Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
22 CULT - dezembro/99
a poesia crítica
de João Cabral
João Alexandre Barbosa
João Leite
O ensaísta João Alexandre Barbosa, mais importante
intérprete da obra de João Cabral de Melo Neto, escreve
sobre a dimensão crítica do escritor pernambucano, que
morreu em 9 de outubro, mostrando como seus poemas
contêm uma meditação sobre “o ofício de criar”
dezembro/99 - CULT 23
O ARTISTA INCONFESSÁVEL CATAR FEIJÃO ANTI-CHAR
Fazer o que seja é inútil. Catar feijão se limita com escrever: Poesia intransitiva,
Não fazer nada é inútil. jogam-se os grãos na água do alguidar sem mira e pontaria:
Mas entre fazer e não fazer e as palavras na da folha de papel; sua luta com a língua acaba
mais vale o inútil do fazer. e depois, joga-se fora o que boiar. dizendo que a língua diz nada.
Mas não, fazer para esquecer Certo, toda palavra boiará no papel,
que é inútil: nunca o esquecer. água congelada, por chumbo seu verbo: É uma luta fantasma,
Mas fazer o inútil sabendo pois para catar esse feijão, soprar nele, vazia, contra nada;
que ele é inútil, e bem sabendo e jogar fora o leve e oco, palha e eco. não diz a coisa, diz vazio;
que é inútil e que seu sentido nem diz coisas, é balbucio.
não será sequer pressentido, 2
fazer: porque ele é mais dificil
do que não fazer, e dificil- Ora, nesse catar feijão entra um risco:
mente se poderá dizer o de que entre os grãos pesados entre
com mais desdém, ou então dizer um grão qualquer, pedra ou indigesto,
mais direto ao leitor Ninguém um grão imastigável, de quebrar dente.
que o feito o foi para ninguém. Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
nomeação crítica da realidade múltipla, com a Fábula de Anfion e a Antiode, de 1947, fica que, no restante de sua obra, não
objeto de toda poesia. incluindo Os três mal-amados, de 1943, e compareçam textos por onde seja possível
A poesia crítica, esta que se apresenta O engenheiro, de 1945. Por outro lado, é ler a intensidade com que esta modalidade
neste livro de 1982 passada pelo escru- de acentuar que, do restante de sua obra de crítica era essencial para a estruturação
tínio do próprio poeta, não é senão o publicada nas décadas seguintes, apenas dos poemas. Neste sentido, há um trecho
índice de uma poética que, sessenta anos ficaram de fora três livros dos anos 50, O na nota do autor muito revelador de sua
antes, com a publicação, em 1942, do cão sem plumas, de 1950, O rio, de 1954, e operação poética. Diz ele, referindo-se a
livro Pedra do sono começava a se cons- Morte e vida severina, de 1955, e um dos si mesmo:
tituir. Inquietações e curiosidades acerca anos 60, Dois parlamentos, de 1961. E esta Quem teve contacto com pouca
da criação poética, opostas à gratuidade ausência é, para mim, reveladora do modo parte de sua obra sabe que ele nunca
do dom, a que também se refere na nota pelo qual João Cabral assumiu nesta obra entendeu a linguagem poética como uma
do autor, agora organizadas nas duas de 1982 a literalidade da expressão com coisa autônoma, intransitiva, uma fo-
partes deste livro através das quais é que intitulou o livro: poesia crítica gueira ardendo por si, cujo interesse
possível ler as engrenagens de sua como crítica da poesia e de criadores, estaria no próprio espetáculo de sua
machine à émouvoir. poetas ou não, desprezando aquele combustão: mas como uma forma de
Examinando-se mais detidamente a aspecto que, exatamente a partir dos anos linguagem como qualquer outra.
estrutura deste livro, é possível ter 50, mais precisamente com O cão sem Uma forma de linguagem transitiva,
algumas constatações interessantes. plumas, passou a ser uma marca indelével com a qual se poderia falar de qualquer
Assim, por exemplo, se é inegável a de sua poesia, isto é, a crítica da realidade coisa, contanto que sua qualidade de
predominância de poemas que vêm de social e histórica com que buscou a linguagem poética fosse preservada.
