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Volume 1 | Número 11 | julho a dezembro de 2013

Universidade Estadual da Paraíba


Profª. Marlene Alves Sousa Luna
Reitora
Prof. Aldo Bezerra Maciel
Vice-Reitor

Editora da Universidade
Estadual da Paraíba

Diretor
Cidoval Morais de Sousa

Diagramação
Carlos Alberto de Araujo Nacre

Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura e


Interculturalidade do Departamento de Letras

Direção Geral e Editorial


Antonio Carlos de Melo Magalhães, Eli Brandão da Silva, Luciano B.
Justino e Sébastien Joachim

Editor(es) deste número


Antonio Carlos de Melo Magalhães e Maria Goretti Ribeiro

Conselho Editorial
Alain Vuillemin, UNIVERSITÉ D´ARTOIS
Alfredo Adolfo Cordiviola, UFPE/UEPB
Antonio Carlos de Melo Magalhães, UEPB
Arnaldo Saraiva, UNIVERSÍDADE DE PORTO
Ermelinda Ferreira Araujo, UFPE/UEPB
Goiandira F. Ortiz Camargo, UFG
Jean Fisette, UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À MONTRÉAL ( UQAM)
Max Dorsinville, MC GILL UNIVERSITY, MONTRÉAL
Maximilien Laroche, UNIVERSITÉ LAVAL, QUÉBEC
Regina Zilberman, PUC-RS
Rita Olivieri Godet, UNIVERSITÉ DE RENNES II
Roland Walter, UFPE/UEPB
Sandra Nitrini, USP
Saulo Neiva, UNIVERSITÉ BLAISE PASCAL
Sudha Swarnakar, UEPB

Coordenadores do Mestrado em Literatura e Interculturalidade


Luciano Barbosa Justino
Antonio Carlos de Melo Magalhães

Revisores
Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino,
Sébastien Joachim, Antonio Magalhães

Projeto Original da Capa


Everaldo Araújo
Sociopoética
Volume 1 | Número 11 | julho a dezembro de 2013

A literatura e os lugares
de gênero da cultura

Campina Grande - PB
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5

“AQUILO NEM PARECE MULHER FÊMEA”:


A NARRATIVA DE UM CORPO ABJETO
NA CONSTRUÇÃO DE LUZIA-HOMEM 7

NO EMBALO DA SUINGUEIRA:
O USO DA ETNOCARTOGRAFIA NA INVESTIGAÇÃO
DAS REDES SOCIAIS 26

IMPLICAÇÕES DO USO DO TERMO CORPO


NOS ESTUDOS DE GÊNERO,
FEMINISTAS E QUEERS 51

FORMAÇÕES IDENTITÁRIAS EM CAIO FERNANDO ABREU:


UM ESTUDO DO ETHOS DISCURSIVO 79

ESTUDOS DA HOMOCULTURA:
APONTAMENTOS SOBRE A CRIAÇÃO DO GT
DA ANPOLL E FACES CRÍTICAS DO HOMOEROTISMO
NA FICÇÃO LITERÁRIA 111

PAPÉIS DE GÊNERO, HOMOEROTISMO E VIOLÊNCIA


EM UM CONTO BRASILEIRO DA METADE
DO SÉCULO XX 138

FÁBULAS SUTIS DA DIFERENÇA:


UMA LEITURA DE OLGA E CLÁUDIO, DE MÁRIO CLÁUDIO 160

A HOMOAFETIVIDADE FEMININA EM
LYGIA FAGUNDES TELLES 177

O RETORNO DA FAMÍLIA NAS SÉRIES TELEVISIVAS 194


APRESENTAÇÃO

A literatura e os lugares de gênero da cultura

As reflexões sobre questões de gênero na em várias


mídias e seus reflexos no cotidiano das pessoas têm se
tornado importante campo de pesquisa no Brasil. Mesmo
com muitas chamadas de periódicos sobre as relações
de gênero na literatura e nos diversos lugares da cultura,
nos últimos anos, este volume mantém, em seus artigos,
a novidade das discussões, porque os textos dele, quando
falam sobre um “lugar” já dado, são filtrados por outras
visadas, corroborando a necessidade de questionamento
de fenômenos, no momento em que pesquisadores
se debruçam sobre objetos e corpus de análise que já
estiveram em cenas de outras discussões.

As problemáticas envolvendo os corpos e suas


configurações, ainda pautadas nas clássicas imagens do
masculino e do feminino, continuam sendo um “lócus”
profícuo de reflexões na atualidade, porque essas
imagens já perderam seus antigos lugares e propiciaram
o surgimento de outras manifestações e performances,
seja na literatura, na televisão, nas séries televisivas,
em clubes ou outras “espacialidades” que problematizem
os indivíduos em suas subjetivações construídas no e
para o corpo.


O objetivo deste número da Sociopoética e tornar
pública as produções de pesquisadores da área que
projetaram nos artigos ideias que defendem e que
encontram respaldo teórico e pragmático, porque têm
nas vivências dos indivíduos em suas movências afetivas,
bem como endereçamento para os outros de seus afetos
a chave de leitura para cada imagem ou problema dado.
A contribuição desta edição é no sentido de ampliar os
estudos já feitos, aproximando as questões postas do
momento em que estamos vivendo. Os olhares sobre
gênero, então, exibem as alterações feitas na base
teórica, nas performatividades, nos modos de aparecer
e interpretar as subjetividades emergentes e as que
reiteram antigas ordens, sobretudo quanto ao que se
entende por corpo e sujeito.
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“AQUILO NEM PARECE MULHER FÊMEA”:


A NARRATIVA DE UM CORPO ABJETO
NA CONSTRUÇÃO DE LUZIA-HOMEM

Suely Messeder (UNEB)*


Ana Gabriela Pio (UNEB)**

RESUMO:
Este artigo versará sobre como a masculinidade é vivida por Luiza-Homem,
personagem protagonista do romance de Domingos Olímpio, escrito em 1903.
Neste romance, narra-se a história insólita desta personagem cujo destino foi
colorido de forma drástica por conta da sua aparência física. No romance, o
narrador onisciente não borra a natureza da mulher em Luzia; ele usa o pincel
mostrando os traços que a colocam no lugar de mulher, enquanto a maioria
dos personagens enfatiza o seu lado viril. A partir desta narrativa inspirada
na ficção regionalista moderna, propomos que seja feita uma nova leitura
de Luzia-Homem sob a perspectiva da teoria queer; com isto, porém, não
estamos insinuando que a personagem tenha uma práxis queer tampouco o
seu autor. Nesta narrativa, salta aos olhos como a aparência importa, e importa
sobremaneira, daí porque traremos à baila a construção desta subjetividade
corpórea considerando a relação com a família, com as vizinhanças e consigo
mesma, em uma nova perspectiva.

Palavras-chave: Masculinidades. Corpo abjeto. Teoria feminista/Teoria queer.

“THAT WOMAN DOESN’T LOOK LIKE A FEMALE WOMAN”:


THE NARRATIVE OF AN ABJECT BODY IN THE CONSTRUCTION OF
“LUZIA-HOMEM”

ABSTRACT:
This article will focus on how masculinity is experienced by Luiza-Homem,
the main character of the novel by Domingos Olympio, written in 1903. This
novel narrates the unusual history of this character whose fate was dramatically
colorful because of their physical appearance. In the novel, the omniscient
narrator does not blur the nature of woman in Luzia; he uses the brush showing
the traits that put her in the place for women, while most of the characters
emphasizes his manly side. From this narrative inspired by modern regionalist
fiction, we propose a new reading of Lucia-Man from the perspective of queer
theory. However, we are not implying that the character has a queer praxis
nor its author. In this narrative, strikes the eye like appearance matters, and
matters greatly, hence why we bring to the fore the construction of this corporeal
subjectivity considering the relationship with the family, with the neighborhoods
and herself, in a new perspective.

Keywords: Masculinities. Abject body. Feminist theory / queer theory.


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INTRODUÇÃO

O desconforto e a aspereza promovidos pela presença


de mulheres com atos performativos de gênero masculino
tem sido a nossa companhia desde que nos debruçamos
sobre a pesquisa acerca da vivência das mulheres
masculinizadas1. Estes sentimentos são revelados em
dois momentos, ora quando as interlocutoras narram
sobre como as pessoas as encaram em seu cotidiano
ora quando se narra sobre as interlocutoras em espaços
acadêmicos que não concordam com a categoria analítica
mulheres masculinizadas2.

Em pesquisas sobre relações de gênero e sexualidades,


proliferam as questões sobre como devemos nos comportar
em relação a nós e aos nossos/as interlocutores/as:
Será que poderíamos como pesquisadores/as ter um
olhar sobre o ombro? Será que nossa própria aparência
cria desconforto em nossos colegas?Como poderíamos
criar sutis interações entre o pessoal e o teórico? Como

1 * Universidade do Estado da Bahia (UNEB), professora doutora em


Antropologia do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Crítica Cultural do
Campus II – Alagoinhas e do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar
em Difusão do Conhecimento Coordenadora do Grupo de Pesquisa EnlaceE-
mail: messeder35@hotmail.com
** Mestre do Mestrado em Crítica Cultural E-mail: anagabriela.pereira@yahoo.
com.br
Referimos aos dois projetos “Masculinidades em corpos femininos e suas
vivências: um estudo sobre os atos performativos masculinos reproduzidos
pelas mulheres nas cidades de Alagoinhas, Camaçari e Salvador”, e
“Masculinidade em corpos femininos: tecendo articulações entre pesquisa,
extensão e políticas públicas sobre e com estas mulheres”, aprovados pelo
Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA nº 20/2010 − Relações de Gênero, Mulheres
e Feminismo/Edital nº 20/2010 e pelo Edital 021/2010 – Apoio à Articulação
Pesquisa e Extensão − FAPESB, respectivamente.
2 Sobre o uso da categoria analítica mulheres masculinizadas, podemos
aludir a várias interpelações do leitor ou ouvinte às pesquisadoras. Primeiro,
quando o uso da categoria designa o universo de mulheres sem as famosas
dicotomias, de um lado heterossexuais, de outro lado homossexuais: neste
caso, existe uma maior exasperação por parte da plateia. Segundo, quando
o uso da categoria se refere exclusivamente às mulheres lésbicas, a plateia
se torna mais resignada. Este tema pode ser visto com mais detalhe de
riqueza no artigo intitulado “No me hayo masculinizada, pero sí arrojada”:
Los desafíos de la investigación sobre mujeres masculinizadas. (MESSEDER,
2012)
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operar para que as abstrações teóricas não ocultem


completamente a aspereza da experiência pessoal? Será
que poderíamos ser andarilhas do gênero e daí ocupar
um lugar analítico confortável para observar homens e
mulheres? Será que algo escapa do imaginário sobre o
masculino e o feminino em corpos sexuados?Será que
os termos masculinos e femininos designam o pênis e a
vagina automaticamente? Será que as práticas sexuais
revelam o jeito de corpo ou é o jeito de corpo que revela
as práticas sexuais? Será que, na existência concreta
dos corpos humanos, acolhemos a análise dos matizes
das relações de gênero? Será que conseguimos ir além
das representações sobre “homem verdadeiro” e “mulher
verdadeira? Será que refinar o vocabulário e buscar,
incessantemente, as metáforas em relação ao sistema
de gênero permitiria escapar do binário?Será que o uso
de metáforas seria suficiente para aplacar as dores e
ofensas sugeridas, quando nos reportamos à ideia de
mulheres masculinizadas?

Neste artigo, pretendemos cotejar as cenas que


descrevem a protagonista do romance Luzia-Homem, de
Domingos Olímpio, escrito em 1903. Traremos à tona a
história insólita desta personagem cujo destino foi colorido
de forma drástica por conta da sua aparência física. Ao
longo do texto, será apresentado como os personagens
e o narrador se referem ao seu jeito de ser. No romance,
o narrador não borra a natureza da mulher em Luzia; ele
usa o pincel mostrando os traços que a colocam no lugar
de mulher, enquanto os demais personagens enfatizam
o lado varonil.

Antes de adentramos na análise das características


que descrevem a personagemLuzia-Homem, faremos uma
breve incursão no romance. Em seguida, caminharemos
em quatro seções cujos conteúdos versarãosobre a
representação do corpo abjeto de Luzia-Homem: a)
As narrativas sobre a aparência do personagem Luzia-
Homem: os atos da modelagem de gênero; b) Primeiro
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ato na modelação do corpo: a família e a lei do pai; c)


Segundo ato na modelação do corpo: representação de
gênero com os vizinhos e amigos aciona o sistema de
gênero e o sistema religioso; d) Terceiro ato na modelação
do corpo: processo de subjetivação do ser Luzia-Homem

1. Uma breve incursão no romance Luzia-Homem


1.1. O contexto

Quando nos debruçamos sobre a narrativa acerca


de Luzia-Homem, observamos a existência de uma
vasta ou, pelo menos,de uma literatura mais robusta
sobre o romance em formato de livros, artigos e/ou
teses e dissertações. Aqui, não pretendemos elencá-los,
mas apenas afirmar que, no emaranhado dos múltiplos
olhares sobre o romance, acreditamos que poderia
ser possível mais um olhar cujos determinismos,seja
na ordem da geografia, do biológico seja na ordem
dosocial, do cultural, seriam questionados, traindo,
desta forma, o próprio contexto científico da emergência
deste romance. Esta brecha ou este interstício onde nos
situamos deverá soar como um ato blasfemo da nossa
parte como pesquisadoras, mas não deverá ser imputado
aos personagens tampouco ao autor desta obra.

Apesar de o romance ser encapsulado pela maioria
dos críticos como uma obra naturalista de inspiração
regionalista, OliveiraJr (1994) advoga que tal classificação
aprisiona e empobrece o romance cujo conteúdo narrativo
desvela o seu aspecto impressionista rico em anacolutos,
metáforas, símiles, sinestesia e verbos no imperfeito.
Quando escapamos do seu aspecto literário e voltamos
a encará-la em seu aspecto realista ou deuma ficção
realista, nos deparamos com “as experiências vividas
por José Olímpio durante a grande seca de 1877, quando
tinha apenas vinte e sete anos, [...] foram fixadas no
romance Luzia Homem” (BARBOSA, p. 265).
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A narrativa é circunscrita ao final do século XIX, na
cidade cearense de Sobral, considerada, então, o centro
intermediador dos produtos agrícolas da Serra da Meruoca
e da Serra Grande para o resto do estado do Ceará e
para o estado do Piauí. No município, foram criados, pelo
Governo, opulentos celeiros que o tornaram um empório
do comércio do norte da província.

Sobral, considerada uma cidade intelectual e rica,


com as grandes secas da década de 1870, especialmente
dos anos de 1877 e 1879, passou a receber multidões de
retirantes, oriundos de diversas localidades afetadas pela
estiagem, para trabalhar, sobretudo, na construção civil.
A cidade atraía porque oferecia aos miseráveis abrigo
e a oportunidade de obter meios para a subsistência.
No Morro do Curral do Açougue, inúmeras famílias de
retirantes trabalhavam como operárias na construção da
penitenciária local em troca de alimentos, como farinha,
feijão e carne de charque.Fora do horário de trabalho,
estes retirantes se aglutinavamnas proximidades da
construção, em acampamentos improvisados: casas de
taipa, palhoças, latadas, ranchos e abarracamentos do
subúrbio.Lá interagiam, produziam uma diversidade de
artefatos para uso comunitário e compartilhavam crenças
e valores.

1.2. A narrativa

De uma forma geral, temos uma narrativa baseada


na inserção de uma imigrante da seca em uma cidade
que oferece maiores chances de sobrevida aos retirantes.
Luzia-Homem,devota todo o seu tempo livre para cuidar
de Josefina, sua mãe, acometida por uma doença.
Trabalha na construção do presídio e se tornaalvo de
vários insultos por conta da sua aparência masculina.

Para além destes insultos, Luzia-Homem desperta


o desejo de Crapiúna,mas não busca nenhum
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envolvimento, frustrando as expectativas do soldado.


Luzia ainda começa uma relação de ajuda e amizade com
Alexandre,que desperta sentimentos de raiva, ciúmes e
inveja em Crapiúnao qual forja um acontecimento que
promove a prisão de Alexandre. Neste ínterim, Teresinha,
quese aproximade Luiza-Homem e passa a cuidar de
sua mãe para que ela possa visitar Alexandre na cadeia,
termina por descobrir a farsa montada por Crapiúna,
que é preso, sendo Alexandre absolvido. Em seguida,
todos partem para viver na Serra e, no caminho, Luzia
se deparacom Crapiúna, que fugira da cadeia, segurando
Teresinha pelos braços. Ele avança na direção de Luzia,
mas a mulher se defende com unhadas em seu rostoe o
homem crava uma faca no peito de Luzia, desaparecendo
pelo desfiladeiro.

Esta narrativa nos surpreende pela valorização


da construção do corpo abjeto de Luzia-Homem. A
polifonia de vozes trazida no romance é riquíssima para
compreendermos como a aparência importa; e ela importa
sobremaneira. Para além do debate da figura da donzela-
guerreira (OLIVEIRA, 2005; TIBURI, 2013), da falta de
coragem do autor, Domingos Olímpio, de levar a cabo a
história da homossexualidade feminina denunciada por
Wilson Martins (1978), desejamos valorizar a ideia desta
subjetividade corpórea. Importante é salientar que, para
nós, não existe o determinismo ou a coerência entre
gênero, sexo e desejo sexual, ou seja, não apostamos
na possibilidade do desejo erótico de Luzia-Homem se
direcionar para uma mulher.

2. As narrativas sobre a aparência do personagem Luzia-


-Homem: os atos da modelagem de gênero

Meu trabalho sempre teve como finalidade expandir e


realçar um campo de possibilidades para a vida corpó-
rea. Minha ênfase inicial na desnaturalização, não era
tanto uma oposição a natureza quanto uma oposição ao
invocar o da natureza como modo de estabelecer limites
necessários para a vida gendrada. (BUTLER, 2002, p.
157).
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Quando Butler nos convida a refletir sobre como ela


própria lida com o sentido da desnaturalização torna
clara a forma pela qual enveredamos na composição da
subjetividade corpórea da personagem Luzia-Homem.
Aqui, veremos como esta subjetividade corpórea carrega
as representações do gênero masculino elaboradas pelos
aparelhos institucionais via o seu pai, a vizinhança,
homens e amigos.
A primeira impressão da protagonista do romance
Luzia-homem com a qual o/a leitor/a se esbarra
vem do francês Paul, personagem descrita como um
misantropo que se aventurava pelo mundo em busca
de documentar cenas, paisagens e, sobretudo, tipos
humanos considerados originais, exóticos3. Ao chegar a
Sobral, cidade onde se desenrola a narrativa, Paul se
lança a vaguear entre os retirantes, a fim de observá-los.
É durante uma visita às obras da construção da cadeia
local que o francês faz aquele que, talvez, tenha sido o
seu melhor registro sobre aquelas terras: “Passou por
mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede
na cabeça” (L. H., p. 16).4
Luzia, jovem retirante de atributos físicos incomuns à
modelagem da mulher, chamou a atenção do estrangeiro,
principalmente, pela sua força física excepcional,
considerada superior à de muitos homens:
Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enor-
me jarra d’água, que valia três potes, de peso calculado
para a força normal de um homem robusto. De outra fei-
ta, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de
granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos
mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a
façanha e, com eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo
e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em
pitorescas narrativas. (L. H., p.16).

3 Segundo Barbosa (2006), era bastante comum entre os escritores


contemporâneos usar como recurso em suas narrativas uma figura respeitável
com o objetivo de dar maior credibilidade à história e de criar a ilusão do real.
4 Neste texto utilizaremos a abreviação L. H. para identificar as citações
referentes ao romance em análise.
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Ao longo da narrativa, veremos a força física de Luzia


ser descrita como algo verdadeiramente extraordinário,
capaz de deixar pasmados os seus companheiros de
lida, homens que, apesar de sobreviverem em condições
adversas, expostos a todos os tipos de privações e de
dificuldades, em um contexto assolado pela seca e
pela miséria, não conseguiam se movercom a mesma
desenvoltura daquela mulher.

Temos, portanto, o que podemos considerar o


traço distintivo mais significativo da personagem de
Domingos Olímpio: a força física singular. Em virtude de
tal característica, a personagem que, biologicamente, é
uma fêmea, se distancia daquilo que é lido culturalmente
como feminino, ao passo que se aproxima do que a
cultura estabelece como masculino.

Se a força física é uma característica marcante


na tecnologia de gênero em que a diferença sexual
reforça, de um lado, os homens como fortes, do outro,
as mulheres como fracas, temos, então, a constituição
de Luzia como um corpo abjeto, A própria denominação
da personagem, Luzia-Homem, já traz esta evidência. A
alusão ao masculino remete à ideia de que a protagonista
tem algo que ultrapassa os limites da normalidade, que
não estaria coerente com a sua natureza de mulher.
Apreciamos, portanto, a acolhida da existência
de corpos sexuados, homens e mulheres, de forma
materialista. A narrativa, todavia, não se furta de tentar
tecer uma explicação para a masculinidade de Luzia.

3. Primeiro ato na modelação do corpo: a família e


a lei do pai

Centremo-nos em uma cena em que a protagonista,


ao ser inquirida pelo Delegado local, se empenhaem
esclarecer a origem da alcunha Luzia-Homem.
[...] Desde menina fui acostumada a andar vestida de
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homem para poder ajudar meu pai no serviço. Pastorava


o gado; cavava bebedores e cacimbas; vaquejava a ca-
valo com o defunto; fazia todo o serviço da fazenda, até
o de foice e machado na derrubada dos roçados. Só dei-
xei de usar camisa e ceroula e andar encourada, quando
já era moça demais, ali por obra dos dezoito anos. Muita
gente me tomava por homem de verdade. (OLÍMPIO,
2010, p. 41).

É evidente a intenção de demonstrar que a


masculinidade de Luzia é, antes de tudo, o produto de
um processo; o resultado final de uma educação. Desde
os primeiros momentos da infância, a personagem
vivera como os homens: ajudava o pai nos trabalhos da
fazenda, vestia-se à moda de um vaqueiro, desenvolvia
tarefas que muito exigiam dos músculos.

Observemos, ainda, que, para o pai de Luzia, o corpo


sexuado portador de uma vagina não foi um empecilho
para o seu desejo de ter um filho homem que pudesse
ajudá-lo em seu cotidiano. A despeito disto, recordemos
um pensamento da personagem que alude a um momento
no qual o vaqueiro a enaltece perante os amigos.
Vejam rapaziada!... Isto não é rapariga, é um homem
como trinta, o meu braço direito, uma prenda que Deus
me deu... E as moças, suas companheiras, murmuravam
espantadas: Virgem Maria! Credo!... Como é que a Luzia
não tem vergonha de montar escanchada! (L. H., p. 25).

É com orgulho que o pai constrói Luzia como


homem. Ele parece, antes de qualquer coisa, muito
mais preocupado em formar um indivíduo forte – o que,
para ele, estava associado à masculinidade −, capaz de
resistir às adversidades do contexto em que viviam, do
que em seguir a interpelação social de gênero. Assim,
o seu projeto se enquadrana suposta superação do
corpobiológico de Luzia. A ideia da ordem da natureza é,
portanto, desprezada e a lei do sexo violada em prol da
socialização.

4. Segundo ato na modelação do corpo:


representação de gênero com os vizinhos e amigos
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A linguagem e a materialidade nunca são completamen-


te idênticas nem completamente diferentes. (BUTLER,
2006, p.111).

A força física de Luzia é constantealvo de comentários


negativos entre as pessoas de sua convivência. Mesmo
aqueles em quem despertou algum tipo de sentimento
intenso de paixão, como é o caso do soldado Crapiúna,
a destacam de forma preconceituosa: “Qual, o quê!...
Eu até nem gosto dela... Não lhe acho graça... Depois...
com semelhante força... nem parece mulher...” (L. H., p.
19).
O profundo incômodo que a existência de Luzia
gera nas pessoas se dá, sobretudo, porque o seu corpo
promove a ruptura da lógica binária homem/mulher.
Como um corpo abjeto e ininteligível, Luzia é vista pelas
outras personagens como uma negativa do ser mulher,
o que corresponde à violação de um destino, de uma
ordem considerada natural. Observemos o fragmento:
Mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços for-
rados de pelúcia crespa e entonos de força, com ares
varonis, uma virago, avessa a homens, devera ser um
desses erros da natureza, marcados com o estigma dos
desvios monstruosos do ventre maldito que os concebe-
ra. (L. H., p. 24).

Na citação acima, o narrador, revelando os


pensamentos das outras moças acerca de Luzia, traz
à tona a estreita relação entre a aparência física e o
desejo sexual. A quantidade de pelo no corpo da mulher
é interpretada como uma desordem na lógica binária.
A conjugação entre quantidade de pelo e força física,
segundo esta ótica, tem como inevitável consequência o
desejo sexual por outra mulher. Esta relação nos reporta
a uma ideia combatida e desconstruída pela teoria queer,
a saber: a continuidade gênero-sexo-desejo sexual.
Vejamos como esta relação é um dado naturalizado tendo
como unidade de interpretação o diálogo entabulado
entre as personagens mulheres:
A modos que despreza de falar com a gente, como se
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fosse uma senhora dona – murmuravam os rapazes re-


mordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível
às suas insinuações galantes. − Aquilo nem parece mu-
lher fêmea −observava uma velha. alcoveta e curandeira
de profissão. (L. H., p. 2).
−Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço
que parece bigode de homem... (L. H., p. 2).
− Qual, tia Catirina! O Lixande que o diga! − mandou
uma cabocla roliça e bronzeada, de dentes de piranha,
toda adornadade joias de pechisbeque e fios de miçan-
ga, muito besuntada de óleos cheirosos. (L. H., p. 3).
−Não diga isso que é uma blasfémia – atalhou Teresi-
nha, loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irôni-
co, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata
amorosa. (L. H., p. 3).
− Por ela eu puno; meto a mão no fogo...(L. H., p. 2).
− Havia de sair torrada. Isso de mulher, hoje em dia, é
mesmo uma desgraceira. (L. H., p. 3).

Nestes trechos, percebemos a relação estreita do


imaginário entre a aparência física e o desejo sexual.
Com efeito, a aparência física encerra o desejo sexual.
Em outras palavras, as mulheres são idealizadas como
fracas, sem pelos e fáceis de serem seduzidas pelos
homens. As que fogem a este ideal não são consideradas
mulheres verdadeiras. Assim, a mulher é conduzida
a ser um corpo que vive nas sombras do universo
masculino.A sua aparência física é julgada pelo código
binário de gênero, a presença de peloe a força física.
As outras características que a compõem são originárias
da sua condição biológica, do seu corpo abjeto.Por
condição física, entendemos as características ditas
como fisicamente masculinas no corpo feminino. Assim,
estamos diante de um corpo abjeto.Observa-se como as
pessoas se comportam diante da sua aparição: “Muitas
se afastavam dela, da orgulhosa e seca Luzia-Homem,
com secreto terror, e lhe faziam a furto figas e cruzes”
(L. H., p. 24).

A citação acima apresenta outra questão evidenciada


na narrativa: a evocação da religião para contestar a
violação da lei natural. Os símbolos da religião cristã são,
aqui, evocados para demonstrar a aversão ao ser Luzia-
Homem em todas as suas nuances. Estas pessoas se
apoiam no discurso religioso para tratar a masculinidade
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da protagonista como algo pecaminoso e para colocá-la


em uma condição de inferioridade com relação às outras
mulheres.
Mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços for-
rados de pelúcia crespa e entornos de força, com ares
varonis, uma virago, avessa a homens, devera ser um
desses erros da natureza, marcados com o estigma dos
desvios monstruosos do ventre maldito que os concebe-
ra. (L. H., p. 6).

Diante destas características, é impossível requerer


o respeito a este ser compreendido como abjeto:
Desgraça que lhe acontecesse não seria lamentada; nin-
guém se apiedaria dela, que mais se diria um réprobo,
abandonado, separado pela cerca de espinhos da ironia
malquerente, em redor da qual girava o povilhéu feroz a
lapidá-la com chacotas, ditérios e remoques. Tal se lhe
figurava, através dos exageros pessimistas, a sua triste
situação. (L. H., p. 6).

O corpo considerado abjeto provoca o asco, o desprezo,


a “despiedade”, a crueza e a não compaixão, uma vez
que contraria a lei prescrita pela heteronormatividade,
que é confundida com a própria natureza. Diante disto,
assistimos à legitimação dos xingamentos, das zombarias,
de toda uma gama de agressões: “Era uma canzoada de
mulheres e meninos, gritando: ‘Olha a Luzia-Homem, a
macho e fêmea!’” (L. H., p. 13).

Para Luzia, então, restava viver à margem, resignada


diante da condição que lhe era imposta em virtude da
incoerência que seu corpo portava. Entretanto, Teresinha
retrata a feminilidade de Luzia Homem, vejamos a
citação:
Exposta à bafagem da madrugada, Luzia de pé, em
plena nudez, entornava sobre a cabeça cuicas d’água
que lhe escorria pelo corpo reluzente, um primor de li-
nhas vigorosas, como pintava a superstição do povo das
mães-d’água lendárias, estremecendo em arrepios à lí-
quida carícia, e abrigado em manto da espessa cabeleira
anelada que lhe tocava os finos tornozelos. Ao perceber
desenhar-se no lusco-fusco da nebrina matinal, já perto,
o vulto da moça a contemplá-la, soltou um grito de es-
panto e agachou-se, cruzando os braços sobre os seios.
− Não tenha receio, sa Luzia. Sou eu − disse Teresinha,
atirando o pote sobre a areia – Vim também lavar-me
com a fresca. É tão bom, neste tempo de calor, poder
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molhar o corpo...
− Dê-me a camisa por favor − suplicou Luzia, transida
de pejo, apontando para a roupa amontoada.
Teresinha não despregava dela os olhos, em êxtase de
admirativa curiosidade. Deu-lhe a roupa, e, despindo-se
sem o menor resguarde, banhou-se rapidamente.
− Você tem vergonha de outra mulher, Luzia? Eu, não.
Não sou torta, nem aleijada, graças a Deus...
Vestida a camisa que se lhe amoldou ao corpo molhado,
como leve túnica de estátua, Luzia não ousava erguer os
olhos, tão confusa e perturbada estava.
− Agora sou sua defensora – continuou a outra torcendo
os cabelos ensopados. – Hei de punir por você em toda
parte, porque vi com os meus olhos que é uma mulher
como eu, e que mulherão!...(L. H., p. 6).

Teresinha se tornaamiga de Luzia desde que a


surpreendera banhando-se em uma cacimba aberta
próximo ao leito de um rio. Ao se deparar com Luzia nua,
a mulher, envolvida pelas dúvidas acerca do gênero da
protagonista, confirma que ela é uma mulher e promete,
dali em diante, defendê-la dos insultos.

A partir daí, a narrativa insinua Luzia-Homem


vivenciando um processo de “feminilização”. Se,
inicialmente, vimos que as imagens apresentadas eram
mais viris, tais comoarrancar uma soleira de uma porta
com as próprias mãos, ter pelos crespos cobrindo os
braços e pernas, no decorrer da narrativa,essas imagens
se tornammais dóceis:ela colhe flores silvestres, tem
os pés pequeninos, as pernas roliças e musculosas,
adornadas de aveludada pelúcia negra. Este processo é
enriquecido com a ideia de que a transformação decorre do
sentimento de amor que brota na personagem, por conta
da dedicação de Alexandre e da obsessão de Crapiúna.
Desta forma, fazemos a travessia para compreender o
processo de subjetivação da personagem

5. Terceiro ato de modelação:


processo de subjetivação de Luzia-Homem

Retomemos a reflexão acerca do depoimento de


Luzia-Homem, com o fim de esclarecer a motivação para
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a alcunha. Em uma de suas falas, ela afirma que, durante


a infância e em parte da adolescência, muitas pessoas a
tomavam como “um homem de verdade”. A socialização
como menino vivenciada por Luzia dotava-a de uma
performatividade masculina e tal desterritorialização
de gênero não passava despercebida pelos demais
personagens desde a sua tenra infância.
Luzia vivenciava a masculinidade como um processo
natural: os insultos sofridos por ela eram aplacados pela
sua incondicional fidelidade à lei do pai.Entretanto, o
narrador onisciente nos mostracomo a feminilidade de
Luzia-Homem era escondida intencionalmente:
[...] encobria os músculos de aço sob as formas esbel-
tas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a
cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho,
cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um
requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso inte-
resse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira
corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto,
donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam,
por encanto, alfombras de relva virente e flores odoro-
sas. (L. H., p. 2).

Neste sentido, poderíamos garantir que Luzia-Homem


vivenciara a ambiguidade no seu corpo desde sempre,
muito embora tenha sustentado uma performatividade
masculina, uma vez que não lhe foi permitido ser outra
coisa.

Um fato significativo no romance é que, se, por


um lado, a imagem sustentada da personagem é a da
força, que a aproxima do masculino, por outro, e esta é
a função desempenhada pelo narrador, temos uma Luzia
pintada de delicadeza e suavidade, reforçando a ideia de
feminilidade.
Enquanto tentava demover a mãe a empreender a via-
gem, a moça torcia as madeixas dos fartos cabelos ne-
gros, embebidos d’água, até secarem à pressão de suas
mãos, mãos delicadas de mestiça, pequeninas e elegan-
tes. (L. H., p. 28).

Cabe salientar que a construção da feminilidade de


Luzia é posterior à construção da masculinidade. Nas
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primeiras páginas do livro, o/a leitor/a se depara com


uma personagem mulher-macho – aquela que até a
adolescência era tida por muitos como um “homem de
verdade” –, no entanto, a sua ambiguidade é sentida
em sua pele. A necessidade de ser mulher aparece para
Luzia na idade adulta, quando, distante da fazenda onde
nascera e crescera, vivendo em outro contexto social,
lhe fora exigido assumir o papel a que seu sexo biológico
a destinara.

Luzia, no entanto, não se julgava capaz de cumprir


esse destino. Ser mulher significava compactuar
com um ideal de fragilidade incompatível com a sua
incomensurável força.
Sentia-se incapaz de amar; carecia-lhe a fraqueza su-
blime, essa languidez atributiva da função da mulher
no amor, a passividade pudica, ou aviltante da fêmea
submissa ao macho, forte e dominador irresistível,
como aprendera na intuitiva lição da natureza; [...] não
fora destinada à submissão. Dera-lhe Deus músculos
possantes para resistir, fechara-lhe o coração para
dominar, amando como os animais fortes: procurar
o amor e conquistá-lo; saciar-se sem implorar, como
onça faminta caindo sobre a presa, estrangulando-a,
devorando-a. (OLÍMPIO, 2010, p.63).

