente os
estabelecidos à referida Lei.

4.4.1 Competência.

A competência ou sujeito é o agente a quem se conferiu a atribuição para a prática do ato.


É aquele detentor da atribuição legal. A Lei n.º 9.784, em seu Art. 11, assim determina:

“Art. 11. A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos


administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de
delegação e avocação legalmente admitidos.”

A Administração, por força constitucional, é sujeita ao princípio da legalidade. Logo,


consequência inexorável é a fixação legal da atribuição para a prática de determinado ato. Daí o
respaldo para a determinação legal, de que a competência deve ser exercida, salvo as exceções
legalmente admitidas, por aquele a quem a Lei atribuiu como própria.

Deveras, o ato não nasce por si só. Necessita de um vetor, que, nesse caso, é o agente que
o produz. Assim, justifica-se sua caracterização como elemento essencial de existência do ato.

4.4.2 Finalidade.
31

A finalidade, também denominada fim mediato, é o objetivo, a finalidade pública a ser


atingida com a prática do ato. Com efeito, experienciamos um Estado Democrático de Direito,
em que o Estado, sub lumine da dimensão objetiva e subjetiva dos direitos e garantias
fundamentais, é o legítimo Garantidor do bem estar social. Por tal motivo, a finalidade é sempre
– e que não haja qualquer exceção – o interesse público, que é aquele estabelecido na lei. Em
síntese: a finalidade do Ato Administrativo é sempre o interesse público, sendo este entendido
como aquele estabelecido à Lei ou à Constituição.

Na abalizada lição de Bandeira de Mello (2010, pg. 399), “finalidade é o bem jurídico
objetivado pelo ato. Vale dizer, é o resultado previsto legalmente como o correspondente à
tipologia do ato administrativo, consistindo no alcance dos objetivos por ele comportados.”

A finalidade se verifica posteriormente à prática do Ato. Corresponde ao objetivo que se


quer atingir. É o direcionamento de sua força motriz, e a subversão de tal elemento caracteriza
abuso de poder, na modalidade desvio de poder ou de finalidade.

Cabe ressaltar, na atualidade, é notório o descaso de diversas autoridades quanto ao


interesse da população. O desvio de finalidade compromete o interesse público, restando o
cidadão à berlinda. Por tal motivo os noticiários não raro veiculam reportagens apontando
situações aparentemente paradoxais, em que de um lado há filas quilométricas para atendimento
nos postos de saúde e, de outro, há a contratação de empresas com superfaturamento, ou a
utilização de recursos com a finalidade sub-reptícia de financiamento de futura campanha
eleitoral, mormente a promoção de eventos, inaugurações etc.

4.4.3 Forma.

A forma é o revestimento externo que se empresta ao ato, a maneira pela qual este se
apresenta ao mundo, é o corpo que incorpora o ato. Se o Ato Administrativo é uma manifestação
de vontade, a forma é a maneira pela qual esta vontade se manifesta. Na lição de José dos Santos
Carvalho Filho (2010, pg. 121):

“A forma é o meio pelo qual se exterioriza a vontade. A vontade, tomada de


modo isolado, reside na mente como elemento de caráter meramente psíquico,
32

interno. Quando se projeta, é necessário que o faça através da forma. Por isso
mesmo é que a forma é elemento que integra a própria formação do ato. Sem
sua presença, o ato (diga-se qualquer ato que vise à produção de efeitos)
sequer completa o ciclo de existência.”

A Emenda Constitucional n.º 19, de 1998, introduziu a denominada Administração


Pública Gerencial, cujo chamariz foi a inclusão do princípio da eficiência como norteador da
atuação estatal. Trata-se de grande mudança no cenário jurídico brasileiro, em que sai de cena a
Administração Burocrática, que prioriza a forma ao resultado, para vigorar a Administração
Pública Gerencial, cujo foco repousa justamente no resultado.

Assim, como fruto direto de tal reforma, cumpre ressaltar o advento da Lei n.º 9.784/99,
Lei do Processo Administrativo Federal, a qual assim dispôs em seu Art. 22:

“Art. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma


determinada senão quando a lei expressamente a exigir.”

Da literalidade do dispositivo, extrai-se a existência de duas modalidades da forma:


essencial e não essencial, a depender se afetam ou não a existência e a validade do ato ou
procedimento. Tal distinção faz-se assaz relevante; deveras, quando essencial para a validade do
ato, tratar-se-á de elemento vinculado, acarretando sua inobservância a nulidade plena,
impossibilitadora do juízo de convalidação ou de qualquer aproveitamento. É ato natimorto.
Todavia, quando não se apontar a forma a ser utilizada, ainda que implicitamente, tem-se que
esta não é essencial para a validade do ato, conferindo-se ao Administrador certa
discricionariedade para sua escolha. Nestes casos excepcionais, a forma adotada não poderá
limitar nem inibir o controle pelos órgãos competentes, ou ainda pelo usuário do serviço público.

Acerca das formas essenciais, leciona Dirley da Cunha Júnior que, “quando prescrita em
lei, a forma também é um elemento vinculado de todo e qualquer ato administrativo, ainda que o
ato seja discricionário.” (CUNHA JUNIOR, 2009, p. 120)

Acerca das formas não essenciais, diz Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, pg. 208):

“A obediência à forma não significa, no entanto, que a Administração esteja


sujeita a formas rígidas e sacramentais; o que se exige, a rigor, é que seja
adotada, como regra, a forma escrita, para que tudo fique documentado e
passível de verificação a todo o momento; a não ser que a lei preveja
expressamente determinada forma (como decreto, resolução, portaria, etc.), a
33

Administração pode praticar o ato pela forma que lhe parecer mais adequada.
Normalmente as formas mais rigorosas são exigidas quando estejam em jogo
direitos dos administrados, como ocorre nos concursos públicos, na licitação,
no processo disciplinar.”

4.4.4 Motivo.

Motivo é a situação de direito ou de fato que autoriza ou determina que a Administração


produza determinado Ato Administrativo, sendo, portanto, sempre pré-existente ao Ato. É a
finalidade imediata, o pressuposto fático ou jurídico autorizador da ação do Administrador.

Na lição de Di Pietro (2010, pg. 210):

“Motivo é o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato


administrativo. Pressuposto de direito é o dispositivo legal em que se baseia o
ato. Pressuposto de fato, como o próprio nome indica, corresponde ao conjunto
de circunstâncias, de acontecimentos, de situações que levam a Administração
a praticar o ato.”

Motivo não se confunde com a motivação. Motivo é o pressuposto de fato ou de direito


que autoriza ou determina a atuação administrativa. Motivação é a exposição destes motivos, sua
enunciação, é a demonstração da existência de motivos.

Por vivenciarmos um Estado Democrático de Direito, a motivação surge como elemento


imprescindível para a produção do ato: haja vista o princípio da legalidade, a Administração só
pode fazer aquilo que a Lei determina. Por sua vez, enquanto manifestação da vontade geral, a
lei incorpora e representa o interesse público da sociedade. Assim, o Administrador só pode agir
de forma a atender o interesse público, dele não devendo desviar-se. Portanto, e inclusive para
fins de fiscalização, deve a Administração expor os motivos de sua atuação, sendo esta
dispensada apenas quando a Constituição ou a Lei o fizerem, ou ainda quando a natureza do ato
for com a motivação incompatível. Neste sentido, valiosa é a lição de Di Pietro (2010, pg. 211):

“Entendemos que a motivação é, em regra, necessária, seja para os


atos vinculados, seja para os atos discricionários, pois constitui garantia de
legalidade, que tanto diz respeito ao interessado como à própria Administração
34

Pública; a motivação é que permite a verificação, a qualquer momento, da


legalidade do ato, até mesmo pelos demais Poderes do Estado.”

