Você está na página 1de 8

Acervo do Última Hora/Arquivo do Estado de São Paulo

22 CULT - dezembro/99
a poesia crítica
de João Cabral
João Alexandre Barbosa

João Leite
O ensaísta João Alexandre Barbosa, mais importante
intérprete da obra de João Cabral de Melo Neto, escreve
sobre a dimensão crítica do escritor pernambucano, que
morreu em 9 de outubro, mostrando como seus poemas
contêm uma meditação sobre “o ofício de criar”

E ntre A escola das facas, de 1980, e


Auto do frade, de 1984, João Cabral
talvez seja capaz de apontar para uma
maior complexidade e que, a meu ver,
questões referentes à divisão do livro do
próprio título da obra: o que vem a ser
publicou, em 1982, um livro singular em decorre, em primeiro lugar, do uso feito uma “poesia crítica”? Entende-se que
sua bibliografia. Tão singular que ficou da palavra assunto, pois a pergunta que logo esta, como quer João Cabral, não se
de fora de sua Obra completa, de 1994. ocorre é de saber o que significa, para um confunde nem com “uma arte poética
Trata-se do volume Poesia crítica (Anto- poeta, a própria palavra, isto é, em que sistemática”, nem com “um sistema
logia), editado pela José Olympio. E é medida, por um lado, o poema tem um crítico”, mas isto não significa desprezar
singular por vários motivos, a começar assunto e, por outro, em que medida o elementos de uma e de outro que, cer-
por ser o único volume do poeta que é poeta toma como assunto este ou aquele tamente, comparecem como semas iman-
precedido por uma nota do autor em que objeto. E mesmo que se admita o argu- tados, ainda que dispersos, para a sua
não apenas são dadas as razões de sua mento como levando à divisão do livro, configuração. Por isso, logo de início,
organização, mas ainda defende-se uma logo outra questão se propõe: se o assunto afirmei que, na nota do autor, defende-se
poética. Entretanto, a meu ver, a sua maior é, em “Linguagem”, a criação poética e, uma poética. Complete-se: uma poética
singularidade está precisamente em sua em “Linguagens”, “a obra ou a perso- e não uma arte poética, aquela confun-
divisão: uma primeira parte, intitulada nalidade de criadores poetas ou não”, dindo-se com o próprio título do livro.
“Linguagem”, constituída de vinte e um como parece estar na frase inicial, não é Uma poética, portanto, que se define, em
poemas, e uma segunda, “Linguagens”, de se pensar que, em ambos os casos, a suas manifestações concretas de reali-
mais longa, com cinqüenta e nove textos. tônica recai sobre a primeira expressão, zação em poemas, como uma poesia
A razão da divisão é dada pelo próprio “criação poética”, definidora quer da crítica. Mas nesta operação de levar a
poeta na frase incisiva com que inicia a obra, quer da personalidade dos cria- poesia à esfera de uma possibilidade
nota do autor, antes mencionada: dores? crítica, “conseqüência de uma perma-
“Este livro reúne os poemas em que o Por outro lado, embora tenha a nente meditação sobre o ofício de criar”,
autor tomou como assunto a criação prudência de afirmar, em seguida, “que como está dito na nota do autor, a poética
poética e a obra ou a personalidade de nenhum desses poemas ou mesmo a soma que termina por se configurar envolve
criadores poetas ou não.” do que neles se diz pretende ser uma arte mais do que uma crítica da poesia feita
Embora a divisão pareça muito clara poética sistemática ou um sistema crí- pelo poema, como parece ser o desejo
e tranqüila, um exame mais acurado tico”, não é possível desvincular aquelas ostensivo de João Cabral, e se abre à