É no sentido de resistir a esse modelo de mulher


pautado na fragilidade que Luzia resistirá ao amor de
Alexandre. Se as personagens femininas que povoam os
romances românticos – e que contribuem para sustentar
o ideal de feminilidade – são frágeis e submissas, a
personagem de Domingos Olímpio negará esta imagem
ao se declarar“incapaz de amar”. Não ser capaz de amar
é, também, recusar a passividade, a submissão, enfim,
afirmar-se enquanto singularidade e diferença.

O golpe final é a morte da personagem. O fim trágico


de Luzia-Homem é, também, a morte do corpo abjeto,
daquilo que foge à norma. Como um ser ininteligível,
Luzia não pode sobreviver, por isto padece em um conflito
fatal com o soldado Crapiúna.
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Considerações Finais

Nesta estória interpretada e narrada sobre Luzia-


Homem, que tem como eixo central a materialidade
do corpo abjeto, vimos que a aspereza da experiência
vivenciada pela personagem modelou a sua subjetividade
corpórea. A desnaturalização e a desterritorialização
da masculinidade vivenciada por Luzia-Homem
desestabilizaram a ordem binária do gênero no âmbito
de um contexto firmado pelo determinismo científico.A
ambiguidade vivenciada por Luzia-Homem não poderia
ser admitida no imaginário coletivo impulsionado pela
lógica binária das representações do “verdadeiro homem”
e da “verdadeira mulher”: o corpo de Luzia estava para
além desta lógicado dimorfismo sexual.

Tivemos aqui a oportunidade de verificar os atos


performativos do masculino reiterados por Luzia-
Homem, mediante as cenas depreendidas no romance.
Inicialmente, observamos o pai da personagem como
o criador da mulher-homem mediante a modelação de
um corpo/natureza amorfo.O criador molda a criatura. O
nascimento de uma fêmea não representou o limite para
o pai concretizar o seu desejo de ter um filho homem
cujo destino se forja em seu cotidiano como peão.

No entanto, Luzia nasce como mulher e as demais


pessoas a constrangem diariamente, uma vez que
ela pousa no território imaginado naturalmente como
pertencente ao varão.Para eles, a aparência de Luzia-
Homem desafia a natureza, desafia Deus, logo, a
suposta natureza desafiada tenderá a ser cruel para com
a criatura, uma vez que, quando se nasce com o sexo
designado para ser mulher é “natural” que as expectativas
coerentes às relações de gênero sejam cumpridas como
um mandato da lei. Luzia é encapsulada pela vontade
do pai e se tornaLuiza-Homem. Posteriormente, se, por
um lado, vozes (vizinhos/as, pessoas religiosas) ecoam
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em seu cotidiano e, constantemente, reforçam a ideia


do corpo abjeto, por outro lado, outras vozes ecoam e
reivindicam pela sua condição de ser mulher-fêmea, tal
como se revela no nascituro.

Podemos traduzir que Luzia-Homem experienciou em


sua pele o sentido da abjeção no cotidiano desde a sua
tenra infância. O seu final drástico revela o destino do
corpo abjeto em nossa sociedade moldada pelos juízos
de valor a partir de supostos juízos fáticos.E, assim,
vamos colecionando mortes de personagens fictícios
que vivenciam abjeção em seus corpos: morre-se Luiza-
Homem, morre-se Diadorim e morre-se, também,
Herculine, hermafrodita do mundo real narrado por
Michel Foucault.
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24 julho a dezembro de 2013

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Acesso em: 28 jun. 2014.
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NO EMBALO DA SUINGUEIRA:
o uso da etnocartografia na investigação
das redes sociais

Adriano de León1 (UFPB)

Resumo
A partir de uma etnocartografia, este texto lida com as experiências da
masculinidade num clube de um bairro popular na cidade de João Pessoa,
Paraíba. Ao longo de oito meses de vivência com um grupo de colaboradores(as),
a investigação foi lastreada em conceitos como sujeito-posição, teoria ator-
rede e masculinidade como performance de gênero. A pesquisa mostrou que
a rede-rizoma CAC do Rangel é formada por um circuito que compreende as
trajetórias dos atores-sujeitos no interior do clube e também na rua, por onde
se prolonga a festa.

Palavras-chave: etnocartografia; performance de masculinidade; astúcias;


atores-sujeitos;

Abstract
At suingueira waves: how to use an ethnocartography approach in network
contexts

Based upon an ethnocartography, this text is about experiences on masculinity


in a dancing club of a popular suburb in João Pessoa, Paraiba, Brazil. In eight
months, the investigation was taken based upon concepts like subject-position,
actor-network theory and masculinity as a gender performance. The network-
rhizome CAC do Rangel is built on a circuit from the actor-subjects paths both
inside the club and outside on the street along.

Key-words: ethnocartography; masculinity performances; astuteness; actor-


subjects

“Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui


para a terra Zande, mas os Azande tinham;
de forma que tive de me deixar guiar por eles.”
(Evans-Pritchard)

1 Doutor em Sociologia pela UFPE. Professor do Associado da UFPB.


Pesquisa várias práticas de controle nas áreas de discurso, gênero, religião,
masculinidades.
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Rumo a uma etnocartografia

Lidando com gênero há algum tempo, fiquei intrigado


com uma conversa na sala de aula, na qual um dos alunos
falava, em tom jocoso, que a diversão melhor da cidade
não ficava no circuito das praias, local bem frequentado
por estudantes, descolados, turistas e baladeiros em
geral, mas nas periferias da cidade. Situando a praia
como centro do seu mapa imaginário, ele falava de alguns
clubes nos bairros de João Pessoa, Paraíba, dentre os
quais três foram citados com frequência: o Ponte Preta,
situado no bairro de Mandacaru; o São Paulo da cidade
de Bayeux na grande João Pessoa; e o CAC do Rangel,
no bairro de mesmo nome na capital.

Como se tratava de uma disciplina de gênero, a


menção do aluno dizia respeito a uma diferenciação
destes clubes: havia uma frequência de travestis, lésbicas
e gays convivendo num ambiente nitidamente tido como
muito masculino e heterossexual. Assim, iniciei a
imaginar um projeto de pesquisa que desse conta deste
cenário, a priori tão diversificado. Para mim a novidade
era encontrar, supostamente, uma diversidade de gênero
em locais marcadamente masculinizados, dentro de uma
equação de gêneros determinados, em maior face, pela
heterossexualidade.

Minhas buscas começaram por visitas aos três lugares.


A partir de informações de amigos, fui primeiramente
ao Ponte Preta, no bairro de Mandacaru. A resistência
das pessoas a estes locais é enorme. Era como se eu
tivesse que embarcar numa aventura não muito segura,
como devem ter pensado os amigos e familiares de
Malinowski, Evans-Pritchard e Margareth Mead. Coisa
de antropólogo, como pensavam meus amigos. Ninguém
quis me acompanhar e o recado era sempre o mesmo:
“você tá doido de ir lá sozinho”; “leia as notícias, mataram
um lá ontem”; “vai voltar depenado”; “tem colete à
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prova de balas”? Mas eu entrei no meu navio e rumei


pros mares nunca dantes por mim navegados.

Mesmo sendo algo de ordem da minha subjetividade,


a escolha do CAC se deu por razões técnicas e afetivas
também. Achei o Ponte Preta muito “elitizado” no sentido
de não ver muita diferença entre aquele e qualquer
outro clube. Muita gente de classe média, uma certa
imitação dos bares da orla, um certo rigor no circuito
externo do clube. No caso do São Paulo de Bayeux,
o oposto: uma suposta desorganização, uma ampla
circulação de pessoas, uma fragmentação de estilos e
também uma imitação de elementos midiáticos que não
o diferenciavam de nada do que eu já conhecesse. Com
o CAC foi paixão à primeira vista. Uma sensação de
não pertencer e querer pertencer ao lugar. Uma rejeição
àquela forma de masculinidade que depunha contra
meus mais fieis princípios. Um caos que detinha uma
ordem que eu não consegui perceber durante quase dois
meses de idas frequentes. Tecnicamente, o público era
bem local, mais uniforme e o entorno geograficamente
bem definido, numa primeira abordagem em campo.

O Rangel é um bairro muito antigo na cidade de


João Pessoa. Ficou “famoso” em virtude de uma chacina
ocorrida no ano de 2009, estampada em todos os jornais
do Estado, com repercussões nacionais. Nesta data, sete
pessoas de uma mesma família foram assassinadas a
golpes de facão por um motivo torpe. Mas a mim não me
interessavam dados ou o dito da mídia sobre o lugar. Eu
queria sentir o campo.

Antes mesmo de desenhar o projeto de pesquisa no


final do ano de 2010, fui visitar o bairro e conversar
com pessoas. Cheguei à praça principal do bairro, praça
muito agradável e recém-reformada. Como nos relatos
dos antropólogos primeiros, a cidade é o correlato da ilha.
Ela só existe em função de uma circulação e de circuitos;
ela é um ponto assinalável sobre os circuitos que a criam
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ou que ela cria. Havia uma cidade que eu ainda não


conhecia que se define por entradas e saídas, por minhas
escolhas. A cidade, nesta ótica, é uma rede, porque ela
passa a existir a partir do meu percurso pelos bairros. Ela
representa um limiar entre a desterritorialização, sofrida
por mim nos meus territórios já conhecidos, e uma
territorialização, um mapa que eu aprendi a desenhar no
meu circuito casa-campo de investigação.

Para os moradores do Rangel a cartografia da cidade é


desenhada a partir do próprio bairro. Minha visão estava
treinada em muito pelo que a mídia apontava sobre o
bairro do Rangel. Na maior parte das manchetes, o centro
e os bairros ditos periféricos são praticamente invisíveis.
A mídia, acompanhando os sentidos que a cidade praiana
confere aos outros demais espaços, de alguma maneira
os enquadra sempre a partir de manchetes negativas,
as quais desconstituem a vida plena, as pessoas e suas
socialidades. Falei sobre o CAC do Rangel numa destas
minhas primeiras visitas ao bairro a dona Francisca, 56.
Aquilo lá não presta não, homem. É muita baixaria. Eu
tô cansa2 de ver as pessoas saindo aqui da praça pra en-
trar lá. É cachaça demais, coisas de gente sem futuro.
Moça que se preza nem pensar em entrar lá.

A escolha pessoal por um procedimento de


investigação que eu aqui chamo de etnocartografia é
uma ligação de dois procedimentos, os quais misturei
por acreditar que estes seriam excelentes óculos de
percepção de uma realidade bem diferente da minha.
Creio que tanto a etnografia, mesmo a “tradicional” ou
clássica3 (Clifford & Marcus, ano) montada em regras
pré-estabelecidas, e a cartografia são procedimentos
que requerem do investigador um molejo, um suingue

2 Corruptela de cansada.
3 J. Clifford e G. Marcus nominam etnografia tradicional aquelas baseadas
numa visão holística e fechada sobre o outro. A partir da virada interpretativa
de C. Geertz. Assim, observando os antropólogos em sua prática de
pesquisa, as preocupações destes etnógrafos (ou meta-etnógrafos) recaíram
sobre questões relativas ao próprio processo de produção do conhecimento
antropológico e sobre a autoria dos textos resultantes desse processo.
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que permita observar o fenômeno e suas lateralidades


e brechas, pontos de fuga e elementos de atração ou
afastamento. A improvisação, neste caso, faz com que
os problemas de campo não pensados no projeto sejam
privilegiados durante o processo investigativo, uma vez
que este funciona como um labirinto: se entra no meio
e depois de muitas voltas talvez se descubra como dele
sair.

Os procedimentos de investigação não estão soltos


como técnicas universais que podem ser aleatoriamente
usadas. O fazer etnocartográfico tem a ver com a
teoria analítica que escolhi para desenhar o modelo
CAC do Rangel. Lendo George Marcus4(1986) eu pude
estabelecer meus traçados a partir do que a situação-
pesquisa me mostrava em relação à circulação de
significados culturais, objetos e identidades nômades
num tempo-espaço difuso, como é o caso de uma festa,
no CAC chamada suingueira.

Quando resolvi ir ao CAC pela primeira vez, coloquei


os dados do endereço no GPS e dirigi até o clube. Eram
cerca de 20 horas de uma noite quente de domingo no
verão de 2011 quando eu saí de casa rumo ao CAC. Eu
já havia ido ao bairro do Rangel, assim dirigi tranquilo,
fazendo a primeira gravação do meu caderno de campo
eletrônico. Como iria pra um ambiente de festa, com
supostamente muito barulho, e como eu queria ficar
numa posição mais discreta em relação às pessoas que
trafegavam pela rua do CAC do Rangel, resolvi gravar
meu diário de campo usando o recurso de gravador
de voz do celular. Deixaria as pessoas mais tranquilas
em relação a mim, como o outsider, dando a elas a
impressão que eu estava falando com alguém ao celular.
O uso inadequado de uma caderneta de anotações diante
de pessoas que estão ali para se divertir ou mesmo a

4 G. Marcus chama este procedimento de etnografia multi situada, em Writing


cultures, 1986.
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tentativa de entrevistar as pessoas no contexto da festa


pode significar um tremendo fracasso na pesquisa além de
parecer extremamente desconexo para os participantes
imersos na dinâmica da festa. Meu cuidado maior era
sempre juntar um relato a um fato importante no qual
o sujeito deixava claro a sua posição ou a posição dos
demais atores na rede.

Dei umas voltas pelas cercanias para ver a geografia


do lugar. O CAC fica na rua principal, a Avenida 2 de
Fevereiro, próximo ao mercado público do bairro. A avenida
é formada praticamente de lojas e estabelecimentos
comerciais, o que deixa a rua livre para a circulação de
pessoas e também para certa tolerância do barulho de
carros, motos, paredões de som. Bem na frente do CAC
há um ponto de ônibus e ao lado um ponto de taxi, o que
me chamou a atenção deste o início. Havia, portanto,
um certo trânsito de pessoas de outros lugares para a
suingueira do CAC, pois percebi que muitas chegavam
de ônibus, mas não voltavam nestes.

A minha primeira sensação era a de não estar


chegando em lugar nenhum, como Roy Wagner (2010)
e seu encontro com os Dabiri da Nova Guiné.Invadiu-
me uma sensação de vazio, de não saber mais o que
eu estava fazendo lá. Um mundo diferente apesar de
parecer igual. A sensação de perceber meu barco se indo
enquanto eu ficaria só naquele acontecimento, naquela
cidade que era minha, mas que era outra.

A rua continuava ainda deserta. Percebi alguma


movimentação no clube, e a bilheteria sendo aberta.
O ingresso custava, à época, 5 reais, e as mulheres
entravam gratuitamente até a meia noite. Comprei meu
ingresso e entrei no CAC. Na entrada, um corredor no
qual uma equipe recebe o ingresso e lhe carimba o pulso
com uma tinta fluorescente. Depois, já dentro do clube,
havia uma revista feita por um agente de segurança.
O clube estava vazio. É uma estrutura arquitetônica
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simples, parecendo um galpão em formato retangular.


Há dois bares opostos no sentido longitudinal, para servir
a quem esteja em uma das pontas sem atropelo. Na
face oeste do clube, uma bateria com dois banheiros,
estes bem precários. Ao lado destes, no corredor de
saída, há um porta-capacetes para os motoqueiros que
permanecem no clube. A mesa de som do DJ fica ao
sul do clube e na face norte, um fumódromo, com um
pequeno bar numa estrutura interna. Na face leste já um
grande portão que serve como saída de emergência. O
formato do clube é bem tradicional. Um dancing central
arrodeado de pilastras que o separam dos corredores por
onde circulam as pessoas. Um fato muito interessante
para mim foi a pequena quantidade de mesas e cadeiras.
São mesas estreitas de madeira, a maioria sem nenhuma
cadeira, aleatoriamente espalhadas pelos corredores. As
paredes superiores do dancing são decoradas com frases
marcantes: “o CAC faz você dançar”, “Aqui só diversão”,
“Proibido bebidas para menos de 18 anos”, escritas com
tintas fluorescentes ao lado de desenhos de coqueiros,
praias, dunas. Na área do fumódromo, apesar de quase
ninguém respeitar a proibição de não fumar no clube,
há uma espécie de garagem que permite a entrada de
equipamentos para o clube. Um fato que me chamou a
atenção foi o grande número de seguranças no clube,
todos de farda, pertencentes a uma empresa local de
segurança privada. Só havia eu e mais umas cinco
pessoas, talvez da própria equipe da festa. Saí, então,
desolado. Talvez aquele domingo não fosse o melhor
dia.

Que nada! Lá fora havia um burburinho enorme


de pessoas que chegaram enquanto eu estive dentro
do clube. Jovens rapazes e moças circulando entre
carros e motos estacionados. Dois bares que eu não
havia dado conta, concentravam, à frente do CAC, muita
gente bebendo e circulando. Comecei a circular um
pouco. Incrível a minhainvisibilidade. Verdadeiramente
a noção de estar invisível era apenas minha. Eu era
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33

uma espécie de alienígena, o outro-estranho. Apesar


de eu ter ido com uma roupa tradicional, jeans, tênis e
camiseta branca, meu estilo, meu modo de andar, meu
olhar me diferenciariam do contexto do lugar, no qual,
supostamente, a maioria se conhecia. A suingueira do
CAC é uma festa do bairro. A maioria das pessoas que
frequentam o lugar são moradores do próprio bairro
ou das cercanias. Reparo então que há muita gente já
entrando no clube. Retorno, então.

A minha estratégia de anotação dentro do clube,


onde era impossível gravar algo, foi a de usar o bloco de
notas do celular. Da mesma maneira que as gravações,
a impressão que eu passava nestes momentos era de
que eu estava escrevendo alguma mensagem para
ser enviada via torpedo do celular, como várias outras
estavam também fazendo ali.

Cartografando a rede-rizoma CAC do Rangel

O que me deixou perdido, de fato, foi o que me


resgatou pra o campo investigativo. Como um viajante
que precisa desenhar um caminho em forma de mapa
para outros que virão, eu comecei a estabelecer os pontos
de agregação e soltura que formavam a cartografia
do CAC. Todo mapa está imbuído num modo de vida.
Todos os mapas são indexáveis, são indexações (Ingold,
2005). A partir de uma visão flutuante das situações que
vivenciei ao longo da pesquisa, fui procurando descrever
os fluxos, os vetores e os arranjos do mapa que estaria
por se construir em casa, diante dos meus textos. A
primeira premissa deste texto é a cartografia como um
método experiencial de fluxos, refluxos e situações.

Cartografar é, assim, captar as linhas desses


movimentos, desta processualidade, esse plano de forças
e não somente a da produção histórica. As formas que a
cartografia encontra são compreendidas em função das
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linhas de forças necessárias à sua formação: o rizoma5.

Desta forma, a etnocartografia não procura constituir


um método interpretativo (Marcus, 1995: 95-117),
mas busca identificar as forças que circulam naquele
território, através dos diferentes sistemas de signos
que o perpassam, formando seu funcionamento, dando
consistência à rede.

Para me sentir menos estrangeiro, sentei-me numa


mesa do bar de seu Jonas, na rua lateral ao CAC. Pedi
uma água e fiquei falando ao celular, gravando algumas
impressões sobre o lugar. Eu era o único solitário naquele
bar. Alguns casais e grupos de homens ocupavam as
mesas enquanto eu me distraía com uma pequena TV
no balcão do bar que passava um DVD de uma banda de
forró. Pedi uma água a uma garçonete que me olhou por
inteiro. Meu desconforto era enorme e minha sensação
era de um completo voyeurismo. Mas eu precisava
observar que práticas havia no “esquenta6” antes de
festa ter início.

5 Rizoma é um modelo descritivo ou epistemológico na teoria filosófica de


Gilles Deleuze e Félix Guattari. A noção de rizoma foi adotada da estrutura
de algumas plantas cujos brotos podem ramificar-se em qualquer ponto,
assim como engrossar e transformar-se em um bulbo ou tubérculo; o
rizoma da botânica, que tanto pode funcionar como raiz, talo ou ramo,
independente de sua localização na figura da planta, serve para exemplificar
um sistema epistemológico onde não há raízes - ou seja, proposições ou
afirmações mais fundamentais do que outras - que se ramifiquem segundo
dicotomias estritas. Deleuze e Guattari sustentam o que, na tradição anglo-
saxã da filosofia da ciência, costumou-se chamar de anti-fundacionalismo
(ou anti-fundamentalismo, ou, ainda, anti-fundacionismo): a estrutura do
conhecimento não deriva, por meios lógicos, de um conjunto de princípios
primeiros, mas sim se elabora simultaneamente a partir de todos os pontos
sob a influência de diferentes observações e conceitualizações. Isto não
implica em que uma estrutura rizomática seja necessariamente flexível ou
instável, porém exige que qualquer modelo de ordem possa ser modificado:
existem, no rizoma, linhas de solidez e organização fixadas por grupos ou
conjuntos de conceitos afins. Tais conjuntos definem territórios relativamente
estáveis dentro do rizoma.
6 “Esquenta” é a denominação nativa ou local dos agenciamentos que se dão
antes da festa. É a movimentação fora do clube, na qual as pessoas se
encontram, bebem (daí o nome esquenta) e se territorializam.
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Este percurso metodológico requer um conjunto


heterogêneo de discursos e práticas, de ditos e de não
ditos, que formam uma rede processual que atua na
produção das subjetividades. Essa rede de práticas e de
discursos nos remete ao conceito de dispositivo, criado por
M. Foucault (1992), e que “inclui discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas”.

Aquilo que orienta a investigaçãoé um conjunto de


forças que atuam no campo. Essa detecção de um material
inicialmente fragmentário e sem conexão, requer um
fluxo, um tipo de concentração sem focalização.

A etnocartografia é, ao mesmo tempo, flutuante,


por não se prender ao foco de objetos, concentrada, por
voltar-se presentemente ao fenômeno como um todo,
e aberta, na medida em que pode tocar e reconhecer
algo que se destaca, para novamente voltar-se ao todo.
Como a ideia é trabalhar com territorialidades, o mapa
delineia o contorno dos territórios tais como foram
estabelecidos, cobrindo apenas o visível. Por outro lado, a
etnocartografia é um método com dupla função: detectar
a paisagem e seu relevo e, ao mesmo tempo, observar
vias de passagem através deles criadas pelos sujeitos.
Na etnocartografia não há uma verdade a ser revelada.
O que há são intensidades, afetos buscando expressão. O
trabalho etnocartográfico visa os acidentes de relevo, as
erosões, os platôs, os terremotos e a planície, metáforas
das subjetividades, acordos, fronteiras e negociações
entre os sujeitos da rede-rizoma.

Pouco a pouco fui montando as fronteiras de espaços


desta rede. O bar de seu Jonas é estratégico. Ele ocupa
um estacionamento de várias lojinhas que só funcionam
durante a semana. Este espaço aberto é então ocupado
por mesinhas servidas pela família de seu Jonas. O bar
mesmo é uma barraquinha precária, ao lado de um
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banheiro bem mais precário. Observei que os banheiros


eram de uso único dos homens, talvez pelas suas
péssimas condições higiênicas. As mulheres usavam um
banheiro reservado atrás do bar, possivelmente a casa
de seu Jonas. O bar era um ponto nodal da rede CAC.
Concentrava um estacionamento de motos e ao lado
uma praça de taxi. A praça de taxi me chamou atenção.
Havia três taxistas sempre neste ponto. Reversavam-
se deixando pessoas que moravam nas proximidades
do bairro e que vinham para o CAC no sábado e no
domingo. Na verdade eles atendiam ao comércio local
durante a semana, pois pertinho do CAC há um mercado
grande e um comércio local considerável na Avenida
2 de fevereiro. No final de semana ficavam por lá na
esperança de levar uns poucos que podiam pagar um
taxi bandeira dois. Os três taxistas mais se divertiam do
que mesmo trabalhavam, conforme minhas idas ao bar
de seu Jonas. O fluxo de carros, por sua vez, se dá mais
na avenida principal, a 2 de fevereiro, rareando conforme
a noite adentra. Há um ponto de ônibus estratégico bem
em frente ao CAC, por onde circulam trabalhadores que
chegam dos seus serviços tarde da noite e jovens que
vêm para o divertimento no CAC.

Desta maneira, eu segui fluxos, segui pistas. Não


havia nada pronto, a não ser alguns indícios. Tampouco
havia sujeitos prefixados. Naquele momento, eles
estavam descentrados, não possuíam características
essenciais ou marcas originais. Eu pretendi, portanto,
deixar com que os sujeitos falassem sobre si mesmos,
me conduzissem pelos seus caminhos e me indicassem
o que eram as coisas do mundo da festa CAC. Desta
maneira, meu percurso era acompanhar os fluxos mais
recorrentes, como bares, pequenas reuniões de pessoas,
lugares de concentração e movimento comercial no
“esquenta” da festa.

Não usei a etnocartografia como uma técnica. Antes,


este procedimento investigativo-analítico que pode
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usar ou servir-se de umas tantas técnicas conforme


vai se construindo o modelo. A etnografia ligada ao
procedimento cartográfico lida com fragmentos que
podem se arranjar a cada movimento num cenário
que permite ao investigador uma nova compreensão7.
Cada passo, cada novo sujeito e seus ditos e não ditos
vão configurando o modelo que se apresenta como
monografia no seu instante final. Tanto a etnografia
quanto a cartografia se apresentam como uma poética
do fazer (Geertz, 1988; Price, 1988). A etnocartografia,
portanto, é uma obra de imaginação. O texto que é
produzido a partir dela é uma reunião de vários outros
textos e vivências solitárias e coletivas no campo de
investigação. Nos primeiros momentos da pesquisa eu
fiquei meio à deriva dos fluxos e dos acontecimentos, o
que me deixou, de certa maneira, inseguro quanto ao
que viria. Este foi um processo muito rico para mim,
acostumado com a tendência de antecipar os fatos na
pesquisa, tanto nas minhas vivências como engenheiro,
tanto nas minhas vivências como sociólogo.

Umberto Eco, no excepcional livro O nome da


Rosa(2009), fornece as melhores pistas sobre o que
aqui eu chamo de etnocartografia. O investigador é o
monge Guilherme de Baskerville, convidado a resolver
um mistério numa abadia beneditina no século XIV: a
misteriosa morte de monges sem motivo aparente.
Buscando pistas, sinais e indícios (Ginzburg, 1989),
Baskerville desmonta a trama a partir da descoberta de
uma biblioteca secreta construída em forma de labirinto.
A etnocartografia lida, também, com a noção do campo
como um labirinto.

No labirinto que foram para mim as primeiras idas


ao CAC, resolvi acompanhar um fluxo de pessoas que
estavam chegando à rua para o esquenta, uma série de
eventos que fazem parte do circuito da festa, localizados

7 Isto se assemelha ao que foi feito nas pesquisas urbanas de C.G. Magnani,
principalmente no texto De perto e de dentro, de 2002.
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fora do clube. Na frente do clube, no outro lado da rua,


aglomeram-se grupos em bares ao longo das calçadas.
Como eu havia ido ao bairro durante a semana, percebi
que os bares só existiam no sábado e no domingo.
Sendo a rua comercial, determinados estabelecimentos
se transformam em bares neste período. Neste setor
funcionam, durante a semana, uma casa de rações, uma
lotérica, uma distribuidora de bebidas e um chaveiro.
No final de semana, eles ressurgem como bares. Cada
comerciante dispõe de sua calçada e coloca mesinhas
e cadeiras plásticas para os potenciais clientes. Depois
do chaveiro, algumas casas transformam seu terraço
também em minúsculos bares, com a venda de bebidas,
petiscos e cigarros. Mesmo com a má fama do lugar, nunca
vi nitidamente nenhum tipo de tráfico de entorpecentes,
uma vez que a rede CAC é bem vigiada pela Polícia Militar.
Assim, esta rede aparece nos finais de semana da festa,
de maneira rizomática. Territorializam-se no momento
da festa e desterritorializam-se durante a semana. Para
mim foi uma surpresa depois voltar ao lugar durante a
semana e observar que outras estruturas se erguiam ali.
As estruturas são sempre temporárias e projetadas pelos
sujeitos do lugar.

O princípio básico desta etnocartografia é a simetria


entre os sujeitos e as coisas do seu mundo circundante
(Latour, 2009; 2001). A lógica é que o território é
estabelecido pelo percurso traçado pelas rotas das
interações sujeito-lugar-sujeito. Ao cartografar eu
acompanhei percursos e desenhava, deste modo, os
processos de produção, conexão ou redes de rizomas.
A cartografia propõe uma reversão metodológica:
apostar na experimentação do pensamento; ao invés
de regras prontas para ser aplicadas, a ideia de pistas8.
Na cartografia eu acompanhei um processo e não a
representação de um objeto. O antropólogo George
Marcus (1998) define a cartografia como uma etnografia

8 A ideia de pistas é, neste caso, semelhante à noção de indício, na proposta


indiciária de Carlo Ginzburg.
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multilocalizada na qual o pesquisador vai desenhando o


espaço da pesquisa a partir de pistas de pessoas, coisas,
mercadorias, obras de arte, entre outros.

Em linhas gerais minha busca era a de investigar um


processo de produção de subjetividades. O objetivo da
cartografia é desenhar a rede de forças a qual o fenômeno
em questão se encontra conectado, dando conta de suas
modulações e de seu movimento permanente. (Deleuze,
2000; Foucault, 2001) A pesquisa começa pelo meio: há
sempre um processo em curso. A cartografia visa, deste
ângulo, a dissolução do ponto de vista do observador.
A partir deste determinante, a cada final de semana eu
permanecia num lugar diferente e só depois circulava
pelos arredores, antes de entrar no clube.

Depois de pronta a cartografia tem-se o campo de


acontecimentos. Com base fundamental nas teorias de
campo epistemológico de M. Foucault e rizoma de G.
Deleuze, montei um campo não de unidades, mas de
direções moventes. Este campo não tem início nem fim,
mas um meio, pelo qual cresce e transborda. Ao contrário
de uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos
e posições, o campo é feito só de linhas de estratificação,
mas também de desterritorialização. Foi assim que eu
senti minhas primeiras experiências na rede-rizoma CAC
do Rangel. As coisas e pessoas apareciam e sumiam
conforme a rede ia se modificando. Embora houvesse
pontos mais ou menos fixos, mesmo o CAC, durante a
semana não funciona como lugar de lazer. É também um
lugar de reuniões de grupos da “melhor idade”, reuniões
de comerciantes locais, grupos da comunidade e festas
privadas. O terraço da casa de dona Zeza era um destes
locais que apareciam e sumiam na rede.
Meu filho, as meninas (as netas dela) daqui começavam
a trazer os amigos todo sábado e domingo, por é quase
em frente ao CAC, né? É um entra-e-sai da mulesta.
Mas eu prefiro assim do que elas socada naquele CAC.
Quando inventam de ir, fico com o coração na mão. En-
tão um dia eu pensei... pensei... Que serventia tinha este
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terraço se nem carro eu tenho. Só pros maloqueiros mi-


jarem depois da festa. Aí, nos sábados e nos domingos
eu coloco umas coisinhas aqui pra vender. Já comprei
inté uma freezer pra gelar as cervejas. Tenho minha
freguesia já fiel todo domingo. Mas fecho de meia noite
pra num aturar nenhum bebo safado, visse?

Dentro campo, a ideia é que não há sujeitos, mas


posições de sujeito. Dona Zeza era uma doméstica
que cria suas netas durante a semana. No final de
semana, uma nova sujeição se faz presente, a dona Zeza
dona do bar. Muitas destas posições não aparecem no
plano do visível. Portanto, a ideia de rizoma para esta
etnocartografia é fundamental, uma vez que o rizoma
se apresenta como proposta de configuração do trajeto
dos sujeitos durante as festas do CAC. O rizoma CAC do
Rangel é sempre aberto, não se presta à representação
e nem à hierarquização; está sempre sujeito à linhas
de fuga. O rizoma9 possui entradas múltiplas e pode
ser acessado a partir de infinitos pontos. Para efeitos
de descrição, os dois principais pontos da rede-rizoma
CAC do Rangel por mim arbitrados são o CAC-lá-dentro
e o CAC-lá-fora. Isto não impossibilita outras tantas
entradas nesta rede.

Nesta investigação eu não separei os sujeitos dos


elementos não humanos presentes na investigação. Os
rapazes do CAC foram observados simetricamente em
relação aos seus celulares, motos, vestimentas, carros.
Todos os elementos não humanos servem, em grande
parte, de mediadores das socialidades. Um copo de
bebida compartilhada, um cordão pendurado no pescoço
com uma chave de moto são elementos que constroem
os sujeitos. São marcadores.

9 Em muito, o rizoma se aproxima do que J.G. Magnani denominou de


pedaço e de mancha. Na verdade, o rizoma aparece no cenário dando
lugar a uma mancha, uma vez que o rizoma não se percebe, mas apenas
as suas manifestações. A diferença mais acentuada é que o rizoma lida
com subjetividades dentro do plano do desejo. Parece-me que o pedaço e
a mancha são territórios mais delimitados. O rizoma escapa, é visível, mas
muitas vezes subterrâneo.
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O CAC do Rangel funciona, neste texto, como uma


rede. Uma rede de atores e coisas que fazem o CAC
existir nas festas domingueiras frequentadas por mim
desde janeiro de 2011 até junho de 2012, data limite
para a temporalidade prevista na investigação.

No projeto eu pensava em observar o ambiente


interno do CAC do Rangel, por ser neste lugar em que
a suingueira se realiza. O campo me mostrou que havia
uma constante retroalimentação do “lado de dentro”
e do “lado de fora”. Muitos fenômenos só aconteciam
no movimento dentro-fora, o que eu chamo aqui de
acontecimentos híbridos. Embora possa parecer
estranho, as subjetividades são afetadas pela ambiência.
Um sujeito dentro do CAC tem uma performance bem
diferente deste mesmo sujeito fora da festa. Mudam as
músicas, os estilos, os procedimentos, as lógicas, não só
o cenário.
Ah, aqui fora a gente vive outro mundo, é diferente,
sabe? Aqui fora eu sou mais eu mesmo. Lá dentro tem
os seguranças que ficam cismando com qualquer um.
Eu sou duas pessoas: uma dentro do CAC e outra fora.
Tomo minha cerveja aqui fora mais tranquilo. Mas tem
dias que eu prefiro entrar, pra espairecer um pouco; a
vida é dura, muito trabalho na semana. Lá dentro as
pessoas ficam diferentes, dão mais bola, véi. (Chico,
23, garçon)

Esta etnocartografia persegue o percurso dos sujeitos


dentro das redes. Ela quer saber como os fatos são
construídos pelos sujeitos nos seus diferentes trajetos,
nos seus discursos e silêncios. Lidei muito com a noção
de estratégia, de astúcia e de trajetória a partir de um
conjunto analítico pretensamente não dualista. Isto
me permitiu perceber as contradições, os deslizes, os
desvios e as novas rotas que são quase sempre oriundas
de negociações dos sujeitos. Segui as subjetividades
mutantes, tratadas por J. Clifford e G. Deleuze como
subjetividades esquizo.