V.g., a Lei n.º 9.784/99, em seu Art. 50, explicita casos em que a motivação se faz
obrigatória:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação


dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção
pública;
IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;
V - decidam recursos administrativos;
VI - decorram de reexame de ofício;
VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou
discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;
VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de
ato administrativo.

Com vistas a proteger o princípio da moralidade, implantou-se no Brasil a denominada


Teoria dos Motivos Determinantes, que se baseia no princípio de que o motivo apresentado para
a prática do Ato Administrativo deve guardar compatibilidade com a situação fática ou jurídica
que deveras ensejou sua prática. Vincula-se a validade do ato à veracidade dos motivos
apresentados.

Na lição de Hely Lopes Meirelles (2010, pg. 201):

“A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos


administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos
motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que
determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver
perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos
discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como
causa determinante de seu cometimento e se sujeitam ao confronto da
existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade
entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido.”

Em síntese, conforme a referida doutrina, ainda que o ato não exija motivação, caso a
Administração o faça, deverá apresentar motivos existentes e verídicos, sob pena de nulidade do
35

Ato. V.g., o caso em que o diretor de determinada repartição exonera determinado servidor
comissionado que lhe é subordinado, alegando incompetência, quando tal fato é inverídico. In
casu, o ato de exoneração é nulo.

4.4.5 Objeto.

O objeto, também denominado conteúdo, é o teor do Ato Administrativo. É a providência


tomada pelo Administrador para sanar a necessidade que ensejou a prática do ato (motivo) com
vistas a atender a determinado interesse público (finalidade). É o resultado prático, o efeito
jurídico imediato intentado pela Administração.

Para José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 119):

“o objeto, também denominado por alguns autores de conteúdo, é a alteração


no mundo jurídico que o ato administrativo se propõe a processar. Significa,
como informa o próprio termo, o objetivo imediato da vontade exteriorizada
pelo ato, a proposta, enfim, do agente que manifestou a vontade com vistas a
determinado alvo.”

Com efeito, o elemento objeto pode ser vinculado ou discricionário. Todavia, em ambos
os casos, o objeto há de ser lícito, moral, possível e certo ou determinado, sob pena de nulidade
absoluta. Sendo o objeto a providência a ser tomada para sanar determinada necessidade, não há
como se convalidá-lo, ante a impossibilidade de se alterar retroativamente a atuação
administrativa; faz-se necessária a prática de novo ato, distinto, para atender ao interesse público.
Interessante ressalva faz o professor José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 182), ao dizer:

“Também é possível convalidar atos com vício no objeto, ou conteúdo, mas


apenas quando se tratar de conteúdo plúrimo, ou seja, quando a vontade
administrativa se preordenar a mais de uma providência administrativa no
mesmo ato: aqui será viável suprimir ou alterar alguma providência e
aproveitar o ato quanto às demais providências, não atingidas por qualquer
vício. Advirta-se, contudo, que se o objeto ou conteúdo do ato for único, não
haverá como saná-lo: a correção será necessária por ato de anulação.”
36

4.5 Dos atos administrativos vinculados e discricionários .

Por força do disposto no Art. 37, caput, da Constituição Federal, a Administração Pública
Direta e Indireta de quaisquer dos poderes da União, Estado, Distrito Federal e Municípios
devem obedecer, dentre outros, ao princípio da Legalidade.

Vale dizer, a Administração Pública encontra sua atuação vinculada à supremacia da lei
(latu sensu); não pode o Administrador agir contra legem, sem lei ou ainda ao arrepio da Lei.
Trata-se de forma encontrada pelo Constituinte para resguardar os interesses da sociedade,
possibilitando o controle da atuação Administrativa, seja pela própria Administração, seja pela
população.

Porém, tal vinculação ocorre em distintos graus, embora seja sempre presente. É que, em
certos casos, a própria lei confere ao Administrador certa liberdade para, exercendo juízo de
conveniência e oportunidade, escolher, dentre as estabelecidas em lei, a medida que melhor
atenda ao interesse público. Os atos que comportam referida liberdade denominam-se atos
discricionários.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, pg. 424):

“Atos ditos discricionários e que melhor se denominariam atos praticados no


exercício de competência discricionária - os que a Administração pratica
dispondo de certa margem de liberdade para decidir-se, pois a lei regulou a
matéria de modo a deixar campo para uma apreciação que comporta certo
subjetivismo.”

Na doutrina de Nivaldo Azevedo (2011, pg. 256):

“Atos discricionários – são aqueles que a lei confere liberdade de ação/opção


ao administrador para praticar o ato. Apenas parte dos requisitos é detalhada
previamente em lei (competência, finalidade e forma), os demais – motivo e
objeto – a lei coloca a cargo da autoridade competente a sua valoração e
definição. Ex.: autorização para porte de arma, escolha da penalidade
administrativa a ser aplicada ao caso concreto etc.”
37

De sua vez, os atos que não comportam qualquer juízo de conveniência e oportunidade,
vale dizer, que não albergam qualquer liberdade de atuação para o Administrador, atos cujos
elementos encontram-se estritamente detalhados à lei, denominam-se atos vinculados. Para Celso
Antônio Bandeira de Mello (2010, pg. 424-425), “atos vinculados - os que a Administração
pratica sem margem alguma de liberdade para decidir-se, pois a lei previamente tipificou o
único possível comportamento diante de hipótese prefigurada em termos objetivos”.

Para José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 143):

“Atos vinculados, como o próprio adjetivo demonstra, são aqueles que o agente
pratica reproduzindo os elementos que a lei previamente estabelece. Ao agente,
nesses casos, não é dada liberdade de apreciação da conduta, porque se limita,
na verdade, a repassar para o ato o comando estatuído na lei. Isso indica que
nesse tipo de atos não há qualquer subjetivismo ou valoração, mas apenas a
averiguação de conformidade entre o ato e a lei. Exemplo de um ato vinculado:
a licença para exercer profissão regulamentada em lei. Os elementos para o
deferimento desse ano já se encontram na lei, de modo que ao agente caberá
apenas verificar se quem o reivindica preenche os requisitos exigidos e, em
caso positivo, deverá conferir a licença sem qualquer outra indagação.”

No sentir de Nivaldo Azevedo (2011, pg. 256):

“Nos atos vinculados a lei estabelece os requisitos e as condições de sua


realização. Consequentemente, na prática de tais atos o Poder Público sujeita-
se às indicações legais ou regulamentares e delas não se pode afastar ou
desviar sem viciar irremediavelmente a ação administrativa. O ponto nodal dos
atos vinculados é que neles não há liberdade de ação para o administrador
público, que se transforma em mero executor da ‘voluntas legis’ (vontade da
lei). A ação administrativa se torna retrato fiel do conteúdo e da disciplina
legal.“

Conforme dito, a discricionariedade consiste em um juízo de conveniência e


oportunidade para a prática do ato. Para José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 54):

“(...) conveniência e oportunidade são os elementos nucleares do poder


discricionário. A primeira indica em que condições vai se conduzir o agente; a
segunda diz respeito ao momento em que a atividade deve ser produzida.
Registre-se, porém, que essa liberdade de escolha tem que se conformar com o
fim colimado na lei, pena de se não ser atendido o objetivo público da ação
administrativa.”
38

Discricionariedade é liberdade que repousa sobre os elementos motivo e objeto, os únicos


que a comportam. É o caso de agente de saúde que, em vistoria a determinado estabelecimento,
encontra cinco mercadorias, dentre milhares, com o prazo de validade ultrapassado. Dentre as
hipóteses previstas à lei, referido agente pode advertir o proprietário do estabelecimento, impor
multa ou ainda interditar o edifício até o saneamento das irregularidades.

