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Livro de Ouro da Comunicação

Silvana Gontijo

Capítulo I

ORALIDADE

“...Assim falou e todos se mantiveram em silêncio. Então, falou Menelau, de poderoso grito de guerra:
Agora ouvi-me também, pois o pesar vem ao meu coração mais que a qualquer um outro”. (A Ilíada – Homero)

Houve um tempo em que comunicação a longa distância era o som da voz humana ecoando pelos vales
e a tecnologia mais avançada significava um jeito melhor de lascar a pedra. E o mundo, por mais vasto que fosse,
acabava no horizonte, onde a vista alcançava. Ainda hoje existem comunidades ágrafas em várias regiões do
planeta e, no Brasil, além de grupamentos específicos o contingente de analfabetos é bastante significativo,
independentemente de terem, muitos desses indivíduos, cursado alguma escola. A linguagem oral foi o principal
meio de comunicação na pré-história e na antiguidade, a despeito do surgimento da escrita e, mesmo na Idade
Média quando a escrita manuscrita começou a se disseminar, ler e escrever ainda era privilégio de uma minoria
em todas as civilizações existentes.

Para haver comunicação, é preciso o emissor, a informação/mensagem, o meio – através do qual essa
mensagem é expressa – e o receptor. Foi assim na pré-história e é assim hoje. A primeira pessoa que eternizou
sua própria imagem ou a de um animal na pré-história está transmitindo uma mensagem até hoje. Se ritual
xamanista ou representação de cenas de caça, não sabemos. Supomos, imaginamos e efetivamente sentimos as
mais diferentes emoções a partir daquilo que os artistas paleolíticos nos deixaram, milhares de anos atrás. Além
de referências de sua realidade eles nos legaram registros inequívocos de seu cotidiano e dos ecossistemas onde
viviam.
Ao longo do tempo a humanidade evoluiu tecnologicamente e ampliou a capacidade de sobreviver e de
produzir conhecimento. Nossos ancestrais foram aprendendo que o mundo era maior do que os limites avistados
das cavernas ou explorados nas incursões para caçar e colher alimentos. Desenvolveram sua motricidade e a
capacidade oral. Criaram símbolos e metáforas da realidade, e, acima de tudo, a linguagem verbal. Cada indivíduo
se expressou usando suas aptidões e as técnicas disponíveis em seu tempo. Cada um foi meio, mensagem,
emissor e receptor. De uma forma ou de outra houve comunicação e geração de informação. E esse imenso
conjunto de utensílios, sons, imagens, estruturas, códigos e narrativas formou o maior patrimônio da humanidade,
sua obra coletiva: nossa história, nossa herança cultural.
O conceito de mundo existe desde o momento em que alguém começou a contar o que estava vendo ao
seu redor para alguém que entendia o que estava sendo contado. Esse processo criou mais do que o significado
de mundo naquele momento e naquele lugar específico. Surgia o primeiro elo de uma cadeia de códigos e
símbolos que foram sendo transmitidos ao longo do tempo das mais diferentes maneiras e que se constituiu o
início da história da comunicação.
Os registros arqueológicos mostram que os seres humanos vêm interagindo com seus pares e com seu
meio ambiente de diferentes formas, ao longo dos tempos. Cada indivíduo foi apreendendo sua realidade e
transmitindo suas experiências para seu grupo social. Isoladamente ou em grupo desenvolveram artefatos, idéias,
crenças, tecnologias, hábitos e valores próprios. Os limites do corpo foram sendo ampliados por utensílios que
permitiram cortar, matar ou ferir um animal mais poderoso fisicamente. Os registros dessas experiências nas
pinturas rupestres ou nos acervos encontrados nas escavações transmitem conhecimentos e mensagens que
demonstram que a mente humana é mais poderosa do que a sua força física..
Ao desenvolver sua capacidade intelectual, o homem ampliou suas possibilidades de sobreviver e de
destruir, e essas experiências constituíram o alicerce da civilização, cujos conceitos foram sendo transmitidos ao
longo do tempo das mais diferentes maneiras, principalmente através da palavra. O gesto, o desenho, a
comunicação visual e a escrita foram ferramentas fundamentais à comunicação, mas a linguagem oral foi a
aquisição mais valiosa de toda a humanidade. Existe, no entanto, um aspecto muitas vezes desdenhado por
imponderável que é. Muitas vezes relegado ao segundo escalão de importância no processo de comunicação, por
ser impreciso, abstrato e subjetivo. Trata-se da intenção, a emulação por trás da ação de produzir e distribuir uma
mensagem. Um dos objetivos desse trabalho é lançar luz sobre essa questão.
Seria arriscado supor a intenção do autor de uma pintura rupestre. Dificilmente se poderá afirmar qual
teria sido o estímulo inicial daquele ser da pré-história. O fato é que, mesmo assim, a imagem que ele produziu
nos transmite alguma mensagem.
Independentemente de tentar desvendar a intenção que está por trás do que estamos vendo, arqueólogos e outros
estudiosos da pré-história buscam entender o contexto da vida de nossos ancestrais das cavernas através de suas
pinturas rupestres, de esculturas, utensílios, ossadas e todos os vestígios de seu cotidiano. Decifrar esses códigos
vem sendo parte do desafio de nos entender através das marcas do passado. É importante que se coloque numa
perspectiva da história os primeiros registros conhecidos, que revelam que os seres humanos se comunicavam
lascando pedras, pintando paredes de cavernas ou esculpindo em osso.
Mais de 14 bilhões de anos depois do Big Bang, do início do universo, vamos descobrir atualmente
vestígios de instrumentos de pedra lascada que nos trazem uma mensagem. Humanóides, há 300.000 anos,
produziram instrumentos cortantes que tinham a função de expandir os limites de sua capacidade física. No
ambiente inóspito da era glacial, aprenderam a se abrigar do mau tempo, a se aquecer no frio, a se defender do
ataque de animais ferozes, muitas vezes se alimentando deles.
Qual terá sido o desafio maior do homem pré-histórico? Descobrir-se mortal ou compreender o
nascimento? Morte ou vida? Jean Pierre Mohen trata dessa questão em seu artigo La mort qui fait vivre e
contextualiza esses fenômenos do ponto de vista da comunicação. Ele revela como o corpo humano não só era
objeto de ritos funerários, mas também de atenções ornamentais.