dezembro/99 - CULT 23
O ARTISTA INCONFESSÁVEL CATAR FEIJÃO ANTI-CHAR

Fazer o que seja é inútil. Catar feijão se limita com escrever: Poesia intransitiva,
Não fazer nada é inútil. jogam-se os grãos na água do alguidar sem mira e pontaria:
Mas entre fazer e não fazer e as palavras na da folha de papel; sua luta com a língua acaba
mais vale o inútil do fazer. e depois, joga-se fora o que boiar. dizendo que a língua diz nada.
Mas não, fazer para esquecer Certo, toda palavra boiará no papel,
que é inútil: nunca o esquecer. água congelada, por chumbo seu verbo: É uma luta fantasma,
Mas fazer o inútil sabendo pois para catar esse feijão, soprar nele, vazia, contra nada;
que ele é inútil, e bem sabendo e jogar fora o leve e oco, palha e eco. não diz a coisa, diz vazio;
que é inútil e que seu sentido nem diz coisas, é balbucio.
não será sequer pressentido, 2
fazer: porque ele é mais dificil
do que não fazer, e dificil- Ora, nesse catar feijão entra um risco:
mente se poderá dizer o de que entre os grãos pesados entre
com mais desdém, ou então dizer um grão qualquer, pedra ou indigesto,
mais direto ao leitor Ninguém um grão imastigável, de quebrar dente.
que o feito o foi para ninguém. Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

nomeação crítica da realidade múltipla, com a Fábula de Anfion e a Antiode, de 1947, fica que, no restante de sua obra, não
objeto de toda poesia. incluindo Os três mal-amados, de 1943, e compareçam textos por onde seja possível
A poesia crítica, esta que se apresenta O engenheiro, de 1945. Por outro lado, é ler a intensidade com que esta modalidade
neste livro de 1982 passada pelo escru- de acentuar que, do restante de sua obra de crítica era essencial para a estruturação
tínio do próprio poeta, não é senão o publicada nas décadas seguintes, apenas dos poemas. Neste sentido, há um trecho
índice de uma poética que, sessenta anos ficaram de fora três livros dos anos 50, O na nota do autor muito revelador de sua
antes, com a publicação, em 1942, do cão sem plumas, de 1950, O rio, de 1954, e operação poética. Diz ele, referindo-se a
livro Pedra do sono começava a se cons- Morte e vida severina, de 1955, e um dos si mesmo:
tituir. Inquietações e curiosidades acerca anos 60, Dois parlamentos, de 1961. E esta “Quem teve contacto com pouca
da criação poética, opostas à gratuidade ausência é, para mim, reveladora do modo parte de sua obra sabe que ele nunca
do dom, a que também se refere na nota pelo qual João Cabral assumiu nesta obra entendeu a linguagem poética como uma
do autor, agora organizadas nas duas de 1982 a literalidade da expressão com coisa autônoma, intransitiva, uma fo-
partes deste livro através das quais é que intitulou o livro: “poesia crítica” gueira ardendo por si, cujo interesse
possível ler as engrenagens de sua como crítica da poesia e de criadores, estaria no próprio espetáculo de sua
“machine à émouvoir”. “poetas ou não”, desprezando aquele combustão: mas como uma forma de
Examinando-se mais detidamente a aspecto que, exatamente a partir dos anos linguagem como qualquer outra.
estrutura deste livro, é possível ter 50, mais precisamente com O cão sem “Uma forma de linguagem transitiva,
algumas constatações interessantes. plumas, passou a ser uma marca indelével com a qual se poderia falar de qualquer
Assim, por exemplo, se é inegável a de sua poesia, isto é, a crítica da realidade coisa, contanto que sua qualidade de
predominância de poemas que vêm de social e histórica com que buscou a linguagem poética fosse preservada.”
Museu de tudo, de 1975 (um total de nomeação poética. Ora, foi exatamente Deste modo, entre intransitividade e
quarenta no conjunto de oitenta, o que naqueles livros dos anos 50 e naquele dos transitividade, pólos da comunicação
significa metade do livro), é de notar que, 60, representantes daquilo a que o próprio poética, por onde os aspectos artísticos e
da obra do poeta, todos os livros pu- João Cabral chamou de “poesia em voz comunicacionais de toda poesia são in-
blicados nos anos 40 forneceram poemas alta”, que, de modo mais manifesto, tensificados, embora estrategicamente
ou fragmentos de poemas para a cons- perfilou a crítica social e histórica como afirmando valores transitivos, modo que
tituição de A poesia crítica, desde Pedra do assunto privilegiado de sua poética. “De se revela através da cláusula restritiva
sono, de 1942, até a Psicologia da composição modo mais manifesto”: o que não signi- final que acentua a preservação de qua-