Uma rede remete a fluxos, circulações e alianças,


nas quais os atores envolvidos interferem e sofrem
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interferências constantes.De uma forma geral, a noção


de rede se aproxima bastante da noção de rizoma,
elaborada por Deleuze e Guattari como modelo de
investigação-análise das multiplicidades. Diferentemente
do modelo da árvore ou da raiz, que fixam um ponto, uma
ordem, no rizoma qualquer ponto pode ser conectado a
qualquer outro. De acordo com os autores (1995) “uma
multiplicidade não tem sujeito nem objeto, mas somente
determinações, grandezas, dimensões que não podem
crescer sem que mude de natureza”. Tal como no rizoma,
na rede não há unidade, apenas agenciamentos; não há
pontos fixos, apenas linhas. Isto me permitiu entrar
na suingueira do CAC e me integrar no sistema, como
também perceber muitas linhas e corredores daquele
labirinto dentro e fora, o que me fez ver que cada festa
era única, como o evento descrito por M. Gluckman na
Zululândia moderna (2010).

Como Guilherme de Baskerville, eu estava inserido


na rede CAC à procura daquilo que faz as linhas se
transformarem numa rede: os nós. A experiência da
etnocartografia se faz a partir de uma descrição minuciosa.
A rede CAC é a-centrada e sem forma pré-definida, já que
ela se configura e se desconfigura a partir de movimentos,
de fluxos, conexões e alianças entre os diversos atores,
nos quais eu me incluo. A rede CAC constitui um campo
tensional de forças heterogêneas. A base da interpretação
é a diferença, as sinuosidades, os escorregos nos atos e
nas falas, as negociações identitárias e as tramas que
suportam o mundo masculino naquele ambiente.

A rizomática rede CAC se constitui de novas formas


a todo instante, escapando de configurações prévias. Na
etnocartografia do CAC eu busquei analisar as conexões
desta rede sem me preocupar com encontrar a razão dos
fatos, a origem das coisas e nem a explicação para as
contradições. Minha mirada foi nos agenciamentos, ou
seja, como as subjetividades foram produzidas ao longo
da festa, dentro e fora da ambiência CAC. Neste sentido,
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cada vez que eu ia ao CAC era como se eu estivesse


voltando a um labirinto, cada vez entrando por uma
porta diferente, cada vez desfocando meu olhar para as
lateralidades, para o não óbvio e as singularidades. O
processo de investigação não segue um rígido protocolo,
pois são os sujeitos e seus agenciamentos que conduzem
o investigador em campo. As minhas conexões foram
feitas por contágio, o que significa que um sujeito me
conduzia a outro, uma situação me levava a outra.
Deste modo, como os rapazes do CAC, eu saía e entrava,
circulava e parava, ora à deriva, ora no leme.

Permito-me fazer uma pequena digressão do porquê


deste relato ser feito a partir de uma etnocartografia
e não simplesmente de uma etnografia. Toda escolha
teórica, que tem a ver também e intrinsicamente com
o observado e sua análise, é conduzida a partir de
determinados protocolos de investigação, de um lado,
e de uma linguagem peculiar, por outro. Por isto,
termos como rizoma, rede, sujeitos, etnocartografia
são parte do vocabulário próprio do sistema teórico ao
qual me filio e escolhi como lente de observação do
CAC do Rangel. Não se trata, em hipótese nenhuma de
estabelecer uma disputa de uma melhor metodologia. A
metodologia é escolha do investigador, de suas leituras
e, principalmente, daquilo que o campo “pede”. Nada
está pronto, a não ser no final da escritura. Enquanto
a cartografia procura avaliar o não representável, sem
tentar impor-lhe uma imagem, a etnografia procura
torná-lo significante. Esta diferenciação diz respeito
a um debate proposto por Renato Rosaldo (1989) ao
afirmar que o olho da antropologia é conectado com o
do imperialismo. Neste aspecto, os trobiandenses, os
nuer, o gueto são formas de comunicação que partiam
da centralização da metrópole a partir da qual tudo era
enxergado. A crítica da Antropologia Clássica por C. Geertz
(1988) reside, principalmente na diferença dos modelos
imperialistas e pós colonialistas de enxergar o mundo.
Os modelos imperialistas, dito clássicos, apontam para
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um mundo misterioso e ainda velado que seria descrito,


preservado e mantido como uma peça de museu pelos
relatos antropológicos e suas etnografias. Nas teses
de M Foucault e G. Marcus, as Ciências Sociais em seu
modelo clássico apenas representavam o mundo a partir
de modelos previamente elaborados. Com a crise destes
modelos, ou a famosa crise da representação, houve
um deslocamento do outro como tema para o outro
como interlocutor. Ademais, a Antropologia Clássica
é, em larga escala, fundamentada na distância entre as
culturas, os povos (daí os adjetivos etnocêntricos usados,
como primitivos, atrasados...) supostamente portadores
de identidades fixas. Nas críticas de V. Crapanzano
(1992) e outros, falandoa partir da primeira pessoa, a obra
etnográfica clássica é fechada e unidimensional. Nesta
base, a etnografia atuaria como como uma tradução,
uma aproximação, um contato, e não uma interpretação.
A maior parte da crítica deste rol de autores diz respeito
à visão de um sujeito uno, indivisível e estático e sólido
por parte da maioria dos autores considerados como
clássicos.

O etnógrafo é como Hermes (Crapanzano: 1992):


o mensageiro do culto e, ao mesmo tempo, um mago,
desvelando o oculto. Nada de saberes vinculados a leis
científicas, nada de uma natureza una e universal para
todos os seres humanos. Crapanzano, referindo-se a
E-Pritchard diz que ele os descreve a partir de dados
pré-elaborados pela história e pela proporia antropologia
como pastoreio, primitivos, idade do ferro, e também de
uma certa masculinidade ocidental e metropolitana. Na
mesma linha, M. Rosaldo (1980)questiona a tendência
persistente de apropriar-se dos dados e informações
etnográficos os tornando registros originais. Na verdade
eram projeções do antropólogo sobre a realidade deste
outro desconhecido. A virada pós-estruturalista na
Antropologia fez com que doravante o trabalho de campo
fosse visto como texto colaborativo. Nesta base, pois,
construí minhas interpretações sobre a rede-rizoma CAC
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do Rangel.

Lidei com rastros, com incompletudes e inacabamentos.


No meu convívio com as pessoas do CAC removi camadas
de vida dos meus colaboradores, senti seus anseios,
dores e amores. Um desafio da experimentação e nunca
da representação. Minha experiência foi, assim, uma
espécie de etnocartografia de territórios existenciais reais
e/ou em vias de existir. Esta rede-rizoma detém uma
série de comportamentos, de agenciamentos, no tempo
e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.

Muitos dos caminhos desta rede às vezes não me


levaram a lugar nenhum. Eram linhas de fuga, discursos
pré-fabricados e montados sobre bases daquilo que se
diz na mídia, a maioria estereótipos comuns os quais
reforçavam um lugar de pertencimento ideal daquelas
masculinidades: o pegador, o cara de sucesso, o honesto,
o ativo, o bravo, o bonzão. A trajetória do rizoma
CAC de alguma maneira territorializa espacialidades e
desterritorializa outras. Melhor dizendo, um sistema de
regras definidas não foi encontrado na minha investigação.
Havia regras para ser homem dentro da ambiência CAC,
ser homem na rua, em casa, ser homem casado, solteiro.
Para cada situação, forma-se uma dada territorialidade
tempo-espacial que confere sentido ao sujeito. Não
há, portanto, a regra “ser homem”, mas um conjunto
de estratégias e discursos sobre como “ser homem” em
determinado espaço e tempo.

Etnocartografar é observar ao mesmo tempo em


que se traça um percurso das subjetividades. Significa
acompanhar os movimentos e as retrações, os processos
de invenção e de captura que se expandem e se
desdobram, se desterritorializando e se reterritorializando
no momento em que o mapa é projetado. Os sujeitos
foram se inventando ao longo da festa e sua ritualística.

Portanto, assim como o rizoma-rede vão se


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espraiando sem uma direção prévia, etnocartografar


um acontecimento é um processo de invenção, onde
se segue o devir. Neste movimento eu fiquei atento às
maneiras que o desejo encontra de efetuar-se no campo
social da ambiência CAC. O texto é o resultado final do
instante suingueira no CAC do Rangel. É um decalque,
um modelo, e não a realidade. O modelo CAC do Rangel
aqui proposto é totalmente produzido por mim e por
meus contatos dentro da rede rizomática da ambiência
CAC.

Na sequência dos passos de Guilherme de Baskerville,


eu iniciei o processo com um rastreio. O rastreio é um
gesto de varredura do campo. Pode-se dizer que a
atenção que rastreia visa uma espécie de sentido. Assim,
eu tinha que estar pronto sempre para lidar com metas
em variação contínua, uma vez que entrei em campo
sem conhecer o alvo a ser perseguido, como Baskerville
na labiríntica biblioteca. O fenômeno surge de modo
mais ou menos imprevisível, sem que saibamos bem de
onde. Para o etnocartógrafo o importante é a localização
de pistas, de sinais e de processualidade. Rastrear é
também acompanhar mudanças de posição e de ritmo
dos agenciamentos. A minha atenção foi, em princípio,
aberta e sem foco, a fim de adquirir uma vivência com
os sujeitos e seus percursos.

Apesar da rede-rizoma não ter início e nem fim,


a análise que dela se faz é na sua estabilização. A
estabilização da rede se faz na interpretação das
diversas situações pelos atores que nela atuam. A
descrição da rede e seus pontos é, deste modo, a única
maneira de percebê-la como algo estático. É um retrato
do real proposto pelos sujeitos e seus percursos. Na
descrição da rede se leva em consideração também as
coisas e os actantes, os quais segundo Latour (2011) são
atores não humanos da rede. Os actantes do CAC são
as motos, os celulares, as bebidas, que desempenham
fortes papeis na rede-rizoma da festa CAC. Nas minhas
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observações primeiras ao CAC, logo após já ter uma certa


noção espacial do lugar, comecei a perceber que tipo de
objetos chamavam mais a atenção na rede-rizoma CAC
do Rangel. A observação não se deu nos objetos em si,
mas principalmente na relação destes objetos com os
indivíduos. Não me interessava um conjunto de motos
estacionadas em determinado local, mas qual a relação
das motos com o espaço e com a vivência dos indivíduos
na rede.

A noção de rede na antropologia simétrica é bem


próxima do modelo de fluxos de U. Hannerz (1997), das
pós-identidades de S. Hall (2006) e dos hibridismos de
G. Canclini (1997). A diferença mais visível é que Latour
defende a ideia de que, se os seres humanos estabelecem
uma rede social, não é apenas porque eles interagem
com outros seres humanos, mas é porque interagem com
seres humanos e também com outros materiais. Todos
os fenômenos percebidos por mim são efeitos dessas
redes que mesclam simetricamente pessoas e objetos,
no continuum dentro e fora do CAC, que eu denominei
ambiência CAC.

Eu sou, antes de tudo, um fabricador de fatos,


mobilizando partes da realidade para transportá-la,
combiná-la e recombiná-la nos centros da rede-rizoma
em que se acumulam as informações. Isto diz respeito a
minhas escolhas no campo teórico, à seleção de pessoas e
fatos que resolvi analisar, ao meu ego e formação pessoal
e acadêmica. Como um fotógrafo, escolhi o ângulo,
modelei a foto, pensei a estrutura em perspectiva.

De acordo com Latour a melhor forma de explicar é


explicitar as conexões entre os elementos em uma rede
ou mostrar como um elemento contém muitos outros.
Ao colocar vários sujeitos, uma ao lado do outro, e
ao tecer as costuras entre eles, pude fazer emergir a
diferença pela criação de novas relações, numa tentativa
de escapar aos meus preconceitos, à ditadura acadêmica
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48 julho a dezembro de 2013

do pré-estabelecido, ao domínio do que se dizia antes


sobre a ambiência CAC, principalmente pela mídia local.
Terminada a festa, dissolve-se a rede-rizoma CAC do
Rangel. O CAC me fez dançar e pensar a rede como
uma projeção de determinada situação que se configura
naqueles ricos instantes. A sociedade como apenas um
polaroide, efêmero e inexistente.
SocioPoética - Volume 1 | Número 10

julho a dezembro de 2013


49

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IMPLICAÇÕES DO USO DO TERMO CORPO


NOS ESTUDOS DE GÊNERO,
FEMINISTAS E QUEERS

Antonio de Pádua Dias da Silva (UEPB)1

RESUMO: A partir da negação de identidades de gênero e sexuais que tomam


o corpo em sua estrutura binária – masculino e feminino, homem e mulher,
macho e fêmea e, posteriormente, heterossexual e homossexual – proponho
uma revisão de abordagens e percepções sobre sujeitos contemporâneos
que sustentam a ideia do corpo como o primado para o estabelecimento das
construções de si. Parto do pensamento de Monique Wittig (2007), quando
elabora a equação semântica de que “a lésbica não é mulher” (equação
extensível a “o gay não é homem”), visto que as categorias homem e mulher
só são possíveis de serem interpretadas em contextos políticos, ideológicos
e econômicos das estruturas binárias, porque os alocam em lugares sociais
diferenciados, tomando-se a marca biológica como argumento para a manutenção
das desigualdades de gênero. Centro-me na ideia de “contra-sexual”, de Beatriz
Preciado (2000), que situa o corpo fora das oposições já citadas para indagar
em que consiste e se é possível manter a ideia de corpo em substituição aos
conceitos de homem-mulher e respectivos derivados. Apesar de ter consciência
das tecnologias de gênero já discutidas por Teresa de Lauretis (1987) e do
manifesto ciborgue de Donna Haraway (1991), das mulheres testosteronadas e
das multidões queers problematizadas por Beatriz Preciado (2003; 2002), além
da Teoria King Kong proposta por Virginie Despentes (2007), sustento que a
noção de corpo é bastante complexa, e até inutilizável em muitos momentos,
porque confusa, para manter-se como uma postura dos estudos gays,
lésbicos, queers e feministas frequentemente interpretando sujeitos culturais.
Palavras-chave: Corpo. Homem. Mulher. Feminismo.

ABSTRACT: In this article I review approaches and perceptions to contemporary


subjects who support the idea of the body as the main locus for the construction
of the self and who deny the dichotomous categories man-woman, heterosexual-
homosexual, male-female. First, I discuss Monique Wittig’s (2007) semantic
equation that „a lesbian is not a woman“ (which extends to “a gay man is not a
man”), once binary terms such as woman and man place people within biological
categories which reinforce gender inequalities and are only interpretable in
political, ideological and economic binary structures. I centralize discussions
around Beatriz Preciado’s (2000) idea of ​​„counter-sexual“, to whom the body
is outside the aforementioned oppositions and questions what it is and if it is
possible to keep the idea of ​​the body as a replacement for the old concepts of
man-woman and their derivations. Despite of my awareness of the previously
discussed gender technologies, of Teresa de Lauretis’ (1987) ideas and Donna
Haraway’s (1991) Cyborg Manifesto, of testosteronized women and queer crowds,
as problematized by Beatriz Preciado (2003, 2002), I argue that the notion of the
body, as it is confusing, is very complex, and even unusable in many instances,
to keep as a posture of feminist studies which often interpret cultural subjects.
Keywords: Body. Man. Woman. Feminism.

1 Doutor em Letras pela UFAL. Professor do Programa de Pós-Graduação


em Literatura e Interculturalidade. Pesquisador dos estudos de gênero e
sexualidades na e pela literatura.
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1 Problematizando a questão

Faz décadas que discussões em torno de sujeitos


culturalmente “determinados” macho e fêmea, homem
e mulher, heterossexual e homossexual têm apontado
para os limites, as “invenções” e as convenções de
várias ordens que mantêm estas categorias sob o
domínio de grupos centrados na antiga figura do homem
heterossexual. Esta constatação é bastante óbvia para
estudiosos da área, porque as teorias produzidas, as
críticas feitas, os resultados de pesquisas exibidos, tudo
concorria e, em muitos casos, ainda concorre para reiterá-
las. Todavia, quando nos aprofundamos em estruturas
ou dinâmicas que obstaculizam a liberdade do outro
existir em concomitância aos indivíduos que se mantêm
nos poderes; quando as críticas feitas às dinâmicas
heterossexual e falocêntrica são aprofundadas, percebe-
se que o sintagma nominal “homem heterossexual” não
é, na perspectiva discursiva, uma imagem tão simples
e natural de se aceitar, porque fundada em alicerces de
poder bastante complexos e que, de certa forma, rege as
demais estruturas de gênero já convencionadas.

Homem e heterossexual, por assim dizer, implicam


outras discussões já levantadas por várias pesquisadoras
e pesquisadores dos estudos feministas, dos estudos de
gênero, gays, lésbicos e queers, em quaisquer campos
do conhecimento que se apropriam desta imagem para
construir pensamentos e refletir sobre os modos de ser
e de estar das pessoas no mundo. Uma das implicações
é referente ao outro desta relação. Ora, ser ou estar
homem, na dinâmica heterossexual, significa ter e
conceder poder. O poder concedido é endereçado aos
seus outros, quando regidos pela lógica da manutenção
do regime hetero, caracterizado, quase sempre, por uma
espécie de supremacia machista, falocêntrica, também
muitas vezes virilicêntrico, misógino e homofóbico.
Assim, as mulheres são, nesta esteira, as primeiras a
configurarem o outro dos homens. O outro, neste caso, na
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julho a dezembro de 2013


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lógica estruturalista, se dá pela diferença que, acirrando


ainda mais as relações de poder entre uns (homens)
e outros (mulheres), cria outras (sub)estruturas como
ativo-passivo, público-privado.

Já os “homens” e as “mulheres” não heterossexuais,


mas homossexuais, também são fortemente diferenciados,
porém, sempre em relação ao homem heterossexual: o
homem homossexual é discriminado porque sustenta seu
estilo de vida fora do âmbito reprodutivo (patriarcalista,
machista) e viril (aproximando-se estereotipadamente
do feminino); a mulher homossexual é discriminada
porque sustenta seu estilo de vida também fora do
âmbito reprodutivo (fêmea) e feminino (aproximando-se
estereotipadamente do masculino).2

Em meio a essa discussão, pesquisadoras como


Monique Wittig (2007) têm suscitado discussões de
grande relevância para as tomadas de posições de
sujeitos nos campos social, cultural, do direito, mas,
a meu ver, continuam inconclusas, porque ou o ponto
teórico é apenas teórico, sem relações diretas e de
aplicabilidade ou vivência entre a maioria das pessoas,
ou porque diz respeito a apenas determinados contextos
socioculturais, não universais, mas localizados no tempo
e no espaço. Pode ser que os dois argumentos possam
vir a ser integrados e formar um terceiro.

O objetivo deste artigo é problematizar a questão


posta e sustentar que ideias sobre categorias de análises
formuladas em meio às construções discursivas de gênero
e sexualidades, quando propõem outros termos ou nomes
para re-definir as pessoas em suas posições assumidas
quanto ao seu ser e estar no mundo, obrigatoriamente
necessitam voltar às categorias negadas –homem,

2 É bom lembrar que não estou defendendo este ponto de vista (homem
afeminado, mulher macho), mas apenas problematizando uma questão
presente, ainda, no imaginário coletivo de nossa cultura, imagens tomadas
como verdadeiras por muitos membros da comunidade brasileira.
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mulher, heterossexual, homossexual, macho, fêmea –,


porque, a princípio, o pensamento pode até então estar
sendo produzido e induzido por um caminho adequado,
todavia a língua como um sistema fechado não dá
sustentação a outros horizontes de leitura de pessoas
e suas performances afetivo-sexuais que superem os
termos e significados dos já em uso, desgastados e
negado pelos estudos contemporâneos, porque é na e
pela língua que nos posicionamos.

Centro-me no conceito mais aberto e democrático


do termo corpo como uma categoria em uso por muitos
estudiosos, principalmente pelas feministas lésbicas e
queers. Discuto este conceito e sua imagem paralelamente
ao uso dos conceitos homem e mulher que, por sucessivas
analogias (mal feitas, em muitos contextos, deixe-se
claro), são correspondentes ideais de macho e fêmea.
O problema maior que aponto, como conclusão da ideia
que levanto e sustento, diz respeito aos rumos que os
estudos feministas, bem como os estudos gays, lésbicos
e queers têm tomado, muitas vezes caindo nas aporias
terminológicas e modistas, embora com bastante respaldo
ou razão, mas insuficientes para levar adiante um projeto
que se proponha a re-pensar ou re-definir sujeitos e
pessoas, a partir daquilo que as pessoas, seja enquanto
indivíduo ou coletividade, definem a si e para si o que
melhor acreditam dizer delas nas suas subjetividades e
identidades.

2. Os conceitos em uso pelo regime heterossexual

O que é o corpo? Quero adentrar esta discussão na


contramão do que circula no meio acadêmico, quando se
fala em corpo no plural, não materializado em uma ideia
aparentemente arquetípica para ser tratado no singular.
Segundo Fontes (2004, p. i), “Corpus designava, em latim,
o corpo em oposição à alma”. Esta é a concepção inscrita
em quaisquer dicionários de línguas. A história do corpo
atravessa os séculos nas culturas ocidentais, impingindo
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esta concepção estruturalista que reforça ideais do


corpo como um dado físico, uma matéria orgânica, uma
maquinaria. Não é preciso trazer à tona discussões teóricas
em torno do conceito de corpo para se entender dois
aspectos sob os quais, hoje, este conceito é construído,
aceito e propagado: primeiro, o corpo continua sendo,
em sua essência ou natureza um dado biológico, uma
matéria orgânica estruturadora do homem e do animal,
com toda a sua lógica ou dinâmica de funcionamento;
segundo, o corpo é um dado simbólico a partir do qual
vários significados e valores são nele inscritos para que
adquira formas, volumes, imagens aceitas no tempo e
no espaço, relacionado às diferenças e às semelhanças
como elementos reiteradores de pertenças no grupo
dos iguais que negam corpos diferentes ou queers. Isso
anuncia corpos aceitos social e culturalmente e corpos
abjetos, retirados de trânsito, impossíveis de serem
espontaneamente assimilados no corpus social.

Embora os estudiosos que se debruçam sobre as


políticas em torno do corpo – este entendido como lócus
simbólico sobre o qual são inscritas as significações
de sujeitos, pessoas, grupos –, tomem apenas a parte
externa deste dispositivo discursivo, porque é pelas lentes
do externo ou visível, do significante ou materializável
que muitas culturas se firmam, estarei fazendo referência
também a tudo o que está por sob a extensão da pele,
sustentando a tese de que um corpo estranho (título de
um livro de Guacira Lopes Louro, 2004), esquisito, abjeto
ou queer só pode ser mudado em suas bases externas,
salvo as raríssimas exceções do abjeto.

Michel Foucault no volume 1 da História da sexualidade


(1998) aponta o corpo como o lócus primeiro e único
de impregnação de vários dispositivos, dentre eles o
da sexualidade e, segundo este filósofo, a sexualidade,
neste sentido, é um nome atribuído
[A] um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea
que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da
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superfície em que a estimulação dos corpos, a intensifi-


cação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação
dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resis-
tências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas
grandes estratégias de saber e de poder (p. 116).

É notório que os teóricos da cultura sempre


abordam esta matéria do ponto de vista da sujeição,
da subordinação e das transgressões (sempre visíveis)
dos sujeitos a partir de seus corpos na sua superfície
externa, visto que toda essa estrutura orgânica, a priori,
em nada serviria às discussões em torno das questões
de gênero e de sexualidades, salvo para “naturalizar”
determinadas funções ou posições de sujeitos através
daquilo que, para a manutenção de um Estado-Nação,
seria impossível alterar, a saber, a reprodução – seja ela
sexuada-natural ou assistida-artificial. Os dispositivos de
maternidade, paternidade e reprodução mantém a todo
o custo o corpo orgânico inalterável, sendo possível,
nas grandes polêmicas que envolvem os sujeitos e seus
corpos, questionar apenas o que está na base ou para
além da pele, ou seja, com exceção da transgenitalização
(embora o processo de transgenitalização também opere
basicamente na superfície ou extensão da pele), as
“reinvenções” corporais são significadas ou na superfície
da pele ou abaixo dela, seja através dos implantes de
silicone, teflon ou matéria similar, seja com tatuagens,
cirurgias plásticas (e reparadoras), implantes de cabelos,
ossos, membros artificiais. Outro extremo dessa
alteração corporal, mas procurada por poucas pessoas
no mundo, trata-se do Body Integrity Identity Disorder
(BIID), questão ainda pouco discutida não só em nosso
meio, mas no Ocidente como um todo, porque orbita em
torno ou da desordem, transtorno psíquico ou do desejo
identitátio de, ao invés de “reinventar” o corpo pela
enxertia ou acréscimo, o sentimento é o da subtração, o
da extração e visualmente perda de membros.

O corpo, nesta lógica, mantém-se ainda binariamente


interpretado, apesar das discussões aventadas por
teóricas de várias perspectivas feministas. Se Simone
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de Beauvoir (2000), em seu feminismo radical, lançou


um aforismo entre os estudiosos de gênero e de
sexualidade e os feminismos, afirmando que “não se
nasce mulher, torna-se mulher”, as estudiosas que a
sucederam enveredaram por caminhos que ora reiteram
este pensamento, ora o relativizam ou, em outros casos,
o negam (a visão mais negada entre os pesquisadores
é a que interpreta a pessoa apenas no plano biológico-
anatômico). Por este aforismo, pode-se lançar o mesmo
pensamento para o homem, ou seja, “não se nasce
homem, torna-se homem”. Esta versão do “nascimento”
ou ontológica é complexa diante de toda uma tradição e
dos limites do pensamento humano em entender, afinal,
as fronteiras entre aquilo que é nascido e aquilo que é
integrado e significado para a “matéria” gestada. O que
se nasce, afinal?

Partamos da discussão em torno do corpo. Nascemos


um corpo. Parece que para alguns pensadores este dado
é suficiente para dizer da “matéria” viva que é gestada,
que nasce e passa a receber as impressões linguístico-
discursivas que tornarão aquele corpo identificado por
um nome, construindo um sujeito de sua identidade
sexual e de gênero: assujeitado, dentro dos padrões
de cada sociedade, ou, afastando-se dos padrões que
são previamente definidos antes mesmo do nascimento,
forjam ou constroem para si outras identidades, uma
vez que não se identificam, não se familiarizam e negam
a base sexual e de gênero que primeiramente orientou
aquele “corpo”.

Percebam que tenho dificuldades em lidar com os


termos, porque as bases semânticas negadas para as
estruturações ou construções de gênero e sexualidade
são assentadas no princípio dicotômico que estabelece
o macho e a fêmea (termos do discurso biológico e
reprodutivo) que corresponderão, na equação da lógica
heteronormativa, às identidades de homem e mulher,
respectivamente. E toda essa noção de macho-homem e
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fêmea-mulher deve encontrar correspondência direta na


relação pênis-vagina, sendo toda e qualquer mudança
desta ordem considerada uma alteração que poria em
pânico os sistemas já consolidados nos imaginários sociais
e culturais. A partir das “transgressões” ou “desordens”,
outros sujeitos fracionam esta equação, levantando
hipóteses de que a “transgressão” não é o termo e a
atitude mais condizentes com as identificações, pois a
transgressão está para quem introjetou apenas o modelo
de ser homem e mulher em sociedade; para os que se
espelham nas orientações sexuais e de gênero esquisitas,
como as lésbicas, os gays, as travestis, as transgêneros,
os hermafroditas ou todos os outros que compõem as
multitudes queer, como aponta Beatriz Preciado (2003),
o termo transgressão parece não se aplicar, vez que o
seu modo de ser e de estar não desintegra o sistema
binário e dicotômico, mas o problematiza no sentido
de tornar consciente o fato de que as pessoas podem
ser mais livres para as suas escolhas, para encontrar
os seus lugares onde possam viver os seus modos ou
estilos de vida. A suposta transgressão, neste sentido,
se dá em razão de vários discursos que atravessam as
formas de ver e interpretar as pessoas em determinados
momentos históricos, pois aspectos religiosos e morais
são bastante contundentes quando querem alocar as
pessoas em camisas-de-força, forçando-as a serem
aquilo que nem sempre condiz com o pensamento, o
momento, o sentimento ou o desejo da pessoa.

Para além desta discussão, então, ainda pergunto:


o que nascemos, então? Se a questão fosse apenas
a nomenclatura – macho-fêmea, homem-mulher,
heterossexual-homossexual –, creio que um outro nome
poderia ser atribuído à “matéria” que nasce e, desta
forma, os feminismos, os estudos de gênero, gays,
lésbicos e queers teriam resolvida a questão: bastaria
um nome que fosse consensual, universal como os que
estão em vigor (mas não consensuais, universais), e as
relações problemáticas de gênero e sexualidades em
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funcionamento seriam resolvidas? Creio que não. Apesar


de vários esforços, ao longo de décadas, para se testar
nomes capazes de, uma vez impregnados politicamente
das ideias veiculadas por fortes grupos como os
feministas, todos esbarramos nos pares dicotômicos e
binários, como se fosse impossível pensar a pessoa, o
indivíduo e suas coletividades para além das dicotomias
e binarismos estabelecidos nas e pelas relações macho e
fêmea, homem e mulher, heterossexual e homossexual.

Se for possível pensar estas relações a partir do termo


corpo, este outro, mas não novo dispositivo teria que ser
distinguido, diferenciado numa base dicotômica, se não no
mesmo sentido, o negativo das relações já estabelecidas
e negadas atualmente pelos estudos feministas e outros,
mas não seria possível fugir desta base: o corpo nasce
e continuaria a nascer, dentro da norma ou do que é
comum, ou com pênis ou com vagina. Para além destas
marcações anatômicas, biologicamente falando, o corpo
nasceria fora da ordem ou do padrão: o hermafrodita e os
demais nascidos anatomicamente, quanto à memória ou
registro sexual (não de gênero), distantes do esperado
para uma vida afetiva e sexual sem traumas, conveniente
para a pessoa assim nascida, continuariam sendo corpos
abjetos, no sentido negativo do termo, inconvenientes e
passíveis de cirurgias reparadoras e capazes de torná-los
sujeitos de afeto, seja para manter este corpo com pênis
ou com vagina.

Daí, então, minha pergunta: se as possibilidades


de nascimento são anatomicamente limitadas natural
e biologicamente (os fora da norma nascem ou com
excessos – dois ânus, dois sexos – ou com falta – sem sexo,
sem ânus), que nomes atribuir a estes dois, apenas dois
corpos possíveis? Para além do macho e fêmea (categorias
biológicas e linguísticas) que poderiam resultar, numa
proporção respectiva e direta, nas categorias homem
e mulher, e estas seriam problematizadas em torno da
também respectiva e direta relação masculino e feminino,
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que outros termos, nomes ou relações seriam possíveis?


A partir deste ponto, passo, assim, a centrar-me no eixo
da ideia-tese: para além do corpo, o que é possível? Ou,
não estariam os estudos feministas e demais estudos já
citados neste artigo, equivocados quanto ao investimento
na dissecação de itens lexicais impregnados de sentidos
políticos, econômicos, religiosos, morais, culturas e
outros que privilegiam, é evidente, apenas um dos
pares da relação, uma vez que é inviável e até, posso
afirmar aqui, impossível a não dicotomia? Se os corpos
nascem apenas dicotômica e binariamente (mas não
com os significados atribuídos por grupos hegemônicos
em sociedades e mantidos por uma tradição cultural),
marcados por uma pertença originariamente centrada
no pênis e na vagina como regra geral, é cabível a
negação deste binarismo? Muitos estudos de feministas,
por exemplo, a partir das teóricas citadas neste artigo,
não deveriam tornar mais claro para as pessoas em
que consistem, realmente, os argumentos em favor da
negação dos termos relacionais macho-fêmea, homem-
mulher, masculino-feminino? Questões de ordem daquilo
que está na base semântica do binarismo como ativo-
passivo, quente-frio, pai-mãe, ordem-sujeição precisam,
sim, serem problematizadas veementemente, mas,
creio, não a partir da negação daquilo que é e que, para
a a-ventura de alguns, podem vir a estar/ser – como
é o caso das pessoas que, por motivos e arrazoados
convincentes, optam pela transgenitalização.

Monique Wittig, em seu famoso La pensée straight


(2007, p. 82-83), assim se refere às lésbicas (note: não
às mulheres lésbicas, mas às lésbicas):
[Dans] la mesure où la femme devient réalité pour un
individu uniquement en relation avec un individu de la
classe oppose – les hommes – et en particulier dans le
marriage, les lesbiennes, parce qu’elles n’entrent pas
dans cette catégorie, ne sont pas des “femmes”. En ou-
tré, ce n’est pas en tant que “femmes” que les lesbien-
nes sont opprimées mais bien plutôt parce qu’elles ne
sont pas des “femmes”. Et ce ne sont pas les “femmes”
(victims de l’hétérosexualité) qu’aiment et désirent les
lesbiennes mais des lesbiennes (des individus qui ne
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sont pas les femelles des homes).

Problematizemos, então, a questão que vem sendo


posta: se as lésbicas não são oprimidas, ou não sofrem
outros tipos de reações negativas não porque são
lésbicas, mas porque não são mulheres pertencentes à
ordem política, econômica, sexual e de gênero da base
heterrosexual, o que significa dizer, então, ser (ou estar)
lésbica? O corpo, neste contexto discursivo, quanto às
questões sexuais e de gênero, comporta outro tratamento
porque fundado em outra base orgânica, apresentando-
se em disforia com o modelo de corpo a partir do qual
todas as populações do globo ainda nascem com ele? Os
desejos, os sentimentos, as erosões sofridas pelo tempo,
as inscrições semânticas sob as quais nos movemos
são diferentes, se no corpo de uma mulher ou de uma
lésbica? É evidente que o pensamento de Monique Wittig
está correto. O que destoa neste discurso é o fato de
ser possível questionar a base sobre a qual se assentam
todas as emoções despendidas do humano, todos os
desejos, todas as projeções de pessoa, de coletivo. O
corpo humano, apesar das alterações sofridas ao longo
dos tempos, sejam elas provocadas por fatores climático,
físico, geográfico, científico, e embora sofrendo também
ressemantizações oriundas de discursos e práticas
discursivas de ordem política, religiosa, econômica e
cultural, permanece o mesmo em sua base. E as pessoas
continuam nascendo macho e fêmea – embora no intervalo
entre o surgimento do homem na terra e os dias atuais
várias modificações tenham ocorrido na estrutura físico-
orgânica deste referente em discussão –, construindo
para si, ou assujeitando-se às ordens, as performances
de homem e de mulher, termos que desembocam nos
corriqueiros masculino e feminino. Na esteira deste
pensamento, voltemos à Monique Wittig, quando fala
especificamente sobre as lésbicas e o feminismo:
[Politiquement], Le féminisme en tant que phénomène
théorique et pratique inclut le lesbianism tout en étant
dépassé par lui. Sans le féminisme, le lesbianisme com-
me phénomène politique n’aurait pás existe. La culture
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lesbianne et la société lesbienne seraient restées aussi


secretes qu’elles l’ont toujours été. Sur le plan théorique,
le lesbianism et le feminism articulent leurs positions de
telle manière que l’un interroge toujours l’autre. Le fem-
inism rappelle au lesbianism qu’il doit compter avec son
inclusion dans la classe des femmes.