“O adorno aparece antes da arte parietal. Enfeitar o corpo é se olhar e tornar seu eu social: fazer de seu
corpo um suporte de comunicação. Temos então de olhar o Homo Sapiens como um ser de comunicação,
especialmente porque o enfeite também significa sedução. Esta decoração corporal diz respeito tanto aos vivos
quanto aos mortos, o que nos faz entender os ritos ligados ao além, à continuidade entre a vida terrestre e uma
vida metafísica. (...) A morte, para os homens, está no centro de tudo. Esta reflexão sobre a morte é um elemento
definitivo para a evolução. Dessa tomada de consciência nasceu toda a cultura humana.” 1

Um belo paradoxo: a morte faz viver.


A reprodução de uma mesma técnica para fabricar utensílios, como a técnica Levallois de lascar o silex,
causou impacto equivalente à Revolução Industrial e nos remete à idéia de trabalho em série e à conclusão de que
o homem pré-histórico se transformou de ser biológico em ser social. As atividades em grupo e entre grupos
sociais exigiu um meio de comunicação mais diversificado do que a expressão gestual: a linguagem oral. Os mitos
e o mundo do simbólico eram expressos nas manifestações estéticas e nos rituais através de representações
concretas e de formulações abstratas. Como transmitir o conhecimento adquirido e toda a subjetividade implícita?
A evolução da habilidade de pensar analiticamente alavancou a oralidade. Além da nomeação de objetos
concretos, foram surgindo expressões mais abstratas para definir os sentimentos e as emoções. É impossível
dissociar o desenvolvimento social e cultural do desenvolvimento da linguagem. Em nenhum lugar do mundo há
povos sem uma cultura ou sem uma linguagem. A antropologia, ao estudar a cultura do homem, interpreta seu
sistema simbólico, sua transmissão e reprodução ao longo da história e talvez o mais relevante: seu significado.
Muito antes de existir uma linguagem estruturada ou mesmo sons com algum significado, havia comunicação entre
hominídeos. A comunicação se fazia através do gesto, da expressão facial e corporal, do tato, da visão e do olfato.
O olhar, a atitude e a postura certamente criavam uma linguagem para além do que a voz pudesse estar
transmitindo, mesmo antes do surgimento do léxico.
De que maneira a primeira pessoa usou a expressão oral para se comunicar? Freud dizia que, quando o
homem inventou a fala, ele também inventou a civilização.
J. Casti, em Paradigmas perdidos, afirma:

“Existem tantas teorias sobre a origem da linguagem quanto existem teóricos do assunto. Desde as
teorias "oua-oua", quando se acreditava que a linguagem teria nascido dos sons da natureza, por onomatopéias,
até a " teoria dos salmos", que diz que a fala veio dos cânticos de amor e dos cantos ritmados dos lotaríngios
primitivos.”

Dentro do quadro teórico da lingüística evolutiva, o laboratório da Sony em Paris vem desenvolvendo a
Talking Heads Experiment. Esta experiência tem como objetivo entender os mecanismos que permitem a
construção de um vocabulário dentro de um grupo de agentes artificiais. Estes “seres” são softwares
materializados em robôs que criam, através de "jogos de linguagem", um vocabulário que identifica os objetos e
símbolos dispostos à sua volta. Segundo pesquisadores do laboratório francês, a interação entre os robôs é

1
Jean Pierre Mohen. La mort qui fait vivre, in Notre Histoire. Paris: Hachête, 2000.
possível porque eles são dotados de visão, audição, voz e memória e são colocados em uma situação de grande
restrição. A única maneira de se comunicar é através de gestos e palavras, já que não dispõem de nenhuma outra
linguagem. Isolados, sem interferência externa, vão jogando, com o objetivo de construírem juntos um léxico para
identificar os objetos do mundo real. As repetidas interações e ajustamentos levam à emergência de um
vocabulário comum e a dinâmica coletiva criada neste processo pode trazer hipóteses pertinentes sobre a origem
da linguagem humana. O trabalho busca explicar, também, como este léxico pode ser transmitido de geração em
geração, como ele se modifica, se afina e se torna cada vez mais adaptado para descrever o ambiente real ou
virtual com o qual os agentes se deparam. A hipótese de se desvendar a emergência da linguagem oral através de
softwares e robôs, num primeiro momento, parece ficção científica. Fomos encontrar um pesquisador brasileiro,
Eduardo Miranda, Ph.D em inteligência artificial, que nos explicou os fundamentos teóricos dessa experiência.

“A lingüística evolutiva estuda a evolução dos sistemas lingüísticos por meio de simulações computadorizadas de
seus mecanismos fundamentais. Tradicionalmente, a lingüistica tem se preocupado em documentar e estudar as
línguas do mundo, trabalho cujos resultados contribuíram enormemente para o nosso entendimento desta
capacidade humana sem precedentes no mundo animal: a fala e a escrita. Entretanto, algumas questões cruciais
ainda estão por ser desvendadas: como foi que a língua falada apareceu? Quais foram as condições fisiológicas e
ecológicas que propiciaram a evolução da fala? Se sob o ponto de vista fisiológico somos todos iguais, por que
então falamos línguas diferentes? A lingüística evolutiva tenta responder estas e outras questões até então
estudadas apenas no âmbito especulativo. A metodologia da lingüística evolutiva se baseia em experimentos com
modelos computacionais para simulações que testam os aspectos ecológicos e fisiológicos necessários à
linguagem. Por exemplo, agentes são programados com capacidade oral e auditiva e são colocados em um
ambiente onde devem interagir entre si e criar uma linguagem própria para comunicarem-se uns com os outros.
Desta forma estudam-se, por exemplo, as dinâmicas de interatividade social necessárias para que a linguagem
evolua neste mundo virtual.”

Obviamente, para alguns lingüistas estas experiências são muito limitadas. Em uma comunicação
pessoal, o Prof. Luis Carlos Cagliari, pesquisador da Unicamp, declarou:

“Não acredito no interacinismo robotizado ou evolutivo – segundo o qual a linguagem é simplesmente "aprendida"
– falta lingüística nesse povo. Se os robôs aprendem (sic) o que podem "criar" (sic), por que não aprendem o que
não podem fazer? Os limites negativos da linguagem.”