24 CULT - dezembro/99
Acervo do Última Hora/Arquivo do Estado de São Paulo Cronologia de João Cabral
1920 Nasce em Recife, no dia 9 de
janeiro. Passa a infância em engenhos de
açúcar de São Lourenço da Mata e
Moreno.
1930 Entra no Colégio de Ponte
d’Uchoa, dos Irmãos Maristas, em
Recife.
1940 Em viagem ao Rio de Janeiro,
conhece Murilo Mendes e Carlos
Drummond de Andrade.
1942 Publica Pedra do sono. Muda-se
para o Rio.
1943 A Revista do Brasil publica Os três
João Cabral em lançamento de livro nos
anos 60 (à esquerda, a atriz Odete Lara) mal-amados.
1945 Lança O engenheiro. É aprovado
em concurso para a carreira diplomática.
1946 Casa-se com Stella Maria Barbosa
de Oliveira. Nasce sua primeiro filho,
Rodrigo.
1947 Trabalha no Consulado do Brasil
em Barcelona, onde conhece o poeta
lidade da linguagem poética, João Cabral çamento de linguagem (e, portanto, visual Joan Brossa e o artista plástico
não faz senão sublinhar a tensão fun- existencial) tal como se mostra em textos Antoni Tàpies. Edição de Psicologia da
damental de qualquer enunciação poé- de Pedra do sono, Os três mal-amados e composição com a Fábula de Anfion e a
tica. Por onde, talvez, se possa dizer que mesmo O engenheiro, não obstante os Antiode.
nem é toda poesia intransitiva que se vestígios de acertos poéticos que se dão, 1948 Nasce sua filha Inês.
condena, nem qualquer uma transitiva sobretudo, naqueles poemas em que
1949 Nasce seu filho Luiz. Amizade
que se aceita, na medida em que a assoma a consciência do fazer poético
com o pintor Joan Miró.
transitividade é qualificada pela “qua- (como ocorre na própria concepção
lidade da linguagem poética”, assim parodística que está em Os três mal- 1950 Publica O cão sem plumas.
como a intransitividade encontra a sua amados ou nas falas do personagem Transferência para Londres.
condenação naquela, por exemplo, pra- Raimundo, transcritas neste livro de 1952 Acusado de subversão, volta ao
ticada por René Char, tal como está num 1982) ou naqueles em que encontra nas
Brasil para responder a inquérito.
poema deste livro de 1982 (“Anti-Char”). artes visuais “correlatos objetivos”
E o que é mais notável no texto é exa- apropriados (como ocorre com os dois 1953 Escreve O rio. É colocado em
tamente que a intransitividade é con- textos sobre pintores, “A André Masson” disponibilidade e trabalha no jornal A
denada por ser de língua, e não de e “Homenagem a Picasso”), além da- Vanguarda.
linguagem: sem encontrar um objeto, queles, é claro, em que tematiza a 1954 Retorna à diplomacia.
coisa ou coisas, como diz João Cabral, o própria criação poética, como é o caso
poema não tem um substrato crítico por dos dois poemas de O engenheiro, “O 1955 Nasce sua filha Isabel.
onde seja possível fazer da intransi- poema” e “A lição de poesia”, também 1956 Lança Duas águas, reunindo os
tividade uma outra forma de comunicação incluídos na antologia de 1982. livros anteriores e os inéditos Morte e vida
poética. Embora tais acertos possam servir de severina, Paisagens com figuras e Uma faca
Na verdade, se se acompanha o exemplos do modo pelo qual a procura só lâmina. Trabalha nos consulados de
percurso do poeta entre os anos 40 e 50, da poesia, envolvendo a meditação Barcelona e, depois, de Sevilha.
percebe-se como aquilo que está nos poética acerca da própria composição,
1958 É transferido para Marselha.
poemas do livro de 1947, sobretudo “fogueira ardendo por si”, pode se
através da Psicologia da composição e da traduzir também em veículo de tran- 1960 Lança Quaderna em Lisboa.
Antiode, põe em xeque um certo esgar- sitividade, terminaram, na obra de 1947, Muda-se para Madri.