Ora, que dizer, neste contexto, do feminismo


como um discurso e uma prática políticas apenas de
interesse das mulheres, podendo, apenas quando por
articulações convergentes, aproximar-se das questões
sobre lesbianidades? As lésbicas, assim, estariam fora
das discussões do e sobre o corpo das mulheres, porque
nascem e se projetam em corpos distintos dos corpos
de mulheres? Estaremos, então, diante de feminismos
distintos, um que agrega as questões das mulheres e
outro que comporta as questões das lésbicas? Mas não
teríamos, então, feminismo para as lésbicas – feminismo
lésbico, se entendermos que a lésbica não é mulher e o
feminismo, do étimo do termo às discussões elaboradas,
tem se posicionado em favor das mulheres sob a ordem
do masculino, e busca problematizar as dicotomias de
gênero e de sexo, algo que, para o pensamento de
Monique Wittig, não daria certo, visto que as lésbicas,
por assim dizer, comporiam outro conjunto de sujeitos
não englobados por aspetos da economia, da política e da
cultura heterossexuais. É possível, logo, um feminismo
lésbico? Por quê? O pensamento de Monique Wittig está
equivocado quanto a esta questão em particular, porque só
funciona na oposição heterossexual versus lesbianismo, e
não na perspectiva da mulher heterossexual e da mulher
lésbica? Se uma lésbica não é uma mulher, o lesbianismo
não é um feminismo, então, os pontos de convergência
entre os estudos e os pensamentos residiriam em que,
no corpo material, no corpo fictício?

Voltemos a ele. As motivações que levam sujeitos


a quererem pensar a si e aos outros a partir daquilo
que melhor acreditam explicar os contextos, situações e
ordens em que se encontram são várias, distintas, opostas
algumas e convergentes outras. Mas um dado é certo: o
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corpo permanece o mesmo. É possível, nesta discussão


sobre o corpo e seu legado às culturas contemporâneas,
a reinvenção do corpo? Os estudos feministas, diante
desta questão, como se posicionam?

3. Sobre a reinvenção do corpo: a utopia como


possibilidade

Iniciemos este tópico com um pensamento de Teresa


de Lauretis (2007, p. 38):

[Aujourd’hui] cependant, cette notion de genre synoni-


me de “différence sexuelle” ainsi que sés notions déri-
vées – la culture des femmes, la maternité, l’écriture
féminine, la féminité, etc. – sont devenues limitatives;
elles sont un obstacle pour la pensée féministe.

Ora, se a noção de gênero como sinônimo de


diferença sexual torna-se um obstáculo ao pensamento
feminista, ao se pensar o corpo e o sujeito queer, por
outro lado, garante-se o encontro da solução para esta
aporia, uma vez que os termos dicotômicos são excluídos
das discussões?

Recentemente, Berenice Bento (2006), em estudo


sobre o que ela denomina “reinvenção do corpo”, traz à
tona uma das grandes verdades em desconstrução pelos
estudos feministas, gays, lésbicos e queers: o de que
houve a continua em vigor uma “interpretação de que
existem dois corpos diferentes, radicalmente opostos,
e de que as explicações para os comportamentos dos
gêneros estão nestes corpos” (p. 109). O argumento
que ela levanta diz respeito ao fato de que no corpo
transexual existe numa relação dimórfica, quando
comparada aos dois corpos diferentes ou isomórficos,
a saber, o masculino e o feminino, ou seja, enquanto
o corpo do homem se diferencia do da mulher e
ambos, em separados, operam numa base isomórfica
(heterossexual), o corpo da transexual, por atender às
demandas tanto do masculino quanto do feminino, opera
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
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numa base dimórfica, ambígua.


Volto às primeiras explicações dadas neste artigo
sobre a base de que se compõe o corpo humano: deixadas
de lado as relações orgânicas e internas,3 tenhamos
em mente o corpo transexual. O transex é, na primeira
perspectiva apresentada por Berenice Bento (2006, p.
44), “a nomenclatura oficial para definir as pessoas que
vivem uma contradição entre corpo e subjetividade”, isto
é, uma pessoa em um corpo de homem, mas com toda
a dinâmica “psíquica” voltada para os desejos, anseios,
cultura e subjetividade das mulheres, ou o contrário.

Em todas as falas que vários pesquisadores


intentaram registrar, gravar e tomar as imagens de si
como dados que sustentassem seus argumentos – a
exemplo da própria pesquisa de Berenice Bento (2006)
bem como em outras pesquisas empreendidas por James
Green e Ronald Polito (2006), Carlos Figari (2007), João
Silvério Trevisan (2004), Hugo Denizart (1997), James
Green (1999) –, as pessoas transexuais (também muitas
travestis que contradizem, a partir da visão que tem
de si próprias, as noções formuladas pela academia,
pela psicologia e assim por diante), em interação com
os pesquisadores, assumiram o fato de estarem no
corpo errado, ou seja, quando se tratava de um corpo
masculino, a psique era feminina ou vice-versa, de forma
que todo o conflito sentido por essas pessoas resumia-
se na tentativa de adaptar o corpo ao desejo orientado
pelo gênero com o qual se identificava. Em nenhum
momento dessas pesquisas4 as pessoas que informaram

3 Mas não nos esqueçamos das relacionadas ao sistema reprodutivo. Embora


a fonte do desejo seja considerada interna (o desejo é elaborado a partir de
imagens e dispositivos externos), como o desejo é de natureza psíquica, pois
processada por fatores como sentimentos, emoções, reações a estados e
matérias perceptíveis pelo sujeito, não entra no âmbito desta discussão, seja
para alocá-lo na região interna ou externa do corpo.
4 Esclareço que as pesquisas citadas não são, todas, relacionadas às transexuais
ou exploraram a natureza etnográfica da pesquisa e se sustentaram nas falas
gravadas, mas todas elas apontam para falas, registros, documentos em que
aparecem as falas das transexuais e das travestis, inclusive de transformistas.
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de si falaram da dubiedade física e anatômica fora do


isomorfismo confiscado pela pesquisa de Berenice Bento
e de muitas teóricas do feminismo e dos estudos gays,
lésbicos e queer.

Parece-me tratar-se de uma questão que


envolve aspectos importantes a serem considerados.
Primeiramente, pensar o termo corpo como item lexical
possível de uso na língua comum em substituição às
categorias aqui relacionadas – homem, mulher, gay,
lésbica, por exemplo – demandaria uma revisão estrutural
da língua, porque a simples substituição de um termo
por outro não é um efeito tão simples de se imaginar: as
flexões linguísticas, as leis, os tratados, toda uma tradição
escrita, verbalizada e vivida deveria ser considerada, se
fosse possível esta reformulação que, conforme acredito,
soa apenas no plano utópico. Seria fantasioso, se não
fantástico, pensar o hoje nessa perspectiva. Em segundo
lugar, seria necessário que uma provável substituição de
itens lexicais correlacionados às questões de gênero e
sexualidade pela categoria corpo pudesse estabelecer
uma zona de conforto, e não de conflito, entre as
experiências dos sujeitos nas sociedades e nas culturas,
e a correspondência direta desta experiência com o termo
que a nomearia.

Percebo que o equívoco de muitos estudos feministas,


gays, lésbicos e queers, nesta área de produção de
discursos se dá, como já venho apontando, em razão
do corpo – objeto sobre o qual as significações, os
simbolismos, os significados religiosos, culturais vem
sendo impingidos – não se apresentar dimórfico como
pensam Berenice Bento (2006), Beatriz Preciado (2003)
e Judith Butler (1990; 1993), quando apontam o corpo
como possibilidades, como devir, esteja ele relacionado
às transexuais (Berenice Bento), às multidões queer
(Beatriz Preciado) ou às performances (Judith Butler).
Vejamos como equacionamos esta questão.
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A estrutura – e grafo propositalmente o termo em


destaque – corporal ou física do corpo se mantém a mesma,
com pequenas alterações que, na contemporaneidade,
ganha aspecto de um boom cultural, quando comparadas
estas performances aos estilos e ordem de vida sob
os quais estavam os indivíduos antes da década de
1960, por exemplo. Isso se dá porque vários sujeitos
têm liberdade para usufruir e propor mudanças físicas
em seus corpos. É bem verdade que o que se entendia
por homem, mulher, homossexual, lésbica, sexo,
sexualidade, sujeito, à época a que faço menção, entra
em disforia com o que apregoamos hoje. Mas um dado
se mantém inalterado nesse processo de mais de meio
século: sempre que o assunto, a categoria, o termo ou
a imagem corpo surge nos escritos e interpretações das
culturas, é numa perspectiva em que, salvo as exceções
como já apontamos, a figura ou o ambiente externo
desta maquinaria é posto em relevo:
[As] normas regulatórias voltam-se para os corpos para
indicar-lhes limites de sanidade, de legitimidade, de mo-
ralidade ou de coerência. Daí porque aqueles que esca-
pam ou atravessam esses limites ficam marcados como
corpos – e sujeitos – ilegítimos, imorais ou patológicos.
Apesar de todo esse investimento, os corpos se alteram
continuamente. Não somente sua aparência, seus sinais
ou seu funcionamento se modificam ao longo do tem-
po. [...] Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitu-
des produz referências que fazem sentido no interior da
cultura e que definem (pelo menos momentaneamente)
que é o sujeito. A marcação pode ser simbólica ou física,
pode ser indicada por uma aliança de ouro, por um véu,
pela colocação de um piercing, por uma tatuagem, por
uma musculação “trabalhada”, pela implantação de uma
prótese...O que importa é que ela terá, além dos efeitos
simbólicos, expressão social e material. Ela poderá per-
mitir que o sujeito seja reconhecido como pertencendo
a determinada identidade; quer seja incluído ou excluído
de determinados espaços; quer seja acolhido ou recusa-
do por um grupo; quer possa (ou não) usufruir de direi-
tos. (LOURO, Um corpo estranho, p. 82-83).

O excerto dado, extraído de um livro que se tornou


referência, no Brasil, para os estudiosos dos estudos
de gênero e queers, é bastante lúcido e convincente
quando direciona toda e qualquer alteração corporal
pelos sujeitos ao plano da tão somente extensão externa
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desta maquinaria. É na parte externa, visível, quase que


prioritariamente, mas não exclusivamente, na superfície
da pele ou sob ela: as tatuagens, as cirurgias plásticas
e reparadoras, as maquilagens, os véus, os cabelos, as
cores, os anéis, brincos, piercings, as unhas, os pêlos,
todos adquirem significados no plano externo do corpo, a
saber, na e a partir da pele. Abaixo dela, há os exercícios
de musculação que alteram a massa muscular de quem
pouco a tem (as mulheres em geral) ou de quem a tem
em declínio (os homens em idades avançadas ou com
problemas endócrinos). Neste caso, conforme sugere
Beatriz Preciado (2003), o uso da testosterona por
mulheres altera radicalmente esta superfície de que
falamos: abaixo dela, os músculos passam a ganhar
desenvoltura, associando-se o uso deste hormônio
masculino ao exercício físico; os pêlos passam a nascer
onde não seria provável ao corpo radicalmente natural,
biológico, essencial, como barba, bigodes e nos membros
de mulheres que se utilizam da testosterona sintética
para surtir este efeito.

Veja-se que estes efeitos sobre o corpo se dão na


superfície, lócus onde as significações, as semioses
culturais acontecem. Ainda abaixo da pele, os enxertos
de silicones, de materiais como teflon que ajustam o
corpo à forma que se deseja dar, tudo produzindo outros
significados ao corpo que mantém sua base, sua estrutura.
Ou seja, quaisquer desses artifícios podem ser suspensos a
qualquer momento e, dentro de um prazo específico, pode-
se reaver a forma anterior da matéria corporal, de forma
que a sua estrutura orgânica e funcional em quase nada
altera, salvo quando se suspende uma de suas funções
(reprodução, seja pelo uso de preservativo, vasectomia;
suspensão da menstruação, por exemplo), tornando-
se claro que as significações e simbolismos atribuídos
aos sujeitos acontecem na superfície de sua estrutura,
de seu corpo, e as grandes ou radicais ressignificações
ocorrem no interior, processadas na área dos desejos,
dos sentimentos, lá onde são problematizadas e re-
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construídas as subjetividades.

O que se reinventa no corpo? Zigmunt Bauman tem


dedicado tempo a pensar sobre a modernidade e os estilos
de vida de seus sujeitos. Levanta uma tese alicerçada
na ideia da liquefação – e sustenta sua tese através de
vários escritos: Liquid Modernity (2002), Liquid Love
(On the Frailty of Human Bonds), Liquid Life (2005),
Liquido Fear (2006), Liquid Times (Living in an Age of
Uncertainty) (2007). Na perspectiva do teórico polonês,
pelos títulos citados, a liquefação, estado daquilo que se
tornou líquido, seria uma metáfora para se entender o
ultrapassar, pelos sujeitos, de formas de ser e de estar
engessadas em fôrmas imutáveis para experimentar
uma outra dimensão de si e do mundo, aquela centrada
na imagem do que pode ser moldado de acordo com o
desejo e a subjetividade de cada um e de seus grupos
de pertença.

No que tange às estratégias de uso do corpo nas


sociedades contemporâneas, talvez porque as novidades
atraem e se tornam rapidamente modas, é fácil convencer
os sujeitos, principalmente os letrados, de que o corpo
pode ser reinventado, reformulado, adquirir outra feição
nessa moldura que se liquefaz. Como as pessoas vivem a
experiência cotidiana de tentar modelar o corpo, mudar
a imagem de si pela roupa, pelas inscrições na pele
(tatuagens) ou maquilagens, pela tintura dos cabelos,
extirpação dos pêlos corporais, mudança de sexo,
aplicação de silicone, botox, cirurgia plástica, implante
de membros, de ouvido, coração artificial, transplantes
de vários órgãos e tecidos, até mesmo a iminência da
clonagem humana faz parte destas tecnologias, pensar a
vida líquida, o sujeito líquido não seria, assim, nenhuma
novidade.

Quando penso, em verdade, onde e como acontecem


as mudanças corporais para dar outros significados ao
corpo, percebo que a reinvenção é bastante limitada,
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que os sujeitos não operam em si tantas técnicas a


ponto de transformá-los, mas aderem a determinadas
propostas que conduzem a mudanças no estereotipado
corpo ainda em uso, por mais obsoleto que ele seja em
sua forma e função, como podem querer alguns. Saio da
questão das mudanças ou alterações no âmbito epitelial
externo e adentro à discussão em torno da reinvenção
da sexualidade pelo corpo.

4. Algumas considerações em torno da ideia de reinvenção


do corpo sexual

Novamente, trago à tona a ideia de Monique Wittig


de que “a lésbica não é mulher”. Se a lésbica não é uma
mulher, que corpo ela porta, então? É evidente que a
assertiva de Monique Wittig não pode dizer respeito
estritamente ao corpo como matéria física, maquinaria
em sua função orgânica. Para além disso, é preciso
estar atento às palavras da ordem da metáfora, às
ideias possíveis apenas como ficção. Quando teóricos da
cultura, estudiosos feministas, gays, lésbicos e queers
abordam o corpo, de forma geral, entendemos que estão
tratando de políticas públicas, de posições políticas, de
correlações entre corpo, política e economia. Desta forma,
pensar o corpo em sua organicidade, em sua maquinaria
como suporte daquilo que nos fazemos, ou sobre o que
nos fazemos parece não ser possível. Todavia, quando
a rota discursiva diverge ou aponta para outra direção,
este aspecto político, econômico, cultural, religioso, por
exemplo, é centrado unicamente no corpo biológico,
nascituro ou nascido, marcado por órgãos – pênis e
vagina, boca e ânus – que significam os sujeitos e os
classificam em grupos ou conjuntos de pertenças que
fazem sobreviver o Estado-Nação, os estados religiosos,
as pessoas que reiteram o corpo como o lugar da ordem.
O sexo é carne e desejo, mas é também política, como
já afirmou Gore Vidal (1980), e economia, prazer e dor,
cultura e opressão.
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A lésbica não é interpretada na ordem heterossexual


porque se distancia desta e funda outra ordem, assim
como o gay. Quando, porém, parto para o campo da
investigação das políticas em torno das transformações
corporais, das estratégias utilizadas pelos sujeitos para
operarem em si a significação de outro discurso pela
aquisição de outra imagem e, ilusoriamente, de outro
corpo, retorno ao corpo biológico. O que faz um corpo ser
heterossexual ou homossexual? Em tese, e visivelmente,
nada depõe contra o corpo homossexual em relação
ao corpo heterossexual, sejam eles masculinos ou
femininos5.

Um homem e uma mulher homossexuais, salvo o


endereçamento do desejo para o outro do seu afeto que
lhe é igual, contrariando a norma heterossexual, que
vincula as relações afetivas e amorosas entre sujeitos
diferentes (homens e mulheres, e a categoria diferença é
outro termo que entra no rol desta discussão), são iguais
aos homem e mulher heterossexuais. Isto na razão de um
corpo para outro corpo, ou na equiparação ou proporção
de matérias. Um não difere do outro, embora um não
seja outro. Isto é complexo. Quando um homem de
orientação sexual para um seu igual (homossexual, gay)
percebe que seus desejos afetivos e sexuais só serão
possíveis de serem realizados em sua plenitude e para
a sua felicidade com outro igual, a) as sociedades mais
rígidas quanto às formas de viver a sexualidade impingem
este sujeito de uma marca negativa, a do desviante
da norma, logo, embora seja ou tenha o mesmo corpo
que os sob a ordem, passam a ser interpretados como
diferentes porque canalizam seus desejos “naturais”
(pênis e vagina) para as zonas perigosas e abjetas (ânus
e bocas), b) os próprios sujeitos sentem que a lógica do

5 Usarei os termos homossexual e heterossexual apenas para simplificar,


visto que estou trabalhando sob a égide dos termos macho-fêmea, homem-
mulher, masculino-feminino, logo, homossexual-heterossexual. Estou ciente
de que cada termo aqui trazido à tona tem significados distintos e se aplicam
a sujeitos e situações distintas.
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desejo em si opera na base contraditória e conflituosa,


ou seja, sentem e expressam os desejos como os do sexo
oposto, mas esses desejos estão retidos e acumulados
negativamente em um corpo em disforia com o desejo
processado (mentes femininas de transexuais que vivem
a experiência do sexo oposto – mulher – no corpo oposto
– de homem).

Neste último caso, quando as transexuais resolvem


adotar o sexo inverso, seja pela simples aposição de toda
uma cultura feminina ou feminilidade no corpo masculino
(indumentária, maquilagem, apetrechos, enxertos
e aplicações de silicone, ingestão de progesterona
ou hormônios femininos, mudança de voz, aquisição
de trejeitos estereotipados) ou pela adesão radical
à redesignação sexual ou mudança de sexo, o corpo
negado, ao invés de construir outra lógica ou dinâmica
que sustente o sujeito em construção, reverbera uma
constante reiteração da ordem primeira, procurando-
se assemelhar o mais natural possível ao corpo da
ordem heterossexual: o “homem” quer ser mulher, e a
“mulher” quer ser homem. Várias pessoas conhecidas
internacionalmente têm aderido às performances que
orientam seus corpos para o oposto do que nasceram:
a ex-modelo Roberta Close fez cirurgia de redesignação
sexual; Buck Angel, atriz pornô, mudou a forma do corpo
feminino para o masculino, mas atua como performer
passivo, vez que mantém a vagina no corpo masculinizado;
a própria Beatriz Preciado, feminista queer, já apresentou
uma performance masculina, ou seja, tal como defende
em Testo Yonqui (2008), aparece de bigode e barba, ou
seja, modelo masculino como atributos configuradores
de masculinidade nas culturas ocidentais.

Várias são as discussões em torno deste assunto,


principalmente porque a noção de performance de gênero
e/ou sexual, atribuída às ideias de Judith Butler, estão
em pleno gozo do exercício e, como falei anteriormente,
em determinados momentos, discursos podem se tornar
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modistas, cooptar adeptos e se fazer frente de batalha,


erguendo-se bandeiras em nome daquilo em que se
acredita como “verdade”. Para mim, estas verdades
podem ser provisórias ou permanentes, embora a
permanência possa também existir por um período de
tempo, a depender do pensamento da sociedade, das
tradições culturais, dos diálogos entre culturas, das
disponibilidades dos sujeitos em aderir e querer mudar
concepções, pois, conforme havíamos falado, certas
concepções teóricas e discursivas são pensadas por
pessoas e em lugares ou contextos que nem sempre dão
suporte para universalizar as ideias defendidas.

Por mais que os sujeitos tenham possibilidades de


viverem a sexualidade e os papéis de gênero, estes
são limitados. Faço questão de repetir: são limitados!
Busquemos no universo em que vivemos, não importa
a época a que possamos fazer referência, determinadas
ações, papéis ou discursos só funcionam na equação
binária, e muitas vezes, se o olhar da cultura assim o
quiser, de forma dicotômica. Biologicamente, o sexo
encontrado, com o qual nascemos, e redesignado não
passa de dois: ou pênis ou vagina.6 Se natural ou protético,
mesmo quando outra alternativa é capaz de suplantar os
“arcaicos” órgãos sexuais naturais, todos eles retornam
aos movimentos, ações e efeitos produzidos no corpo que
o deseja, ou seja, nenhum dildo ou objeto fabricado para
substituir ou ampliar as possibilidades de prazer sexual
entre as pessoas apresenta novidades quanto ao modelo
de fazer sexo que temos: são objetos com os quais se
penetram (dildos, consolos, vibradores) ou que servem

6 Esclareço que o termo sexo, aqui, é visto unicamente na perspectiva biológica,


a de marcação físico-anatômica. Excluo desta questão, embora saiba de suas
implicações, o termo sexo como um lócus não centrado exclusivamente no
pênis e na vagina, mas em outras zonas erógenas como boca, ânus, mãos,
pele, ou seja, há toda uma dinâmica e rede de provisionamentos eróticos e
sexuais à disposição da liberdade de cada pessoa interessada em se satisfazer,
em encontrar prazer e, por extensão, felicidade quanto aos modos de se
relacionar sexualmente e d se subtejvar a partir deste campo de atuação e
existência.
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passivamente para serem penetrados (bonecas infláveis,


vaginas, ânus e bocas artificiais), afora, é evidente, os
apetrechos das fantasias e fetiches sexuais (das práticas
sadomasoquistas, por exemplo, dos cheiros, dos sabores,
das substâncias, das imagens). Eles não conseguem
superar os órgãos antigos, nem em seus formatos nem
em suas funções e efeitos. A novidade reside no fato de
ser possível, numa relação, variar as performances em
nome do prazer a ser proporcionado.

Essa ideia contrapõe-se diretamente àquela defendida


por Preciado (), quando a teórica, em seu manifesto
vanguardísta, didaticamente, até, ensina formas de
masturbação com o corpo, parece tornar sem efeito
os modos naturais de nascer até hoje, porque defende
que, no que tange às questões de órgãos sexuais, por
exemplo, que o dildo antecede o pênis, que este não
é um protótipo daquele e aquele não é uma imitação
deste. É evidente que só posso tomar esta ideia como
uma metáfora, jamais como possibilidade empírica,
como uma ideia que se realiza no cotidiano das pessoas.
Assim, quanto a este aspecto, concluo que os objetos
dildotécnicos, defendidos por sua teórica, não encontra
lugares amplos de realização nas sociedades em que nos
encontramos, a que fazemos referência: a realização de
vanguardas em um coletivo, a história já o mostrou, é
de difícil possibilidade ou encontrar terreno fértil para
colher frutos vanguardísticos, nesta perspectiva, parece
ser trabalho fadado à não germinação.

Os corpos pensados fora do binarismo biológico


sempre retornam à base primeira: porque essas
discussões não pendem para a matéria em que se realizam
os sujeitos, mas para o desejo. Diante de um vasto
inventário linguístico para nomear as pessoas e as suas
práticas, as performances sexuais em mais de um século,
nenhuma delas conseguiu abstrair a forma biológica e
binária do sujeito homem ou mulher com pênis e vagina,
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respectivamente.7 Mesmo diante de comportamentos


em que é possível a mudança de sexo, ou o caso de
transexuais que querem mudar o sexo para permanecer
com o desejo lésbico (no caso de alguns homens), a
translesbianidade, neste sentido, é concernente apenas
ao desejo, pois o corpo, sempre marcado, permanece
em sua base, seja para ser reconhecido no masculino ou
no feminino, ou seja, nenhuma das transformações do
corpo humano opera uma outra imagem, no que tange
às questões de gênero, sexualidades e desejo, fora dos
limites do crpo masculino e do corpo feminino.

Neste sentido, uma saída encontrada por Tania


Navarro Swain (2001) foi a de pensar os queers na
perspectiva heterogênero, ou seja, a partir de imagens
andróginas veiculadas pelas mídias, para citar apenas
um exemplo. O pensamento desta pensadora sugere que
para além das relações binárias, a perspectiva queer dos
sujeitos é fundamental para se entender as performances
de gênero e sexualidade contemporâneas. Mas sustento
o argumento: mesmo o andrógino, em sua ambiguidade
de forma e de desejo, resvala tanto para o masculino
como para o feminino e não tem força de sustentar uma
“terceira via” (expressão de Anthony Giddens, 2005),
ou seja, não constrói outra possibilidade corporal ou
de desejo. Tudo o que sente ou o que reforma em si,
para construir-se a si, como já afirmou Alain Touraine
(2009), é a partir do já dado e dele não ultrapassa. A
extensão do corpo, neste sentido, vai até a pele e todas
as modificações são restritas a esta extensão, sendo
predominantemente, como já apontamos, realizadas
nesta parte externa do corpo, mantendo-se a base
intacta, com raríssimas exceções.

7 Pênis e vagina, aqui, entenda-se, não precisamente os órgãos em si, mas


toda uma imagética do corpo que exige, para a sua realização sexual, algo
que penetre e algo que seja penetrado. Afora essa equação, apesar de várias
tribos desenvolverem outras alternativas, dificilmente ganham, em número e
qualidade, das pr´ticas, atividades, exercícios, ideias e desejos centrados nas
antigas imagens do pênis (dedo, mão, língua, braço, dildos, consolos etc.) e
da vagina (boca, ânus, coxas, peitos grandes, mão fechada, bonecos etc.).
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A tese sustentada neste artigo não corrobora uma


visão preconceituosa, machista, arcaica ou nonsense,
pelo contrário, como pesquisador dos estudos de gênero,
estudos gays e feministas, sinto-me provocado a entabular
esta discussão no sentido de que traga resultados mais
acurados, mais precisos naquilo sobre o que muitos
pesquisadores vem fazendo, a saber, se debatendo sobre
terminologias, comparando e separando para si termos
que melhor se adéquem as suas propostas defendidas,
embora nenhuma delas até o momento tenha conseguido
encampar o fenômeno, as performances, a lógica
binária ou quaisquer relações que se queira na direção
das competências dos sujeitos para dizerem de si e
assumirem posturas relacionadas à sexualidade, ao sexo
e aos papéis de gênero nas sociedades contemporâneas.

Uma das minhas queixas vem a ser sobre toda esta


epistemologia construída e em construção sobre pessoas
e sujeitos, muitos deles, vale dizer, principalmente em
países como o Brasil, não acompanham as discussões,
não estão a par das discussões e dos discursos, sendo
nomeados, no mais das vezes, sem nem ao menos ter
a noção daquilo em que são arrolados. Isto se explica
pelo fato de muitas teorias ou pensamentos serem
sustentados por teóricos ou teóricas oriundos de países
onde o nível de questionamento talvez tenha alcançado
uma vasta parcela da população e, pela educação, os
sujeitos tomem partido, se posicionem em defesa das
construções de si, já asseguradas pela sociedade ou
que lutem em busca deste direito. Culturas periféricas,
países em desenvolvimento, por exemplo, nem sempre
acompanham estas discussões. Na verdade, mesmo
em se tratando do contexto acadêmico ou universitário,
as grandes polêmicas não atingem equitativamente
os sujeitos. Logo, parece-me um equívoco reivindicar
termos para política, econômica e socialmente os
sujeitos da cultura serem interpretados como aqueles
que ultrapassam os limites da biologia e reinventam-
se a si no cotidiano. Muitos sujeitos alteram a sua base
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mórfica, seja na estrutura superficial (externa, pele) ou


profunda (desejos) a fim de demarcarem o lugar da sua
subjetividade e, assim, encontrar o lugar de pertença.
Outros querem se manter irredutíveis e saem em defesa
do corpo biológico como instância primeira e última do
sujeito (como muitos radicais que se posicionam a partir
de um ponto de vista religioso).

Creio que os estudos feministas devem fazer avançar


esta luta, procurar responder, dentro de seus limites
e dos objetivos delimitados, as questões ainda (mal)
respondidas e preencher as lacunas que causam ruídos
nas várias falas e discursos de teóricas/os que tomam
estes pontos como base de estudo. Questões como o que
é uma mulher (que implica o que é um homem), uma
lésbica, um corpo, uma performance devem estar na
agenda contemporânea de tal forma a equacionar aquilo
que ainda soa vazio ou sem sentido, ou equivocado. Querer
negar as relações binárias no ou a partir do corpo sem
que este seja alterado, permanecendo ainda nesta base,
não me parece um bom caminho. Redefinir os trajetos
do binarismo, já que até o presente momento as formas,
as estruturas linguísticas funcionam, quando relativas a
esta equação, de forma binária parece ser uma decisão
acertada que trará conforto e segurança para quem deseja
tornar preciso o que ainda é vago, flutuante. Esta é uma
saída. Creio nela. E esta seria, também defendo, uma
grande contribuição que os estudos feministas poderiam
dar aos demais estudos que trabalham com as mesmas
questões, como os estudos de gênero, gays, lésbicos,
queers.
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Formações identitárias em Caio Fernando Abreu:


um estudo do ethos discursivo

Thiago Ianez Carbonel (UNICEP)1

RESUMO:

Nosso objetivo principal neste trabalho é apresentar o conceito de ethos


discursivo como uma perspectiva histórica nos estudos linguísticos, e aplicar
este conceito com a finalidade de analisar a formação da identidade homoafetiva
na obra do autor brasileiro caio fernando abreu. foram selecionados contos do
volume morangos mofados (1982), que foram analisados de acordo com os
preceitos teóricos inicialmente apresentados. concluímos com essa leitura que
é possível delimitar um percurso histórico na formação do ethos discursivo na
obra do autor, que parte do homoerotismo velado e, posteriormente, alcança o
status libertário que marcaria sua obra nos anos 90.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira, Discurso, Semiótica, Caio Fernando


Abreu.

ABSTRACT:

Our mean goal in this work is introduce the concept of discoursive ethos as a
historic perspective for linguistic studies. we are supposed to apply this concept
in order to analyse the formation of homoerotic identity in caio fernando abreu
works. for this porpose, we selected short stories from morangos mofados
(1982), which were analysed according to theoretical concepts previously
exposed. we reached the conclusion with this particular way of interpretation
that it is possible to define a historical path in author’s work, begining with a
kind of blind homoerotism until a libertarian status that would highlight his
work at 1990’s.

KEYWORDS: Brazilian Literature, Discourse, Semiotics, Caio Fernando Abreu

1 Doutor em Letras, Professor do Curso de Letras do Centro Universitário


Central Paulista (UNICEP)
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INTRODUÇÃO

A reflexão crítica sobre a produção literária brasileira


dos últimos trinta anos esbarra, inevitavelmente, nas
discussões em torno da marginalidade, da sexualidade
e do conceito de crise (nos seus diversos planos). O
cenário autoral é vasto e diversificado, contemplando a
poesia pretensamente revolucionária de Paulo Leminski,
o mosaico urbano de Rubem Fonseca e muitas outras
visões dessa conturbada fase da cultura nacional. Neste
trabalho monográfico, pretende-se estabelecer um
recorte mais específico dessas produções, enfocando-se
a obra do autor gaúcho Caio Fernando Abreu (doravante
CFA).

Sua produção literária estende-se por duas décadas,


de meados dos anos 70 até meados dos 90, quando
morreu vítima da AIDS. Sua produção é basicamente
contística, mas há também um romance (Onde andará
Dulce Veiga?, de 1990) e vasta produção teatral, agora
reeditada sob organização de Luis Artur Nunes e Marcos
Breda. Considerando o foco de CFA nos contos, optou-se
nesta pesquisa por uma seleção de seus contos, tomados
de obras distribuídas ao longo de sua carreira – os critérios
de seleção serão elucidados em seção posterior.

Pensar a obra de CFA implica, necessariamente,


trazer à tona uma questão outrora incômoda e delicada,
mas que hoje pode ser ventilada sem maiores ressalvas
criticas: o papel da homossexualidade na obra do autor
e sua representatividade no que se pretende determinar
como a tradição da temática gay na Literatura Brasileira.

Há no meio acadêmico e também entre os militantes


do movimento gay forte resistência à rotulação de obras
artísticas, inserindo-as em categorias como “romance
lésbico”, “narrativa gay” etc. Trata-se de um temor
mal fundamentado, que se baseia na noção de que a
categorização é uma forma de sectarização, o que
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fomenta a exclusão e, por conseqüência, o preconceito.


Exemplo dessa linha de pensamento é o prefácio escrito
por João Silvério Trevisan a uma antologia de contos
gays, publicados pela Editora GLS, sob o titulo Triunfo dos
pêlos e outros contos gls. Neste texto, Trevisan afirma
categoricamente: “tentar impor categorias literárias me
parece perigoso porque beira uma espécie de racismo”
(2000, p. 11). Trevisan, que nos anos 70 foi um dos
fundadores do primeiro periódico gay publicado no Brasil,
O lampião da esquina, assume uma postura ideológica
mais branda e suaviza o termo “literatura gay” para
uma versão menos rotuladora: “literatura de temática
homoerótica”.

O foco do presente trabalho é a manifestação dessa


temática homoerótica na obra de CFA, razão pela qual se
adota, de início, o termo proposto por Trevisan. Uma parte,
porém, das considerações que são apresentadas ao fim
do texto consiste em uma provocação que pretende por
em xeque esse posicionamento brando e, nos limites do
olhar teórico, retomar a urgência de uma postura critica
menos tacanha, como a proposta por Woods (1998).

1. As instâncias do eu na enunciação: o ethos discursivo


como foco teórico

Dentre as questões teóricas que urgem por discussão


na arena de debates em torno dos problemas de gênero
e sexualidade, o ethos discursivo assume, cada vez
mais, destaque nas rodas intelectuais que se ocupam do
assunto. Isso se deve, principalmente, à centralidade da
relação entre a discursivização do “eu” na enunciação
e as marcas identitárias materializadas em diferentes
formas de discurso. O propósito do estudo que segue
é exatamente elaborar uma conceituação de ethos que
se coadune com a aparelhagem teórica que vem sendo
utilizada nos estudos desenvolvidos nessa área.