Assim, ao aplicar a sanção, deverá o agente realizar o juízo de mérito (avaliação da


oportunidade para a aplicação das sanções – motivo – e da conveniência da sanção aplicada –
objeto) para que, atendendo ao princípio da razoabilidade, aplique a sanção que atenda ao
interesse público e cause menor prejuízo ao usuário. Nivaldo Azevedo (2011, pg. 257) assim
define o Mérito Administrativo:

“Mérito Administrativo é a liberdade conferida pela lei ao Administrador para,


diante dos elementos materiais e concretos da situação fática, decidir qual a
melhor providência a ser adotada para proteger o interesse público. É
liberdade para definir qual necessidade vai servir de fundamento para a ação
administrativa e qual resultado ela terá de alcançar.”

Em memorável voto, o então Des. Seabra Fagundes assim leciona sobre a


discricionariedade administrativa:

“A competência discricionária não se exerce acima ou além da lei, senão,


como toda e qualquer atividade executória, com sujeição a ela. O que a
distingue da competência vinculada é a maior mobilidade que a lei enseja ao
executor no exercício, e não na liberação da lei. Enquanto ao praticar o ato
administrativo vinculado a autoridade está presa à lei em todos os seus
elementos (competência, motivo, objeto, finalidade e forma), no praticar o ato
discricionário é livre (dentro de opções que a própria lei prevê) – quanto à
escolha dos motivos (oportunidade e conveniência) e do objeto (conteúdo).
Entre praticar o ato ou dele se abster, entre praticá-lo com este ou aquele
conteúdo (por exemplo: advertir apenas ou proibir), ela é discricionária.
Porém, no que concerne à competência, à finalidade e à forma, o ato
discricionário está tão sujeito aos textos legais como qualquer outro”(TJRN –
RDA 14/52).

Na atualidade, a discricionariedade é de existência necessária para o bom funcionamento


do estado. A própria limitação do poder político, no sentido da impossibilidade de prever em
39

norma abstrata todas as possibilidades do mundo fenomênico, justifica sua existência. Neste
sentido, leciona Nivaldo Azevedo (2011, pg. 257):

“A discricionariedade administrativa encontra fundamento e justificativa na


complexidade e variedade dos problemas que o Poder Público tem que
solucionar a cada passo e para os quais a lei, por mais casuística que fosse,
não poderia prever todas as soluções, ou, pelo menos, a mais vantajosa para
cada caso ocorrente.”

Ressaltando a diferença entre discricionariedade (liberdade legítima) e arbitrariedade


(atuação ao arrepio da Lei), logo em seguida arremata:

“A atividade discricionária não dispensa a lei, nem se exerce sem ela, senão
com observância e sujeição a ela. Logo, discrição e arbítrio são conceitos
inteiramente diversos. Discrição é liberdade de ação dentro dos limites legais;
arbítrio é ação contrária, ao arrepio ou excedente da lei.”

Vale ressaltar que referida liberdade, quando conferida, repousa tão somente sobre o
motivo e o objeto, permanecendo a competência, a finalidade e a forma como elementos
vinculados. A discricionariedade jamais será total. Daí dizer inexistirem Atos Administrativos
plenamente discricionários. Ademais, ainda que quando presente o juízo de mérito, deve-se
sempre agir de maneira a atender ao interesse público. Não deve o Administrador, sob pretexto
do mérito administrativo, desviar-se de suas finalidades; a subversão da supremacia do interesse
público para atender a interesses privados caracteriza abuso de poder na modalidade desvio de
poder ou de finalidade, que acarretará, inexoravelmente, a nulidade absoluta do Ato.

4.6 Considerações pessoais.

Nos dizeres do professor Carvalho Filho, “a teoria do ato administrativo compõe, sem
qualquer dúvida, o ponto central do estudo do Direito Administrativo, como, aliás,
oportunamente anota MARCELO CAETANO.” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 105)
40

Com efeito, enquanto principal instrumento da atuação administrativa, pode concluir-se


que o surgimento de diversas teorias relativas ao ato, bem como a seus efeitos, têm contribuído
para o melhor atendimento do interesse público.

A análise detida dos conceitos, elementos e aspectos relevantes dos Atos Administrativos,
porquanto permite a gênese de novas teorias, auxilia na busca por melhores práticas
administrativas.
41

5. DO CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Administração, enquanto ente encarregado da consecução do interesse público, deve


obediência a normas e princípios jurídicos, mormente os componentes do Regime Jurídico
Administrativo (Supremacia do Interesse Público sobre o privado e Indisponibilidade, pela
Administração, dos Interesses Públicos) e os estabelecidos na Constituição Federal (Legalidade,
Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência).

Tal fato se impõe em virtude do desenvolvimento dos Direitos e Garantias Fundamentais,


mormente os pertencentes à primeira dimensão (liberdades negativas): ao Estado tudo se veda, à
exceção daquilo que a Lei lhe permite. Sob pena de flagrante ilegitimidade, não há ação estatal
sem Lei, nem atividade desvirtuada do interesse público, já que a Lei é a expressão da vontade
popular, o Interesse Público.

De fácil compreensão, portanto, que, considerando que a Atividade Administrativa possui


regramentos, limitações e condicionamentos, para que possa atuar de maneira legítima, impõe-se
seja realizada a fiscalização do atendimento de tais pressupostos. Assim, à atividade de
fiscalização e controle de atividades e resultados dá-se o nome de Controle da Administração.

5.1 Conceito de controle.

O Controle Administrativo pode ser conceituado como sendo o dever-poder de vigilância,


orientação e correção que a Administração exerce, ex-officio ou mediante provocação, sobre seus
próprios atos ou sobre os atos de outra entidade. Sem prejuízo, configura atividade de controle
ainda a fiscalização exercida por um poder (mormente o Judiciário) sobre os Atos de outro.

Neste sentido, ensina Hely Lopes Meirelles (2012, pg. 728) ao dizer que o controle da
administração é “a faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou
autoridade exerce sobre a conduta funcional do outro”
42

Para o Professor José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 1021), controle é “conjunto
de mecanismos jurídicos e administrativos por meio dos quais se exerce o poder de fiscalização
e de revisão da atividade administrativa em qualquer das esferas de Poder”.

5.2 Das modalidades de controle.

Sem prejuízo de outras classificações existentes na Doutrina, o Controle Administrativo


pode ser considerado a partir dos seguintes enfoques, conforme se vê da doutrina de LUCIANO
FERRAZ (1999):

1) Quanto ao momento de seu exercício (Controle prévio/preventivo, controle


concomitante e controle posterior/corretivo);

2) Quanto à origem ou extensão (Controle interno, controle externo, controle popular);

3) Quanto ao aspecto controlado (Controle de legalidade/legitimidade e controle de


mérito);

Analisemo-los genericamente, apontando suas principais características.