A origem da fala foi sempre motivo de controvérsia. Desde os primeiros registros escritos vemos que o
homem tenta explicar a origem da linguagem oral. Os egípcios do período arcaico, os gregos da Antigüidade,
Descartes, Darwin ou Noam Chomsky, hoje, em todos os tempos pensadores debateram a origem divina ou
natural da linguagem, genética ou cultural. A lingüista Alice Lyra de Lemos faz um breve resumo do debate a partir
do século XIX:

“No século XIX, a Sociedade Lingüística de Paris, diante da profusão de teorias, declarou que o
problema das origens da linguagem humana era insolúvel e proibiu qualquer declaração sobre o assunto. Alguns
anos depois a Sociedade Filosófica de Londres decidiu por esta mesma proibição. No início deste século, as
Letras e a Ciência eram duas vertentes intelectuais absolutamente impermeáveis uma à outra, formando o que
C.P. Snow chamou de "as duas culturas". O mundo literário, sem nenhuma comunicação com o resto dos
pensadores, se declarou porta-voz único do pensamento intelectual, excluindo imensos cientistas como o
astrônomo Edwin Hubble, Norbert Wiener, fundador da cibernética, e o físico Albert Einstein. Isto foi possível
porque, por outro lado, os cientistas não tomavam conhecimento do que estava acontecendo fora de seu universo
fechado. Além disto, a ciência não tinha nenhum espaço em jornais e revistas, ao contrário do que acontecia com
escritores e filósofos.
A lingüística moderna, desenvolvida na segunda metade do século XX, colocou a questão da origem da
linguagem para além de suas fronteiras. Hoje as novas teorias se constroem baseadas em resultados obtidos em
paleontologia, etnologia, neurociências, genética e lingüística.
Atualmente existe uma "terceira cultura" multidisciplinar, onde as ciências exatas e humanas se
comunicam, e a questão da origem da linguagem foi retomada sob esta forma.
O cérebro humano, que originalmente se desenvolveu segundo as leis da seleção natural e da genética,
começou a interagir segundo as leis da psicologia cognitiva e social, da ecologia humana e da história. Steven
Pinker, diretor do Centro de Neurociências Cognitivas do MIT, explica a razão pela qual, entre todos os animais, só
o homem fala. “O elefante desenvolveu a tromba e nós, a linguagem. Durante a evolução, três características se
desenvolveram em paralelo no homem: a sociabilidade, a habilidade técnica e a linguagem. A cooperação e a
transmissão dos conhecimentos foram imensamente favorecidos com a aquisição da fala. A fala permitiu que as
trocas de tecnologias dessem um salto extraordinário. Quem veio primeiro? A cooperação (sociabilidade), a
técnica ou a linguagem? Acho que houve uma sinergia, mas se alguma coisa veio em terceiro lugar foi a
linguagem, pois outros grandes macacos são também capazes de socializar e de usar utensílios.” Outra corrente
de pesquisa, a lingüística evolutiva, estuda as origens e a evolução da linguagem humana através da construção
espontânea de uma linguagem artificial, vista como o produto de interações entre usuários da linguagem. O
objetivo lingüístico desta experiência é observar que as dinâmicas coletivas que levaram à aparição de um léxico
em uma população de agentes artificiais podem fornecer hipóteses pertinentes para se compreender os
fenômenos existentes na evolução da linguagem natural (humana) e na própria origem da linguagem.”

Todas as sociedades humanas possuem linguagem. A linguagem não foi inventada por alguns grupos e
depois transmitida a outros, assim como aconteceu com a agricultura ou com alfabeto. São sistemas
computacionais complexos que empregam o mesmo tipo de regras e de representações, sem nenhuma correlação
com o progresso tecnológico. A gramática das sociedades industriais não é mais complexa que a gramática das
tribos de caçadores nômades. O português moderno não é mais avançado que o português antigo, camoniano. O
uso da linguagem independe da inteligência, do nível social ou de instrução.
Para Steven Pinker, esse bad boy da linguagem, como foi chamado pelo jornal Boston Globe:

“A linguagem não surgiu subitamente como um salto na evolução do homem. Eu acredito que toda
evolução complexa – e a linguagem é uma delas – acontece muito lentamente, para permitir que se opere a
seleção natural de Darwin. Em outras palavras, durante a evolução muitos animais possuíam aptidões
intermediárias para a fala, mas estes animais foram todos extintos, menos nós.” 2

Alguns especialistas acreditam que a evolução dos seres humanos deve-se basicamente ao
aperfeiçoamento e à adaptação da tradição social transmitida pelo preceito e pelo exemplo. E a transmissão tanto
de uma coisa como da outra não é possível sem uma linguagem. Estar apto a raciocinar abstratamente dependeu
principalmente da linguagem, sem a qual não seria possível nomear coisas, o que é exatamente uma abstração.
Alguns foneticistas afirmam que foi necessário um longo espaço de tempo para que o homem aprendesse a
desenhar ou modelar, mas tão logo ele se tornou homem foi capaz de pronunciar sons articulados.
As sociedades ágrafas valorizam a aptidão para falar tanto quanto nas sociedades letradas os bons
redatores são reconhecidos. Passados mais de cinquenta séculos do surgimento da escrita ainda existem
grupamentos humanos que utilizam a fala como principal ferramenta de comunicação. Na antiguidade o acesso ao
conhecimento da escrita e da leitura era prerrogativa de poucos. O texto da Ilíada é eivado da expressão “Assim
falou, “ denotando o valor da comunicação oral.
“ Assim falou o filho de Peleu e atirou ao chão o cetro dourado e sentou-se.”
“Assim falou ele, e os enviou, severamente.”
“Assim falou, e Pátroclo obedeceu ao caro companheiro.”
“Assim falou, mas Zeus, o ajuntador de nuvens, não respondeu-lhe.”
“Então, a deusa Atenéia dos olhos brilhantes assim lhe falou:”
“Assim falaram, e Príamo chamou Helena:”

Alguns acadêmicos, como o canadense Harold Innis, reconhecem a importância do alfabeto grego, mas
afirmam como ele que “ A civilização grega era um reflexo do poder da palavra falada. 3 Tanto quanto os
trovadores na Idade Média ou os vendedores ambulantes brasileiros nos dias de hoje, as peças teatrais
encenadas nos anfiteatros gregos, e os discursos na Assembléia de Atenas desempenharam papel decisivo na
civilização grega e na estruturação do pensamento ocidental. Ao reproduzir uma canção ou os versos de um
poema os intérpretes podiam incorporara palavras, entonações e gestos interferindo na forma original. Nesse
sentido, mais do que a linguagem escrita as mensagens transmitidas oralmente eram verdadeiras criações
coletivas.
Em 1930 o professor Milman Parry, da Unversidade Harvard, gravou performances de poetas narradores
no interior da Iugoslávia. O trabalho desenvolvido por Albert Lord, seu assistente e publicado na obra The Singer of
Tales, demonstrava como uma história ia se modificando à medida que ia sendo transmitida oralmente. Ele partiu
da argumentação de que a Ilíada e a Odisséia tiveram a integridade preservada só porque haviam sido passadas
para o papel.