O conceito de ethos, acima de qualquer simplificação,


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é relativamente simples: trata-se do “eu”instaurado


no discurso e que se identifica por sem aquele que diz
“eu” (FIORIN, 2004). Esse sujeito, semioticamente
reconhecido como actante da enunciação, não apenas se
identifica como o “eu”, mas também define o outro pólo
actancial: o tu, o ente a quem se dirige no ato enunciativo.
Assim, é visível que o ato de enunciar é diretamente
responsável pela instauração das pessoas no enunciado,
mas não apenas pessoas. Segundo Fiorin (op. cit., p.
117), “a enunciação é a instancia que povoa o enunciado
de pessoas, de tempo e de espaços”. Adiante, serão
retomados os mecanismos lingüísticos responsáveis
por tais processos – por ora, a perspectiva diacrônica
dos estudos sobre o ethos pode fornecer importantes
ferramentas para a reflexão pretendida neste estudo.

Aristóteles é quem mais remotamente se refere a


instância do eu no discurso. Em sua Retórica, ressalta a
importância da construção, por parte do orador, de um
caráter perante a platéia. Orador e platéia, nesse contexto,
correspondem ao que a Lingüística da Enunciação
e a Análise do Discurso, mais tarde, denominariam,
respectivamente, emissor e receptor, enunciador
e enunciatário. O conceito de caráter proposto por
Aristóteles engloba, basicamente, a imagem que aquele
que fala perante o público constrói de si. Assim, quando
um professor se posiciona perante sua turma, busca, via
de regra, sustentar uma imagem de autoridade e sapiência
que fortaleça a confiança depositada pelos alunos no
mesmo; analogamente, um jovem surfista que queira
ser aceito no círculo dos outros praticantes do esporte
deverá apresentar um caráter forjado de acordo com os
valores eufóricos para o grupo (uso de gírias, atitudes
ousadas e descoladas, modo de se vestir e de se portar
etc.). Importa, sobretudo, que o eu em discurso saiba
articular elementos da imagem pessoal que auxiliem na
obtenção de confiança por parte daqueles a que esse eu
se dirige.
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Ao se extrapolar essa proposição teórica para a esfera


dos estudos lingüísticos, faz-se inevitável a abordagem
pragmática da linguagem e sua retomada da Retórica,
principalmente no trabalho de Dominique Maingueneau
(2001). Tratar esse assunto com zelo teórico, no entanto,
exige, ainda que à guisa de intróito, uma mirada diacrônica
nos passos que os estudos da linguagem deram desde
Saussure até a Análise do Discurso de linha francesa e a
Semiótica.

Na base dos estudos lingüísticos, Saussure


estabeleceu a distinção entre a Langue e a Parole,
compreendida a primeira como Língua (sistema) e a
última como Fala (na tradução pioneira de Izidoro Blikstein
– SAUSSURE, 1987). Ao retomarmos as discussões
propostas pelo autor, no entanto, somos inclinados a
ampliar esse conceito de fala, ultrapassando os limites
da realização lingüística e incluindo toda a esfera cultural
que constitui o extralinguístico e, consequentemente, o
discurso. É compreensível que no começo dos estudos
da linguagem, Saussure tenha feita a opção pelo recorte
estruturalista e se ocupado apenas do que poderia ser, a
princípio, sistematizado. Sua visão, no entanto, é mais
ampla e reconhece as vastas possibilidades de uma
teoria do significado que, inevitavelmente, romperia as
barreiras do apenas lingüístico: a semiologia.
O amadurecimento da Lingüística Saussureana deu-
se, inicialmente, através do trabalho do dinamarquês
Hjelmslev. Saussure havia proposto a pedra fundamental
para o que, depois, seria o solo fértil da semântica: a
oposição fundamental entre significado e significante,
elaborando, assim, a teoria do signo lingüístico. Para
Saussure, há uma relação arbitrária entre o sentido de
um ente no mundo (significado) e sua imagem acústica
(significante). Desse modo, ainda que em diferentes
culturas um mesmo elemento do mundo real seja o
mesmo – o “sol”, por exemplo – as língua correspondentes
a essas culturas construirão, na interioridade de seus
sistemas lingüísticos, significantes que representem o
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conceito: sol (português), sun (inglês), soleil (francês),


hélios (latim). Hjelmslev não apenas transcende o olhar
limitado à palavra (Saussure), estendendo sua ótica
analítica ao texto, como também amplia a oposição
proposta.

Hjelmslev propõe que se faça a distinção, segundo


um princípio isomórfico, entre dois planos: o de expressão
e o de conteúdo. Para o estudioso dinamarquês, esses
planos ainda poderiam ser divididos em forma e
substância, como segue no esquema abaixo:

forma da expressão Diferenças fônicas


plano de
expressão substância da
Significante
expressão

substância do
Significado
conteúdo
plano de
conteúdo
forma do conteúdo Oposições semânticas

Pode-se depreender do quadro acima uma das


mais importantes diretrizes que nortearam a elaboração
do edifício teórico da Semiótica proposta por Greimas,
dita greimasiana. Nesse modelo, parte-se do plano de
conteúdo a fim de, através do que se definiu por percurso
gerativo do sentido, sistematizar e compreender como o
mesmo é construído nos enunciados. Greimas sustenta
sua proposta metodológica na existência de diferentes
níveis textuais, a saber: o fundamental, o narrativo e o
discursivo. Essa distinção permite o estudo semiótico do
texto, pois oferece subsídio para a organização do objeto
de estudo em suas etapas de produção do sentido.

Até este ponto, no entanto, a situação comunicativa


não foi explicitamente colocada em foco. É apenas com os
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trabalhos de Émile Benveniste que se passa a discutir uma


nova abordagem lingüística que contempla a enunciação.
Ao retomar o já dito acerca da Retórica, fica evidente
a relação entre o ato de enunciar e a importância da
construção da imagem do eu que enuncia – “a imagem
de si” (Amoussy, 2008). De fato, a produção de um
enunciado está intrinsecamente associada ao sujeito-
produtor (orador, locutor, emissor, enunciador – termos
que designam o mesmo sujeito enunciativo), aquele
que utiliza a língua na produção do discurso, fazendo
escolhas e imprimindo nas mesmas as marcas de sua
pessoalidade (o que dá o caráter subjetivo da língua).
Tais escolhas podem ser rastreadas pelos procedimentos
lingüísticos (ORECCHIONI, 1980 apud AMOUSSY, op.
cit.) da enunciação, tais como o uso de marcadores
discursivos, modalizadores, shifters etc.

Pensar o papel do “eu” que enuncia inscreve-se


perfeitamente no cenário teórico previsto por Benveniste.
Segundo o autor (BENVENISTE, 1989), é fundamental
pensar na instância da enunciação, inscrevendo na
mesma os papéis do locutor e do alocutário, sendo visível
a relação discursiva entre eles – há sempre um “eu” que
“fala” algo direcionado a um “tu/você”. O ethos, então,
ressurge na equipagem terminológica da Lingüística da
Enunciação, sem, contudo, perder os contornos traçados
por Aristóteles.

Na esteira dos estudos acerca do fenômeno da


enunciação, surge a Análise do Discurso Francesa, nos
anos 60, e com ela a visão de Pêcheux acerca do papel
do ethos na comunicação. Para o autor, os interlocutores
constroem, mutuamente, imagens uns dos outros –
quem fala já possui previamente uma imagem de si
e também do que pode saber de seu enunciatário; o
mesmo vale pára este – bem como buscam saber o que
o outro imagina deles. A existência de interação, nesse
quadro, é um fato; cabe apenas analisar os parâmetros
dessa interação, tendo por base a “competência cultural”
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(AMOUSSY, op. cit.) dos envolvidos e considerando, desse


modo, o que Benveniste já conceituara como quadro
figurativo (Benveniste, op. cit.).

Feito esse preâmbulo teórico, é possível retomar


os mecanismos de instauração do “eu” no enunciado,
conforme sugerido por Fiorin (op. cit.). Segundo o autor,
é a debreagem o meio pelo qual pessoas, tempo e lugares
são definidos no enunciado. Greimas e Courtés, em seu
Dicionário de Semiótica (2008, p. 111), iniciam o verbete
“debreagem” com as seguintes palavras: “Pode-se tentar
definir debreagem como a operação pela qual a inatancia
da enunciação disjunge e projeta fora de si, no ato de
linguagem e com vistas à manifestação, certos termos
ligados à sua estrutura de base, para assim construir
os elementos que servem de fundação ao enunciado-
discurso”.

Fiorin sintetiza a intrincada definição de Greimas


e Courtés, distinguindo duas formas de debregem:
a enunciativa e a enunciva. Ao se analisar um texto,
é possível notar a dualidade entre a subjetividade e a
objetividade, marcadas, respectivamente, pelo “eu-aqui-
agora” e o “ele-alhures-então”. Fiorin sustenta que essa
oposição é a chave para a distinção entre a debreagem
enunciativa e a enunciva: a primeira provoca efeitos
de subjetividade no texto, ao passo que a segunda é a
responsável pelo efeito de objetividade.

No presente trabalho de pesquisa, interessa,


sobretudo, os processos de instauração da
subjetividade, constitutivo do que já se definiu como
ethos, particularmente o ethos do sujeito homoerótico.
Para tanto, aproveita-se a permeabilidade da teoria
semiótica, que permite a conjunção de olhares oriundos
saberes que complementam a análise, particularmente
no nível discursivo. Kronka (2005) já demonstrou essa
possibilidade de entremeamento teórico ao conjugar a
semântica global proposta por Dominique Maingueneau
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às representações foucaultianas da “estética de si”,


presentes em sua História da sexualidade. A autora
analisa as representações do sujeito nas publicações
da imprensa erótica voltada ao público homossexual
(revistas como a G Magazine, Sui Generis e outras),
defendendo a tese de regularidades na performance do
corpo representado e sexualizado nesse tipo de imprensa.
Analogamente, busca-se no presente estudo demonstrar
que a representação do sujeito gay na literatura de CFA
segue um percurso constitutivo entre obras de sua fase
inicial (anos 70) e a maturidade (anos 90).

Do mesmo modo que Kronka fez em sua pesquisa,


o que se tem neste trabalho é a tentativa de casamento
entre a teorização lingüística do sujeito nos discursos e as
abordagens reflexivas que permitam sua análise. E, para
tanto, lança-se mão de saberes advindos da filosofia, da
antropologia, da psicologia, da história. Foucault, como
demonstrou Gregolin (2004), perseguiu essa meta em
sua obra, buscando parametrizar o sujeito a partir das
relações de poder e dos saberes que o constituem.

2. O ethos homoerótico nos contos de Caio Fernando


Abreu

A proposta de mapear a construção do ethos


homoerótico na obra de CFA impõe algum rigor
metodológico que dissipe leituras tendenciosas e,
portanto, parciais, de seus textos. Como foi esclarecido
na introdução, localizar o autor como representativo
da literatura homoerótica dos anos 80 e 90 não é uma
forma de rotulação ou limitação, mas um enquadramento
teórico que permite recortar um entre tantos elementos
significativos em sua obra.

Para tanto, fez-se a opção por textos tomados de


Morangos mofados, publicado em 1982 pela Editora
Brasiliense, a obra mais conhecida do autor, no momento
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alto da carreira do autor, antes da descoberta da AIDS


que o mataria. Os detalhes da publicação assume certa
relevância neste trabalho por permitir não apenas definir
os modos como o “eu” homoerótico se apresenta na
Literatura Brasileira a partir dos anos 70 – levando em
consideração que há trabalhos prévios de CFA em que a
temática já é explorada – (como continuidade de uma
tradição), mas também dá visibilidade à recepção dessa
temática na realidade editorial do período analisado.

A seleção dos contos obedeceu a um critério simples:


os textos em que a temática homoerótica aparecesse
de maneira mais evidente, sem, com isso, apelar-se
para leituras tendenciosas. O uso do ferramental teórico
apresentado na seção anterior objetiva formalizar a mirada
analítica acerca das configurações do homoerotismo na
obra do autor.

3. Morangos mofados e o outing2 literário de Caio


Fernando Abreu

Morangos mofados (1982) pode ser considerada


uma manifestação literária que representa anseios e
perspectivas sociais de personagens que se deparam com
a necessidade de fazer uma avaliação de seus próprios
princípios político-ideológicos e projetos, num período
ainda marcado por repressão. Há, no livro, contos cuja
temática é o homoerotismo e outros cujo ponto central é
a repressão política ou o processo de escrita.

Do mesmo modo que observamos em O ovo


apunhalado, esse volume de contos, composto por dezoito
textos, é dividido em partes: I. O mofo (formada pelos
contos: “Diálogo”, “Os sobreviventes”, “O dia que Urano

2 O termo, usado normalmente em língua inglesa, remete à ideia já exposta


por Eve Sedgwick, em seu ensaio “A epistemologia do armário”, segundo a
qual existe a figura simbólica do ocultamento da identidade homossexual,
imposta pelos modelos sociais. Expor-se, enfrentando tais ditamos, seria
“sair do armário” (outing).
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entrou em Escorpião”, “Pela passagem de uma grande


dor”, “Além do ponto”, “Os companheiros”, “Terça-feira
gorda”, “Eu, tu, ele”, “Luz e sombra”); II. Os morangos
( formada pelos contos: “Transformações”, “Sargento
Garcia”, Fotografias: 18 x 24: Gladys”, Fotografias: 3 x
4: Liége”, “Pêra, uva, maçã?”, “Natureza viva”, “Caixinha
de música”, “O dia em que Júpiter encontrou Saturno”,
“Aqueles dois”); e III. Morangos mofados, formada
apenas pelo conto homônimo.

Nesta obra, o autor filtra aspectos do contexto social


e explora-os, apresentando uma (re)visão de valores,
condutas e ideologias próprias dos períodos autoritários
e de sociedades conservadoras. Ao questionar tais
ideologias e posições preconceituosas marcadas por um
pensamento conservador, a obra mostra a mediocridade
e o preconceito de uma sociedade voltada para o culto
de valores tradicionais.

Dando espaço para vozes marginalizadas, os contos


revelam a condição moral e social daqueles que vivem em
situação periférica. Essas vozes, assim caracterizadas,
aparecem nos contos “Sargento Garcia”, “Terça-feira
gorda” e “Aqueles dois”, que têm como personagens
centrais indivíduos marginalizados social e sexualmente,
e problematizam situações exemplares para a discussão
de experiência de violência e de discriminação.

A temática homoerótica é o eixo central dessas


narrativas, cujos personagens aberta ou supostamente
mantêm relações sexuais condenadas por outros
personagens que não aceitam a opção sexual entre
sujeitos do mesmo sexo, articulando as retóricas da
homoafetividade e da repressão. A tônica comum aos
dois contos, portanto, é a propositura de um (des)
mascaramento social na medida em que questionam o
poder e a mediocridade da ideologia vigente na sociedade.

“Sargento Garcia” é narrado pela personagem
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Hermes, um rapaz de dezessete anos, que está se


apresentando para o serviço militar obrigatório. Por
uma referência à presença de uma foto emoldurada
do Presidente Castello Branco no quartel, podemos
situar cronologicamente a narrativa nos anos de 1970,
período em que ainda se encontravam bastante fortes
os discursos repressivos derivados da ditadura militar.
Hermes conhece a personagem Sargento Garcia na sala
de exames médicos e, após ser dispensado, é abordado
pelo mesmo na rua e levado a uma espécie de hotel/
bordel, onde mantém relações sexuais com ele.

Hermes diz de si o suficiente para que, como


enunciatários, criemos em relação a ele uma imagem
de fragilidade, ingenuidade, vacuidade, em disjunção
consigo mesmo e com o mundo. A caracterização desse
ethos sensibilizado é sutilmente feita desde o início da
narrativa, quando Hermes se encontra em uma sala
de quartel, nu, com outros rapazes, sob o escrutínio
do Sargento Garcia. O espaço é opressivo e a nudez,
simbolicamente, enfatiza a impotência e fraqueza do
narrador diante da situação – notamos que o espaço não
apenas representa o discurso opressor do militarismo,
da imposição humilhante de estar ali, nu, mas é também
um espaço de decadência, de degeneração (ABREU,
1983, p. 71):
Só se ouvia o ruído das pás do ventilador girando enfer-
rujadas no teto, mas eu sabia que riam baixinho, cutu-
cando-se excitados. Atrás dele, a parede de reboco des-
cascado, a janela pintada de azul-marinho aberta sobre
um pátio cheio de cinamomos caiados de branco até a
metade do tronco. Nenhum vento nas copas imóveis. E
moscas amolecidas pelo calor, tão tontas que se choca-
vam no ar, entre o cheiro da bosta quente de cavalo e
corpos sujos de machos.

Como vimos com Greimas e Courtés, a identidade


por trás desse ethos se constrói por oposição a um
outro, a uma alteridade. Hermes está ali nu, frágil ante
a hostilidade agressiva do seu outro, o Sargento Garcia.
O que em Hermes é algo delicado e “fino”, como sugere
o próprio Sargento quando os dois estão conversando
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sozinhos no carro deste, o outro tem de áspero, grosseiro,


brutalizado. Então, natural concluirmos que os elementos
distintivos do ethos de Hermes derivam, pelo menos
inicialmente, da oposição estabelecida em relação ao
Sargento Garcia e ao meio ao qual este pertence.

A narrativa é dividida em três partes: na primeira,
temos Hermes na sala de recrutamento, nu, com o
Sargento Garcia; na terceira, Hermes, após ser liberado
do serviço militar e haver saído do quartel, é abordado na
rua pelo Sargento Garcia e aceita sua carona até o ponto
do bonde, sendo, enfim, convidado para ir a um lugar e
ficar mais à vontade; e, na terceira e última parte, temos
a chegada a esse lugar, gerenciado por um travesti, no
qual os dois têm algum tipo de intercurso sexual. Ao
final, Hermes sai do quarto, após o gozo do Sargento, e
vai embora, sentindo-se transformado (ABREU, op. cit.,
p. 86):

Como se eu estivesse na janela de um trem em movi-


mento, tentando apanhar um farrapo de voz na plata-
forma da estação cada vez mais recuada, sem conseguir
juntar os sons em palavras, como uma língua estrangei-
ra, como uma língua molhada nervosa entrando rápida
pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que
não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos
nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa
que deveria permanecer para sempre surda cega muda
naquele mais de dentro de mim, como os reflexos es-
condidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez,
porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo
pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, en-
tre grades e ferrugens quieta domada fera esquecida da
própria ferocidade, para sempre e sempre assim.

Hermes, ao expressar a sensação após a primeira


experiência homoerótica – quando chega ao quarto com
o Sargento Garcia, a personagem revela isso – refere-
se ao acontecimento como o despertar de algo “que não
devia acordar nunca”, metáfora expressiva, pois conota
o sexo entre homens, sob a ótica do narrador, como algo
nefasto, sujo, pecaminoso. Ao mesmo tempo, Hermes
reconhece a existência do desejo, já que o considera
como uma fera adormecida, recém-despertada; mas o
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teme, relegando-o ao lugar do interdito e do indesejável.


Nessa passagem, podemos observar o esforço em
constituir um caráter que conjuga inocência e confusão,
característico do jovem homossexual frente à descoberta
do desejo e do consequente confrontamento com os
padrões heterossexistas (BLUMENFELD, 2004). Culpa e
prazer entrelaçam-se, confundem-se, materializando-se
em camadas intercaladas de sentimentos que o narrador
não sabe explicar – daí a sobreposição de imagens que,
se não oferece uma explicação consistente, ao menos
fornece um mosaico aproximado de tudo ao que a
experiência havida remete.

Textualmente, portanto, Hermes reúne elementos
que, encadeados, formam um ethos que nos permite
chegar a algumas conclusões. A personagem é modalizada
pelo não-poder e pelo não-saber, ou seja, é frágil e não
compreende seus desejos e sexualidade; via oposta,
Sargento Garcia é um homem áspero é forte (poder)
que lida relativamente bem com sua homossexualidade
(saber) – seu ethos nos leva a crer nisso, haja vista
não ter muitos pudores ao abordar Hermes na rua, nem
de lhe propor sexo, mesmo que faça disso uma prática
escusa e subversiva. As duas personagens formam um
eixo significativo que explora a tensão entre o saber-
fazer e o não-saber-fazer referente à homossexualidade:
Hermes sofre por não saber lidar com seus desejos, ao
passo que Sargento Garcia, ao contrário, não apresenta
nenhum tipo de conflito. O efeito desse engendramento
é a exposição de algumas das questões fundamentais
da existência do sujeito homossexual: aceitação,
pertencimento, autoestima.

Como forma de tornar mais visível essa dualidade, a
voz narrativa aborda o ato de fumar em dois momentos.
No primeiro, logo após Sargento Garcia passar o ponto
do bonde e propor que Hermes vá com ele a um lugar
para ficarem mais à vontade, Hermes pede ao outro um
cigarro. O pedido pode ser interpretado como adesão à
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transgressão – Hermes traga o cigarro e tosse, pensando


no pai com o cinturão na mão e o olhar de reprovação
por ter fumado. Nesse caso, fumar e fazer sexo com
outro homem são meios de realização da transgressão.
No segundo momento, após satisfazer o desejo do outro
homem, Hermes vai embora e, no caminho para casa,
reflete sobre o que aconteceu, sobre aquele algo que não
deveria ser acordado dentro de si, e sente que nada dói,
que nada mudou. Hermes sobe no bonde e, diferentemente
de todos os outros momentos da narrativa, não hesita:
decide que no dia seguinte começará a fumar. O fato de
aderir ao que anteriormente ele mesmo situara como
uma forma de transgressão é uma performance que
evidencia a transformação da personagem.

Assim, do mesmo modo que em Dom Casmurro o
ethos de Bentinho nos leva a crer que a hipótese mais
aceitável seria, de fato, a traição de Capitu, Hermes
nos faz crer que a experiência homossexual, apesar de
descrita com bestialidade, representou uma alteração
positiva que o levou a se compreender e a se aceitar.

O conto, além de nos fornecer um bom exemplo do
que já tratamos sobre a noção de ethos, serve de base
para que atrelemos agora, outro ponto fundamental de
nossa discussão: a persuasão. Há, na performance da
personagem Sargento Garcia, elementos que merecem
atenção e que podem servir como ilustração dos
mecanismos de convencimento que subjazem ao discurso
literário de temática homoerótica. A personagem causa
em Hermes, o narrador, a impressão de um homem
severo, bruto, autoritário e, provavelmente, cruel. Essa
austeridade, interpretada à luz dos valores da época – já
esboçados anteriormente – constrói o ethos do homem
militar, modalizado como o sujeito de um saber-fazer
associado às contingências da situação pela qual o Brasil
passava então (ditadura), mas também ao ethos coletivo
do macho que se afirma por atributos secundários de
masculinidade (modo de falar, pele áspera, gestos,
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cigarro etc.).

No que pretendemos arquitetar como arcabouço
teórico para as análises que levamos a cabo, é fundamental
associar esse tipo de caracterização do ethos ao que
Goffman (1988) definiu como atuação social. Para o
autor, os sinais corporais que põem a nu o status moral
do indivíduo, tal como modos de agir e trejeitos (no
caso das personagens mais afetadas, por exemplo),
denunciam ou disfarçam sua conduta homoerótica.
Posto isso, natural concordar com o autor que o sujeito,
contemplado como ator social, vivencia a sexualidade e o
modo de estar no mundo, ora de acordo com os ditames
sociais – quando se preocupa mais com os julgamentos
alheios e oprime sua individualidade –, ora de acordo
com a própria singularidade, entendida esta como um
forma de negação da subjetivação material e superficial
derivada dos modos de controle capitalistas. Literalmente:
enquadrar-se para, no plano da superficialidade, ser
aceito e pertencer ao grupo social.

Retomando a personagem Sargento Garcia, é o
referido saber-fazer que lhe confere a credibilidade
necessária para conduzir Hermes até o local em
que ocorreu o sexo, bem como para fazê-lo aceitar a
experiência sexual. O conto é interessante, bem como
a personagem sob análise, pois a situação e o caráter
de Garcia mantêm, durante a narrativa, a possibilidade
de a interação homoerótica ser produto do livre desejo
de Hermes (pois o desejo de Garcia fica claro desde
quando ele oferece a carona a Hermes) – caso em que
a persuasão é apenas discursiva, portanto cognitiva –,
mas também a possibilidade de haver qualquer tipo de
constrangimento, moral ou físico. Verificada a primeira
hipótese, entendemos que o fazer persuasivo de Garcia
pode ser interpretado segundo o que Greimas e Courtés
(op. cit., p. 368) propõem:
Sendo uma das formas de fazer cognitivo, o fazer per-
suasivo está ligado à instância da enunciação e consiste
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na convocação, pelo enunciador, de todo tipo de moda-


lidades com vistas a fazer aceitar, pelo enunciatário, o
contrato enunciativo proposto e a tornar, assim, eficaz a
comunicação.

Desse modo, podemos traduzir essa ação nos
termos técnicos da semiótica, partindo dos seguintes
pressupostos: (a) o enunciador, ao persuadir, transmite
um saber (coerente com sua modalização); (b) o
enunciatário cria, a partir da promessa desse saber, a
expectativa de observar a efetivação do mesmo por meio
de um fazer. Isso pode ser exposto da seguinte forma,
utilizando a notação proposta por Greimas (1975)3:

S1 ® S2 Ç O0, O1[O2(O3)]

Nessa expressão, S1 é o destinador (o actante Sargento
Garcia), operador da persuasão (fazer persuasivo); S2 é o
enunciatário (o actante Hermes, responsável pelo fazer
interpretativo); O0 = S2 SM (conjunto de modalidades de
que S1 se encontraria investido e que seria transmitida a
S2 junto com o saber); O1 é o objeto cognitivo, ou seja,
o saber-fazer de S1 no qual S2 crê; O2 é o conjunto das
expectativas de S1 quanto ao programa narrativo; e O3
é o programa narrativo que deve ser executado por S2
de acordo com a estratégia de S1. Importante observar
que o destinador (S1), responsável pelo primeiro fazer,
transmite um saber (O1) para que o destinatário (S2)
realize o programa narrativo (O3) do modo (O2) como
ele, destinador, deseja. Resgatando o exemplo dado,
Sargento Garcia (S1) faz Hermes (S2) aceitar seu convite
com base em sua credibilidade como homem mais velho,
sério (O1). O fato de Hermes aceitar e ir até o hotel
com Garcia corresponde ao programa narrativo (O3), e
a concretização do ato sexual, o desejado por Garcia,
corresponde ao O2.

Como, porém, identificar o que pretendemos estudar,

3 Faremos a análise segundo o formalismo proposto por Greimas somente


para este conto, como forma de aplicação da teoria semiótica.
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o ethos, nessa representação? Parece que a resposta está


na análise mais detida do que se anotou como O0 = S2
SM. Em termos mais claros, temos em O0 a somatória das
modalidades de S1, o conjunto de suas habilidades, seu
saber-fazer. Tais competências, ao serem transmitidas
a S2, fazem com que ele dê credibilidade ao discurso de
S1, permitindo, assim, a persuasão. O ethos seria, então,
essa imagem produtora de credibilidade que é construída
pelo destinador.

Dito isso, duas possibilidades práticas são previsíveis:
(a) uma situação em que o destinador pretende
persuadir o destinatário de modo a fazê-lo aderir a um
certo comportamento (como no caso do conto “Sargento
Garcia”) – o que, em termos propriamente semióticos,
corresponde a estar em conjunção com um certo objeto,
que pode ser de valor positivo ou negativo (a prática do
sexo, no caso do conto) – e para que isso aconteça é
preciso que o destinatário acredite que o destinador quer e
sabe como colocá-lo em conjunção com o referido objeto;
(b) uma situação em que o destinador só pretende que
o e destinatário creia em algo que ele diz, a transmissão
de um saber, portanto – nesse caso, o destinatário deve
acreditar que o destinador é dotado do dito saber. Em
ambos os casos, a confiabilidade do destinador é peça-
chave para que a persuasão se efetive, o que nos leva
a outra consideração: o saber do destinador deve ser
compatível com a adesão que se espera do destinatário –
compatível com os valores individuais desse destinatário
e compatível com a situação em questão.

“Terça-feira gorda”, narrado em primeira pessoa,


põe em destaque a voz de uma personagem masculina
que vivencia uma experiência erótica com outro homem.
Ao relatar sua própria história, a personagem carrega de
subjetividade o texto, afirmando o ethos libertário da auto-
aceitação e acentuando o impacto de, ao mesmo tempo,
sentir um grande prazer, resultado de seu envolvimento
afetivo e sexual, e assistir a uma condenação social,
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representada pela ação dos “outros” que agridem e


repreendem a relação. A cena de envolvimento entre as
duas personagens é relatada logo no início da narração,
quando é sugerido um “reconhecimento” entre os dois
futuros amantes:

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo


para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma
ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação.
Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta de
tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacio-
nal, gostos que eu nem identificava mais, passando de
mão em mão dentro dos copos de plástico.

A identificação entre as personagens se dá tanto no


plano do prazer quanto no sexual. Ambos vivenciam uma
relação homoerótica em meio a uma festa de carnaval:

Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dan-


çava agora, acompanhando o movimento dele. Assim:
quadris, coxas, pés, onda que desce, olhar para baixo,
voltando pela cintura até os ombros, onda que sobe, en-
tão sacudir os cabelos molhados, levantar a cabeça e
encarar sorrindo. (...) Eu queria aquele corpo de homem
sambando suado bonito ali na minha frente. Quero você,
ele disse. Eu quero você também.

As condutas das personagens e a descrição do


enlace entre eles evidenciam um ethos despojado dos
preconceitos sociais e, em última análise, liberal na
medida em que não se submete ao códice ditado pelo
discurso moralista e tradicionalista que dita o modelo
heterossexual como norma. Essa liberdade é melhor
apreendida na seguinte passagem do conto:
Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se mistura-
vam. Ele estendeu a mão aberta, passou no meu rosto,
falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso,
ele disse. E não parecia bicha nem nada: apenas um
corpo que por acaso era de homem gostando de outro
corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu
estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qual-
quer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse.
Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem
gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de
homem também.

Se, por um lado, a postura dos personagens


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desestabiliza qualquer tipo de pensamento conservador,


por outro lado, o comportamento dos “outros” manifesta
uma tentativa de impor regras de conduta baseadas na
oposição binária homem/mulher como padrão legítimo
de relação sexual. O fragmento a seguir demonstra a
presença da voz condenadora que emana da sociedade:
Passou a mão pela minha barriga. Passei a mão pela
barriga dele. Apertou, apertamos. As nossas carnes du-
ras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles
morenas de sol. Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as
loucas, e foi embora. Em volta, olhavam.

A presença de um discurso repressor, representativo


de uma ideologia de um ethos heterossexual dominantes,
demonstra a incapacidade de aceitação daquilo que
Foucault denominou de “sexualidade periféricas”. Assim,
no espaço do conto temos uma festa de carnaval em que
o “desregramento” é a tônica maior, e, com relação à
ruptura da conduta sexual das personagens, a postura de
liberdade e ousadia, própria da cultura carnavalesca, é
negada pelas demais personagens, que assumem um ethos
repressivo e condenador. Podemos constatar, assim, que
um paradoxo se instaura no conto: o desregramento e a
permissividade do carnaval em oposição à condenação da
atitude homoerotizante das personagens. O lado avesso
da sociedade é reconhecido pela ironia de a repressão
acontecer justamente no carnaval. A representação do
carnaval no conto constitui-se importante estratégia para
a construção do caráter crítico do texto, pois permite
a utilização da componente irônica na abordagem da
problemática da homofobia na sociedade brasileira. O
trecho a seguir evidencia este aspecto do conto, expondo
a ideia do jogo das máscaras enquanto uma metáfora da
oposição entre os reacionários, defensores dos códigos
morais, e os “diferentes”, marginais em suas opções
periféricas:
Veados, a gente ouviu, recebendo na cara o vento frio
do mar. A música era só um tumtumtum de pés e tam-
bores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha lá as
Plêiades, só o que eu sabia ver, que nem raquete de
tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado, ele
falou com a mão no meu ombro. Foi então que perce-
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bi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido


em algum lugar que a dor é a única emoção que não
usa máscara. Não sentíamos dor, mas aquela emoção
daquela hora ali sobre nós, eu nem sei se era alegria,
também não usava máscara. Então pensei devagar que
era proibido ou perigoso não usar máscara, ainda mais
no carnaval.

E, por fim, cumpre atentar para a retoricidade que


pode ser observada na descrição do enlace amoroso
das personagens e que aponta para uma poetização
da relação homoerótica, fundindo elementos apenas
sutilmente naturalistas a uma nova estética do sugerido
e do apenas insinuado. Observemos o trecho a seguir:

Ele falou não fale, depois me abraçou forte. Bem de per-


to, olhei a cara dele, que olhada assim não era bonita
nem feia: de poros e pêlos, uma cara de verdade olhan-
do bem de perto a cara de verdade que era a minha. A
língua dele lambeu o meu pescoço, minha língua entrou
na orelha dele, depois se misturaram molhadas. Feitos
dois figos maduros, apertados um contra o outro, as se-
mentes vermelhas chocando-se com um ruído de dente
contra dente.

Podemos perceber pela descrição que a voz do


narrador não carrega qualquer estigma de medo,
vergonha ou reprovação. O eu que se descobre em
franco envolvimento amoroso experimenta, na verdade,
o encantamento da descoberta do outro, principalmente
na identificação das características compartilhadas
(“um cara de verdade olhando bem de perto uma cara
de verdade que era a minha”). A experimentação do
beijo que se eleva na narrativa por meio da metáfora
dos figos maduros, é sinal de uma retórica que pretende
despojar o discurso homoerótico de seus elementos
estigmatizantes (como temos em Adolfo Caminha, por
exemplo), construindo um discurso novo, reengendrado
pela poetização da linguagem no tratamento, em especial,
do ato (homo)sexual. Vejamos o trecho a seguir em que
as duas personagens, após o ato amoroso, deitam-se
juntos na areia:
A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como
eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos
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ao lado do outro, iluminados pela fosforescência das on-


das do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha
quando faz amor.

Em “Aqueles dois”, a questão central é a opressão social,


explícita e tácita, a dois homens que, paulatinamente,
rompem com os padrões heteronormativos e passam
a partilhar um nível de intimidade que incomoda os
demais sujeitos. A narrativa é em terceira pessoa, o que
determina no texto uma debreagem enunciva, em que
o narrador tem conhecimento não apenas dos fatos,
mas também do pensamento e do julgamento de valor
de todas as personagens. Esse narrador produz um
discurso monovalente que, segundo Bakhtin (1995, p.
150) “define-se por uma certa homogeneização, sendo,
portanto, autoritário e dogmático”, o que produz um
efeito de opacidade de outras vozes do discurso e leva
o leitor a observar a natureza do relacionamento entre
as personagens masculinas pela ótica da voz narrativa,
a qual, estrategicamente, dissimula os valores da
heterossexualidade compulsória que permeia o vozerio
social.