5.2.1 Quanto ao momento do exercício do controle.

Será prévio/preventivo o controle realizado antes da consumação da conduta


administrativa. Neste caso, importa tão somente que este se dê antes da consumação dos efeitos
do ato, protegendo os interesses sociais de eminente lesão ou ameaça a direito. V.g., é o caso do
43

Mandado de Segurança impetrado contra ato prestes a ser praticado contra expressa
determinação legal. Exemplificando-se:

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA


PREVENTIVO. ICMS. CONSUMO DE ENERGIA ELÉTRICA E UTILIZAÇÃO
DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO. CREDITAMENTO. REGIME DE
SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. SÚMULA 213 DO STJ. (...) 3.
"Especificamente em matéria tributária, para que se torne cabível a impetração
de mandado de segurança preventivo, não é necessário esteja consumado o fato
imponível. Basta que estejam concretizados fatos dos quais logicamente
decorra do fato imponível. Em síntese e em geral, o mandado de segurança é
preventivo quando, já existente ou em vias de surgimento a situação de fato
que ensejaria a prática do ato considerado ilegal, tal ato ainda não tenha sido
praticado, existindo apenas o justo receio de que venha a ser praticado pela
autoridade impetrada. É preventivo porque destinado a evitar a lesão ao
direito, já existente ou em vias de surgimento, mas pressupõe a existência da
situação concreta na qual o impetrante afirma residir ou dela recorrer o seu
direito cuja proteção, contra a ameaça de lesão, está a reclamar do
Judiciário. (...) Insistimos, todavia, em que a ameaça de prática de ato abusivo,
pela autoridade da administração tributária, decorre da edição de norma que
lhe caiba aplicar, e que seja desprovida de validade jurídica. Lei
inconstitucional, ou norma inferior, ilegal. (Hugo de Brigo Machado. In
Mandado de Segurança em matéria tributária.) 4. Deveras, encerrando o
lançamento atividade vinculada (art. 142 do CTN) e a fortiori, obrigatória,
revela-se a juridicidade da ação preventiva. É que para propor a ação é mister
interesse de agir que surge não só diante da lesão, mas, também, ante a
ameaça da mesma (Lei 1.533/51, art. 1º). 5. Recurso especial provido para o
retorno dos autos com o julgamento do mandamus. (REsp 652414/MG, Rel.
Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/12/2004, DJ
28/02/2005, p. 235)”

Concomitante é o controle exercido durante o aperfeiçoamento do ato. É o caso, por


exemplo, de anulação de determinados atos de processo administrativo disciplinar praticados por
servidor que não havia se declarado impedido, prejudicando assim a parcialidade da atuação
administrativa; ou ainda a anulação de etapas de procedimento licitatório em virtude de falsa
indicação de créditos orçamentários.

Sua verificação, todavia, não se adstringe a procedimentos administrativos.

Determinados atos, por sua própria natureza, exigem, para seu aperfeiçoamento, a
manifestação de vontade de mais de um órgão, seja ela acessória (ato composto) ou
simplesmente necessária (ato complexo). É o caso de nomeação de membros para o Supremo
Tribunal Federal, que exige a aprovação da maioria absoluta do Senado Federal após a indicação
pela Presidência da República, ou ainda o ato de aposentação inicial de servidor público, que se
completa apenas após o registro no Tribunal de Contas da União. Veja que, nestes casos, a
44

manifestação de outro órgão é conditio sine qua non de existência do ato administrativo, e se dá
na forma prevista pela legislação.

Assim, caso haja qualquer irregularidade, esta pode ser suscitada pelos referidos órgãos, a
fim de que se faça a devida correção (por exemplo, a invalidação de indicação de brasileiro
naturalizado para a composição do Supremo Tribunal Federal, ou ainda a concessão pelo órgão
originário de aposentadoria por tempo de contribuição a servidor que não preencheu todos os
requisitos estabelecidos na legislação).

Aliás, há de se ressaltar também a possibilidade de auditoria realizada pelo Tribunal de


Contas da União ou pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), CNMP (Conselho Nacional do
Ministério Público) ou CJF (Conselho da Justiça Federal) nas respectivas unidades controladas,
cuja precípua finalidade é o controle administrativo e financeiro, seja prévio, concomitante ou à
posteriori.

Por fim, há o controle posterior/repressivo, que se realiza após a prática do ato, como, por
exemplo, a invalidação da nomeação de servidor nomeado a determinado cargo público de
provimento efetivo sem que tenha sido previamente aprovado em concurso de provas ou de
provas e títulos, a despeito do que preceitua o Art. 37, II, da Constituição Federal. Há portanto
uma ação administrativa escoimada de ilegalidade ou ilegitimidade, detectada após a produção
de seus efeitos.

5.2.2 Quanto à origem ou extensão.

O Controle ainda pode ser denominado interno ou externo. Neste sentido, ensina o
professor Bandeira De Mello (2010, pg. 937):

“A Administração Pública, direta ou fundacional, assujeita-se a contrtoles


internos e externos. Interno é o controle exercido por órgãos da própria
Administração, isto é, integrantes do aparelho do Poder Executivo. Externo é o
efetuado por órgãos alheios à Administração.”
45

À luz da doutrina, a visão de controle interno ou externo delineia-se sob a ótica de


organização administrativa, bem como da repartição funcional. Assim, será externo o controle
realizado:

a) Por uma pessoa sobre outra (União sobre Autarquias, fundações ou outras
entidades administrativas a ela vinculadas);
b) Por um poder sobre outro (Legislativo sobre atos do executivo, ou o Judiciário
sobre o legislativo ou executivo)
c) Pelo TCU em atos do Legislativo, Executivo ou Judiciário.

Note-se que pressuposto fundamental da externalidade do controle é a existência de dois


entes ou poderes/funções, a pluralidade e sujeitos. Haverá, sempre, dois entes, ou duas funções
díspares: o controlador e o controlado. Assim define Hely Lopes Meirelles (2012, pg. 731) o
Controle Externo, como sendo:

“O que se realiza por um Poder ou órgão constitucional independente


funcionalmente sobre a atividade administrativa de outro Poder estranho à
Administração responsável pelo ato controlado, como, p. Ex., a apreciação das
contas do Executivo e do Judiciário pelo Legislativo; a auditoria do Tribunal
de Contas sobre a efetivaçxão de determinada despesa do Executivo; a
anulação de um ato do executivo pelo Legislativo (CF, art. 49, V); a
instauração de inquérito civil pelo Ministério Público sobre determinado ato ou
contrato administrativo, ou a recomendação, por ele feita, ‘visando à melhoria
dos serviços públicos`, fixando ‘prazo razoável para a adoção das providências
cabíveis` (art. 6, XX, da Lei Complementar 75, de 2.5.93).”

Diferente é a condição do controle interno, em que a figura de controlador e controlado


recai sobre a mesma entidade ou função, a exemplo da fiscalização exercida sobre o CNJ sobre
os órgãos do Poder Judiciário que não o STF, ou ainda da CJF sobre a Justiça Federal, o CNMP
sobre o Ministério Público, ou, no âmbito do Executivo, a Controladoria Geral da União (CGU).

Nas palavras de Hely Lopes Meirelles (2012, pg. 730):

“Controle interno é todo aquele realizado pela entidade ou órgão responsável


pela atividade controlada, no âmbito da própria Administração. Assim,
qualquer controle efetivado pelo Executivo sobre seus serviços ou agentes é
considerado interno, como interno será também o controle do Legislativo ou
46

do Judiciário, por seus órgãos de administração, sobre seu pessoal e os atos


administrativos que pratiquem.”