2
Steven Pinker, in revista Construire, nº 8, fev. 1999.
3
Harold Innis Empire and Communications. 1950.
A língua dos povos da Floresta

O Brasil

No Brasil não se conhece nenhum estudo conclusivo sobre como e quando os primeiros habitantes
começaram a falar, mas nem por isso nossa história carece de interesse.
Existiu, antes do encontro com o homem branco, uma grande diversidade de culturas e de línguas. Os
relatos dos primeiros viajantes exploradores dão conta dessas peculiaridades, mas sua prioridade era descrever
as riquezas encontradas. Os povos nativos e sua cultura não tinham valor comercial. Faziam parte da paisagem e
só desempenhavam um papel relevante na história quando criavam empecilhos para a exploração das riquezas.
Todo o conhecimento sobre as línguas originais estava a serviço da catequese como instrumento de
“domesticação”, no século XVII. Os trabalhos de Anchieta (Arte de gramática da língua mais usada na Costa do
Brasil), de Luiz Figueira (Arte da língua brasileira) e de Luís Vincencio Mamiani (Arte de gramática da língua
brasílica da nação Kiriri) foram ferramentas imprescindíveis ao sucesso desse propósito.
O primeiro grande levantamento feito com o objetivo de conhecer e estudar as diferentes línguas
originais foi realizado por Curt Nimuendaju, já no início do século XX. Portanto depois de mais de quatrocentos
anos desde o primeiro contato.Nesse momento, a maior parte das tribos originais tinha sido dizimada ou
aculturada.
Curt Nimuendaju está para a etnologia brasileira como Lund para a arqueologia. Alemão, nascido em
Jena em 1883, esse autodidata, em sua própria definição, veio para o Brasil em 1903 em busca de aventura.

“Eu tinha como residência permanente até 1913 em São Paulo, e depois Belém do Pará, e todo o resto
foi, até hoje, uma série ininterrupta de explorações, das quais enumerei na lista aquelas de que me lembro.
Fotografia minha não tenho”.

Essas foram suas únicas referências para uma biografia a pedido de Herbert Baldus. Curt viveu a maior
parte de sua vida entre os índios brasileiros, com tal intimidade que foi rebatizado pelos Guaranis, que o
chamaram Nimuendaju – “o ser que cria ou faz o seu próprio lar”. Desde então nunca mais usou seu nome original
e foi reconhecido mundo afora pelo novo nome, graças ao mais detalhado e cuidadoso levantamento sobre as
culturas e as línguas dos povos indígenas brasileiros até então realizado. Percorreu quase todo o território
brasileiro a serviço dos museus estrangeiros de Gotemburgo, Dresden, Hamburgo e Leipizig, além do Carnegie
Institute e da Universidade da Califórnia. Viajou também a serviço de algumas instituições brasileiras como o
Museu Nacional, o Museu do Ipiranga, o Museu Goeldi e o Museu Paranaense.

“São quarenta e três anos de viagens fazendo escavações, pacificando, coligindo material lingüístico,
estudando a cultura material e espiritual de inúmeras tribos, procedendo como topógrafo e cartógrafo que era, a
levantamentos das regiões percorridas, ilustrando os próprios trabalhos a bico de pena e registrando melodias
indígenas.”

Além desse registro iconográfico, a obra de Curt Nimuendaju mostra as localizações e as transformações
pelas quais passaram essas línguas como conseqüência das migrações e dos contatos que geraram o que
chamamos empréstimos lingüísticos.
Greg Urban, um dos maiores estudiosos sobre o assunto no Brasil, diz que o estudo das nossas línguas
indígenas está muito aquém do necessário para uma reconstrução da história da cultura brasileira e sua
transmissão. Ele afirma ser impossível aplicar o método de reconstituição – usado pelos lingüistas da lingüística
comparada – sem gramáticas, descrições fonológicas e vocabulários organizados de todas as línguas existentes.
Hoje conhecemos bastante o Tupi, razoavelmente o Arawak e muito pouco das línguas dos grupos Jê e Karib.

“Precisamos de mais pesquisa para elucidar o empréstimo lingüístico. Os dados de que dispomos
atualmente indicam situações de intenso contato, multilingüismo, línguas de comércio etc. para uma região que vai
do extremo oeste da bacia amazônica para o norte e em seguida para oeste, cruzando toda a América do Sul ao
norte de Amazonas. O Centro e Oeste do Brasil, ao contrário, parecem ser áreas nas quais a hipótese tradicional
uma língua/uma cultura/ um povo tem maior credibilidade”.4

4
Greg Urban. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas, in História dos índios
no Brasil. Manuela Carneiro da Rocha (org.). São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
Tupi

As línguas tupi podem ser localizadas originalmente na região da Chapada dos Parecis, no norte do
Brasil e da Bolívia. Mas nota-se uma rota de migração que, saindo da área Brasil/Bolívia e passando pelo
Paraguai, sobe a costa brasileira.

“Essa suposição baseia-se no fato de as línguas faladas ao longo dessa rota (...) serem tão próximas
umas das outras quanto dialetos de uma mesma língua. Nota-se entre as línguas tupi um padrão de dispersão
através de “explosões e radiações a partir de centros", o que geograficamente acabam se revelando muito
relacionadas.” 5


Toda a rede de línguas geneticamente filiadas ao tronco Macro-Jê está concentrada na parte oriental e
central do planalto brasileiro, originando-se no planalto oriental do Brasil – concentradas na região que se estende
do Rio de Janeiro à Bahia. Teria havido primeiramente uma migração das línguas Jê para o sul, depois para o
norte, no sentido da bacia amazônica, e para o oeste.