Museu de tudo, de 1975 (um total de nomeação poética. Ora, foi exatamente Deste modo, entre intransitividade e
quarenta no conjunto de oitenta, o que naqueles livros dos anos 50 e naquele dos transitividade, pólos da comunicação
significa metade do livro), é de notar que, 60, representantes daquilo a que o próprio poética, por onde os aspectos artísticos e
da obra do poeta, todos os livros pu- João Cabral chamou de poesia em voz comunicacionais de toda poesia são in-
blicados nos anos 40 forneceram poemas alta, que, de modo mais manifesto, tensificados, embora estrategicamente
ou fragmentos de poemas para a cons- perfilou a crítica social e histórica como afirmando valores transitivos, modo que
tituição de A poesia crítica, desde Pedra do assunto privilegiado de sua poética. De se revela através da cláusula restritiva
sono, de 1942, até a Psicologia da composição modo mais manifesto: o que não signi- final que acentua a preservação de qua-
24 CULT - dezembro/99
Acervo do Última Hora/Arquivo do Estado de São Paulo Cronologia de João Cabral
1920 Nasce em Recife, no dia 9 de
janeiro. Passa a infância em engenhos de
açúcar de São Lourenço da Mata e
Moreno.
1930 Entra no Colégio de Ponte
dUchoa, dos Irmãos Maristas, em
Recife.
1940 Em viagem ao Rio de Janeiro,
conhece Murilo Mendes e Carlos
Drummond de Andrade.
1942 Publica Pedra do sono. Muda-se
para o Rio.
1943 A Revista do Brasil publica Os três
João Cabral em lançamento de livro nos
anos 60 (à esquerda, a atriz Odete Lara) mal-amados.
1945 Lança O engenheiro. É aprovado
em concurso para a carreira diplomática.
1946 Casa-se com Stella Maria Barbosa
de Oliveira. Nasce sua primeiro filho,
Rodrigo.
1947 Trabalha no Consulado do Brasil
em Barcelona, onde conhece o poeta
lidade da linguagem poética, João Cabral çamento de linguagem (e, portanto, visual Joan Brossa e o artista plástico
não faz senão sublinhar a tensão fun- existencial) tal como se mostra em textos Antoni Tàpies. Edição de Psicologia da
damental de qualquer enunciação poé- de Pedra do sono, Os três mal-amados e composição com a Fábula de Anfion e a
tica. Por onde, talvez, se possa dizer que mesmo O engenheiro, não obstante os Antiode.
nem é toda poesia intransitiva que se vestígios de acertos poéticos que se dão, 1948 Nasce sua filha Inês.
condena, nem qualquer uma transitiva sobretudo, naqueles poemas em que
1949 Nasce seu filho Luiz. Amizade
que se aceita, na medida em que a assoma a consciência do fazer poético
com o pintor Joan Miró.
transitividade é qualificada pela qua- (como ocorre na própria concepção
lidade da linguagem poética, assim parodística que está em Os três mal- 1950 Publica O cão sem plumas.
como a intransitividade encontra a sua amados ou nas falas do personagem Transferência para Londres.
condenação naquela, por exemplo, pra- Raimundo, transcritas neste livro de 1952 Acusado de subversão, volta ao
ticada por René Char, tal como está num 1982) ou naqueles em que encontra nas
Brasil para responder a inquérito.
poema deste livro de 1982 (Anti-Char). artes visuais correlatos objetivos
E o que é mais notável no texto é exa- apropriados (como ocorre com os dois 1953 Escreve O rio. É colocado em
tamente que a intransitividade é con- textos sobre pintores, A André Masson disponibilidade e trabalha no jornal A
denada por ser de língua, e não de e Homenagem a Picasso), além da- Vanguarda.
linguagem: sem encontrar um objeto, queles, é claro, em que tematiza a 1954 Retorna à diplomacia.
coisa ou coisas, como diz João Cabral, o própria criação poética, como é o caso
poema não tem um substrato crítico por dos dois poemas de O engenheiro, O 1955 Nasce sua filha Isabel.