Neste viés, embora compreenda a mais abalizada doutrina constitucionalista ser o


controle do CNJ modalidade de controle externo, o STF, adotando o posicionamento
administrativista, já se manifestou no sentido de ser o CNJ órgão de controle administrativo
interno:

“E M E N T A: MANDADO DE SEGURANÇA – CONSELHO NACIONAL DE


JUSTIÇA (CNJ) - DELIBERAÇÃO NEGATIVA QUE, EMANADA DO CNJ,
RECONHECEU A INCOMPETÊNCIA DESSE ÓRGÃO DE CONTROLE
INTERNO DO PODER JUDICIÁRIO PARA INTERVIR EM PROCESSOS
DE NATUREZA JURISDICIONAL - INEXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE, DE
QUALQUER RESOLUÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA QUE
HAJA DETERMINADO, ORDENADO, INVALIDADO, SUBSTITUÍDO OU
SUPRIDO ATOS OU OMISSÕES EVENTUALMENTE IMPUTÁVEIS A
MAGISTRADO DE JURISDIÇÃO INFERIOR - NÃO CONFIGURAÇÃO, EM
REFERIDO CONTEXTO, DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL - HIPÓTESE DE INCOGNOSCIBILIDADE DA AÇÃO
DE MANDADO DE SEGURANÇA - INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, NÃO OBSTANTE ÓRGÃO DE
CONTROLE INTERNO DO PODER JUDICIÁRIO, PARA INTERVIR EM
PROCESSOS DE NATUREZA JURISDICIONAL - IMPOSSIBILIDADE
CONSTITUCIONAL DE O CNJ (QUE SE QUALIFICA COMO ÓRGÃO DE
CARÁTER EMINENTEMENTE ADMINISTRATIVO) FISCALIZAR,
REEXAMINAR E SUSPENDER OS EFEITOS DECORRENTES DE ATO DE
CONTEÚDO JURISDICIONAL - PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL - MAGISTÉRIO DA DOUTRINA – RECURSO DE AGRAVO A QUE
SE NEGA PROVIMENTO. RESOLUÇÕES NEGATIVAS DO CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, DESPOJADAS DE CONTEÚDO DELIBERATIVO,
POR NADA DETERMINAREM, SÃO INSUSCETÍVEIS DE CONTROLE PELO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM SEDE MANDAMENTAL ORIGINÁRIA.
(...) (MS 28.598-MC-AgR/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno, v.g.). (MS
27148 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em
11/05/2011, DJe-098 DIVULG 24-05-2011 PUBLIC 25-05-2011 EMENT VOL-
02529-01 PP-00184)”

Por sua vez, cabe ainda destacar a existência do controle popular, como sendo aquele
exercido pela população, seja através do Direito de Petição (Art. 5º, XXXIV, “a”, CF), seja
através do Mandado de Segurança, Ação Popular, (Art. 5º, LXIX e LXXIII, CF) plebiscito ou
referendo (Art. 14, I e II, CF), ou outros instrumentos previstos, tal como a verificação das
contas dos Municípios, que, por força do Art. 31, §3º da Constituição, devem ficar à disposição
de qualquer contribuinte, que pode questionar-lhes a validade.
47

5.2.3 Quanto aos aspectos controlados.

Pode incidir o controle sobre aspectos de legalidade ou legitimidade, quanto também


sobre aspectos de conveniência e oportunidade (controle de mérito).

Embora há pouco tempo o controle de legitimidade restringisse-se tão somente a


compatibilidade da ação à lei formal, é certo que a evolução do pensamento não mais permite
estrito raciocínio.

Ora, atualmente já se conferem aos princípios amplo valor normativo, e as normas


constitucionais, explícitas ou implícitas, gozam de superioridade no ordenamento, porquanto
substanciam seu fundamento de validade. Destarte, não basta mais a compatibilidade à
literalidade normativa: há de haver integração com o todo orgânico da visão conglobante do
Direito. Vale dizer: na atualidade, o controle de legalidade ou legitimidade visa aferir a
compatibilidade da atuação administrativa ao ordenamento jurídico, considerando-se não só as
leis, mas também princípios, explícitos e implícitos, legais e constitucionais. Neste sentido,
leciona Hely Lopes Meirelles (2012, pg. 732):

“Controle de legalidade ou de legitimidade é o que objetiva verificar


unicamente a conformação do ato ou do procedimento administrativo com as
normas legais que o regem. Mas por legalidade ou legitimidade deve-se
entender não só o atendimento das normas legisladas como, também, dos
preceitos da Administração pertinentes ao ato controlado”.

Conclui-se, portanto, ser amplo o controle de legitimidade passível de ser exercido sobre
os atos, de sorte que, ainda que se atenda à literalidade normativa, o desrespeito a determinado
princípio ou a realização de interpretação incompatível com a constituição enseja a invalidação
do ato, ou sua convalidação, se possível.

Por sua vez, o controle de mérito é aquele que incide não sobre aspectos atinentes à
legalidade objetiva, mas sim aos aspectos de conveniência e oportunidade, que configuram o
mérito administrativo. Ainda nas palavras de Hely Lopes Meirelles (2012, pg. 732), “controle de
48

mérito é todo aquele que visa à comprovação da eficiência, do resultado, da conveniência ou


oportunidade do ato controlado.”

Com efeito, o mérito administrativo pode ser sintetizado como sendo a liberdade
administrativa institucionalizada. É a liberdade nos termos da Lei. É o caso de agente de saúde
que, em vistoria a determinado estabelecimento, encontra poucas mercadorias, dentre inúmeras,
em desconformidade com os padrões estabelecidos na legislação vigente. Dentre as hipóteses
previstas, referido agente pode advertir o proprietário do estabelecimento, impor multa ou ainda
interditar o edifício até o saneamento das irregularidades.

Assim, ao aplicar a sanção, deverá o agente realizar o juízo de mérito (avaliação da


oportunidade para a aplicação das sanções – motivo – e da conveniência da sanção aplicada –
objeto) para que, atendendo ao princípio da razoabilidade, aplique sanção que melhor atenda ao
interesse público e cause menor prejuízo ao usuário.

Colocando-se lado a lado ambos os aspectos a serem controlados, torna-se fácil notar que
o controle de legitimidade se atém a aspectos abstratos, à Lei em sua abstração, enquanto o
controle de mérito (e aqui considerado tão somente o mérito e não outros aspectos de
legitimidade) correlaciona-se a aspectos práticos, concretos (avaliação da situação ensejadora da
atuação administrativa e ponderação da medida adequada – oportunidade e conveniência).

5.3 Do controle jurisdicional do mérito dos atos administrativos – visão


doutrinária e evolução.

Ao Poder Judiciário conferiu-se a prerrogativa de dizer, com força definitiva, se


determinado é contrário ou não ao ordenamento jurídico, valer dizer, se contrário ou conforme o
Direito. Não há dúvidas de que se lhe dotou ampla legitimidade para exercer controle sobre
aspectos de legalidade. Todavia, seria possível o controle sobre tão somente aspectos de mérito,
ainda que não se vislumbre violação a pressupostos legais?

O Controle Jurisdicional realizado sobre atos praticados por outro Poder, como se disse, é
externo, e, por tal motivo, é exercido sobre atividades que geralmente não integram o rol das
competências precípuas do ente controlador. Afinal, ao Judiciário não se conferiram as
49

competências natas para, por exemplo, prestar serviços públicos, ou explorar atividade
econômica nos casos previstos na Constituição. Portanto, deve-se levar em consideração que, ao
controlar atos de tal natureza, ainda que com embasamento em preceitos legais, estará, na grande
maioria das vezes, a analisar atos de características estranhas à função que desempenha, atos com
os quais possui pouca afinidade.

Além disso, os atos que não possuem qualquer ilegitimidade foram praticados conforme a
Lei e, consequente e teoricamente, atenderam ao interesse público que os ensejou. Diante de tal
cenário, pergunta-se: qual seria a necessidade de o Poder Judiciário analisar, repise-se, ausente
qualquer violação às leis, o mérito administrativo?