“Entre os Jê, a distância geográfica parece corresponder, grosso modo, à distância histórica. Línguas
mais próximas tendem a se manter juntas, como se a língua se reproduzisse segundo um processo de ramificação
em que novos galhos empurram velhos galhos mais para longe.” 6

Karib
O conhecimento existente sobre as línguas Karib ainda é precário. Supõe-se que as línguas Karib, Tupi e
Jê derivem todas de ancestral comum, embora as pesquisas ainda sejam incipientes neste sentido.
Existem, no entanto, evidências de um considerável empréstimo lexical dentro do núcleo das línguas
Karib das Guianas e da Venezuela, assim como entre a família Tupi-Guarani e as línguas Karib setentrionais. São
interessantes porque associa-se o empréstimo ao tipo de contato envolvido no comércio e na troca: se de um lado
existe um empréstimo recíproco das línguas Karib entre si, no caso dos grupos Tupi os empréstimos parecem ter
sido dos grupos Tupi-Guarani para os Karib.

Arawak
Dos grandes grupos lingüísticos identificados em terras brasileiras, esse parece ser o único que não
possui indícios de se relacionar com os demais. Existe um grupo denominado Maipure, cujas línguas são
relativamente próximas. As demais línguas Arawak, no entanto, possuem filiações ainda pouco definidas.
Trabalha-se muito com a hipótese de empréstimos para explicar as diferentes estruturas gramaticais das línguas
Arawak.

O discurso e o rito

A maior parte dos povos originais era composta de grupos autônomos de parentes que de tempos em
tempos migravam e preservavam sua identidade transmitindo de uma geração para outra sua história. Oralmente,
ou através das representações visuais ou ainda da música e da dança. Em torno das fogueiras montadas para
aquecer o cauim, (bebida alcoólica extraída da mandioca) as tribos se reuniam para compartilhar experiências. Os
rituais de cauinagem eram os meios de comunicação através dos quais as mensagens e o saber acumulado iam
sendo transmitidos de geração para geração.
Era um momento de descobertas, de aproximação entre os indivíduos do grupo que consolidava a
estrutura social e os valores culturais. Alguns membros da tribo usavam vestimentas especiais (mantos, penas
coladas ao corpo, máscaras de madeira e palha) e os alimentos eram diferentes dos consumidos rotineiramente.
Consumiam-se bebidas alcoólicas, infusões e fumava-se tabaco. Além dos discursos os rituais eram marcados
pela música, invocações e danças coletivas.
Essas cerimônias estavam para cada aldeia naquele momento como a televisão para nossa sociedade.
Havia um roteiro/mensagem, uma pré-produção (convocação), uma produção (figurino e cenografia) e uma

5
Idem, ibidem.
6
Idem, ibidem.
encenação (marcação de cena e atuação de cada ator). E como as missas, o teatro e os trovadores, na Europa,
uma mesma mensagem atingia ao mesmo tempo várias pessoas no mesmo lugar.
Falar e ouvir eram as experiências de comunicação mais relevantes. Mais do que a prática de
transmissão de mensagens era uma oportunidade de reforçar e disseminar o código ético e de valores que
estruturava as diferentes sociedades. Venerava-se o mais velho pelo saber acumulado e pela disposição de
partilhá-lo. Reverenciava-se a capacidade de desenvolver vínculos afetivos e de parentesco, porque sobretudo
importava o grupo. O indivíduo não fazia sentido sozinho dentro de uma sociedade estruturada através dos laços
de parentesco.

"Os que devem comparecer ao festim reúnem-se todos no dia designado. Já na véspera, à noite,
começam a preparar-se, vestindo seus mais belos adornos de penas de variadas cores e dançando em torno de
suas casas, com seus maracás nas mãos, cantando e pulando sem cessar.
Entrementes deitam as mulheres um pouco de fogo junto aos vasilhames, para esquentar o cauim que costumam
beber morno; em seguido é aberto o primeiro pote e se inicia imediatamente a cerimônia da cauinagem, de que
participam homens e mulheres. Os velhos ficam deitados ou sentados em suas redes de algodão, com o cachimbo
na mão e conversam; outros cantam, dançam e saltam com seus maracás, e as mulheres os acompanham pondo
as mãos nos ombros dos maridos; e todos juntos fazem um barulho ensurdecedor." 7

Durante sua convivência com os índios brasileiros, o jesuíta Fernão Cardim, que chegou ao Brasil em
maio de 1583, produziu uma das mais importantes crônicas dos primeiros anos de nossa colonização e nos legou
as seguintes impressões:

“Pregação noturna do principal que é como um pássaro que canta a noite a que chamam de rei (...) pelas
madrugadas há um principal em suas ocas que, deitado na rede por espaço de meia hora, lhes prega e admoesta
que vão trabalhar como fizeram seus antepassados e distribui-lhes o tempo, dizendo-lhes as cousas que hão de
fazer, e depois de alevantado continua a pregação, correndo a povoação toda. Tomaram este modo de um
pássaro que se parece com os falcões, o qual canta de madrugada e lhe chamam rei, senhor dos outros pássaros,
e dizem eles que assim como aquele pássaro canta de madrugada para ser ouvido dos outros, assim convém que
os principais façam aquelas falas e pregações de madrugada para serem ouvidos dos seus. “8

Quanto mais velhos e experientes, mais respeitados e influentes eram os líderes de cada aldeia. Cabia a
esse “conselho de anciãos” a responsabilidade por dirigir o grupo, escolhendo os novos líderes, determinando as
festas ou as guerras e garantindo a fidelidade na transmissão de todo o saber que acumulavam. Quase todas as
aldeias tinham uma casa dos velhos onde só era permitida a entrada dos mais idosos. Era ali que se tomavam as
grandes decisões.