onde seja possível fazer da intransi- poema e A lição de poesia, também 1956 Lança Duas águas, reunindo os
tividade uma outra forma de comunicação incluídos na antologia de 1982. livros anteriores e os inéditos Morte e vida
poética. Embora tais acertos possam servir de severina, Paisagens com figuras e Uma faca
Na verdade, se se acompanha o exemplos do modo pelo qual a procura só lâmina. Trabalha nos consulados de
percurso do poeta entre os anos 40 e 50, da poesia, envolvendo a meditação Barcelona e, depois, de Sevilha.
percebe-se como aquilo que está nos poética acerca da própria composição,
1958 É transferido para Marselha.
poemas do livro de 1947, sobretudo fogueira ardendo por si, pode se
através da Psicologia da composição e da traduzir também em veículo de tran- 1960 Lança Quaderna em Lisboa.
Antiode, põe em xeque um certo esgar- sitividade, terminaram, na obra de 1947, Muda-se para Madri.
dezembro/99 - CULT 25
COISAS DE CABECEIRA, RECIFE COISAS DE CABECEIRA, SEVILHA
2 2
por serem, por assim dizer, resolvidos por levada ao extremo da negatividade e da constituem o que já se chamou de o
uma intensa poética da negatividade, abstração daí decorrente. tríptico do rio, e que inclui O rio e Morte
como está, sobretudo, na Antiode que, na Neste sentido, basta que se atente para e vida severina, assim como aquela obra
obra do poeta, assume as feições de um a maneira com que se realiza a adequação dos anos 60, Dois parlamentos, que,
verdadeiro manifesto antilírico. E é entre a linguagem e seu objeto, quando juntamente a Quaderna, de 1960, e Serial,
precisamente este antilirismo, levado a entre as paisagens do rio e o discurso com de 1961, foi publicada na Terceira feira,
seu extremo, quer dizer, não sendo ape- que são nomeadas passa a existir um de 1961. Mas o que ficou dito encontra a
nas de recusa temática, mas de incertezas entrançamento de tal ordem que a sua razão objetiva naquilo de que dá
quanto a maneiras de dizer, que vai representação da realidade passa a ser conta Poesia crítica e que se estende, como
permitir o encontro de objetos na rea- dependente de uma constante indagação já se disse, desde Pedra do sono até A escola
lidade social e histórica capazes de acerca dos termos que são utilizados para das facas. E isto porque, nesta antologia,
redefinir o veio crítico daquela poesia que a sua nomeação. o que vincula os poemas escolhidos é a
escolhera cultivar o deserto, pomar às Deste modo, a transitividade, que persistência de uma meditação acerca da
avessas, como está na Psicologia da pode enganosamente parecer óbvia, é criação poética que se dá na própria
composição. Era o encontro da tran- relativizada pelo que há, como sempre, composição, instaurando o espaço para
sitividade possível num legado de dra- de abstrato e, portanto, de intransitivo, o exercício de uma metalinguagem que
mática (porque dialógica e não pacificada no trabalho com a linguagem. está para além de sua corriqueira defi-
ou pacificadora) intransitividade, cuja Dizendo de outra maneira: o en- nição de poesia sobre poesia, na medida
primeira manifestação foi o texto dos anos contro da transitividade possível, e que em que se, na primeira parte, Lingua-
50, O cão sem plumas. será o motor principal da continuidade gem, em alguns casos, poeta e poema se
A leitura deste poema, entretanto, é da poesia de João Cabral, não se fez com voltam sobre si mesmos, na segunda,
capaz de mostrar como a transitividade o abandono de uma consciência poética Linguagens, trata-se antes de encontrar
atingida, com toda a sua carga de crítica agudizada pelos limites da intransiti- em objetos, coisas, poetas, poemas,
social e de releitura histórica de um vidade o legado, a que, por isso mesmo, aquelas situações ou formas com que a
espaço e de um tempo regionais, não chamei de dramático, do tríptico ne- linguagem de João Cabral passa a
despreza, antes incorpora de modo gativo de 1947. dialogar, imitando-os. E se já nos dois
bastante agudo, as conquistas de uma Isto que está dito de O cão sem plumas outros livros dos anos 50, Paisagens com
experiência com a linguagem poética é partilhado por aquelas obras que figuras e Uma faca só lâmina, ambos do