Ademais, considerando ser o controle jurisdicional dos atos do executivo uma


modalidade de controle externo - e, conforme se disse, controle a ser exercido sobre atividades
para as quais o controlador não possui a nata competência - qual seria a legitimidade do
Judiciário para, em local distante do interesse público, reavaliar o juízo realizado por aquele que
vivenciou a situação ensejadora da prática do ato discricionário?

Seguindo-se tal linha, a resposta impõe-se quase uníssona pela doutrina: não pode o
Poder Judiciário ponderar o mérito dos Atos Administrativos praticados por outro poder, sob
pena de flagrante e grave violação à tripartição de poderes. Ensina Hely Lopes Meirelles (2012,
pg. 732):

“Daí por que esse controle compete normalmente à Administração, e, em casos


excepcionais, expressos na Constituição, ao Legislativo (CF, art. 49, IX e X),
mas nunca ao Judiciário. A eficiência é comprovada em face do
desenvolvimento da atividade programada pela Administração e da
produtividade de seus servidores; o resultado é aferido diante do produto final
do programa de trabalho, levando-se em conta o trinômio custo-tempo-
benefício; a conveniência ou oportunidade é valorada internamente pela
Administração - e unicamente por ela - para a prática, abstenção, modificação
ou revogação do ato de sua competência. Vê-se, portanto, que a verificação da
eficiência e do resultado é de caráter eminentemente técnico, vinculada a
critérios científicos, ao passo que o juízo da conveniência ou oportunidade é
fundamentalmente político-administrativo e discricionário, razão pela qual o
controle daquelas condições (eficiência e resultado) pode ser exercido por
órgão especializado até mesmo estranho à Administração e o desta
(conveniência e oportunidade) é privativo das chefias do Executivo e, nos casos
constitucionais, por órgão do Legislativo em funções político-administrativas.
[...], para plena consecução de seus objetivos, os controles podem ser
combinados e conjugados nos seus tipos e formas de atuação. Assim, um ato do
Executivo, sujeito a controle externo e prévio do Legislativo, pode ser
submetido posteriormente ao controle interno e concomitante da própria
Administração e, a final, sujeitar-se ao controle de legalidade do Judiciário, se
50

argüido de lesivo ao direito individual do postulante de sua anulação ou ao


patrimônio público.”

Igualmente, leciona José dos Santos Carvalho Filho (2010, pg. 1105-1106):

“O que é vedado ao Judiciário, como corretamente têm decidido os Tribunais,


é apreciar o que se denomina normalmente de mérito administrativo, vale dizer,
a ele é interditado o poder de reavaliar critérios de conveniência e
oportunidade dos atos, que são privativos do administrador público. Já tivemos
a oportunidade de destacar que, a se admitir essa reavaliação, estar-se-ia
possibilitando que o juiz exercesse também função administrativa, o que não
corresponde obviamente à sua competência. Além do mais. A invasão de
atribuições é vedada na Constituição e, face do sistema da tripartição de
Poderes (art. 2º). Alguns autores têm cometido o exagero de ampliar os limites
de atuação do Judiciário, invocando princípios que, em última análise, acabam
por recair no aspecto fundamental – o exame de legalidade. A despeito dessa
evidente distorção, os Tribunais, sensíveis às linhas que demarcam a atuação
dos Poderes, têm sistematicamente rejeitado essa indevida ampliação e
decidido que o controle do mérito dos atos administrativos é da competência
exclusiva da Administração.”

Manifesta-se também Di Pietro (2010, pg. 217):

“Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é possível mas terá
que respeitar a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é
assegurada à Administração Pública pela Lei. Isso ocorre precisamente pelo
fato de ser a discricionariedade um poder delimitado previamente pelo
legislador; este, ao definir determinado ato, intencionalmente deixa um espaço
para livre decisão da Administração Pública, legitimando previamente a sua
opção; qualquer delas será legal. Daí porque não pode o Poder Judiciário
invadir esse espaço reservado, pela lei, ao administrador, pois, caso contrário,
estaria substituindo, por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima
feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e
conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso
concreto.”

Todavia, impõe-se a recordação de que, em um Estado Democrático de Direito, é


inaceitável a prática administrativa que, ainda que discricionária, atente contra a finalidade
pública. Afinal, conforme se vislumbrou, o princípio da razoabilidade atua sobre o motivo e o
objeto do ato, instituindo os limites à discricionariedade. A discricionariedade não é escudo
normativo a permitir a atuação arbitrária.
51

Assim, determinada atuação, prevista pela legislação, caso não guarde


proporção/razoabilidade com o motivo que a enseja e a finalidade pública a ser atingida, viola os
princípios norteadores do Direito, ocasionando, sobre o ato, especificamente sobre o mérito,
absoluta ilegitimidade, de tal sorte que o mesmo se torna passível de análise e inclusive de
desconstituição pelo poder Judiciário.

Em síntese, admite-se, nesta estreita hipótese, a análise jurisdicional sobre o mérito


Administrativo: quando a medida tomada é desproporcionalmente gravosa, tendo em vista os
fins visados, porquanto se configura, em tal caso, verdadeira ilegalidade.

Veja-se a lição do professor Bandeira De Mello (2010, pg. 109):

“Não se imagine que a correção judicial baseada na violação do princípio da


razoabilidade invade o ‘mérito’ do ato administrativo, isto é, o campo de
liberdade conferido pela lei à Administração para decidir-se segundo uma
estimativa da situação e critérios de conveniência e oportunidade. Tal não
ocorre porque a sobredita liberdade é liberdade dentro da lei, vale dizer,
segundo as possibilidades nela comportadas. Uma providência desarrazoada,
consoante dito, não pode ser havida como comportada pela lei. Logo, é ilegal:
é desbordante nos limites dela admitidos. Certamente cabe admitir que, embora
a discricionariedade exista para que o administrador adote a providência
ótima para o caso, inúmeras vezes, se não na maioria delas, nem ele nem
terceiro pode desvendar com certeza inobjetável qual seria esta providência
ideal. É exato, pois, que, existindo discrição, é ao administrador – e não ao juiz
– que cabe decidir sobre qual seria a media adequada.”

Aliás, tal tem sido o entendimento paulatinamente adotado pelos tribunais pátrios,
conforme se vê das ementas transcritas com grifos do autor:

“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL


NO RECURSO ESPECIAL. EXAME DA OAB. REVISÃO DE QUESTÃO
SUBJETIVA REFERENTE À SEGUNDA FASE. LIMINAR CONCEDIDA E
CONFIRMADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. ALEGAÇÃO DE INCURSÃO
DO PODER JUDICIÁRIO NO CHAMADO MÉRITO ADMINISTRATIVO.
SITUAÇÃO CONSOLIDADA POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL
PROFERIDA HÁ MAIS DE 6 ANOS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO PODER
PÚBLICO E A QUEM QUER QUE SEJA. AGRAVO REGIMENTAL
DESPROVIDO. 1. A existência de situação consolidada ex ope temporis, há
mais de seis anos, impõe que seja mantido o acórdão do Tribunal de origem,
que determinou a revisão da pontuação na prova prático-profissional da ora
agravada, com a consequente tramitação de seu exame da Ordem, com a nota
revisada, de sorte que a parte originalmente beneficiada pela medida judicial,
não seja prejudicada pela posterior desconstituição da decisão que lhe conferiu
o direito pleiteado inicialmente, quando se verifica que a manutenção do ato
52

em nada prejudicará o Poder Público, ou quem quer que seja. 2. Na presente


situação, não há negar que o préstimo da jurisdição produz efeitos
consistentes, que somente devem ser desconstituídos se a sua manutenção lesar
gravemente a parte desfavorecida ou a ordem jurídica; não se afastam os
efeitos da decisão quando não presentes essa lesão ou essa ameaça de lesão. 3.
Outrossim, a antiga doutrina que vedava ao Judiciário analisar o mérito dos
atos da Administração, que gozava de tanto prestígio, não pode mais ser
aceita como dogma ou axioma jurídico, eis que obstaria, por si só, a
apreciação da motivação daqueles atos, importando, ipso facto, na exclusão
apriorística do controle dos desvios e abusos de poder, o que seria
incompatível com o atual estágio de desenvolvimento da Ciência Jurídica e do
seu propósito de estabelecer controles sobre os atos praticados pela
Administração Pública, quer sejam vinculados (controle de legalidade), quer
sejam discricionários (controle de legitimidade). 4. Agravo Regimental da
Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Paraná desprovido. (AgRg no
AgRg no REsp 1213843/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 14/09/2012)”

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC.