A arte rupestre

Embora os registros das pinturas e dos artefatos da pré-história encontrados sugiram uma organização
social, nenhum deles armazenou a memória oral. Mas nem por isso deixam de transmitir uma mensagem. Mesmo
assim, sabemos que a evolução humana percorreu dois trilhos paralelos: o do desenvolvimento da tecnicidade
manual e o da tecnicidade verbal. Sobre isso, o pré-historiador André Leroi-Gourhan diz que:

“... tudo leva a crer que a conquista do utensílio e da linguagem apenas representa uma parte da
evolução do homem, e que aquilo que entendemos por estética também tenha desempenhado um papel
igualmente importante na nossa ascensão, mas, enquanto a paleontologia nos fornece uma reconstituição
bastante pormenorizada dos sucessivos estados do cérebro e da mão, enquanto os sílex lascados nos garantem

7
Claude D’auberville. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras
circunvizinhas. Editora Itatiaia/Editora USP. Coleção Reconquista do Brasil, v.19/ Reprodução
fac-similar da edição publicada pela Livraria Martins Editora, em 1945; tradução de Sérgio
Milliet.
8
Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil, São Paulo: 1979 Companhia Editora
Nacional. Edição conjunta de três estudos do Padre Fernão Cardim: I - “Do Clima e da Terra do
Brasil”; II - Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil; III - “Narrativa Epistolar de uma Viagem
e Missão Jesuítica”
uma boa visão da evolução técnica, à primeira vista não se vê muito bem como caracterizar algo que não ficou
impresso nem no esqueleto, nem nos utensílios.” 9

Alexander Marshack diz que a pré-história é silenciosa. Mas sabemos que repetições de motivos
pintados, escavados e modelados podem indicar um código.
Por definição, a história começa, aproximadamente, em 3000 a.C., com o início da escrita na
Mesopotâmia, no Egito. Mas, no período que se convencionou chamar de pré-história, indivíduos e grupamentos
humanos produziram utensílios, imagens e símbolos durante a última era glacial, portanto há aproximadamente
50.000 anos, que hoje nos revelam parte dos contextos sociais daqueles tempos.
Em Tata, na Hungria, foi encontrada uma placa de dente de mamute esculpida e pintada com ocre
vermelho datada de 45.000 a.C.
A mais antiga escultura de animal conhecida, descoberta em Vogelherd, Alemanha, data de
aproximadamente 30.000 anos a.C. É um cavalo esculpido cuidadosamente em um dente de mamute, que
reproduz com surpreendente fidelidade as formas anatômicas. À primeira vista a diferença entre esses dois
objetos começa nesta definição: placa de dente de mamute e cavalo de dente de mamute. Já de saída sabemos
que um é o “retrato” de um animal chamado cavalo, cujas formas nos são familiares hoje, razão pela qual
podemos afirmar se tratar desse animal. Já o segundo objeto, e o mais antigo, é uma placa. A primeira definição
que nos ocorre é sobre a forma do objeto, e não o que ele quer dizer ou retratar. O que essa placa nos comunica?
Sua mensagem é quase indecifrável embora tenha sido possível, através de análises laboratoriais, desvendar em
parte sua utilidade. O importante é que ambos foram fruto de um trabalho consciente e intencional e que nos
informam sobre um processo de ações encadeadas.
Há cerca de 35.000 anos, seres humanos cobriram com pinturas rupestres as paredes das cavernas de
Lascaux, na França, de Altamira, na Espanha, de Drakensberg, na África do Sul e, no Brasil, em Lagoa Santa
(MG), Seridó (RN) e São Raimundo Nonato (PI). Como eram esses povos, como viviam, em que acreditavam?
Alguns desenhos são extremamente elaborados, como a Mulher Branca encontrada numa caverna da Namíbia.
Essa imagem nos revela a etnia, a vestimenta e vai além, sugerindo a utilização de instrumentos rituais.
Outras figuras nos informam sobre ecossistemas (animais e plantas), cosmo (corpos celestes e o
movimento dos astros), lutas, sexo e rituais, entre vários outros assuntos. Fica evidente que, além da forma, existiu
um significado e que, por mais que se tente interpretar o que foi preservado, esse significado se perdeu com a
extinção da sociedade que o produziu.

A arte rupestre no Brasil

Lagoa Santa, MG, fim do século XIX, margens da Lagoa do Sumidouro. Ali um dinamarquês começou a
desvendar a pré-história brasileira. Foi exatamente em 1842 que o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund
encontrou ossadas humanas com mais de 20.000 anos de idade. A descoberta de Lund foi batizada de “o homem
de Lagoa Santa” e o naturalista radicado no Brasil entrou para a História como o pai da paleontologia brasileira.
Trabalhando desde 1835, Lund já havia descoberto e mapeado alguns sítios arqueológicos nas grutas da Lapinha
e da Lapa Vermelha. Lá foram encontrados fósseis de animais pré-históricos, utensílios como peças de adorno,
pontas de flechas e urnas funerárias, além de uma grande quantidade de pinturas rupestres, as primeiras a serem
descobertas no Brasil. Charles Darwin utilizou as descobertas de Lund como uma das provas de sua Teoria da
Evolução.
A partir dos estudos de Lund em Minas Gerais, as descobertas arqueológicas no Brasil foram ampliando
o conhecimento das antigas populações de outras regiões brasileiras. Mas, ainda hoje, várias regiões
permanecem inexploradas, o que nos impede de traçar um mapa completo da arte rupestre que herdamos de
nossos antepassados. Além disso, objetos confeccionados com penas, palha e madeira não resistiram ao tempo
numa região tropical, cujo clima afetava dramaticamente materiais perecíveis.
Atualmente, tanto no Brasil como na Europa a interpretação da arte rupestre parte das mesmas
premissas. A idéia é tentar encontrar o significado analisando as figuras, suas associações e a freqüência com que
aparecem. É provável que a decoração das cavernas componha-se de um sistema de imagens que representem a
organização ideal do mundo do homem paleolítico. De alguma forma as figurações rupestres, além de estarem
carregadas de sentido simbólico, revelam um sistema coerente dentro de um plano preestabelecido.
Os etnólogos interpretam a arte rupestre traçando paralelos e fazendo analogias entre a produção
artística da pré-história e o significado dos mesmos símbolos encontrados nas culturas de características primitivas
nos dias de hoje. Em Itapeva e São Raimundo Nonato, as pesquisas realizadas usaram essa abordagem. A forma
de identificar o significado das pinturas de Itapeva foi compará-las com os mitos Jê.
A riqueza do acervo de pintura e escultura da pré-história brasileira é impressionante. As imagens variam
de símbolos abstratos – que são, via de regra, interpretados como uma forma de comunicação, um sistema de