26 CULT - dezembro/99
1961 Lança Dois parlamentos, em Madri.
Divulgação
dezembro/99 - CULT 27
Acervo do Última Hora/Arquivo do Estado de São Paulo
A LIÇÃO DE POESIA
2
João Cabral na Academia
A noite inteira o poeta Brasileira de Letras
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
28 CULT - dezembro/99
dentes, João Cabral dava mais uma lição
Juan Esteves
ao leitor, e ao leitor-crítico, de sua obra:
O crítico João Alexandre Barbosa – que assina mensalmente
na CULT a seção “Entre Livros” – sempre foi, segundo suas
a de que a sonhada transitividade do próprias palavras, um “crítico perseguidor” da obra de João
poema não se atinge sem o risco da crítica Cabral de Melo Neto, resultando dessa obsessão pessoal as
análises mais importantes já escritas sobre a obra do poeta
de seus termos. Uma poesia crítica, sem pernambucano. Além do livro A imitação da forma (Livraria Duas
cair, como ele advertia temerosamente na Cidades), João Alexandre escreveu os seguintes ensaios sobre
João Cabral: “Linguagem & Metalinguagem em João Cabral”
nota do autor, no pior dos impres- (em A metáfora crítica, editora Perspectiva), “Balanço de João
sionismos porque instaurada entre Cabral” (em As ilusões da modernidade, Perspectiva), “Crítica
linguagem e linguagens. Mais ainda: poética de Le Corbusier” (em A leitura do intervalo, Iluminuras),
“João Cabral ou a educação pela poesia” (em A biblioteca
uma poesia crítica que é crítica da imaginária (Ateliê Editorial) e “Sevilha, objeto de paixão” (em
poesia e de tudo aquilo que lhe serve Entre livros, Ateliê Editorial) – além do ensaio “A lição de
João Cabral”, publicado no primeiro número dos Cadernos
como matéria de nomeação. de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles.
Em numerosas entrevistas, João
Cabral revelou seu recôndito desejo de
ser não poeta, mas crítico, e embora tenha Para ler João Cabral
deixado alguns textos de prosa crítica de
A Obra completa de João Cabral de Melo Neto – incluindo sua produção poética e seus textos em prosa – está
grande densidade, creio que jamais se reunida numa edição de capa dura da Nova Aguilar, com 836 páginas em papel-bíblia e preço de R$ 85,00. A
apercebeu de como esta sua antologia de mais recente edição de suas poesias completas está nos dois volumes Serial e antes (326 págs., R$ 25,00) e A
1982 satisfazia aquela aspiração. educação pela pedra e depois (386 págs., R$ 25,00), publicados pela Nova Fronteira. Ao longo da vida do poeta,
foram editadas várias antologias feitas a partir de seus livros, como Duas águas (1956), Terceira feira (1961),
Estas minhas notas, ao mesmo tempo Poesias completas, 1940-1965 (1968), Poesia crítica (1982) e Museu de tudo e depois (1988). As duas coletâneas
que são uma homenagem de uma crítico mais recentes são Poemas pernambucanos (222 págs., R$ 25,00) e Poemas sevilhanos (220 págs., R$ 25,00),
perseguidor de sua obra que, com a também pela Nova Fronteira.
A fortuna crítica sobre o João Cabral é enorme. Uma ampla lista de obras e ensaios sobre o poeta pode ser
morte, se transforma em verdadeira- encontrada no número dedicado a ele em 1996 pelos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles
mente completa, pretendem ser também (informações pelo tel. 11/212-2100), que inclui ainda uma longa entrevista com o escritor e manuscritos inéditos.
uma contribuição no sentido de acoplar Entre os livros e ensaios obrigatórios estão João Cabral: A poesia do menos, de Antonio Carlos Secchin (Topbboks),
A pedra e o rio, de Lauro Escorel (Duas Cidades), Transição e permanência – Miró/João Cabral: da tela ao texto,
ao enorme poeta que ele foi, de todo de Aguinaldo Gonçalves (Iluminuras), e “A traição conseqüente ou a poesia de João Cabral”, de Luiz Costa Lima
direito, a figura do crítico magistral que (em Lira e antilira, Topbooks).
dezembro/99 - CULT 29