Os protagonistas dessa história são Raul e Saul. O


primeiro, com 31 anos, o segundo, com 29. São dois
homens unidos pelas circunstâncias de terem passado
em um concurso para trabalharem em uma firma, longe
de seus pontos de origem. Raul veio do norte e de um
casamento fracassado; Saul, do sul, de um noivado longo
que não deu certo e de um curso de arquitetura inacabado.
Dois indivíduos distintos e, ao mesmo tempo, aproximados
pelo modo como suas vidas distanciaram-se dos padrões
(relacionamentos amorosos licenciados, ensino superior,
carreira) e convergiram para um recomeço, em uma nova
cidade – “Naquela cidade todos vinham do norte, do sul,
do oeste, do leste” (ABREU, 1982, p. 127) – que não é
familiar nem acolhedora a nenhum deles. É importante
observar, no que foi apresentado até o momento, que a
voz narrativa insere os duas personagens como sujeitos
despojados de boa parte dos mecanismos de controle
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ideológico imediato da vida social. O fato de serem


sozinhos e de não terem família é um drama pessoal,
mas também os torna mais livres que os demais, como
fica mais evidente na sequência do conto.

A voz narrativa cuidadosamente introduz os


mecanismos de aproximação de Raul e Saul, alertando-
nos para o fato de que ambos, sem trocarem palavra sobre
o assunto, perceberam que havia algo que os aproximava
e, ao mesmo tempo, não deveria ser alimentado (ABREU,
op. cit., p. 127):
Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada
um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como
é mesmo o seu nome? Sorrindo, divertidos da coinci-
dência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a
gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram
afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-
se ao um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sex-
tas, um cordial bom fim de semana, então. Mas, desde
o princípio alguma coisa – fados, astros, sinas, quem
saberá? – conspirava contra (ou a favor, por que não?)
aqueles dois.

O leitor sente que há uma atmosfera de vigilância ainda


incipiente na narrativa, mas que estabelece parâmetros
modais do dever-ser e do poder-ser que são apreendidos
quase que instintivamente pelas personagens, pois mesmo
antes de haver algo de concreto entre eles, pressentem
a pungência da discrição, como se o discurso da exclusão
já os ameaçasse e os empurrasse à solidão. A repartição
era “um deserto de almas” e apenas a amizade poderia
dar apoio um ao outro.

O fato de serem dois homens jovens despertou o


interesse das mulheres da repartição, inclusive das
casadas, e não apenas por serem novos no lugar, mas,
principalmente, por serem diferentes dos outros homens
(ABREU, op. cit. p. 128): “Ao contrário dos outros
homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga
ou aquela postura desalentada de quem carimba ou
datilografa papéis oito horas por dia”. Suas belezas são,
no dizer da voz narrativa, complementares, constituindo
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pólos de valência masculina e de valência feminina, como


podemos observar na seguinte passagem (ABREU, op.
cit., p. 128):
Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um
pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão
adequada aos boleros amargos que gostava de cantar.
Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul pa-
recia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos
claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços,
azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças.
Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência
disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o
porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de
dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e
vice-versa. Como se houvesse, entre aqueles dois, uma
estranha e secreta harmonia.

Cumpre observar que, como já foi dito antes, Raul
e Saul são homens que passaram pela esfera dos ritos
da heterossexualidade normatizada e superaram o
peso dos relacionamentos em que estiveram – “ambos
cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas
complicadas, suas exigências” (ABREU, op. cit., p.
130). O fato de negarem o casamento ou, no caso de
Saul, o noivado, implica, tacitamente, a negação das
práticas legitimadoras do sujeito inserido no âmbito do
heterossexismo social (o discurso religioso e o discurso
jurídico, particularmente no que se refere à constituição
da família). Esse comportamento evidencia não apenas
o afastamento da submissão às regras sociais, mas
também a desconstrução do modelo de masculinidade
previsto pela sociedade (o homem-marido, o homem-
pai, o homem-provedor). Somadas essas características,
o que temos é um panorama favorável para que essas
duas personagens, tão igualmente “párias”, sejam
levados a se descobrir mutuamente como parceiros,
tanto no campo da afetividade, quanto do erotismo.

Aos poucos, a resistência inicial afrouxou-se, em parte


pela força de serem, ambos, extremamente solitários e
perceberem que havia entre eles algum tipo de sintonia.
Um dia, resolveram trocar números de telefone e logo no
primeiro fim de semana seguinte Saul tomou a iniciativa
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e ligou para Raul. Encontraram-se e jantaram juntos


no domingo, tendo, pela primeira vez, a oportunidade
de conversarem sobre o ambiente de trabalho e sobre
como ali tudo lhes lembrava um deserto. Na semana
que se seguiu, quebraram a barreira autoimposta e
trocaram muitas palavras na repartição, inclusive rindo
juntos, o que, obviamente, não passou despercebido
aos olhares vigilantes dos demais colegas. “As moças
em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles
percebessem” (ABREU, op. cit., p. 131).
E assim a amizade entre eles consolidou-se e
passaram a se ver com mais e mais frequência, até que
uma noite, Saul foi visitar Raul e acabou dormindo no sofá
por causa da chuva. No dia seguinte, chegaram juntos
ao trabalho. A cena merece ser reproduzida (ABREU, op.
cit., p. 131-132):
Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos
molhados do chuveiro. Os funcionários barrigudos e
desalentados trocaram alguns olhares que os dois não
saberiam compreender, se percebessem. Mas nada per-
ceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas.

O fato de chegarem juntos e de cabelos molhados


é, aos olhos do meio vigilante e homofóbico, indício
mais do que suficiente para que se assuma – mesmo
que equivocadamente – que passaram a noite juntos
em atividade sexual. Inocentes, porém, em relação à
maledicência dos colegas de repartição, estreitaram os
laços de amizade e passaram a depender emocionalmente
cada vez mais um do outro. Pouco antes do final daquele
ano, Raul ausentou-se por uma semana em razão da morte
de sua mãe e Saul ficou completamente desorientado,
triste. Quando Raul voltou e foi ver o amigo, há uma
primeira cena em que, de fato, podemos perceber, muito
além do erotismo, a afetividade entre eles (ABREU, op.
cit., p. 133): “Saul estendeu a mão e, quando percebeu,
seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem
tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente.
E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro”.
Separaram-se sem que nenhuma interação física tivesse
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acontecido, mas estavam transformados, havia entre


eles, então, uma relação que ia bem além da amizade.

Os meses passaram e as festas de fim de ano
chegaram. Trocaram presentes e já faziam absolutamente
tudo juntos. Na noite de ano novo, ocorre um momento
carregado, agora sim, de erotismo, que vale reproduzir
(ABREU, op. cit., p. 134):
Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito
bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele
e disse você tem um corpo muito bonito. Você também
disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um
na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a
noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro
do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos in-
cendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir
para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.

A passagem acima evidencia não apenas a erotização
dos corpos, mas também o desejo que não se concretiza,
mas também não se nega. O dizer sobre o corpo alheio,
o fato de se deitarem nus, e principalmente a insônia
que um anunciava ao outro por meio do cigarro aceso –
metáfora possível do desejo masculino, da ereção – tudo
converge para o clímax de homoerotismo no conto.

Mas se por um lado as questões entre eles


aparentemente caminham para o inevitável envolvimento
– tanto que já planejam passar o mês de janeiro juntos,
uma vez que estarão em férias – o burburinho social
eclode na voz opressiva e denunciadora. O chefe os
chama e lhes diz que estava recebendo cartas anônimas
que alegavam que havia entre eles uma relação anormal
e ostensiva, uma “desavergonhada aberração” e que
como isso poderia manchar a reputação da empresa,
ambos estavam demitidos. E assim, a narrativa termina
com Raul e Saul saindo juntos da repartição e tomando
um táxi sob os olhares e piadas maldosas dos colegas
que, do alto, zombavam do destino deles.

A voz narrativa, porém, conclui a história com um


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referência a como, depois, os mesmos colegas que


denunciaram e zombaram sentiram-se naquele dia
(ABREU, op. cit., p. 135):
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando
o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem
nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em
paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida
sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.

Podemos notar como a voz narrativa instaura, no


plano do esquema narrativo, uma forma de confrontação
que põe na arena dois discursos distintos: de um lado,
o heteronormativo, D1, representado pelos colegas da
repartição (uma espécie de metonímia da sociedade), e
de outro, Raul e Saul, destinadores D2, que correspondem
à subversão do estatuto dessa heteronormatividade.

A esfera social opera como destinadora na medida
em que detém a modalidade do fazer-ser e do fazer-
fazer, uma vez que, logo que Raul e Saul chegam à
repartição, sentem na atmosfera do ambiente de trabalho
a necessidade de serem discretos e de se limitarem ao
contato mínimo aceitável entre colegas de trabalho. Essa
decisão inicial coloca-os em conjunção com o programa
previsto (dois homens devem ser apenas amigos).

Raul e Saul, porém, já nos são apresentados em
disjunção com outros programas narrativos desejável para
homens socialmente inseridos no perfil heterossexista –
o fato de terem abandonado suas parceiras e estarem
cansados das mulheres, o fato de serem solitários e
não serem permeáveis às intenções das mulheres da
repartição, bem como o fato de serem “diferentes” dos
demais homens. Quando o narrador os descreve como
homens bonitos e distintos dos barrigudos e encurvados
colegas da repartição, o efeito disjuntivo dessa descrição
cria um efeito de estigma que os afasta do padrão e os
aproxima um do outro.

Raul e Saul, personagens no plano actancial de D2,
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são portadores de modalidades individuais (o querer,


o poder e o saber) e articulam esses atributos com o
propósito de abandonarem o estado disjuntivo em que se
encontram – solidão, isolamento, tristeza – e entrarem
em conjunção com um modelo alternativo de existência
que, se não contempla os valores heteronormativos,
não lhes parece de modo algum subversivo. Quem vê a
ruptura em relação aos padrões é D1, dotado de outras
modalidades, logo, de outros saberes, principalmente.

O modo como o esquema narrativo se desenvolve


leva Raul e Saul cada vez mais ao estado de disjunção
com o meio em que vivem. O limite é alcançado quando
o chefe, motivado pelos julgamentos homofóbicos e
anônimos, demite-os. Essa é a extrema disjunção que,
paradoxalmente, coloca-os, finalmente em conjunção
com o programa narrativo de suas felicidades respectivas.
Isso porque, enquanto lutaram contra a natureza do
sentimento que cresceu entre eles, não foram capazes
de estar em conjunção consigo mesmos – a cena em que
atravessam a noite deitados nus, um olhando a brasa
do cigarro do outro, sem tomarem qualquer iniciativa, é
prova dessa afirmação. Uma vez livres do aprisionamento
do ambiente de trabalho e da pressão para não estarem
em disjunção com os valores do mesmo, puderam, enfim,
partir juntos. Inversamente, os colegas de trabalho, que
deveriam estar triunfantes com a vitória de seu discurso
heteronormativo sobre o comportamento anormal dos
dois, percebem que eles é que, de fato, estão em disjunção
com suas próprias vidas, presos a um programa que
jamais lhes permitirá a felicidade.

É interessante notar que a retoricidade do autor


nos dá a ver mais do que apenas a questão das duas
personagens masculinas estigmatizadas por suas
afetividade recíproca, incompatível com o meio social; dá
a ver, também, o próprio esvaziamento (LIPOVETSKY, op.
cit.) desse meio, que, na verdade, pode ser interpretado
como um microcosmo, modelo do mundo pós-moderno.
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A repartição, os funcionários barrigudos e desalentados,


os olhares vigilantes, a mecanização da vida cotidiana,
tudo na narrativa aponta para a solidão.

O drama particular de Raul e Saul é, de certa forma,
mais evidente, mais visceral, porque carregam o estigma
do não pertencimento, ou seja, a disjunção em relação aos
programas narrativos aceitáveis. O homossexual sente-
se particularmente sozinho porque, além das outras
formas de esfacelamento da pós-modernidade, ainda
precisa lidar com a estigmatização decorrente de sua
orientação sexual. No conto analisado, é particularmente
perceptível o confronto interno das personagens em
busca de algo a que se apegarem, uma espécie de porto-
seguro que os liberte do sufocamento provocado pela
solidão. Essa busca por rotas de fuga foi apontada, tanto
por Lipovetsky quanto por Bauman, como características
da pós-modernidade, indicando o desespero (quase
sempre inconsciente) do indivíduo preso ao turbilhão
do ritmo acelerado e da desestabilização das fronteiras
espaciais (haja vista que, com a globalização, longe e
perto passam a ser conceitos bastante relativos).

No plano imediato das práticas sociais, tais rotas de
escape são, muitas vezes, o consumismo – redundando
no caráter líquido e mutante das tendências – as práticas
extremas (esportes radicais, por exemplo), bizarrices de
toda ordem etc. O que parece orientar o indivíduo pós-
moderno é a busca por algo que rompa com a ordem do
discurso pré-programado e lhe dê, ainda que por breves
momentos, a impressão de estar fora das engrenagens
do sistema.

Raul e Saul encontram na amizade não trivial um


meio de escaparem ao destino triste de se tornarem
autômatos como seus colegas de repartição. O conto,
portanto, explora não apenas a intolerância sexista
que reprova terminantemente a homoafetividade
das personagens, mas também a solidão a que estão
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inicialmente condenados (por serem homossexuais) e a


que lhes é, posteriormente imposta, quando surgem os
comentários no ambiente de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cremos ter exposto um olhar retórico-discursivo


que entabula diálogo com diversas linhas de análise
do texto literário, na medida em que, a partir de uma
proposta metodológica consistente de análise de um
objeto delineado e delimitado pelos parâmetros que um
artigo deste porte demanda, demonstramos a hipótese
inicial de que há constructos de linguagem na obra de
CFA que expõem a homossexualidade masculina por
meio da mirada poética de um autor que estava disposto
a desconstruir a imagem estigmatizada do amor entre
dois homens. Cremos, ainda, que o presente artigo é
uma pequena contribuição para que os caminhos dos
estudos literários e dos estudos linguísticos se juntem
com mais frequência e que a cisão entre as duas áreas
permaneça apenas como um artificialismo didático, pois,
como se pôde ver pelas análises feitas, o aporte teórico
da linguística é importante para a construção de olhares
maduros no campo da literatura, assim como as reflexões
das análises literárias agregam valiosas contribuições na
calibragem do olhar discursivo.
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ESTUDOS DA HOMOCULTURA:
APONTAMENTOS SOBRE A CRIAÇÃO DO GT DA ANPOLL
E FACES CRÍTICAS DO HOMOEROTISMO NA FICÇÃO
LITERÁRIA

Paulo César Souza García (UNEB)1

RESUMO: Este texto aborda questões conceituais e pontuais que dizem


respeito às pesquisas sobre homocultura e Literatura, apresentando algumas
contribuições epistemológicas já concebidas e outras leituras inovadoras que
tiveram importância para o projeto de criação do Grupo de Trabalho Homocultura
e Linguagens da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras
e Linguística (ANPOLL). Também, leva em consideração o homoerotismo no
espaço literário e as posições de leituras em relação às identidades de gênero
e de sexualidades movidas pela crítica literária e cultural.

Palavras-chave: Crítica Literária. Homocultura. Literatura.

HOMOCULTURE STUDIES:
NOTES ON THE ESTABLISHMENT OF THE GT ANPOLL
AND FACES CRITICISM OF LITERARY FICTION IN
HOMOEROTICISM

ABSTRACT: This paper addresses conceptual and specific issues that pertain
to research on homoculture and literature, presenting some epistemological
contributions have designed innovative and other readings that were important
to the project of creation of the Working Group homoculture Languages ​​and
the National Association of Graduate and research Literature and Linguistics
(ANPOLL). Also, take into consideration the homoeroticism in the literary space
of readings and positions in relation to gender identities and sexualities moved
by literary and cultural criticism.

Keywords: Literary criticism. Homoculture. Literature.

1 Doutor em Literatura pela Universidade de Santa Catarina (UFSC). Professor


Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Pesquisador do GT da
ANPOLL Homocultura e Linguagens.
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1 Homocultura e linguagens: apontamentos

O projeto de criação do grupo de trabalho


“Homocultura e Linguagens” para a Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
(ANPOLL) teve o objetivo preliminar de traçar um
mapeamento da produção literária e cultural brasileira,
verificar as estratégias de silenciamento que autores e
obras sofreram ao longo da História das Literaturas de
Língua Portuguesa e Ocidental e o propósito de não só visar
estabelecer as leituras do corpus textual, mas, também,
interpretar a cultura e os dados críticos e epistemológicos
nas abordagens sobre gênero e diversidade sexual.

A importância de nos ocuparmos com o sentido do


termo homocultura, elevando o tom de reconhecimento
acadêmico e científico diante da composição de temas,
assuntos, questões, valores de ordem textual de obras
literárias e diálogos com áreas afins à literatura, decorre
da possibilidade de colher os significados concebidos e
construídos para as relações de gênero e para as identidades
sexuais. Ainda traçando o direcionamento destas
questões inseridas para a criação do grupo de trabalho
da ANPOLL, tínhamos, também, em mente a proposição
de estudos teóricos anglo-saxões que atendessem aos
discursos aqui engajados, proporcionando fazer deles um
movimento analítico e político, e que pudessem ocupar
um lugar de fala nas Universidades Públicas Brasileiras.

Certamente que, ao compor o quadro de pesquisadores


para o grupo, tivemos a grata satisfação de perceber
que vêm ascendendo as análises e críticas a respeito dos
estudos de gênero, gays e lésbicos, em Departamentos
de Letras e Programas de Pós-Graduação na área, sendo
este quadro baseado em fontes apresentadas pelos
integrantes do GT, que apontam o nível de fundamentação
teórica diante dos temas versados. Sem dúvida, este
processo de engajamento tem nos levado a uma intensa
e constante elaboração de análises textuais através das
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quais emergem novos problemas, velhos objetos e novas


abordagens sobre os referentes estudos.

Percebemos, assim, que é preciso ter em mente


as diretrizes dos projetos integrados, observando,
principalmente, os conceitos que regem as leituras
que configuram o viés analítico. Ou seja, na estrutura
da composição das pesquisas do GT Homocultura
e Linguagens da ANPOLL, se tem visado leituras
direcionadas para a literatura e para outras textualidades
culturais através do cânone e das margens do cânone.
Desta maneira, as perspectivas teórico-metodológicas
são fundadas consoantes às linguagens que aferem as
propostas interpretativas em diversos gêneros textuais
como a ficção, a poesia, a dramaturgia, as textualidades
das mídias.

A criação da linha de pesquisa “Configurações críticas, homoerotismo


e literatura” apresenta, reflexivamente, os eixos críticos, históricos e
teóricos da literatura. Seja para respaldar a crítica da cultura, seja
para ressaltar os aspectos estéticos de textos literários, os estudos
desta linha se ocupam com a catalogação, o resgate e análise
de obras, fundando suas bases representativas na perspectiva de
problematizar as identidades gays e lésbicas, e visam analisar os
argumentos a respeito do coming out, das homoconjugalidades, do
cânone gay de autores e de obras que não tenham sido objeto
de interesse acadêmico sistemático na área da literatura e que
passam a ser investigados.

Ao tratar do cânone, problematiza-se o meio de preservar


e transmitir a existência subjetiva, no que diz respeito a traçar
uma história da literatura que configure o gay em sua escrita,
tornando sensível a busca dos retratos ficcionais modernos e
contemporâneos que investem sobre as identidades gays, em
histórias e memórias geradas pelas ditaduras e pós-ditaduras, e
pelos significados que afloram para a área dos estudos literários
que têm o objetivo de amparar criticamente as histórias, os
paradigmas, a marginalização, a resistência ao status quo.
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A outra linha de pesquisa do GT “Cultura queer2 e linguagens”


aposta
em outra frente de estudo, pois aqui se trata de analisar
e questionar as polarizações de gênero e sexualidades
frente ao pragmatismo sociocultural e ao ideal de
masculinização. Ao revisitar e pensar o significado de
queer levando em mente as leituras anglo-saxãs que
foram traduzidas e realizadas para a cultura brasileira
há toda uma consideração em torno de procedimentos
interpretativos em direção ao imaginário social, a
partir das margens. Por este viés, as textualidades do
contemporâneo, como o literário ficcional, as redes sociais
e os periódicos, constroem imagens que ainda instituem as
marcas de ser homem e ser mulher, destacando os perfis
heterossexistas e heteronormativos. É a partir destes
perfis que as rupturas se processam, convergindo para a
base que apara a ambivalência do sentido do queer, isto
é: trata-se de identificar criticamente os papéis criados e
movidos pelos elos da heteronormatividade compulsória
e heterossexista.

Com a promessa de sempre trazer questões sobre


o corpo e as experiências subjetivas em torno de
significados de identidades, a teoria queer se mostra
mais instigante quando abre um leque de interpretações
sobre a diversidade sexual e as práticas de gêneros
na sociedade contemporânea e busca problematizar,
aí, também, os demais minoritários, a exemplo dos
transgêneros, d@s transexuais e d@s travestis. Assim

2 * Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Literatura (UFSC).


Professor da Área de Estudos Literários da Graduação em Letras e do Programa
de Pós-Graduação em Crítica Cultural – UNEB, DEDC II. Atualmente, é
coordenador GT Homocultura e Linguagens da ANPOLL (2012-2014). E-mail:
p.garcia@terra.com.br
A teoria queer surgiu de uma aliança, muitas vezes polêmica, com as teorias
feministas e pós-estruturalistas que orientavam a investigação que se traçava
sobre a categoria do sujeito. A expressão queer denota certos sentidos que
incidem ao insulto e a ofensa, mas, sobretudo, é resistente às nomeações e
definições que se destinam para identificar a sexualidade do sujeito. Contudo,
é o teórico cultural Paul Gilroy que “identifica como uma ênfase teórica em
routes [rotas] mais do que em roots [raízes]; em outras palavras, o queer
não está preocupado com definição, fixidez ou estabilidade, mas é transitivo,
múltiplo e avesso à assimilação” (apud SALIH, 2012, p. 19).
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sendo, ao trazer à tona os estudos sobre o queer, Judith


Butler (2003) destaca os posicionamentos em torno dos
assim nomeados homem masculino e mulher feminina,
sendo eles constituídos e construídos pela linguagem, do
que decorre pensar que não existe uma identidade de
gênero que preceda a linguagem.

Butler (2003) quer dizer que uma identidade não


gera o discurso ou a linguagem; na sua interpretação, ela
decorre da aversão desta afirmativa, ou seja, a linguagem
e o discurso é que posicionam o gênero. Esta posição nos
convida a pensar na existência da presença do outro,
diante dos fascismos da imagem do corpo de uma dada
moral que, por meio dos discursos, nos remetem a um
intricado paralelo de conceitos que afloram para perturbar
a ordinária relação com a realidade heteronormativa.

visão nítida daquilo que os paradigmas incorporam


na convivência entre os indivíduos e as suas construções
que, a todo instante, são movidas na esfera social, também
não se escondem no espaço textual literário. Entre os
estigmas e a regência do social, a performatividade de
gêneros ganha fórum de interpretação, e isto quer dizer
que a identidade é uma prática significante e os sujeitos
são produzidos culturalmente, pois eles são efeitos e não
causas dos discursos que ocultam a sua atividade, como
nos propõe Butler (2003).

Diante do exposto, um dos pilares referentes aos


estudos dos textos literários é revelado por um artigo
publicado em 1984, intitulado “Explanation and culture:
Marginalia”, da escritora indiana Spivak (1996) que, neste
texto, trata de afirmar que a análise da cultura estava
entranhada por oposições binárias que a restringiam a uma
específica forma de observação, reduzindo a capacidade
do analista de verificar a profusão de sentidos gerados
ao construir o seu objeto, ou seja, centro e margem
se convertem em palavras-chave que necessitam ser
revistas a despeito de novas linguagens que atraem e
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retraem os binários na crítica feminista e na vertente


marxista.

Dessa maneira, chego à reflexão deste texto. No solo


da investigação sobre a homocultura no espaço literário,
como propor a inovação de leituras mais assertivas em
detrimento de valores estéticos; por que ler e como
ler, no espaço literário, as identidades sexuais e de
gênero? Como ponto de partida, introduzimos a noção
de homocultura, que vem sendo analisada por grande
número de pesquisadores brasileiros e estrangeiros,
apresentando a sua operacionalidade e a sua eficácia para
a compreensão de um discurso que vem atravessando
continuamente a literatura e a cultura, como nos descreve
o crítico de literatura brasileiro Mário César Lugarinho
(2004).

Em se tratando das interlocuções com outras áreas


do conhecimento, compreende-se que o diálogo sobre
as questões da homocultura é mediado por visões
comprometidas com o “equilíbrio cultural”, no que tange
à adoção de posturas atreladas à diferença, ou melhor,
ao acesso aos direitos por parte dos indivíduos que não
foram eleitos na história nem ao reconhecimento de ser
sujeito. Talvez, como quer Antônio Candido, o direito à
literatura seja um aliado importante que serve de apoio
à adoção de perspectivas menos marginalizantes e mais
comprometidas com um discurso autorizado para falar
de. Quer dizer, o olhar insubordinado que a literatura
busca tensionar desconstrói o caráter normalizador das
abordagens pedagógicas e, nesta concepção, os discursos
comprometidos com os subalternizados são autorizados
a enunciar, a dialogar com o sentido de diverso.

Trata-se de compreender que, tendo a problemática


dos estudos da homocultura no âmbito do gênero literário
como tema e preocupação central ligada aos constructos
de homoerotismo e das homossexualidades masculinas
e femininas, a cultura de gênero e as identidades sexuais
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constituem grandes desafios a serem considerados


pela crítica literária. Tais noções foram pensadas e
reposicionadas por uma geração de pesquisadores
brasileiros que tiveram de se cercar de um universo de
pesquisas anglo-saxão das áreas de Ciências Humanas
e dos estudos da homocultura nas Faculdades de Letras
e Linguística, esta última atravessada por e com suas
leituras cerradas, com interpretações mais estruturalistas
e pouco afáveis frente à inserção dos estudos culturais.
Mário César Lugarinho (2004) e José Carlos Barcellos
(2000), dois expoentes das pesquisas da homocultura
no Brasil, instigaram este ideal de investigação contínua
e sistemática do literário, direcionando-as para a
construção de um viés estético que abrisse espaço para
as marcas políticas que a literatura solicita.

Sem dúvida, tanto Lugarinho como Barcellos, na


época Professores e Pesquisadores da Universidade
Federal Fluminense (UFF), deram o norte para que outros
seguidores dos estudos sobre o homoerotismo viessem
a se consolidar, o que gerou a Associação Brasileira de
Estudos da Homocultura (ABEH) no final dos anos 90 do
século passado. Os encontros de Niterói, assim nomeados
por eles, que tinha como objetivo promover e difundir
pensamentos críticos sobre a diversidade sexual e de
gênero, congregaram cerca de sessenta e cinco doutores,
brasileiros e estrangeiros. A partir daquele primeiro
encontro entre os pesquisadores da área de Letras da
UFF, os incentivos aos estudos e às pesquisas da temática
tiveram ascensão em diferentes áreas de conhecimento,
dando visibilidade às expressões e discursos sobre as
sexualidades e gêneros não normativos no Brasil e no
exterior.

O movimento científico e epistemológico buscado


por esses professores e pesquisadores, que dá o pontapé
inicial para uma rede que se forma e dá sequência às
intersecções de linguagens, mesmo esbarrando com a
crítica literária, que se mantém ao lado do cânone e que
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resiste às inovações e às investidas contracanônicas, sob


o olhar analítico de Lugarinho, instaura o grande desafio:

O que denominamos como emergência de uma consciên-


cia histórica dotada de uma identificação imediata a sua
diferença sexual pode ser, hoje, alargada na medida em
que a investigação teórica a respeito das relações entre
a cultura e a identidade homossexual precisou desenhar
um conceito eficaz que lhe desse mais contornos defini-
dos: o conceito de ‘homocultura’. (2004, p. 27).

Como e quem é atingido pelo desenho do conceito


de homocultura? como e por que ler as obras que
representam esta prática discursiva? estamos sendo
projetados como os outros leitores ou os últimos leitores?
A atividade de atentar para novas formas de subjetivar o
amor homoerótico3 é um gesto convidativo para retirar os
pontos de pauta frente às imposições e às reiterações de
paradigmas e das experiências do homem no cotidiano.
Assim, como pensar o acesso à literatura pela voz do
diverso, aproximando da noção de Homocultura? Se, para
Lugarinho (2010, p. 69), se trata de contribuir, de modo
efetivo, para a revisão dos paradigmas e de pensar a
crítica literária promovendo os direitos humanos no solo
dos estudos gays e lésbicos, questionaremos, também,
a enunciação do texto pela expressão política, para que
resista e ouse proclamar as muitas escritas que esperam
ser lidas, sentidas, reconstruídas sobre tais aspectos.

Tivemos o exemplo da crítica e das teóricas feministas


acadêmicas que não somente “representaram” uma
prática político-legal como ofereceram, fora dos muros
da Universidade, olhares desconstrutivos e férteis ao

3 Neste artigo, usarei o termo homoerotismo por ser mais flexível e por
descrever melhor as pluralidades das práticas e desejos humanos. O emprego
do sujeito homoerótico vai de encontro ao sentido dado por Jurandir Freire
Costa, uma vez que a noção de homoerótico nega a ideia de existência de
uma “substância homossexual” orgânica ou psíquica comum a sujeitos com
tendências homoeróticas. Assim, o sentido do termo não atesta a forma
substantiva que indica identidade, como no caso do “homossexualismo”
de onde derivou o substantivo “homossexual”. Daí, a noção de que o
homoerotismo admite o entendimento da atração pelo mesmo sexo. (COSTA,
1992, p. 21-22).
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sistema reprodutor do sexismo. Este percurso nos


faz lembrar a emergência da espécie de trabalho que
profissionais sérios e habilitados vêm conquistando no
espaço universitário e fora dele. A partir do eixo vertical
traçado pela representatividade do literário, a relação
entre os intelectuais e as massas populares do presente
e do passado insistem em ganhar voz para redimir e,
como bem expressa Mário César Lugarinho, definir os
contornos, de forma a estabelecer uma política mais
consciente sobre o universo masculino gay no espaço
societário. Assim, a possibilidade de ação política
amparada nos textos literários é pensável junto com a
ideia de herança cultural fixada nas bases da estrutura
familiar e enredada pelas tramas sociais que figuram a
marca do homem branco e macho versus o subalterno.

2 Literatura e homocultura: considerações críticas

Por intermédio do recorte histórico traçado e da


perspectiva de estudos da homocultura, considero a
narrativa de ficção, Rútilos (2003), de Hilda Hilst: esta obra
literária focaliza uma confluência de passado e presente,
ao narrar a história dramática entre dois personagens
envolvidos pelo fantasma do amor entre dois homens.
O desarranjo disciplinar de corpos por intermédio
da escrita compõe as vozes do relato sob o olhar do
outro. Personagens como Lucas e Lucius protagonizam
o conflito armado, buscam fraturar espaços binários,
desestabilizam as estruturas do sistema patriarcal e
hegemônico heterossexista.

A personagem de Lucius contextualiza com a fala


da personagem Iago de Shakespeare, “não sou o que
sou” (HILST, 2003, p. 93-94), e, por este enunciado,
a narrativa se assenta sobre uma grande variedade de
máscaras, demandas de símbolos fálicos, desejo de
castração e oralidade sexual, requisitando o triunfo para
o desejo homoerótico. Lucius é atingido pela fala da
personagem Lucas, um poeta que escreve sobre muros
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urbanos. Por isto, Lucas se denuncia - “Te seguindo sigo


apenas a mim mesmo” (HILST, 2003, p. 95) - e assume
o lócus de enunciação da ascese homoerótica, quando
afirma: “Porque sendo este que sou agora, devo dizer
que umas cordas feitas de sangue e plasma me amarram
a ti” (HILST, 2003, p. 94).
Partindo do exemplo da narrativa de Hilst, apesar da
manifestação do controle e da manipulação da lei do pai,
emergem imagens que têm a pretensão de mostrar que o
marginal e o maldito se sobrepõem. As histórias narradas
sobre gays ganham um estatuto de interpretação gerado
pela cultura hegemônica e a acolhida para o amor entre
os iguais desloca os significados que são concebidos no
procedimento de tatear códigos, de caça às palavras
que são avessas a modelos instituídos e a amostras de
reprodução do controle de corpos.

É por essa face textual que se politiza a literatura


e, lendo a ficção de Hilst pedindo passagem para a
estetização da vida, percebe-se um deslocamento de uma
dada subalternidade tendo em vista o grau de exclusão
das minorias sexuais. A autora chama a atenção para
uma literatura que pode dar acesso à leitura dizendo
respeito aos direitos ao corpo, à orientação sexual.

Analisa bem Emerson Inácio (2010, p. 13) quando


diz que é preciso desregular “a perpetuação do interdito
sobre a sexualidade, e por silenciar ou punir tudo e
todos os que não são contemplados pela moralidade
burguesa ou que nela não se enquadra”. Quer dizer, não
se trata de idealizar as identidades sexuais dentro de
um projeto de visibilidade apenas, mas sim, através do
deslocamento de um programa moderno da alta-cultura,
articular os novos perfis da subjetividade e dar passagem
a um universo transcultural, ou seja, problematizar
a essência do centro e sua estabilidade, permitindo o
ecoar dos ex-cêntricos. Por meio da literatura de Hilst,
é de grande importância pensar e questionar as leituras
construídas pela cultura ocidental, interpretar relatos que
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desempenham a funcionalidade de exprimir a opressão


e a exploração do outro e, a despeito de imaginários
sociais, de desejos e ideais, com a realidade, procurar
refletir com os interditos, revendo posturas aptas para
poder o subalterno falar.

Na discussão dos percursos críticos da homocultura,


estampa-se o exercício da articulação entre ética e
saberes, entre outras novas ordens de enunciação e
poder, convocando uma nova epistemologia capaz de
criar condições de entendimento de obras literárias cuja
autoria, recepção, conteúdo ou espaço de circulação
priorize o universo da homossexualidade (cf: INÁCIO,
2010, p. 123). O espaço literário de Rútilos constrói o
lugar da personagem Lucas podendo ser enviesado com
o silêncio que o prende e, com os rumores de si, recorre
a uma carta que traz a referência da relação amorosa gay
como meio intolerável, pois a ligação do desejo por Lucius
é assim testemunhado: “Quando nos beijamos naquela
antiquíssima tarde, a consciência de estar beijando um
homem foi quase intolerável, mas foi também um sol se
adentrando na boca, e na luz azulada desse sol havia
uma friez da água de fonte” (HILST, 2003, p. 99).