dezembro/99 - CULT 25
COISAS DE CABECEIRA, RECIFE COISAS DE CABECEIRA, SEVILHA

Diversas coisas se alinham na memória Diversas coisas se alinham na memória


numa prateleira com o rótulo: Recife. numa prateleira com o rótulo: Sevilha.
Coisas como de cabeceira da memória, Coisas, se na origem apenas expressões
a um tempo coisas e no próprio índice; de ciganos dali; mas claras e concisas
e pois que em índice: densas, recortadas, a um ponto de se condensarem em coisas,
bem legíveis, em suas formas simples. bem concretas, em suas formas nítidas.

2 2

Algumas delas, e fora as já contadas: Algumas delas, e fora as já contadas:


o combogó, cristal do número quatro; não esparramarse, fazer na dose certa;
os paralelepípedos de algumas ruas, por derecho, fazer qualquer que fazer,
de linhas elegantes mas grão áspero; e o do ser, com a incorrupção da reta;
a empena dos telhados, quinas agudas con nervio, dar a tensão ao que se faz
como se também para cortar, telhados; da corda de arco e a retensão da seta;
os sobrados, paginados em romancero, pies claros, qualidade de quem dança,
várias colunas por fólio, imprensados. se bem pontuada a linguagem da perna.
(Coisas de cabeceira, firmando módulos: (Coisas de cabeceira somam: exponerse,
assim, o do vulto esguio dos sobrados.) fazer no extremo, onde o risco começa.)

por serem, por assim dizer, resolvidos por levada ao extremo da negatividade e da constituem o que já se chamou de “o
uma intensa poética da negatividade, abstração daí decorrente. tríptico do rio”, e que inclui O rio e Morte
como está, sobretudo, na Antiode que, na Neste sentido, basta que se atente para e vida severina, assim como aquela obra
obra do poeta, assume as feições de um a maneira com que se realiza a adequação dos anos 60, Dois parlamentos, que,
verdadeiro manifesto antilírico. E é entre a linguagem e seu objeto, quando juntamente a Quaderna, de 1960, e Serial,
precisamente este antilirismo, levado a entre as paisagens do rio e o discurso com de 1961, foi publicada na Terceira feira,
seu extremo, quer dizer, não sendo ape- que são nomeadas passa a existir um de 1961. Mas o que ficou dito encontra a
nas de recusa temática, mas de incertezas entrançamento de tal ordem que a sua razão objetiva naquilo de que dá
quanto a maneiras de dizer, que vai representação da realidade passa a ser conta Poesia crítica e que se estende, como
permitir o encontro de objetos na rea- dependente de uma constante indagação já se disse, desde Pedra do sono até A escola
lidade social e histórica capazes de acerca dos termos que são utilizados para das facas. E isto porque, nesta antologia,
redefinir o veio crítico daquela poesia que a sua nomeação. o que vincula os poemas escolhidos é a
escolhera cultivar o deserto, “pomar às Deste modo, a transitividade, que persistência de uma meditação acerca da
avessas”, como está na Psicologia da pode enganosamente parecer óbvia, é criação poética que se dá na própria
composição. Era o encontro da tran- relativizada pelo que há, como sempre, composição, instaurando o espaço para
sitividade possível num legado de dra- de abstrato e, portanto, de intransitivo, o exercício de uma metalinguagem que
mática (porque dialógica e não pacificada no trabalho com a linguagem. está para além de sua corriqueira defi-
ou pacificadora) intransitividade, cuja Dizendo de outra maneira: o en- nição de poesia sobre poesia, na medida
primeira manifestação foi o texto dos anos contro da transitividade possível, e que em que se, na primeira parte, “Lingua-
50, O cão sem plumas. será o motor principal da continuidade gem”, em alguns casos, poeta e poema se
A leitura deste poema, entretanto, é da poesia de João Cabral, não se fez com voltam sobre si mesmos, na segunda,
capaz de mostrar como a transitividade o abandono de uma consciência poética “Linguagens”, trata-se antes de encontrar
atingida, com toda a sua carga de crítica agudizada pelos limites da intransiti- em objetos, coisas, poetas, poemas,
social e de releitura histórica de um vidade – o legado, a que, por isso mesmo, aquelas situações ou formas com que a
espaço e de um tempo regionais, não chamei de dramático, do tríptico ne- linguagem de João Cabral passa a
despreza, antes incorpora de modo gativo de 1947. dialogar, imitando-os. E se já nos dois
bastante agudo, as conquistas de uma Isto que está dito de O cão sem plumas outros livros dos anos 50, Paisagens com
experiência com a linguagem poética é partilhado por aquelas obras que figuras e Uma faca só lâmina, ambos do