9
André Leroi-Gourhan. O gesto e a palavra. Lisboa: Edições 70, 1965.
contagem ou demarcação de território – a imagens figurativas isoladas ou integradas em cenas realísticas que
falam por si.
Há também uma identidade estilística, que define uma determinada corrente estética e uma diversidade
de correntes estéticas regionalizadas que nos informam sobre grupamentos com culturas específicas. Fica
evidente que cada grupo chegou a diferentes graus de domínio das técnicas e utilizou diferentes tipos de matéria-
prima. Essas, por sua vez, nos informam sobre o meio ambiente onde vivia aquele grupo, sua formação geológica,
sua fauna e sua flora.
As imagens encontradas na região de Central, na Bahia, mostram figuras de animais extintos e datados
de cerca de 12.000 anos, como o toxodonte e o urso. Nessa mesma região existem representações astronômicas
que demonstram um sofisticado grau de conhecimento de fenômenos complexos, como o solstício, além de
sistemas de contagem baseados em fases da Lua e outros símbolos celestes. A maioria dessas representações
foram classificadas como Tradição Nordeste, datadas de 12.000 anos e descritas por Niède Guidon como "uma
arte muito narrativa, lúdica, que trata de temas ligados seja à vida de todos os dias, seja a atividade rituais." Os
estudos de Anne Marie Pessis mostram que:

“... À medida que o grupo evolui, modifica a sua tecnologia, seu padrão de ocupação do espaço e,
quando a densidade de ocupação aumenta, vemos mudar as características das manifestações gráficas, que se
tornam cada vez mais formais, mais ricas, mais minuciosamente trabalhadas, dominando de maneira perfeita as
técnicas de desenho e pintura. Quando os povos da Tradição Nordeste atingem seu apogeu tecnológico, suas
representações gráficas apresentam as primeiras cenas de violência: execuções, lutas individuais e batalhas
coletivas; as cenas sexuais, inicialmente simples e envolvendo duas ou três pessoas, se transformam também:
grupos numerosos de indivíduos de ambos os sexos praticam conjuntamente atividades sexuais. As ações de
caça, que representavam a caça individual de pequenos animais, passam a representar caças coletivas com
inúmeros guerreiros atacando animais perigosos como a onça.”

A partir de 6.000 a 5.000 anos atrás, fica visível uma mudança de técnica (lítica) e, conseqüentemente,
da arte. A representação perde a riqueza de detalhes e o movimento original, com as figuras humanas e de
animais estáticas. Essas características identificam a Tradição Agreste, encontrada com freqüência no Nordeste
brasileiro.
Há controvérsia entre os especialistas brasileiros da área quanto às formas de se proceder às datações
e quanto à metodologia para a interpretação dos símbolos da arte rupestre. No entanto, a idéia de que é possível
extrair da arte figurativa informações valiosas sobre a vida de seus autores é consensual.

“Na gramática arqueológica, é como se fosse lida cada palavra isoladamente em uma sentença,
desconsiderada a sua lógica sintática. Dada a dificuldade em se conhecerem os motivos que geraram a
elaboração das representações rupestres, há entre os pesquisadores a consciência de que, com seu estudo,
podem-se reconhecer os elementos fundamentais da dinâmica cognitiva do homem.” 10

Alguns arqueólogos afirmam que boa parte do conteúdo escrito sobre interpretação da arte rupestre no
Brasil mostra e analisa as figuras sem considerar seu contexto ou as possíveis associações. Poucos admitem usar
a intuição, outros garantem que o significado daquela forma é inequivocamente esse ou aquele. Os conhecimentos
científicos e a tecnologia disponível para a datação, usando o carbono, garantem um mínimo de certeza quanto à
época. O exame aprofundado dos componentes das fezes fossilizadas e dos vestígios da alimentação aponta
alguns hábitos alimentares e mapeia doenças, mas a intenção do autor das pinturas e esculturas jamais
saberemos. Livre interpretar é só interpretar.

Tradições de arte rupestre no Brasil

Como ler a arte rupestre


Os muitos estilos de arte rupestre brasileira, identificam diferentes grupamentos humanos. Esse conjunto
de informações presume uma identidade classificada como tradição. Qualquer desenho isolado e indefinido no
conjunto artístico rupestre é considerado um grafismo. Os grafismos puros são as figuras, pintadas ou gravadas,
que não identificamos. Os grafismos de composição são as figuras que podemos reconhecer (formas semelhantes

10
Maria Cristina Mineiro Scatamacchia. Arqueologia: 15.000 anos de artes visuais, in Catálogo
Mostra do Redescobrimento: Arqueologia. Nelson Aguiar (org.). São Paulo: Fundação Bienal
de São Paulo, 2000.
às do homem, das plantas ou dos animais). Já os grafismos de ação representam cenas compostas pelos dois
primeiros tipos. São considerados uma forma de pré-escrita.
O motivo pintado ou gravado e a freqüência com que ocorre definem o que se chama de tradição, ou
seja, a principal divisão dos estilos de arte rupestre no Brasil. Em função da dificuldade em associar as tradições a
grupos específicos, é necessário relacioná-las a outros registros arqueológicos (e outros produtos da sociedade)
para entender mais amplamente o seu papel.
As principais tradições de arte rupestre estabelecidas e estudadas são:

1. Tradição Meridional
Com vários grupos, é caracterizada por gravuras geométricas lineares (5.665 anos atrás).

2. Tradição Litorânea Catarinense


Caracterizada por gravuras geométricas e biomorfas. Pela semelhança da arte nos paredões e na
cerâmica, atribui-se essa tradição aos grupos Tupi-Guarani (sem data).

3. Tradição Geométrica
Caracterizada por gravuras geométricas, ocorre de Santa Catarina até o Nordeste e apresenta duas
subtradições: a Meridional, que ocupava locais afastados dos rios; e a Setentrional, localizada ao redor de rios e
cachoeiras (sem data).

4. Tradição Planalto
Os temas principais são os animais, a caça e a pesca, pintados geralmente em vermelho e concentrados
no centro de Minas Gerais (de 12.000 a 4.000 anos atrás).

5. Tradição Nordeste
Em que se encontram as pinturas mais antigas. Nesta tradição foram identificadas três subtradições: a
mais antiga é a subtradição Várzea Grande (PI), com datações relativas de até 32.000 anos atrás.