INOCORRÊNCIA. IPI. ALÍQUOTA ZERO. NECESSIDADE DE
COMPROVAÇÃO DA COMPOSIÇÃO QUÍMICA DA MATÉRIA-PRIMA
UTILIZADA NA INDUSTRIALIZAÇÃO DE PRODUTOS. REQUERIMENTO
DE PROVA PERICIAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL.
DEFERIMENTO OU INDEFERIMENTO. PODER DISCRICIONÁRIO DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 18 DO DECRETO N. 70.235/72.
POSSIBILIDADE DE CONTROLE PELO JUDICIÁRIO. (...) 2. Hoje em
dia, parte da doutrina e da jurisprudência já admite que o Poder Judiciário
possa controlar o mérito do ato administrativo (conveniência e oportunidade)
sempre que, no uso da discricionariedade admitida legalmente, a
Administração Pública agir contrariamente ao princípio da razoabilidade.
Lições doutrinárias. 3. Isso se dá porque, ao extrapolar os limites da
razoabilidade, a Administração acaba violando a própria legalidade, que, por
sua vez, deve pautar a atuação do Poder Público, segundo ditames
constitucionais (notadamente do art. 37, caput). (...) Como dito anteriormente,
tem-se aqui clássica situação em que, a pretexto de um juízo de conveniência
e oportunidade, o Poder Público acaba indo de encontro à legalidade. 8.
Recurso especial não-provido. (REsp 778648/PE, Rel. Ministro MAURO
CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/11/2008, DJe
01/12/2008)”

“ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS


DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO
ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO. 1. Na atualidade, a Administração
pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e
oportunidade do ato administrativo. 2. Comprovado tecnicamente ser
imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do
solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la. 3. O Poder
Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da
administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e
oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de
moralidade e razoabilidade. 4. Outorga de tutela específica para que a
Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la. 5. Recurso
53

especial provido. (REsp 429570/GO, Rel. Ministra ELIANA CALMON,


SEGUNDA TURMA, julgado em 11/11/2003, DJ 22/03/2004, p. 277)”

Em seu voto, a relatora assim se posiciona, sem grifos na origem:

"Ao longo de vários anos, a jurisprudência havia firmado o entendimento de


que os atos discricionários eram insusceptíveis de apreciação e controle pelo
Poder Judiciário. Tratava-se de aceitar a intangibilidade do mérito do ato
administrativo, em que se afirmava, pelo fato de ser a discricionariedade
competência tipicamente administrativa, que o controle jurisdicional implicaria
ofensa ao princípio da Separação dos Poderes. Não obstante, a necessidade de
motivação e controle de todos os atos administrativos, de forma
indiscriminada, principalmente, os em que a Administração dispõe da
faculdade de avaliação de critérios de conveniência e oportunidade para
praticá-los, isto é, os atos classificados como discricionários, é matéria que se
encontra, atualmente, pacificada pela imensa maioria da doutrina e,
fortuitamente, aos poucos acolhida na jurisprudência de maior vanguarda. O
controle dos atos administrativos, mormente os discricionários, onde a
Administração dispõe de certa margem de liberdade para praticá-los, é
obrigação cujo cumprimento não pode se abster o Judiciário, sob a alegação
de respeito ao princípio da Separação dos Poderes, sob pena de denegação da
prestação jurisdicional devida ao jurisdicionado. Como cediço, a separação
das funções estatais, prevista, inicialmente, por Rousseau e aprimorada por
Montesquieu, desde que se concebeu o sistema de freios e contrapesos, no
Estado Democrático de Direito, tem se entendido como uma operação dinâmica
e concertada. Explico: As funções estatais, Executivo, Legislativo e Judiciário
não podem ser concebidas de forma estanque. São independentes, sim, mas, até
o limite em que a Constituição Federal impõe o controle de uma sobre as
outras, de modo que o poder estatal, que, de fato, é uno, funcione em
permanente auto-controle, fiscalização e equilíbrio. Assim, quando o
Judiciário exerce o controle "a posteriori" de determinado ato administrativo
não se pode olvidar que é o Estado controlando o próprio Estado. Não se
pode, ao menos, alegar que a competência jurisdicional de controle dos atos
administrativos incide, tão somente, sobre a legalidade, ou melhor, sobre a
conformidade destes com a lei, pois, como se sabe, discricionariedade não é
liberdade plena, mas, sim, liberdade de ação para a Administração Pública,
dentro dos limites previstos em lei, pelo legislador. E é a própria lei que impõe
ao administrador público o dever de motivação." (art. 13, § 2º, da
Constituição do Estado de Minas Gerais, e art. 2º, VII, Lei nº 9.784/99)”

No mesmo sentido, já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, conforme se vê do


seguinte trecho de voto do ex-ministro Eros Grau1:

1
STF, RMS 24699 / DF, Relator: Ministro Eros Grau, Órgão Julgador: Primeira Turma, Data do
Julgamento: 30/11/2004, Data da Publicação: DJ 01-07-2005 PP-00056
54

“3. Cumpre deitarmos atenção, neste passo, sobre o tema dos limites de
atuação do Judiciário nos caso que envolvem o exercício do poder disciplinar
por parte da Administração. Impõe-se para tanto apartarmos a pura
discricionariedade, em cuja seara não caberia ao Judiciário interferir, e o
domínio da legalidade. 4. A doutrina moderna tem convergido no
entendimento de que é necessária e salutar a ampliação da área de atuação
do Judiciário, tanto para coibir arbitrariedades --- em regra praticadas sob o
escudo da assim chamada discricionariedade ---, quanto para conferir-se
plena aplicação ao preceito constitucional segundo o qual 'a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito' (art. 5º, XXXV,
CB/88). 5. O sistema que o direito é compreende princípios e regras. A vigente
Constituição do Brasil consagrou, em seu art. 37, princípios que conformam a
interpretação/aplicação das regras do sistema e, no campo das práticas
encetadas pela Administração, garantem venha a ser efetivamente exercido
pelo Poder Judiciário o seu controle.”. (G.n.)