26 CULT - dezembro/99
1961 Lança Dois parlamentos, em Madri.
Divulgação

Trabalha em Brasília como chefe de


gabinete do Ministério da Cultura.
Publica Terceira feira, que reúne
Quaderna, Dois parlamentos e Serial.
1962 É transferido para Sevilha.
1964 Trabalha na delegação do Brasil
na ONU, em Genebra. Nasce seu filho
João.
1966 Trabalha na embaixada de Berna.
Lança A educação pela pedra.
1967 É nomeado cônsul-geral em
Barcelona.
O poeta no filme Liames, o mundo espanhol 1968 É eleito para a Academia Brasileira
de João Cabral de Melo Neto (1979) de Letras.
1969 Transferência para o Paraguai.
1972 Vai para Dacar como embai-
xador, para Senegal, Mauritânia, Mali
e Guiné.
1975 Lança Museu de tudo.
1979 Embaixador no Equador. Publica
A escola das facas.
mesmo ano de 1956, esta espécie de formas assumidas por eles para se iden-
imitação é central para a leitura de alguns tificarem enquanto passíveis de imitação 1981 Embaixador em Honduras.
textos (como, por exemplo, os quatro pela poesia. 1982 É nomeado cônsul no Porto, em
poemas da primeira obra e o fragmento Mas, atenção!, não se pense num Portugal. Lança Auto do frade e Poesia
da segunda incluídos aqui na antologia), esvaziamento de conteúdos: exatamente crítica (antologia).
é com o livro de 1967, A educação pela por sua dependência em relação ao
pedra, de que são recolhidos dez poemas processo de formalização, o trânsito de 1985 Publica Agrestes.
nesta obra de 1982, que mais inten- conteúdos termina por ser mais intenso e 1986 Após a morte de Stella, no Rio de
samente se perfila aquele modo muito problematizador desde que, ao mesmo Janeiro, casa-se com a poeta Marly de
pessoal de fazer da imitação, não somente tempo que diz da realidade, diz também Oliveira.
de conteúdos, mas das formas que os de uma maneira específica de sua apre-
representam, um caminho possível para ensão pelo poema. 1987 Lança Crime na Calle Relator. É
a configuração transitiva do poema. Seja O poema não somente diz alguma transferido para o Rio de Janeiro.
no relacionamento de coisas que, “em coisa acerca do objeto, mas diz de si 1990 Aposenta-se e lança Sevilha
suas formas simples”, permitem a leitura mesmo ao dizer, dando, assim, uma maior andando. É eleito para a Academia
do espaço recifense, como está em densidade àquilo que diz. Pernambucana de Letras e recebe o
“Coisas de cabeceira, Recife”, seja na Não há dúvida de que por todo esse Prêmio Luís de Camões.
leitura de expressões usuais que, “em suas processo passa um sentido de apren-
1994 Publicação de sua Obra completa
formas nítidas”, viabilizam a leitura de dizagem que é tanto do poeta com os
pela editora Nova Aguilar.
Sevilha, em “Coisas de cabeceira, objetos da realidade (chamem-se expe-
Sevilha”, seja na leitura que se faz do riências cotidianas, literatura, artes 1999 Morre em seu apartamento no
símile inusitado entre o ato de catar feijão visuais, poetas, pintores, arquitetos, bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, no
e a escrita, assim como nos outros toureiros etc.) quanto do leitor desta dia 9 de outubro.
poemas que comparecem nesta antologia, poesia que vai, à medida que recompõe a
por todo o livro de 1967 passa a mesma sua experiência com a linguagem da fonte: Cadernos de Literatura Brasileira
maneira de composição tensa que resulta poesia, incorporando interpretações e n. 1 – João Cabral de Melo Neto, Instituto
em buscar a formalização poética não de análises que, todas, formam o conjunto Moreira Salles, 1996.
conteúdos dados pela realidade, mas das de uma incessante meditação crítica.