6. Tradição Agreste
Não aceita por alguns pesquisadores, que a consideram uma mistura das tradições Nordeste e São
Francisco (entre 9.000 e 2.000 anos atrás).

7. Tradição Itacoatiaras do Leste


Na planície pré-cambriana encontram-se indícios desse povo que tem vasta distribuição geográfica pelo
Nordeste (desde 8.000 anos atrás).

8. Tradição Cosmológica
Identificada por Maria Beltrão como a supra-classificação da pintura rupestre no Brasil. Tem maior
incidência na Chapada Diamantina.

9. Tradição Amazônia
Ainda há pouco tempo, a arte rupestre da Amazônia recebia pouca atenção dos arqueólogos. São
pinturas e gravuras datadas de até 11.200 anos atrás (Gruta da Pedra Pintada). As gravuras localizam-se ao longo
dos cursos d’água e em abrigos sob rochas próximas aos rios e no alto das serras.

As pesquisas arqueológicas realizadas no Piauí, no Rio Grande do Norte e na região de Central, na


Bahia, revelaram inúmeros aspectos do conhecimento do homem pré-histórico do Brasil. Além das pinturas e das
gravuras rupestres, classificadas nas diferentes tradições, encontra-se nas paredes internas das grutas, nos
paredões dos canyons e até em campo aberto uma série de símbolos e signos bastante reveladores.
Segundo Anne-Marie Pessis, em seu artigo para o livro Grafismo indígena, organizado por Lux Vidal, os
registros gravados, ao contrário das pinturas, devem ser analisados privilegiando os planos das técnicas de
realização.
Embora a autora, que investigou principalmente os sítios de São Raimundo Nonato, no Piauí, não
interprete o significado dos desenhos encontrados, podemos reconhecer no acervo pesquisado vários símbolos e
signos interpretados por outros autores em outras regiões. Os mais freqüentes são os que se relacionam com a
astronomia. Do conhecimento do ano lunar, passando pelo solstício e outras representações astronômicas,
percebe-se a intenção de registrar uma série de conhecimentos acumulados. A arqueóloga Maria Beltrão acha
provável que a maior parte dos signos encontrados estejam associados aos fenômenos astronômicos.

“Estes signos, aparentemente, tiveram sua origem em imagens tiradas do céu. Realmente se
compararmos certas configurações celestes com os signos que foram usados convencionalmente pelo homem
pré-histórico podemos observar que há uma grande possibilidade dessas configurações terem origem celeste. (...)
Os signos simples e complexos podem aparecer em seqüências simples e compostas e talvez estejam
relacionados com coisas mais concretas como o ato de contar ou com certas condições conhecidas como a chuva,
o sol, o final, o começo. Os signos mais complexos comunicam idéias bastante específicas como um evento da
natureza (...)
Acreditamos que o homem pré-histórico brasileiro tenha alcançado um nível próximo ao da escrita. Isto
porque o uso de signos-símbolos, especialmente a incorporação dos símbolos em seqüência, poderia ser descrito
como uma pré-condição ao pleno sistema de escrita, isto é, uma etapa na evolução em direção a um sistema
ordenado de comunicação escrita.” 11

Na visão de etnólogos e antropólogos como Koch-Grünberg (1910), Reichel-Dolmatoff (1976-78) e Berta


Ribeiro (1984), a maior parte desses símbolos têm origem nas visões provocadas pelo consumo de alucinógenos.
Os xamãs eram possivelmente os principais artífices e responsáveis pela tradução dos conceitos orais
reproduzidos graficamente e por sua posterior síntese em símbolos. Na região da floresta amazônica, depois de
estudar a cultura dos índios Tukanos e Baníwas, o antropólogo Reichel-Dolmatoff concluiu que vários símbolos
encontrados em gravuras rupestres em petroglifos coincidiam com desenhos e trançados atuais. Submetidos a
diferentes indivíduos da mesma etnia, em diferentes regiões e com uma certa diversidade cultural, o significado de
cada desenho era o mesmo. A intenção de Dolmatoff era detectar a origem, a natureza e a possível significação
dos padrões encontrados também nos frontispícios das malocas, nas pinturas corporais e na decoração de
instrumentos de caça e de objetos sagrados e profanos. No seu entender, toda essa representação visual vem a
ser um sistema de comunicação que enfatiza a fertilidade, o incremento e as forças regenerativas do universo e
que tende a “reafirmar e a propagar seu ethos cultural por meio de um veículo ritual consistente de uma altamente
formalizada experiência de consumo de drogas.”12

O autor afirma que a cosmologia Tukano está a serviço da criação de normas adaptativas para a
preservação dos recursos da flora e da fauna e, conseqüentemente, da reprodução de seu grupo social. Podemos
acrescentar a preservação de sua cultura.

Conclusão

A arte rupestre e os utensílios de pedra, osso e barro são os vestígios legados pelos povos pré
históricos brasileiros. A maior parte desse acervo encontrado em sítios arqueológicos nos diferentes pontos do
país demonstram o desconhecimento das técnicas de metalurgia e do vidro. A principal riqueza parece ser a
grande diversidade de temas, motivos e técnicas de adorno. Alguns desse motivos são recorrentes até hoje na
pintura corporal, nos tarabalhos de barro e de cestaria e, na arte plumária de remanescentes das tribos indígenas.
Algumas formas recorrentes correspondem a conceitos orais e podem apontar para uma simbologia pictográfica,
com o mesmo significado entendido por diferentes povos da atualidade.
Diferentemente da maioria das civilizações do hemisfério Norte, os povos originais do Brasil só entraram em
contato com a escrita no século XVI, após a chegada dos navegadores europeus. A linguagem oral era o principal
fenômeno de comunicação das tribos de diferentes troncos lingüísticos. A aptidão para se expressar era valorizada
de tal forma que é recorrente nos relatos de viajantes a percepção da necessidade de se aprender e de se traduzir
as línguas para a comunicação com os nativos e para o sucesso da empreitada colonial.

11
Maria Beltrão. Arqueoastronomia no Brasil. Carta Mensal, Rio de Janeiro, 36(421): 49-59,
abr. 1990.
12
Reichel-Dolmatoff, G. Beyond the milk way. Hallucinatory imagery of the Tukano Indians. Los
Angeles: UCLA Latin American Center Publ., Univ. Califórnia, 1978.

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