O professor Nivaldo Azevedo (2011, pg. 244) expõe seu posicionamento:

“Pensamos não ser acertado defender que o mérito administrativo não se


subordina ao controle de legalidade, pois implicaria afronta direta ao Regime
Jurídico Administrativo (RJA). Ao nosso sentir, o que não pode ocorrer é a
invasão do mérito pelo Judiciário, ou seja, o juiz não pode substituir o
administrador na escolha de quais providências são mais adequadas para
satisfação do interesse público, revendo os critérios por ele adotados e
repetindo a valoração das circunstâncias fáticas e jurídicas consideradas na
prática da ação administrativa. (...) Ao nosso sentir, o pensamento escorreito é
que o Judiciário não pode invadir o mérito, dizer de seus fundamentos,
refazer o juízo de adequação ao interesse público já ultimado pelo
administrador, espoliar a competência que é própria do executivo. Não pode,
por exemplo, dizer ao município que deveria ter construído um posto de saúde e
não uma praça; que deveria abrir licitação para comprar remédios e não
material permanente; que deveria construir um prédio público e não locar um
imóvel de particular; que deveria empenhar-se mais na educação e saúde do
que na cultura ou desporto. Todavia, pode aferir se a construção da praça foi
licitada na modalidade correta, se não houve fraude ao procedimento
licitatório ou superfaturamento dos valores contratados; se a aquisição do
material permanente foi devidamente justificada; se não existe imóvel próprio
disponível no local da locação; se o preço da locação está em conformidade
com os praticados no mercado; se estão sendo investidos na saúde e educação
os percentuais mínimos estabelecidos na Carta Magna; etc.”(G.n.)

Diante do exposto, ao se considerar as modalidades de controle existentes, bem como a


legitimidade conferida ao Judiciário para apreciar aspectos atinentes à legalidade, conclui-se que,
para a doutrina, é descabido controle de mérito por parte do judiciário, quando a análise não
envolver quaisquer aspectos que envolvam eventual ilegitimidade da atuação administrativa.
55

Por outras palavras: é descabido o controle jurisdicional exclusivo de mérito dos atos
praticados por outro ente ou poder. Não havendo ofensa a norma legal ou princípio normativo, é
descabida a intervenção jurisdicional na atividade administrativa, sob pena de ingerência
indevida – portanto inconstitucional – no sistema da tripartição de poderes estatais.
56

6. CONCLUSÃO

Majoritariamente, a doutrina não contempla a hipótese de controle jurisdicional do mérito


administrativo, salvo em casos específicos de violação ao princípio da proporcionalidade, sob
pena de ingerência indevida de poderes.

Muito embora por vezes fosse desejável a ingerência do judiciário à atuação


administrativa, mormente ao se considerar a incapacidade de instâncias representativas
pautarem-se pelos axiomas jurídico-constitucionais, o intervencionismo deve se dar de forma
também institucionalizada, de sorte a não violar a estrutura orgânica do ente estatal. O
substancialismo constitucional, por alguns desejado, não ocorre ao mero deleite do julgador em
havendo simples provocação, pois, da mesma forma que não há liberdade administrativa que seja
livre da incidência da Lei, não há atuação legítima do Poder Judiciário desprovida de
embasamento na Constituição. E vale ressaltar: ao judiciário não se conferiu a atribuição de
administrar os interesses da sociedade.

Porém, consoante consabido, teorias vem sendo desenvolvidas para que o Judiciário
tenha atuação gradualmente positiva: a própria constitucionalização do Direito confere à
Constituição poder suficiente para legitimar, em determinados casos, a atuação administrativa
ainda que não haja total regulamentação legal, transmutando-se a visão de administração
legalista para a constitucionalização do direito administrativo.

E referida teoria possui manancial social interessante: na atualidade, embora vivenciemos


um Estado Democrático de Direito que possui como fundamento a soberania popular e como
cláusula pétrea o voto direto, secreto, universal e periódico, flagrante e constantemente o
interesse público resta à berlinda face a interesses particulares, apenas aparentemente legítimos.
Nestes casos, o Estado passa de garantidor do sucesso social a instrumento de concreção de
interesses privados.

Assim, a atuação positiva jurisdicional, enquanto instrumento carente de impulso inicial


do particular, transformar-se-ia em poderoso instrumento de concretização de interesses
populares e de controle de resultados. A pretensão particular, desde que acompanhada do
conjunto probatório inerente ao devido processo legal, submetida por óbvio ao crivo da ampla
57

defesa, teria o condão de elucidar os focos em que mais se faria necessária a atuação do
Administrador.

E aliás, entende-se que não se trata de ingerência indevida do Judiciário no Executivo: a


este ainda se conferiria a prerrogativa nata de traçar os rumos de desenvolvimento do país em sua
atuação discricionária; àquele, restaria atuação de controlar e corrigir eventuais falhas na atuação
administrativa, atuação subsidiária, devidamente comprovadas no processo judicial. Não
substituiria o Juiz ao Administrador, porquanto o pronunciamento jurisdicional, quando
embasado em direitos e garantias fundamentais subjetivos, é a voluntas constitutionis, à qual os
governantes também devem atender.

Tal pensamento possui embasamento teórico na doutrina mais moderna, para quem o
substancialismo constitucional (defendido por Lênio Luiz Streck no sul do país) exsurge em
oposição ao procedimentalismo sustentado por Jürgen Habermas na Alemanha, que incorpora a
visão de que o sucesso social depende não da supremacia do valor substancial da norma, mas da
escorreita atuação em conformidade aos parâmetros estabelecidos em processo democrático.

A Constituição é estatuto detentor da suprema e legítima vontade popular, pois o povo é


detentor do poder soberano (Art. 1º, §1º) e a Constituição é o fruto da manifestação deste poder.
E o Estado não é um fim em si mesmo: não existe apenas para bem existir. Sua existência está
condicionada à satisfação dos interesses sociais, sem o qual sucumbe, dando lugar a outro
Estado, com outra Constituição, como por diversas vezes ocorreu no mundo, inclusive no Brasil.

Portanto, ao judiciário, na visão substancialista, não cabe unicamente o papel de dizer o


Direito. Pela teoria dos poderes implícitos (que preconiza que aquele detentor de determinada
competência é naturalmente dotado dos instrumentos necessários para concretiza-la),
considerando o papel de defensor da autoridade do ordenamento jurídico, que tem na
Constituição seu fundamento de validade, pode, sim, sem incorrer em qualquer ilegitimidade, o
Poder Judiciário fazer valer a força normativa da Constituição, nos casos em que houver
subversão, mormente pelo Poder Executivo, de suas funções precípuas.

Que se esclareça que não se defende a substituição do administrador pelo Juiz. Nesta
situação, a atuação jurisdicional presta-se tão somente a direcionar a Administração Pública para
a realização do efetivo interesse público – cuja competência para concretizar permanece nas
mãos da Administração – demonstrado no devido processo judicial. Por exemplo, não caberá ao
Juiz a convocação de determinado procedimento licitatório, lançando Edital nos termos que bem
lhe aprouver, mas tão somente exigir da Administração o atendimento de determinada
58

necessidade, exigindo que licite nos melhores termos possíveis, caso tal interesse se demonstre
de maneira legítima.

A atuação paralela e subsidiária assegura o atendimento do interesse público e a máxima


efetividade do texto constitucional, mormente no que tange às normas programáticas que, em
determinados casos, mesmo após a legislação reguladora permanecem despidas de qualquer
eficácia efetiva.

Portanto, a atuação judicial positiva, tema em ascensão, caso aplicada, possuiria grande
relevância social.

Sabe-se que, devido ao fato de a noção de supremacia constitucional ainda estar em


implantação e desenvolvimento no país, tais pensamentos são inaplicáveis. Carece-se de maior
desenvolvimento da ciência constitucional e o aprimoramento da doutrina da tripartição
funcional do poder para que, com mais clareza, se analise a possibilidade de implantação da tese
aqui exposta.

Porém, entende-se perfeitamente possível na atualidade a realização de interpretação


normativo-constitucional em maior conformidade com o paradigma pós-positivista,
preconizando-se a abertura da hermenêutica aos influxos da moralidade crítica2, para que assim
se oportunize total concreção das normas previstas na Constituição.

2
Prova objetiva do 25º concurso para provimento de cargos de Procurador da República – 2012 – Questão
1, alínea “c” – gabarito definitivo.
59

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61

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