dezembro/99 - CULT 27
Acervo do Última Hora/Arquivo do Estado de São Paulo
A LIÇÃO DE POESIA

Toda a manhã consumida


como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar


sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,


cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2
João Cabral na Academia
A noite inteira o poeta Brasileira de Letras
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas


de palavras, circulando, Este sentido é, talvez, o núcleo es- Serial, o domínio pleno da linguagem da
urinando sobre o papel, sencial, até mesmo pelos seus títulos, quer poesia permite ao poeta explorar ao
sujando-o com seu carvão. da obra de 1967, quer da obra de 1980, A máximo aqueles intervalos que estão
escola das facas, a última de onde foram entre os componentes lúcidos e lúdicos
Carvão de lápis, carvão extraídos poemas (mais precisamente, do poema, seja lendo poetas (como
da idéia fixa, carvão cinco) para a antologia de 1982. Mas Berceo, Racine, Reverdy, Valéry, Joaquim
da emoção extinta, carvão entre uma e outra, está aquela de onde Cardozo, Dylan Thomas, Auden,
consumido nos sonhos.
mais saíram textos para a antologia, como Manuel Bandeira, Quevedo, Rilke, Char,
3 já se observou: Museu de tudo, de 1975, Alberti, para só citar os que estão
onde, mais do que em nenhuma outra, antologizados), ficcionistas (Marques
A luta branca sobre o papel com exceção talvez de Agrestes, mas esta Rebelo, Proust), artistas visuais
que o poeta evita, somente será publicada em 1985, João (Mondrian, Joaquim do Rego Monteiro,
luta branca onde corre o sangue Cabral exerceu, com extrema e convin- Mary Vieira, Dogon, Weissmann, Vera
de suas veias de água salgada. cente liberdade, o diálogo crítico- Mindlin), ensaístas (Pereira da Costa,
poético, arrastando para o seu espectro Gilberto Freyre, Willy Lewin), jogadores
A física do susto percebida
poético toda a sua enorme experiência de de futebol (Ademir da Guia, Ademir
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas leitura, seja da realidade, das formas da Menezes), “alguns toureiros” etc. etc., ao
porém imóveis – naturezas vivas. realidade, melhor dizendo, seja das artes mesmo tempo que em outros poemas
visuais e da própria poesia. Tão im- reflete sobre a condição do artista e do
E as vinte palavras recolhidas portante foi esta obra para o conjunto de poeta, como está em “O artista in-
nas águas salgadas do poeta sua produção que se pôde mesmo pu- confessável”, “O autógrafo” e “Retrato
e de que se servirá o poeta blicar um volume, em 1988, sob o título de poeta”, ou sobre a arte em geral, como
em sua máquina útil. de Museu de tudo e depois, que incluía A em “A lição de pintura”.
escola das facas, Auto do frade, Agrestes e Reunindo tais poemas nesta antologia
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento, Crime na Calle Relator. de 1982, juntamente àqueles que, antes
a evaporação, a densidade Neste livro, ampliando algumas de Museu de tudo, já marcavam uma
menor que a do ar. conquistas que já estavam na Terceira feira poética em que a poesia e a crítica não
dos anos 60, sobretudo em Quaderna e apenas coexistem, mas são interdepen-