Lucas fala de uma realidade que desmascara: “Muros


agudos iguais à fome de certos pássaros Descendo das
alturas. Muros loucos, desabados: Poetas da utopia e
da Quimera. Muro máscara disfarçado de heras. Muros
devassos vomitando palavras. Muros taciturnos. Severos.
Como os lúcidos pensadores. De um sonhado mundo”
(HILST, 2003, p. 102).

Se é possível vislumbrar os contornos de escritas


alternativas por meio da tradição, é um recomeço revisitá-
las e em sendo revistas podem suscitar as demandas
da conjuntura presente, quer dizer, um efeito estrutural
das sociedades capitalistas tardias que reprimiram a
história, porque tentaram suprimir formas alternativas
de histórias. (EAGLETON; BEAUMONT, 2010, p. 206).
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Ao falar do amor entre os que ousam dizer o nome, a


narrativa de Hilst se mostra sensível quanto às amostras
de histórias e de lugares alternativos, respondendo às
práticas de resistência ao status quo, com toda a asfixia
que a crítica literária ainda prescreve com ares do passado
e que a crítica cultural tenta compor com disseminações
do devir-sujeito.

Este é um problema sempre a se refletir e diz


respeito à estilização da existência, principalmente, por
debater, em textualidades do literário e da cultura, ações
de migrar, potencializar, recriar outras vivências, outras
diferenças e histórias de vida. (cf. LOPES, 2002, p. 254).
Assim, politiza-se a escrita com a finalidade de deslocar
para o palco do espaço literário o outro leitor, aquele
que se livra da “mesmice da construção do sujeito” e do
passado (cf. SPIVAK, 2010). Ou, como reporta Antoine
Compagnon (2009, p. 47): “a literatura deve, portanto,
ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns
dirão até mesmo o único – de preservar e transmitir a
experiência dos outros”.

A minha reflexão neste texto se alia à pertinência


de significar a homocultura nas identidades do sujeito,
percebendo os suportes da crítica literária e cultural,
apostando na disseminação dos relatos narrativos
ficcionais que leem o outro, e gesticula pela diferença.
Não se trata do produto dos fatos verdadeiramente
acontecidos e produtos de invenção, mas de inferir um
processo narrativo como construção de espetáculo,
mostrando, aí, a “ilusão referencial”, que é outra coisa
que não a funcionalidade da escrita. Isto é analisado
por Barthes, ao notar a função da escrita que exercita o
“efeito da realidade que traz detalhes não tão relevantes
nem significantes em si mesmos para a trama, mas se
suplementam como ‘marcadores da realidade’” (BARTHES
apud ARFUCH, 2010, p. 116).

Com isso, seria possível uma investida do sentido


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de transcultural na literatura dada os aspectos da


homocultura. Isto é, ler o texto literário sob a representação
do homoerotismo é seguir a onda da leitura que pretende
Leonor Arfuch e Roland Barthes: é também exercitar o
registro de si, ou seja, de que “o relato está ali, como a
vida”? (BARTHES apud ARFUCH, 2010, p. 112).
Não se pode perder de vista a mútua implicação entre
linguagem e vida, narração e experiência. Em nome da
experiência contestável, como sugere Scott (1992), o eu
ocupa um lugar em que se pode interpretar vozes que
despertam sinais e desperta, incorpora a invenção de si.
Quer dizer, daqueles sujeitos que estão/são fora de lugar
e são focalizados nos impressos dos romances, poesias,
jornais, manuscritos, fontes históricas, memórias.
Segundo Scott (1992, p. 75-80), a maior parte da história
das mulheres produzida até os anos 80 do século passado
havia buscado, de alguma maneira, incluir as mulheres
como objetos de estudos, como sujeitos históricos.
Assim, os historiadores e historiadoras reivindicavam a
importância das mulheres na história em um campo de
saber com reflexão acurada sobre o que aconteceu no
passado e em que os agentes já estabelecidos seriam os
únicos e verdadeiros merecedores de serem lembrados.

Com essa perspectiva de histórias e de experiências


de vida de mulheres, os relatos literários visam aos
interstícios existenciais do sujeito feminino que reivindicam
menos as nomeações e os territórios demarcados pela
onda heterossexista e patriarcal. Com as chamadas
para as ficções que configuram o convívio com o amor
homoerótico, surgem os que oprimem, marginalizam e
são identificados os sujeitos homoeróticos nas taxonomias
sociais recheadas de homens que lidam com desejos
reprimidos e com histórias de vida impressas nos entre-
lugares.

Tratando de imaginar um modo de vida menos


opressivo, Denílson Lopes comunga com a política de
identidade que, para ele “tem sido usada mais e mais e
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com sucesso pelos fundamentalismos estreitos, sejam


nacionalistas, sejam religiosos. Onde é esperado um
confronto, uma luta, desaparecer para reaparecer mais
a frente em outro lugar, de outra forma, pode ser um
caminho” (LOPES, 2007, p. 19).

E os questionamentos sobre as identidades sexuais


por esse viés crítico se propõem a celebrar o direito à
voz com a autoridade de poder construir a formação da
subjetividade astuciosa, eles estão implicados por uma
política menos disciplinar e menos arrogante a despeito
das experiências que regem a imagem do sujeito
homoerótico. São posturas mais revolucionárias ao lidar
com os prazeres, sob avanços e recuos, “demarcações
territoriais e desterritorialização, desmantelando códigos
sociais, deslocando-se entre a significação, criando uma
zona metamórfica, um ‘entre-lugar’ dinâmico, onde os
códigos sociais devêm-outro”, como propõe Karl Posso
(2009, p. 234).

As narrativas do escritor Silviano Santiago (1996),


por exemplo, não tratam de “orgulhosidade”4 gay, e sim
de deslocar os sujeitos em espaços closet, com postura
sutil para visualizar as identidades homossexuais,
direcionando-as para o escape, escondendo-as da
realidade opressora e convidando para linhas de fuga.
Talvez, como ocorre com os contos de Keith Jarrett no
Blue Note, a reterritorialização do desejo para outros
locais vise a forças anárquicas da intimidade do sujeito,
tendo em vista um fórum de atuações subjetivas mais
questionadoras. Se estas narrativas estão sujeitas à

4 A palavra orgulho, criada pelo movimento LGBTs, é utilizada como para


afirmar a identidade de gênero e orientação sexual de cada indivíduo, como
reconhecimento de direitos e contra o controle e opressão heteronormativos.
Uso o termo adjetivado orgulhosidade como crítica a uma busca essencialista
e afirmativa deste conceito. Não se trata de negar a história do movimento,
mas, por seu intermédio, redimensionar o sentido do lugar da subjetividade
plena em relação ao outro e pensar de um outro lugar distinto da normatividade
do sistema operante de forma a tentar não cair em versões que podem
converter-se em práticas assimiladoras da menos poderosa pela mais forte.
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dissolução de tempos passados inglórios, paradoxalmente,


elas se renovam, germinam para outros fluxos, com os
vetores dos entre-lugares discursivos.

Tanto a literatura de Hilst como a de Santiago


documentam e registram condutas de subjetividades
giradas ao avesso, adotam um lugar de aversões ao
imaginário instituidor e se renovam por um olhar mais
perceptível para a realidade em estado trans-formador.
Neste sentido, argumenta Posso (2009, p. 235) - um leitor
crítico de Santiago - que “a zona indeterminada, onde
a solidão do sujeito homossexual exilado (perseguição
social) é também a intensidade afetiva (gozo libertário)
de sua dissolução desejada, a produção de múltiplos
devires é uma força para a criatividade coletiva”. Estas
leituras são tendências da literatura contemporânea, por
reconhecerem que todo texto é político, como já dizia
Eagleton (1994), e por verem que cada leitor continua
interpretando-o a partir de seus preconceitos e valores.
Assim sendo, o romance contemporâneo, que adentra
nas polaridades e nas práticas heterossexistas, se vale
também de posicionamentos paradoxais, buscando
reaver os controles e as resistências ou mesmo tendo
em vista as matrizes que logram apontar as questões
clássicas da cultura dos masculinismos.

Na esteira da contemporaneidade da literatura,


a crítica literária Regina Dalcastagné (2011) analisa o
quanto o leitor, refletido no narrador, se torna personagem
de uma discussão. Estamos enriquecendo e deflagrando,
rompendo e questionando uma sociedade que nos
aponta? Sem dúvida, diante desta questão, refletir com
o narrador será tão mais rico quanto mais consciente
de si, de seus valores e seus preconceitos for este
leitor com suas ambiguidades sociais. Também Mário
César Lugarinho ressalta que: “por nos inserirmos na
instituição universitária, na qual a crítica literária parece
se desenvolver de maneira autônoma à série social, é
preciso constituir uma reflexão que se desenvolva bem
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126 julho a dezembro de 2013

além da experiência cotidiana e do senso comum que


envolvem os discursos” (2012, p. 68-69).
Ainda seguindo o raciocínio do autor:

[...] quando a arte, em geral, e a literatura, em especial,


promovem um sentido calcado na dignidade humana,
podemos observar, com os mecanismos possibilitados
por uma crítica destituída de pudores, que se está levan-
do ao centro da discussão, sobretudo, a capacidade de a
obra gerar algum sentido que retorne a seu receptor, de
maneira que ele se veja confrontado com as estratégias
de silenciamento de sentidos que forças dominantes,
comprometidas com o status quo, são capazes de levar
a cabo (LUGARINHO, 2012, p. 70).

É importante assinalar aí o nível de consciência


que se pode adquirir para uma resistência efetiva às
novas condutas de repressão, expropriação social e
cultural nos tempos atuais e que muitas obras literárias
apontam. Se o visível retraimento do autor e a decorrente
superficialidade dos ecos globalizantes têm como efeito
a queda de juízo crítico, resultando na soma aleatória
de signos e na troca lúdica de discursos, em todo caso,
diante das inquietações postas nas questões citadas,
como contrapor o signo ao seu referente, romper com
afirmativas e enunciados rotulados, a exemplo, de que
ser gay é ser mulher, que todo gay é efeminado e toda
lésbica um macho?

Se projetarmos as identidades no intercâmbio com


vistas ao rompimento com os referentes, tornando-
os descartáveis, então, em última instância, promover
a diferença, no sentido de deferimento da orientação
sexual e de gênero, não significa apontar para a direção
polarizada do sujeito, pois não se quer repetir a estrutura
normativa com a qual os paradigmas tão colocados pelo
senso comum heterocentrado são enaltecidos. Tratar o
modo de falar da identidade gay ainda torna o sujeito aí
referenciado como frágil, com as datadas enunciações
que o associam ao universo feminino.

Visando a esta desconstrução de enunciados


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decorrentes dos sentidos homofóbicos e discriminadores,


é preciso transitar pelas linhas frágeis do discurso social
e se apoderar dos embates que, por hora, ainda mexem
com toda a convivência daqueles que se aproximam
das identidades que não se encaixam nesta ou naquela
posição, mas que se arriscam com o plano de suplementar
o desejo através da e pela origem, não para se
condicionar a meras cópias e referências, mas para, por
intermédio dela, da origem e das referências, transitar
pelos conservadorismos dos conceitos, interpretar o que
nos faltou e, por uma dimensão vicária, ler e ver com o
diverso.

Creio que é dessa maneira que Lugarinho, em Direitos


Humanos e Estudos Gays e Lésbicos: o que nós e Michel
Foucault temos a ver com isso?, analisa que:

carecemos no Brasil de reflexão acadêmica mais extensa


que dê suporte aos movimentos sociais, demonstrando
o claro divórcio entre a universidade, espaço privilegiado
para o desenvolvimento de um pensamento crítico a res-
peito da sociedade, e os movimentos sociais, capazes de
alavancarem as transformações políticas, sociais e cultu-
rais por eles almejadas. (2012, p. 71).

Na leitura que busca o convite para que a Academia se


mostre mais, dialogue mais com o social, para Lugarinho,
ainda assim: “à parte Antônio Candido, quem mais pensou
em direitos humanos e literatura no Brasil?”. A resposta
é, certamente, reticente. Ainda de acordo com o crítico:

Ou nos debruçamos com dificuldades sobre o banco de


dados do currículo lattes, ou ficamos em silêncio, enver-
gonhados. Parece-me que, há muito tempo, o engaja-
mento da crítica literária saiu de moda e ficamos, nós
críticos, confortavelmente, refestelados em almofadas.
Onde a ousadia da crítica, onde a ousadia da literatura?
Precisaremos, para os estudos gays e lésbicos, no Brasil,
de um crítico desta estatura para acreditarem que a obra
e a crítica existem e resistem? Até quando precisaremos
das redes subterrâneas da solidariedade? Não creio na
utopia e tampouco nas utopias, mas creio na atividade
diária da revisão de paradigmas possibilitada pela expe-
riência cotidiana. A oportunidade de, agora, pensar de
como a literatura, digo, a crítica literária pode promover
os direitos humanos no solo dos estudos gays e lésbicos
é por demais necessária e bem-vinda; enfim, é a ousadia
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sonhada. Ações isoladas e mesmo coletivas não conse-


guiram ainda estabelecer formas homogêneas de ação
dos aparelhos estatais e tampouco dos aparelhos sociais
e culturais. (LUGARINHO, 2012, p. 75).

Seguindo com a incômoda direção que a crítica vem


situando - o sentido do pós-moderno que se vê nutrido
pela transformação política, social e cultural, desde os
anos 60 do século XX, e o ter incorporado ao mapa
geográfico o local do periférico, dando ao sujeito aí
pertencente o direito de se conectar à lógica cultural de
um capitalismo com toda a sua face perversa e marginal
e movida a rupturas - esta pouco tem dado mostras de
intervenções mais plurais quanto à diversidade sexual, a
histórias e memórias de sujeitos com os direitos que lhe
cabem.

Similar a esta visão, Tânia Pellegrini afirma que,


mesmo estando a ficção brasileira contemporânea
atada à diversidade e ao hibridismo, incorporando “os
pétits récits das mulheres, negros, homossexuais” e se
valendo “da autoconsciência textual, da ironia reflexiva,
da intertextualidade, para expressar o paradoxo, a
contradição e a ambivalência constitutivos da sensibilidade
pós-moderna”, ela não está conseguindo, funcionar
in totum como “uma forma de desmascarar a própria
ficcionalidade e de tentar contestar as múltiplas formas
da hegemonia e autoridade sócio-política e literária”
(PELLEGRINI, 2008 p. 75), que “se expressariam
sobretudo por meio das ‘grandes narrativas’ de caráter
normativo, unívoco e totalizante” (2008, p. 75).

Vale dizer que, para Pellegrini, o problema de como


politizar a literatura sem seguir a direção de uma cultura
materializada pelo mercado global, é também perceber o
pós-modernismo como aquele que transforma a cultura
em mercadoria sem nenhum pudor e invertendo sua
própria lógica. Parece possível notar que esta mesma
cultura pode entrar com os embates, escamoteando as
diferenças, com base em uma política em que a simbiose
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mídia-mercado suprime o ato de pensar crítico em


detrimento do espetáculo (PELLEGRINI, 2008, p. 77).

Reflexões Finais

De volta à reflexão deste texto, a literatura e a


homocultura se mostram entre dois pilares: o que
tangencia o espaço da cultura hegemônica e o que, no
presente de impasses e paradoxos, busca desenvolver
o lugar da ambivalência, incorporando sujeitos que, à
margem do centro, insistem em aparecer, posicionar a si
mesmos enquanto indivíduos que recusam as imposições
de gênero e orientação heterossexual devidamente
marcadas.

A respeito dessas ordinárias frentes da cultura


patriarcal e hegemônica, cito Butler que procura
questionar, em “Corpos que pesam: sobre os limites
discursivos do ‘sexo’”, a construção do gênero atuando
através de meios excludentes5. Em virtude de seu efeito
naturalizado, as fissuras e fossos são abertos e podem,
como afirma a autora, “ser vistos como as instabilidades
constitutivas dessas construções, como aquilo que
escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode
ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo
daquela norma” (2000, p. 164; 165).

Entro nesse debate ligando o artefato cultural ao


texto literário contemporâneo proporcionando ler/ver as
reflexividades do eu no que diz respeito aos constructos
homoeróticos. Chama-me a atenção, sobretudo, a
reflexividade do eu e o procedimento do desencaixe
serem tratados no processo de revisão e de transformação
do ambiente familiar, dos signos que representam
os desencaixes dos contatos unilaterais e pontuais de
convivência, ou melhor, dentro do que analisa Eduardo

5 Grifo da autora.
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Leal Cunha:

[...] comprime-se no âmbito restrito da família nucle-


ar e passa a ser regida internamente por novos tipos
de vínculos e relacionamentos fundados na troca e na
igualdade entre as partes, subjugando o pátrio poder e
destituindo a velha hierarquia alicerçada na figura do pai
autoritário e exemplar. (2009, p. 32).

Giddens (1991, p. 27) identifica essas relações por


meio de um espaço vazio tornando-o fantasmagórico,
porque a comunidade se apresenta como expressão local
de influências sociais distantes, não visíveis e que podem
ser não percebidas ou reconhecidas por seus membros,
deixando, assim, de ser “um ambiente saturado de
significados familiares”, a materialização aparente da
inserção do indivíduo no mundo (CUNHA, 2009).

Lembra a literatura de João Gilberto Noll que colabora


para pensar a subalternidade com relatos que incorporam
as situações de ambiência saturada de significados
familiares, que são propostas por um olhar que adentra
a experiência do sujeito como um devir-minoritário,
traçando a linha de extensão ao não domesticável
(DELEUZE; PARNET, 1998). Por isto, o ato de diferir, tal
como ocorre nas narrativas contemporâneas, é proposital,
em escritas que configuram o lugar dos gays6, os que
flertam com o lado de fora, na ambiência sociocultural
que não adere a assepsias e com a qual os instantes
em que a linguagem difere de si mesma; ou seja, é a
própria diferença se desdobrando para recondicionar o
sentido de outras figuras avessas ao simétrico e para o
condicionamento de vivenciar outras conquistas, daquilo
que Baudrillard (1991) fala a respeito da sedução,
no meio, no desreferencializado, no descentrado, na

6 Enalteço o sentido da palavra gay como modo de romper com estigmas


e com o poder de reversão frente ao que implicava a nomeação homossexual
como ser patológico. O termo “alegre” assim designado formaliza relações
mais livres, tentando criar uma cultura a partir das experiências sexuais
na zona de escape do normativo e com o livre direito ao pertencimento a
uma classe, a uma sociedade, construindo um modo de vida visível e menos
essencializado.
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possibilidade do falar ser entremeado de fluxos, bem na


crista da identidades sexuais.

Os narradores e protagonistas das narrativas


contemporâneas assim se rebelam contra a previsibilidade
e colocam o conhecimento da subjetividade fundada pelo
projeto de estranhamento do social e da inquietante
intimidade com o outro, tal como se revelam as
personagens de A fúria do corpo, de João Gilberto Noll.
Na estratégia da prática da liberdade, a subjetividade,
nas obras do autor, se fortalece e é defensiva, ao mesmo
tempo, excludente, girada pelo “ato colonizador de
marginalidade”, como descreve Butler (2003, p. 32).

Ou, seguindo a ótica da leitura de Spivak (apud


CUNHA, 2009, p. 110), o ato de si, fundado em oposições
binárias submetidas a um determinado regime de
conhecimento reitera e estabelece, na sua enunciação,
as margens e os limites possíveis para a interpretação
da realidade, fixando posições do centro e da periferia
e inviabilizando a produção de posições intermediárias,
fazendo com que o conhecimento assuma um papel
claramente hierarquizante.

Assim, as personagens causam estranheza,


contrariam também as tendências de se revelarem
anônimas e se designarem nos fluxos e nas fissuras.
Destaque para a imagem fora-de-lugar, ou mesmo no
entre-lugar (BHABHA, 2001) na qual a subjetividade
brota e procura deslegitimar a racionalidade hegemônica,
questionando a velha promessa de conquistas, inserções
de direitos unilaterais, registros de relações fundadas
no heterossexismo, desconstruindo o seio cultural
heteronormativo. Portanto, Letras e Direitos Humanos
estão aí sendo operados. Há muito o que intervir, não
somente pelas leituras que construímos, sobretudo no
que pensa Lugarinho:

[...] preferimos a festa ao massacrante cotidiano da luta


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pela emancipação social e política. Pensamos na visibi-


lidade da comunidade, festiva e celebrativa, mas deixa-
mos de lado a visibilidade do indivíduo, que é seu direito
incontornável de cidadania. Construímos um dos mais
ambiciosos programas de prevenção e tratamento da
aids no mundo, mas deixamos de lado a memória e a re-
flexão acerca da epidemia que já atingiu quatro gerações
de homossexuais brasileiros. Quantas teses e artigos po-
deremos contar diante do crescente número de publi-
cações e produção acadêmicas dos últimos trinta anos
acerca do tema da aids e da diversidade (homo)sexual?
Quantas vezes um pesquisador se reconheceu diante do
tema? Até quando só daremos o privilégio a Bom Crioulo
ou a Caio Fernando Abreu? Onde, enfim, a ousadia pelo
engajamento? É direito de todo homem o conhecimento,
o saber e a educação. É esse nosso papel, enfim, cum-
prirmos tal requisito? (LUGARINHO, 2012, p. 71).

Para analisar um cânone literário, existem aspectos


que importam no seio de leituras interpretativas, e não se
deve admitir a ideia de que apenas uma visão misógina
ou homofóbica retrairia a exposição de uma obra literária
gay ou de temática gay. Questões como qualidade estética
da obra, recepção de texto pelos leitores comuns ou mais
especializados na crítica literária, absorção da obra pelo
mercado e a própria temática interferem na produção
de escritas e de criação de linguagens que afinem o
mercado editorial, como avalia Antônio de Pádua Dias da
Silva (2008, p. 29).

Como ponto de partida para os questionamentos


aqui elencados, a narrativa representa um modo
explícito de abordar a realidade dentro dos contextos
sociais marcados, buscando enxergar alguns reflexos
que disseminam os lugares de fala dos marginais e dos
periféricos. Talvez, aqui, ainda caiba a noção de Scott
sobre o processo de “desnaturalização” dos conceitos que
implicam classificar, hierarquizar e distinguir homens e
mulheres: “a organização social da diferença sexual, ou
seja, ao problematizar o gênero, é revelar o saber “que
estabelece significados para as diferenças corporais.”
(SCOTT, 1994, p. 13).

Esses significados variam, conforme explica a teórica,


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“de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo,


já que nada no corpo [...] determina univocamente como
a divisão social será estabelecida” (SCOTT, 1994, p. 13-
14). Com isto, o projeto de leitura sobre a homocultura
atravessa também os pontos trazidos pelo pensamento
de Scott, porque a concepão de sexualidade, de gênero e
de identidade fere o estatuto da naturalidade, pois, vendo
o perfil de personagens da literatura de Hilst, Santiago e
Noll, eles criam laços diferenciáveis, ao se defrontar com
a cultura ocidental hegemônica e heteronormativa. Basta
lembrar que Lucas, protagonista de Rútilos, tem uma
visão indisciplinar no que toca aos desejos homoafetivos,
contrapondo a visibilidade dos dispositivos de poder que
normaliza a sexualidade dos indivíduos.

O sexo é também discursivo e cultural como o


gênero, já que este é o “ponto relativo de convergência
entre conjuntos específicos de relações, cultural e
historicamente convergentes. O corpo é em si uma
construção”, segundo Butler (2003, p. 27-29), para quem
“o corpo é performativo, a identidade é performativa”, ou
seja, ele está envolto por atos de fala, pois não somente
a fala existe no processo de entendimento linguístico,
como pode-se aferir que a fala está no verbo e no corpo.
Portanto, entre a flexão da ação verbal e a corporal
dos personagens de Hilda Hilst, de Silviano Santiago
(1996) e de João Gilberto Noll (1997), prevalece a fala
do corpo e no corpo cuja potência máxima ultrapassa a
zona da fronteira abrindo para as práticas significantes
dentro de um espaço cultural de hierarquias de gênero
e de orientação heterossexual. Se os rompimentos dos
sujeitos estigmados são propositais no espaço narrativo,
eles ocupam destaque na relação de arbítrio, na relação
de violência dada pelo poder do dominador.

Contudo, dado o projeto do grupo de trabalho


Homocultura e Linguagens da ANPOLL, os estudos literários
e queer procedem com as releituras dos papéis de gênero
e as fontes históricas que apresentam os nós de uma
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linearidade imposta e forçam a representação do homem


por outra vertência de análises. Seja pelas considerações
de autores brasileiros, seja de portugueses e ocidentais,
a instituição literária é repensada, procurando refundar
outros sentidos que giram em torno da subverção e
de dualismos orgânicos e hierárquicos, reposições de
significados da colônia ao veio cultural pós-colonialista,
tendo o contraponto do corpo biológico e as nomeações
à mercê das estruturas do real falocêntricas, patriarcais,
sexistas e heteronormativas como alvos críticos. Isto
porque a leitura mais politizada, como a que procede
reconstituir na história da literatura, incorpora culturas
cujas identidades sexuais e de gênero são amparadas,
desafia e subverte as estruturas de poder.
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135

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SocioPoética - Volume 1 | Número 10
138 julho a dezembro de 2013

PAPÉIS DE GÊNERO, HOMOEROTISMO E VIOLÊNCIA EM UM


CONTO BRASILEIRO DA METADE DO SÉCULO XX

Liane Schneider (UFPB)1*

Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE)2**

Resumo: O presente ensaio esboça considerações interpretativas sobre o


conto “A Moralista”, publicado em 1957, da escritora brasileira Dinah Silveira
de Queirós. O foco da análise apresentada são as personagens da narrativa e
os comportamentos e papéis de gênero que são exercidos pelos protagonistas
masculinos e femininos da ficção. Toma-se por base, na construção do trabalho,
os estudos de gênero e de sexualidades, principalmente, através dos estudos
de Scott (1990), Bonnici (2007), Green (2000), Foucault (1984). Observa-
se que a narrativa problematiza a visão tradicional que o patriarcado produz
sobre as formas de se comportar como homem e como mulher na sociedade,
promovendo uma reflexão sobre esse tema através da violência contra os
sujeitos ficcionais que burlam ou tentam fugir da ordem estabelecida para os
papéis de gênero.

Palavras-chave: Literatura; personagens; homoerotismo; violência.

Abstract: The present essay brings to light some interpretative considerations


on the short story “A moralista”, published in 1957 by Dinah Silveira de Queiros.
We focus mainly the construction of characters in the narrative, analyzing
gender roles assumed by them, female and male individuals. Our theoretical
foundation is formed by gender and sexuality studies as well as by some studies
developed by Scott (1990), Bonnici (2007), Green (2000) and Foucault (1984).
We indicate that the narrative problematizes some traditional views promoted
by patriarchy about how men and women should behave in society, taking us to
question such assumption based on the violence used against those who try to
escape such gender limitations.

Key words: Literature; characters; homoeroticism; violence.

1 * Doutora em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
2 ** Doutorando em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Professor Assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
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Impressões, objetivos e contexto da discussão

Não há como pensar a sociedade e as relações


interpessoais, sem considerar as concessões e interdições
nas formas de se comportar socialmente. A cultura
sempre elegeu modelos apropriados de se agir, sobretudo,
quando o assunto é comportar-se como homem e como
mulher. A religião, o saber médico-científico e o discurso
jurídico forneceram, ao longo da história, a maior parte
do subsídio de vigilância das práticas sexuais, de como
portar-se em relação ao corpo, ao prazer, como se vestir,
como caminhar, dentre outros.

Essas prescrições desembocam sempre numa


perspectiva de conceber o gênero, que de maneira
sucinta, segundo Bonnici (2007, p. 126), “é a maneira
como a cultura vê a mulher (e o homem) e como esta é
construída culturalmente”. Ou como argumenta Lauretis
(1994, p. 211), “gênero representa não um indivíduo e
sim uma relação, uma relação social”. É nessa relação,
segundo Scott (1990), em que se estabelecem hierarquias,
segundo as quais as minorias sexuais (mulheres, sujeitos
homoeróticos) são consideradas inferiores ao masculino
heterossexual, que deve representar o poder. Todos os
comportamentos que fujam da ordem e dos padrões
determinados são considerados desvios, pois o gênero é
um múltiplo campo em que o poder é articulado.

São instituídos, assim, os papéis sociais de gênero


que designam normativamente um conjunto de
comportamentos associados ao masculino e ao feminino,
muitas vezes, permeados de estereótipos que cristalizam
preconceitos seculares e atitudes discriminatórias. Daí,
porque, ainda segundo Scott (1990), os estudos de
gênero necessitam evitar a homogeneização da mulher
(e por extensão, podemos atribuir essa necessidade a
outras minorias) limitando-a a uma categoria monolítica.
Para Scott (1990), faz-se necessário realçando as
seguintes posturas: a) evitar os binarismos; b) criticar as
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140 julho a dezembro de 2013

categorias e análises já postas sobre gênero; c) utilizar


o método da desconstrução; d) compreender que as
manifestações do poder são descentralizadas e difusas.
Tentaremos aplicar algumas dessas posturas através da
crítica literária brevemente exercida neste ensaio.

A repressão sexual ocorrida durante a primeira


metade do século XX foi, em grande parte,
responsabilidade da atuação médica que, de diferentes
maneiras, julgou negativamente e diagnosticou como
doentio o comportamento que desviava da ordem.
Exemplo disso, segundo Matos (2003), foi a condenação
pelo discurso médico do trabalho extra-doméstico das
mulheres, que “era visto como um desperdício físico de
energias femininas e como fator de dissolução da saúde
e de comprometimento da dignidade feminina, além de
promover a mortalidade infantil e desordens sociais”. (p.
112).

Com relação ao homoerotismo3, as práticas sexuais


entre pessoas do mesmo sexo ainda eram concebidas
como “doença”, noção ainda herdada do século XIX
quando foi cunhado o termo homossexualismo, criado
em 1869, na Alemanha, pelo médico Karl Maria Kertbeny
para designar uma doença, ou melhor, segundo Trevisan
(2000), uma “anomalia”, que se tornou mais visível,
devido ao seu interesse científico.

A partir dos 1930 tornou-se constante a intervenção


de profissionais da saúde no comportamento de indivíduos
que eram internados para que fossem “curados da
doença que possuíam”. Os sintomas mais comuns para os
homens eram: exibir comportamento efeminado (andar
rebolando, falar fino e delicadamente, gesticular de

3 Empregamos o termo “homoerotismo” em detrimento de “homossexualismo”,


exatamente pelo ranço discriminatório que este último enseja, concordando
com Costa (1992), na tentativa de utilizar um conceito operacional que reflita
a abrangência das relações eróticas entre pessoas do mesmo sexo, sem o
negativismo histórico que as palavras engendradas para se referir a essa
nuance da intimidade humana geralmente enfatizaram.
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141

maneira lasciva), vestir-se de maneira inadequada (usar


atavios, exagerando em cores de roupas e maquiagens),
ser encontrado em locais suspeitos de práticas sexuais
entre indivíduos do mesmo sexo (praças, ruas escuras,
aglomeração em mictórios, dentre outros). (GREEN,
2000, p. 173).

Green (2000) afirma que a primeira estratégia
para o controle médico sobre a “homossexualidade” no
Brasil foi confinar e observar os sujeitos “doentes” em
hospitais e clínicas, descrever-lhes a altura, o peso, a
cor da pele, tamanho dos membros do corpo, incluindo
o pênis, dentre outros, no intuito de sustentar a tese de
que os “pederastas” possuíam características fisiológicas
em comum e diferentes dos “normais”. Houve atitudes
semelhantes contra as mulheres ao longo na história na
tentativa de controlar e prescrever a maneira como lidar
com o corpo e com o prazer femininos (MATOS, 2003).

Foram muitos os diagnósticos das causas da
“inversão” e de sua cura, as quais iam da psiquiatria
e da psicanálise à endocrinologia, talvez, a mais aceita
do Brasil, segundo Green (2000), cuja noção baseava-se
na ideia de que o desejo de relacionar-se sexualmente
com pessoa do mesmo sexo era fruto de um distúrbio
hormonal.

“Tratamentos” como aplicação de eletrochoques,
transplante de testículos, cauterização do clitóris,
insulinoterapia (aplicação de insulina que levava
o paciente ao coma), convulsoterapia (injeção de
medicamentos para provocar ataques epilépticos),
procuravam modificar o comportamento de homens e
mulheres que apresentavam sexualidades diferentes
do padrão estabelecido. Contudo, como analisa Green
(2000, p. 232), “a intenção parecia antes ser disciplinar
do que curar”. Disciplinar, exatamente, porque poucas
vezes o indivíduo admitia não sentir mais atração pelo
outro do mesmo sexo após os tratamentos, apenas temia
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142 julho a dezembro de 2013

expressar livremente tal desejo.



Embora essas práticas de tortura fossem justificadas
pelo discurso “científico”, estavam fortemente impregnadas
pelo moralismo. Herdou-se da filosofia grega e da
judaico-cristã a condenação para as relações sexuais que
não possuíam como fim primeiro a procriação e, assim,
formou-se um código de conduta implícito e universal no
Ocidente de que o homoerotismo ofendia a família e os
“bons costumes” (Cf. NAPHY, 2004; FOUCAULT, 1984).

Nesse sentido, Foucault (1984, p. 26) define a


“moral” como “um conjunto de valores e regras de ação
propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de
aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família,
as instituições educativas, as igrejas, etc.” Além desse
conjunto de regras, segundo ele, a moral é determinada
pelas medidas através das quais se conduz um indivíduo
a ser um “sujeito moral”. A principal delas, na opinião
do filósofo francês, é a disciplina de si, quando o modo
de sujeição é internalizado pelo indivíduo de maneira
que os conjuntos de regras passam a constituir o próprio
sujeito: “transformar a si mesmo em sujeito moral de sua
conduta” (Ibid., p.28), ou seja, conhecedor dos “limites
impostos” e capaz de dominar a si mesmo e moldar a
própria conduta de acordo com esses mesmos “limites”.
Outro conceito, cunhado por Foucault é o de “corpos
dóceis”, que diz respeito exatamente aos corpos que
refletem a dominação cultural, e que estão habituados ao
controle externo, à sujeição e permanecem aprisionados
pelos dogmas do status quo

Por fim, Foucault (1984) é enfático quando afirma


que a construção do “sujeito moral” e do “corpo dócil”
se dá através de um longo processo de aprendizagem,
de memorização, de “assimilação de um conjunto de
preceitos” e através de um “controle regular de conduta”
(Ibid., p. 28), daí aplicarem-se castigos, conselhos,
instruções para que a austeridade moral seja alcançada.
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A literatura, por ser atividade humana, problematiza


os sujeitos e a sociedade, truísmo reafirmado por Antonio
Candido (2006) e não poderia deixar de plasmar esse viés
íntimo, mas também social do sujeito: a relação com o
próprio corpo, com o comportamento e com os diversos
controles que se estabelecem na esfera do gênero.