28 CULT - dezembro/99
dentes, João Cabral dava mais uma lição

Juan Esteves
ao leitor, e ao leitor-crítico, de sua obra:
O crítico João Alexandre Barbosa – que assina mensalmente
na CULT a seção “Entre Livros” – sempre foi, segundo suas
a de que a sonhada transitividade do próprias palavras, um “crítico perseguidor” da obra de João
poema não se atinge sem o risco da crítica Cabral de Melo Neto, resultando dessa obsessão pessoal as
análises mais importantes já escritas sobre a obra do poeta
de seus termos. Uma “poesia crítica”, sem pernambucano. Além do livro A imitação da forma (Livraria Duas
cair, como ele advertia temerosamente na Cidades), João Alexandre escreveu os seguintes ensaios sobre
João Cabral: “Linguagem & Metalinguagem em João Cabral”
nota do autor, “no pior dos impres- (em A metáfora crítica, editora Perspectiva), “Balanço de João
sionismos” porque instaurada entre Cabral” (em As ilusões da modernidade, Perspectiva), “Crítica

linguagem e linguagens. Mais ainda: poética de Le Corbusier” (em A leitura do intervalo, Iluminuras),
“João Cabral ou a educação pela poesia” (em A biblioteca
uma “poesia crítica” que é crítica da imaginária (Ateliê Editorial) e “Sevilha, objeto de paixão” (em
poesia e de tudo aquilo que lhe serve Entre livros, Ateliê Editorial) – além do ensaio “A lição de
João Cabral”, publicado no primeiro número dos Cadernos
como matéria de nomeação. de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles.
Em numerosas entrevistas, João
Cabral revelou seu recôndito desejo de
ser não poeta, mas crítico, e embora tenha Para ler João Cabral
deixado alguns textos de prosa crítica de
A Obra completa de João Cabral de Melo Neto – incluindo sua produção poética e seus textos em prosa – está
grande densidade, creio que jamais se reunida numa edição de capa dura da Nova Aguilar, com 836 páginas em papel-bíblia e preço de R$ 85,00. A
apercebeu de como esta sua antologia de mais recente edição de suas poesias completas está nos dois volumes Serial e antes (326 págs., R$ 25,00) e A
1982 satisfazia aquela aspiração. educação pela pedra e depois (386 págs., R$ 25,00), publicados pela Nova Fronteira. Ao longo da vida do poeta,
foram editadas várias antologias feitas a partir de seus livros, como Duas águas (1956), Terceira feira (1961),
Estas minhas notas, ao mesmo tempo Poesias completas, 1940-1965 (1968), Poesia crítica (1982) e Museu de tudo e depois (1988). As duas coletâneas
que são uma homenagem de uma crítico mais recentes são Poemas pernambucanos (222 págs., R$ 25,00) e Poemas sevilhanos (220 págs., R$ 25,00),
perseguidor de sua obra que, com a também pela Nova Fronteira.
A fortuna crítica sobre o João Cabral é enorme. Uma ampla lista de obras e ensaios sobre o poeta pode ser
morte, se transforma em verdadeira- encontrada no número dedicado a ele em 1996 pelos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles
mente completa, pretendem ser também (informações pelo tel. 11/212-2100), que inclui ainda uma longa entrevista com o escritor e manuscritos inéditos.

uma contribuição no sentido de acoplar Entre os livros e ensaios obrigatórios estão João Cabral: A poesia do menos, de Antonio Carlos Secchin (Topbboks),
A pedra e o rio, de Lauro Escorel (Duas Cidades), Transição e permanência – Miró/João Cabral: da tela ao texto,
ao enorme poeta que ele foi, de todo de Aguinaldo Gonçalves (Iluminuras), e “A traição conseqüente ou a poesia de João Cabral”, de Luiz Costa Lima
direito, a figura do crítico magistral que (em Lira e antilira, Topbooks).

ele não poderia deixar de ter sido.

dezembro/99 - CULT 29

Você também pode gostar