Dessa forma, o presente ensaio esboça considerações


interpretativas sobre o conto “A Moralista”, publicado em
1957 (período sobre o qual nos debruçamos anteriormente
a respeito das questões de repressão sexual na primeira
metade do século XX), da escritora brasileira Dinah
Silveira de Queirós no sentido de explorar questões sobre
o papel de gênero masculino, o desvio desse papel e a
noção de homoerotismo, bem como a violência que se
instaura quando os limites da possibilidade do ser homem
e ser mulher são ultrapassados. O conto funcionará
como corpus para permitir discutir esses aspectos, como
um mini campo de representação das dinâmicas sociais,
especificamente as de gênero e sexualidade.

“A Moralista” e os papéis de gênero: controle, desvio


e punição

“A Moralista” é uma obra que relaciona a disciplina, a


religião e o os desvios do papel de gênero na construção
da estória. O aspecto religioso permeia muitas obras da
escritora de romances, contos e crônicas, Dinah Silveira
de Queirós, que foi a segunda mulher a ocupar uma
cadeira da Academia Brasileira de Letras e se definiu,
quase ao fim de sua carreira, “uma escritora católica.” 4

O conto é narrado por uma personagem secundária

4 Informação coletada do discurso de posse de Dinah Silveira de Queirós


disponível no site da Academia Brasileira de Letras:
Cf.: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.
htm?infoid=459&sid=131>. Acesso em 13 de agosto de 2011, às 23h27min.
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(narrador testemunha), portanto com foco narrativo


em terceira pessoa, moradora do lugarejo fictício
chamado Laterra, pequena cidade onde vivem famílias
nucleares tradicionais. Em uma delas, na casa de onde
fala a narradora testemunha, encontra-se a Moralista,
mulher que dava conselhos e abençoava a todos que a
procurassem: “Se me falam em virtude, em moralidade
ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se
relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha
idéia.” (QUEIRÓS, 2007, p. 91).

De início, pelo título do conto e da passagem
transcrita, percebemos a perspectiva, de fato, moralista,
da qual a narrativa parte para se desenvolver. Retomando
as considerações de Foucault (1984) sobre a moral,
compreendemos a dimensão ideológica que marca a
narrativa. Pelo título e forma de nomear a protagonista,
“Moralista”, já se constrói uma visão do aspecto repressor
que se instaura nesse texto. O sufixo ‘-ista’ acrescenta
à palavra, segundo o Houaiss (2004), o sentido de
“seguidor” ou de “profissão, ocupação”. Estabelecendo
relação entre esse conceito e o emprego do termo no
conto, vemos que “moralista” vai dizer respeito não
apenas àquele que segue os preceitos da moral, mas
também aquele que eleva sobre os demais os valores
morais e torna essa filosofia uma prática, como uma
profissão do indivíduo capaz de ‘moralizar’, de instruir
e de disciplinar, assim como percebemos muito bem
representado na personagem de Queirós (2007).

O leitor está posto diante de uma narrativa curta,


cujo espaço ficcional é uma típica cidade pequena e
interiorana, pacata e que cultiva, no imaginário coletivo
de seus moradores, crenças populares. Nesse pequeno
ambiente “urbano”, se impregnam, na protagonista,
valores tradicionais da moral e da religião da época,
como se ela representasse um exemplo das virtudes
cristãs. Não obstante, sua imagem é construída para
reiterar estereótipos que refletissem essa imagem da
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cristã exemplar:
[...] vinha jantar como se fosse a um baile, com seus
vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que
os objetos a seu redor criavam uma pequena atmosfera
própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava
nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela
lisura de louça lavada. Nela, até a transpiração era como
vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante
daquela pulcritude minha face era uma miserável e mo-
vimentada topografia, onde eu explorava furiosamente,
e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros es-
curos e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre
as unhas, para meu prazer. (QUEIRÓS, 2007, p. 91).

A primeira característica que pode ser analisada é
a beleza da personagem que, por onde passa, atrai a
atenção das pessoas e torna agradáveis os locais por
onde se locomove, em razão de sua elegância e de
sua “santidade”. Em sua aparência, o mais relevante,
segundo a filha, era a pele, lisa e brilhante, tão bela que,
diante dela, a pele da narradora adolescente era como
um terreno acidentado, repleta de acnes as quais eram
masoquistamente espremidas. Nenhuma personagem
desse conto é nomeada, todas são identificadas pelas
funções familiares e sociais: mãe, pai, filha, vizinho,
padre etc.

A imagem da personagem se assemelha às esculturas


de santas com a tez alva, brilhante e firme como porcelana,
artificial, fria e imaculada: “Ela ia para a reza da noite de
véu de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de
rosto, que todos diziam que parecia e era, mesmo, uma
verdadeira santa.” (QUEIRÓS, 2007, p. 93).

Não só a imagem, mas as atitudes também reforçam
essa ideia:
Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para
tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era lou-
ra e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de
cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consul-
tavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos.
Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começa-
ram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma
vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um
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beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse


coisas belíssimas, a respeito da realidade do Demônio,
do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela ex-
plicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo
também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se
levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera,
porém sua voz não subia do tom natural. O moço e a se-
nhora choravam juntos. (QUEIRÓS, 2007, p. 92, itálicos
nossos).

A Moralista era conselheira, consoladora dos
sofredores e repressora dos hábitos que viessem a estar
fora do padrão entendido como correto para a moral
e a religião professadas e defendidas. A postura da
personagem (cabeça levantada, dedo indicador esticado
como alguém em posição de desafiar ou de recomendar
algo) evidencia a superioridade dela em relação aos
demais sujeitos ficcionais, além de lembrar a figura típica
de indivíduos religiosos, como os profetas bíblicos, as
pessoas beatificadas que, segundo o imaginário regional,
eram respeitadas pelo povo e ditavam as maneiras
corretas de agir e se comportar. No fragmento, o exemplo
do jovem alcoólatra evidencia o poder de comoção que
ela provocava, modificando o comportamento de quem a
ouvia. Evidencia também um dado histórico, recuperado
por Matos (2003), das campanhas empenhadas para
diminuir o alcoolismo durante o período de urbanização
no Brasil da primeira metade do século XX; segundo a
historiadora, o alcoolismo era considerado uma endemia
brasileira e tamanha era a preocupação que se investia
de forma massiva na prevenção, através da proibição
direta (foi nesse período que surgiram as primeiras
formas de “Lei Seca”) e indireta, por meio da persuasão
e esclarecimento.

As pessoas do lugarejo a temiam e criam na
santidade da personagem, de maneira que levavam a
ela seus problemas para que eles fossem devidamente
encaminhados. Logo, a personagem ganha status de
santa e passa a “puxar o terço”, a fazer homenagens e
abençoar aniversariantes. Fundou-se, então, o “Círculo
dos Pais de Laterra” onde podiam ouvi-la: “Vinha gente
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de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam todos que ela


fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas
palavras confortava quem estivesse sofrendo. Várias
pessoas foram por ela convertidas.” (QUEIRÓS, 2007, p.
94). Assim, fica claro que a base para a construção dos
conflitos da narrativa parte de um reflexo de estereótipos
cristalizados no senso comum: mulher de boa índole,
caridosa e cujos conselhos são como ordens proféticas
para a vida dos outros.

Todos acreditavam na Moralista, exceto a filha:
Mentira: uma santa não daria aquelas risadinhas, uma
santa não se divertia, assim. O divertimento é uma es-
pécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só
ria e se divertia quando estávamos sós.[...] Penso que
meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu
não podia pensar que minha Mãe fosse um ser predes-
tinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão
claramente o seu modo de representar, que até sentia
vergonha. (QUEIRÓS, 2007, p. 93 e 94).

A descrença na imagem de virtuosa e de santa


imputada à mãe justificava-se pela visão que a filha
tinha sobre os sorrisos da progenitora. Nesse sentido,
a postura da filha traz à tona a visão medieval de que o
riso era uma atitude pecaminosa, com base na passagem
bíblica de Tiago 4:8-10: “Purificai as mãos, pecadores; e
vós que sois de ânimo dobre, limpai o coração. Afligi-vos,
lamentai e chorai. Converta-se o vosso riso em pranto,
e a vossa alegria, em tristeza. Humilhai-vos na presença
do Senhor, e ele vos exaltará.” A concepção da narradora
parece ser tão conservadora quanto a postura da mãe
em relação aos fieis que a procuravam.

Todavia, o que, com efeito, nos interessa nessa


narrativa é o surgimento de outra personagem. O enredo
do conto desvela mais detalhes sobre a vida da Moralista
e de seu poder de correção, quando foi enviado a ela
mais um caso de “pessoa transviada”:

— Hoje me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado.


Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
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me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre


chorou tanto, implorou... contando a sua miséria. É um
desgraçado! [...] Sabe que os médicos de Santo Antô-
nio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude.
Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para
você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que
dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade!
(QUEIRÓS, 2007, p. 93 e 94).

Essa personagem masculina passa a ser o foco


das atenções desse curto conto. Um primeiro aspecto
a ser percebido nele é a verbalização do sentimento de
infelicidade que o domina. A fala da Moralista menciona
“um rapaz viciado”, “desgraçado” e que, descontente
consigo mesmo, descontente com seu “vício”, a procurou
no intuito de ser “curado”. Há também o fato desse mesmo
sujeito ficcional já possuir um histórico de tentativas
de “cura do vício”, uma vez que “os médicos de Santo
Antônio não deram nenhum jeito”.

É então que o “problema” do rapaz começa a ser


verbalizado pela narradora: “parecia uma moça bonita.
Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava
sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os
recitava baixinho, limpando o balcão.” (QUEIRÓS, 2007,
p. 95). O fato de “parecer uma moça bonita” era o “vício”,
a “doença”, o “motivo” de o jovem estar em Laterra para
ser disciplinado pela Moralista.

Nesse aspecto, lembremos, por exemplo, as


considerações de Green (2000) sobre a ineficácia dos
tratamentos médicos em meados do século XX para
conter o comportamento efeminado (papel de gênero
que era, muitas vezes enganosamente, associado às
práticas “homossexuais”), uma vez que os casos eram
reincidentes e os indivíduos não deixavam de lado tal
comportamento.

Sendo a prática homoerótica, naquela época,


considerada um vício, daí na fala da protagonista “um
rapaz viciado” (QUEIRÓS, 2007, p. 94), as intervenções
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médicas eram realizadas, sem sucesso, por isso a


referência da personagem aos médicos que “não deram
nenhum jeito”.

Ainda conforme Green (2000), além de muitos homens
terem sido detidos por policiais e consequentemente
internados em hospitais e clínicas psiquiátricas ou mesmo
levados à força pelas famílias, alguns deles, por conta
própria – tão perturbados que estavam pela rejeição,
pelo medo da discriminação social, pela educação que
internalizara de maneira muito forte a ideia de que o
homoerotismo era pecaminoso, doentio e imoral –
buscavam auxílio médico, na crença de que sofriam de
um mal que precisava ser mudado.

Dessa mesma forma, podemos supor, pelas poucas


referências que o conto oferece, que a estória dessa
personagem anônima do conto de Queirós se assemelha
a desses sujeitos relatados por Green (2000). Assim
como eles, tomado pela insatisfação com o próprio
sentimento e comportamento, a personagem recorreu à
ajuda da Moralista. Todavia, o descontentamento não se
dava apenas na direção de si, mas muito mais, na reação
que os outros esboçavam diante dos trejeitos dele, como
iremos discutir mais à frente.

Sendo Laterra um local pequeno, a notícia do novo


morador se espalhou rápido, gerando comentários:
“Quando o souberam empregado de meu Pai — foram
avisá-lo: — Isso não é gente para trabalhar em casa
de respeito!” (QUEIRÓS, 2007, p. 95). Mesmo assim, o
objetivo era discipliná-lo e tirá-lo daquele comportamento
reincidente de efeminação, bem como fazê-lo circular nos
espaços sociais sem a discriminação reservada aos que
aderissem às práticas sexuais e de gênero não codificadas.
O preconceito e o rechaço partem de uma perspectiva
moralista: o homem homoeroticamente orientado ou
que nem deseja ter relações afetivo-sexuais com outro
do mesmo sexo, mas possui trejeitos efeminados não
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ocupa espaço na sociedade, sua presença não é tolerada


porque é imoral e desrespeitosa, é uma ofensa aos “bons
costumes”. Assim, o preconceito é materializado nessa
narrativa desnudando a discriminação que certamente
sofriam sujeitos homoeróticos na década de 1950, como
até nesse início de segunda década do século XXI é
costumeiro verificar.

O processo de mudança de seu comportamento não
era fácil:

O novo empregado começou o serviço com convicção,


mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha
jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais
tarde, os olhos vermelhos. Muitas vezes, Mamãe se tran-
cava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era
de repreensão. Ela o censurava, também, na frente de
meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade:
— Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e as-
sim, então... Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria,
decerto, ouvir: — Não há ninguém melhor do que você,
nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a
cabeça... Vamos! (QUEIRÓS, 2007, p. 95).

A convivência entre ele e os familiares da Moralista


era dificultosa, ainda mais porque eles sabiam que
aquele era um espaço de censura e de reprovação de seu
comportamento. As marcas do sofrimento da personagem
eram claras: a angústia – era tanta que não possuía
sequer vontade de se alimentar; a vergonha dos outros
o fazia esconder-se ou evitar aparecer frequentemente;
o choro derramado, daí os olhos vermelhos, pela dor
sentida.

Nesse aspecto, pode-se perceber duas visões sobre


a dor que sente o indivíduo que exerce a sexualidade
excêntrica: por um lado, a voz narrante tenta convencer
o leitor de que o sofrimento é causado pelo próprio
indivíduo, uma vez que é o comportamento desviante
que causa essa aflição. Por outro, fica clara a ideia de
que o sofrimento não decorre do próprio personagem,
mas do preconceito que ele sofre, do desrespeito pela
diferença, a dor de não ser aceito, de não ser amado, o
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que “gerava” nos sujeitos homoeroticamente orientados


muita tristeza.

As falas imperativas de correção não deixavam passar
o menor gesto. Como no trecho está dito, a postura das
mãos na cintura é, na visão geral da sociedade, uma
atitude típica de mulheres, portanto, não pode ser
realizada por homens. Da mesma forma, são tantas
outras que ordenam no intuito de padronizar muito bem
o binarismo heterossexual: “feche as pernas!” [para as
mulheres], “não chore! Homem não chora!”, “enfrente
isso como um homem!”, “fale direito, engrosse a voz!”
etc. Interessante notar que ao mesmo tempo em que o
repreendia, a Moralista enaltece-lhe as qualidades como
que para elevar sua auto-estima já bastante fragilizada.

Aos poucos, a mudança operada nele foi sendo cada dia


mais visível, pelo menos aparentemente:

E o moço passou muito tempo sem falhar nos janta-


res. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe.
Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne,
com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e
nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas,
como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos.
À hora da reza, ele, que era tão humilhado, de olhar
batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se
chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se
retirava depressa como fazia antes. E ficava num can-
to, olhando tranqüilo, com simpatia. Pouco a pouco eu
assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele
ficara menos afeminado. Seus gestos já eram confian-
tes, suas atitudes menos ridículas. Mamãe, que policiava
muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele
era um estranho. [...] Parece que não o doutrinava, não
era preciso mais. (QUEIRÓS, 2007, p. 95-96).

A mudança vai, paulatinamente, ocorrendo: “ficara


menos efeminado”; “atitudes menos ridículas”, “gestos
confiantes”. E essa modificação é filtrada positivamente
pela voz narrante, uma que vez não só os trejeitos
efeminados foram cessando, a reclusão não era mais
frequente, o jovem já participava dos rituais religiosos,
aparecendo em público, a falta de apetite cessara e os
olhos antes vermelhos por noites de choro e de sono
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perdido já não apresentavam mais aquela coloração. A


convivência maior e a consequente presença dele nos
espaços da família revelava que, embora fosse possível
conter determinados comportamentos efeminados,
as atitudes da personagem não escapam de uma
construção tipificada do sujeito homoerótico, uma
vez que estereótipo efeminado se reflete não só no
comportamento, mas os interesses e habilidades também
eram uma forma de demonstrar que até nos menores
detalhes, aquela personagem possuía sua singularidade,
vez que a narradora procura enfatizar os gostos do rapaz
de maneira irônica ou mesmo pouco convencional para
os rapazes da época ou para o universo masculino regido
por forte empatia machista: entendia de moda, fabricava
peças de artesanato.

Mesmo na casa da mulher mais admirada e
respeitada de Laterra, a presença do jovem incomodava
os moradores do lugarejo. Devido ao forte preconceito,
havia um mal-estar entre a população pela presença do
“jovem viciado”. Porém, no intuito de livrá-lo do “mal”
que o atingia, a Moralista relevava os comentários dos
demais moradores. Com a convivência, o rapaz passou
a ajudar a Moralista em tudo, a adorá-la como a um ser
superior e milagreiro:
Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto duro,
e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao
lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como
se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava a cida-
de. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre
a felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento,
algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente
para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. (QUEI-
RÓS, 2007, p. 96).

Os comentários dos moradores também refletem um


estereótipo: o perfil típico de lugarejos onde a maioria da população
especula sobre a vida do próximo, divulgando informações de
verdade duvidosa, isto é, a famosa fofoca que, pelo senso comum,
parece ser mais intensa em cidades muito pequenas. Esse aspecto
sobre a “língua” fofoqueira dos moradores de Laterra é abordada
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no conto em outros momentos: em um deles emergiu quando


da chegada do jovem rapaz “viciado” à casa da Moralista; outra
fofoca foi referente ao comportamento da senhora Moralista que
começara a ser apelidada de “padra” (feminino de padre, no
conto), o que a ofendeu: “— Já estão me chamando de ‘padra’...
Imagine! [...] — Eu não gosto disso. [...] Se continuarem com
essas histórias, eu nunca mais puxo o terço”. (Ibid., p. 93).

No fragmento anterior a esses, fica clara a ideia


de que havia um julgamento difamatório da relação da
Moralista e seu jovem em processo de moralização por
parte da população de Laterra. A disciplina resultante do
conselho, do cuidado e do consolo dado pela Moralista
acabou desenvolvendo tamanha admiração do moço
efeminado por ela que as pessoas já pensavam existir
um vínculo afetivo-sexual entre eles.

Diante dos comentários maldosos, a Moralista fica


ofendida e uma crise se instaura na família:
— Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A própria
mãe o considerava um perdido — chegou a querer que
morresse! Eu falo — porque todos sabem — mas ele hoje
é um moço de bem!
Papai foi ficando triste. Um dia, desabafou: — Acho me-
lhor que ele vá embora. Parece que o que você queria,
que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalha-
dor, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agrade-
cer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária!
— Mas — disse Mamãe admirada. — Você não vê que é
preciso mais tempo... para que se esqueçam dele? Man-
dar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um
pecado que eu não quero em minha consciência. (QUEI-
RÓS, 2007, p. 97).

A expulsão do rapaz era, então, a solução para


que a imagem de mulher íntegra não fosse ferida.
Nesse fragmento, é possível perceber alguns aspectos
sobre o jovem: da primeira para a segunda linha, lê-
se a fala da Moralista sobre a percepção que a mãe do
rapaz possuía dele como um “caso perdido”, desejando
até que ele “morresse”, prática comum na sociedade
patriarcal entre pais que não aceitavam o comportamento
efeminado (confundido ou implicado na narrativa como
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homoerotismo) nos filhos. Nesses casos, a discriminação


parte primeiramente dos familiares, esta possivelmente
mais dolorosa que o rechaço dos outros. Vemos como,
do ponto de vista psicológico, os sujeitos homoeróticos
sofrem por causa da má relação com a família, a ponto
de exilarem-se e sentirem-se culpados diante do que
sentem. Mott (2003, p. 24 citado por FACCO, 2009, p. 75)
afirma que “Não são raros os pais e mães que ‘repetem o
refrão popular – prefiro um filho morto do que veado!, ou
antes uma filha puta do que sapatão!”. Esse pensamento
se materializa através da menção da insatisfação da mãe
para com a personagem do conto que, depois de passar
pelas mãos da Moralista, tornara-se “homem de bem”.

A recusa em enviá-lo de volta à cidade de origem


denuncia o medo de que a discriminação volte a afligir
o rapaz que, embora “corrigido”, não havia sido de todo
esquecido por aqueles que não o aceitavam. O medo do
sentimento de culpa por parte da Moralista de ver o jovem
ser mais uma vez rejeitado e humilhado publicamente
também a faz mantê-lo em sua redoma, porém, numa
das conversas ocultas entre ele e a “suposta santa”, “ele
disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos
pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa,
desencantada.” (QUEIRÓS, 2007, p. 97). E depois, o
jovem fora expulso da cidade.

Devido à brevidade da narrativa e à vagueza dessa
passagem específica do conto, hipóteses são levantadas
pelo leitor após essa conversa não explicitada no texto:
teria o diálogo entre o jovem e a Moralista denunciado
que, de fato, havia certo interesse sexual e afetivo dele
para com ela? Teria o jovem, no diálogo, exposto que,
apesar das modificações em seu comportamento, ainda
permanecia o desejo homoerótico? Não há respostas
para essas questões. Está implícita apenas a ideia de
algo proibido que foi dito e que provocou a exaltação de
vozes e a consequente expulsão do rapaz do “círculo dos
pais de Laterra”:
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Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discre-


to de mocinha de colégio, desembocar pela noite. [...]
Ele não voltou para a sua cidade, onde era a caçoada
geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um
fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de
uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse al-
gum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados.
Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o
mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como um
judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão enorme
cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me
convenci de que Laterra toda respirava aliviada. (QUEI-
RÓS, 2007, p. 98).

A expulsão resulta em fato trágico para o personagem. A


imagem do morto é descrita de maneira sugestiva: pendurado
em uma velha mangueira, o jovem fora encontrado como um
“judas de cara de pano roxo” — a voz narrante faz questão de
enfatizar o estado do cadáver sem sensibilidade, numa espécie
de zombaria pelo sujeito ao compará-lo a um boneco de Judas,
remetendo a antiga tradição da malhação do Judas, ocorrida na
Semana Santa, quando, geralmente ao meio dia do Sábado de
Aleluia, um boneco era pendurado em um poste ou árvore para
ser espancado até estar destruído e em pedaços, simbolizando
uma punição ao responsável pela prisão de Cristo. Acreditamos
que essa associação no conto não é gratuita e, assim como o
Judas do Sábado de Aleluia, a morte do personagem configura a
materialização da punição pelo seu comportamento diferente e
não aceito pela sociedade. A voz narrante, além de conferir-lhe
essa concepção, ridiculariza a imagem do defunto e ainda afirma
que a cidade, agora, “respirava aliviada”.

A morte do personagem efeminado leva o leitor a inferir duas
possibilidades de causa: levando em consideração os comentários
maldosos dos moradores de Laterra, a conversa exaltada entre
ele e a Moralista e a consequente expulsão, teria a personagem,
em seu estado de angústia cometido suicídio? Ou, diante do mal-
estar que o rapaz causava em todo o corpo social intolerante,
metonimicamente configurado na população de Laterra, teria sido
enforcado por outros que não toleravam o jovem?

Para as duas hipóteses de leitura, confirma-se a


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ideia da intolerância e da discriminação ao rompimento


com o padrão de papel de gênero, geralmente esperado
para um individuo do sexo masculino: de si, no caso da
personagem não admitir nele mesmo a subjetividade
homoerótica; como afirma Castañeda (2008), o rechaço
do homoerotismo causou ao longo da história tanto
prejuízo para os sujeitos de sexualidade excêntrica que
a não-aceitação de si evocava a vontade de anular a si
mesmo, pois sem aceitação, a pulsão de morte prevalecia
e o suicídio foi, com efeito, a solução que muitos sujeitos
homoeróticos tomaram para a tristeza profunda que
os afligia. Ou no caso dos outros, que não admitiam a
presença daquele sujeito de comportamento efeminado
e, como também fora recorrente ao longo da história (e
até os dias atuais), o assassinaram, como única forma
de eliminar o que não se compreendia e não se tolerava.

Como afirmamos, trazendo à tona as descrições de
Green (2000), sobre as medidas tomadas em hospitais
e clínicas psiquiátricas que eram traumatizantes, quando
não fatais, para alguns indivíduos que viveram na primeira
metade do século XX, a “cura” era uma utopia social
diante da força cada vez mais desejante e pulsante do
homoerotismo nos indivíduos.

No conto de Queirós (2007), a disciplina para mudar o


comportamento efeminado da personagem homoerótica
é filtrado pela voz narrante como positiva para o sujeito,
porém o desfecho trágico da narrativa evidencia a
perturbação pela qual alguns sujeitos de sexualidade
excêntrica passaram ao serem submetidos a processos
de “cura” e de “disciplina” ou mesmo de rechaço do corpo
social que não os entende e, logo, faz da vida deles uma
verdadeira tormenta.

O desvio dos papéis de gênero, aqui, é configurado
através das linhas da impossibilidade, do proibido, da
imoralidade, e por isso, nas perspectivas moral, cristã
e médica deveria ser modificado, convertido, curado. A
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morte da personagem, por fim, pode ser entendida como


um desejo de aniquilar o indivíduo, a sua existência de
“mãos na cintura” e o seu jeito de “andar de mocinha
de colegial”. A morte era e é, com efeito, para muitos
ainda impregnados pelo discurso da heterossexualidade
compulsória, um “modo” de “curar” em definitivo o
homoerotismo.
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
158 julho a dezembro de 2013

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SocioPoética - Volume 1 | Número 10
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Fábulas sutis da diferença:


UMA LEITURA DEOLGA E CLÁUDIO, de Mário Cláudio

Jorge Vicente Valentim (UFSCar)1*

RESUMO: O presente ensaio propõe uma análise de Olga e Cláudio, do escritor


português Mário Cláudio, a partir do conceito de leveza, proposto por Ítalo
Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio. Numa releitura das
antigas fábulas, Mário Cláudio tece um texto rico de referências culturais e
sem a necessidade imediata de um final moralizador, posto que a insinuação
homoerótica comparece para enfatizar o respeito à diferença como o aspecto
fundamental para se pensar de maneira sensível as subjetividades das relações
humanas.

PALAVRAS-CHAVE: Leveza – diferença – ficção portuguesa – Mário Cláudio.

ABSTRATC: This paper proposes ananalysis of Olga e Claudio, by the Portuguese


writer Mário Cláudio, from the concepto flightness, proposed by Italo Calvino, in
Seis propostas para o próximo milênio. In a rereading of the ancient fables, Mário
Cláudio weaves a rich cultural references text and with out the immediateneed
for a moralizingend, because the homoerotic insinuation appears toem phasize
the respect for the difference as a fundamental aspect to think sensibly the
subjectivities human relations.

KEY WORDS: Lightness – difference – Portuguesefiction – Mário Cláudio.

RÉSUMÉ: Cet article propose une analyse de Olga e Claudio, ouvre de l’écrivain
portugais Mário Cláudio, en partant de la notion de légèreté, proposé par Italo
Calvino, dans le Seis propostas para o próximo milênio. Relecture des fables
antiques, Mário Cláudio tisse une texte riche de références et sans la nécessité
immédiate d’une fin moralisatrice, depuis les insinuations homoérotiques semble
mettre l’accent sur le respect de la différence commel’aspect fondamentale de
penser raisonnablement des subjectivités dans las relations humaines.

MOTS-CLÉS: Légèreté – différence – fiction portugaise – Mário Cláudio.

1 *Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa) pela Universidade


Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Professor Adjunto de Literaturas de Língua
Portuguesa (Sub-áreas: Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa) do Departamento de Letras da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar), Professor Credenciado do Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Literatura (PPGLit/UFSCar) e Professor Colaborador do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP/Araraquara. O
presente ensaio é fruto de pesquisa de Pós-Doutorado Sênior, realizada na
Universidade do Porto, sob a supervisão da Profa. Dra. Isabel Pires de Lima,
com bolsa CAPES.
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Este texto é para Theresa Abelha, como


gratidão singela por, num dia, na paisagem
lisboeta, me ter apresentado dois gatos e seu autor.
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Como Narrativa (Romance, Paixão), o amor é uma histó-


ria que se cumpre, no sentido sagrado: é um programa
que deve ser percorrido.
ROLAND BARTHES. Fragmentos de um discurso amoro-
so.

Na sua primeira lição, em Seis propostas para o


próximo milénio, Italo Calvino lança mão do mito de
Perseu para tentar defender e justificar a necessidade do
escritor em lidar com a realidade, mas não a encarando
de modo direto. Como o herói grego, o homem parece
também desenvolver uma “recusa da visão direta”
(CALVINO, 2006, p. 19) sobre os objetos observados,
mas sem operar uma “recusa da realidade do mundo”
(CALVINO, 2006, p. 19) e dos seus monstros, impecilhos
e contrariedades.

Ou seja, não se trata de não observar, mas escolher


os meios mais adequados para realizar a percepção e a
captação do mundo, procurando encontrar uma espécie
de equilíbrio entre “o movimentado espectáculo do
mundo” (CALVINO, 2006, p. 17) e o ritmo particular
impulsionador do ato criador. Somente diante da
descoberta da opacidade do mundo, o escritor sente-se
capaz de criar métodos eficazes para dela fugir, mas não
numa recorrência alienadora, posto que não se trata de
negar o presente, recolhendo-se numa redoma protetora
e comodamente isolada das questões externas. Ao
contrário, trata-se de uma consciencialização plena do
“peso insustentável” (CALVINO, 2006, p. 21), desvelado
a partir da própria concepção de leveza. Como na lição
percebida pela leitura do mito, Ítalo Calvino conclui como
a leveza pode se constituir num instrumento pertinente
na criação ficcional. Para o ensaísta italiano,
Nas alturas em que o reino do humano me parece mais
condenado ao peso, penso que como Perseu deveria
voar para outro espaço. Não estou a falar de fugas para
o sonho ou para o irracional. Quero dizer que tenho de
mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mun-
do a partir de outra óptica, outra lógica, e outros méto-
dos de conhecimento e de análise. As imagens de leveza
que procuro não deverão deixar-se dissolver como so-
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nhos pela realidade do presente e do futuro… (CALVINO,


2006, p. 21).

O gesto criador alicerça-se, portanto, não numa


negação da realidade, mas numa forma outra de a
observar, perceber e recriar, desviando-se assim do peso,
da irracionalidade, da inércia e da opacidade do mundo.
Daí a lição calviniana em perceber as possibilidades de
leitura oferecidas pelo universo literário, seja na recusa
de tendências que escalpelem o projeto original de
criação, seja na exploração de novos e/ou tradicionais
estilos e formas.

Interessante observar que esta proposta de leveza,


enquanto típico atributo das narrativas do fim de milénio,
na concepção de Italo Calvino, pode constituir um dos
protocolos de leitura do texto de Mário Cláudio, em virtude
do próprio autor valer-se deste recurso na construção
efabulatória de Olga e Cláudio. Aparentemente, o texto
apresenta todas as configurações de uma fábula, na
medida em que o narrador propõe contar a trajetória
dos dois protagonistas homónimos ao título: “uma gata
e um gato que vivem em Veneza e em Lisboa, cada qual
em sua cidade” (CLAUDIO, 1984, p. 3).

Colocados em diferentes países, a distância geográfica


constitui o primeiro tópico diferenciador dos dois gatos,
capaz de contribuir para a distinção de comportamentos
e traços físicos entre eles, afinal, como as “cortesãs de
Carpaccio” (CLAUDIO, 1984, p. 7), Olga é descrita como
uma “tigrina lânguida” (CLAUDIO, 1984, p. 7) e robusta,
enquanto Cláudio assume uma postura mais marialvista
e tipicamente portuguesa ao estar “constantemente
disposto à luta e à escapada nocturna” (CLAUDIO, 1984,
p. 5). Ora, levando em conta a definição de que a fábula
constitui uma “narrativa ficcional” em que “animais ou
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objetos inanimados são os protagonistas”2 (CARPENTER


& PRICHARD, 1987, p. 173), não restam dúvidas de que
as articulações dos dois protagonistas permitem afirmar
que Olga e Cláudio se trata de um texto em plena
sintonia com o gênero das fábulas. No entanto, sem
esbarrar em modelos repetitivos desta categoria, cujos
rastros remontam aos alicerces deixados por Esopo e
continuados por La Fontaine, Mário Cláudio aposta numa
reformulação da fábula, no sentido de que não reincide
em finais moralizadores ou sobre estes reivindica uma
importância causal. Antes, vale-se da premissa de aludir
a “realidades e a situações humanas”, transferindo “para
os animais as qualidades e os sentimentos humanos”
(BARRETO, 2002, p. 187).

E tal postulação ocorre em virtude de Olga e Cláudio


serem apresentados como seres espacialmente distantes,
fisica e comportamentalmente distintos, reivindicando
para a sua relação, estabelecida no obstáculo da
separação geográfica, o estatuto de uma autêntica
“história de amor” (MARQUES, 1991, p. 11). No entanto,
esta distância emergida na presença das ausências de
cada um acaba por desvelar o laço especular existente
entre os protagonistas e os seus donos, na medida em
que o universo exclusivamente animal, requerido pela
composição da fábula, cede espaço para a articulação
das vozes e do pensamento criador dos donos dos gatos.

Na concepção de Maria Theresa Abelha Marques


(1991)3, a ligação entre Manuel e Giovanni, donos de

2 “Fable, a fictitious narrative; the term is used especially of stories in which


animals or inanimate objects are the protagonists. As with parable and
allegory, there is a meaning hidden beneath the surface of the tale, and
the intention is usually to make some comment, often satirical, on human
conduct” (CARPENTER and PRICHARD, 1987, p. 173; versãominha para a
lingua portuguesa).
3 Reporto-me, aqui, à belíssima análise deste texto de Mário Cláudio feita
pela ensaísta brasileira. Por mais de uma vez, vou referendar o seu trabalho,
não no sentido de repetí-lo, mas na perspectiva de mostrar a viabilidade de
leitura de Olga e Cláudio, a partir do pressuposto calviniano.
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Cláudio e Olga, respectivamente, integram o universo


periférico e marginal dos homens das artes, cujo objeto
primordial e motivador de criação é o amor. Ao dar a
Manuel o ofício de “poeta distraído [...] que preenchia
tiras e tiras de almaço em letra espessa, tocava alaúde
às tantas da madrugada, o que fazia para espantar os
vizinhos e os fantasmas do sótão” (CLAUDIO, 1984, p.
7), e a Giovanni o de “pintor maluco, [...] de grande
crina desgrenhada, de quem muitos se temiam por o
reputarem dissecador de cadáveres e consultor de Tarot,
outros se escandalizavam porque pousava nu perante
lentes e câmaras, de janela descerrada para a brisa da
laguna” (CLAUDIO, 1984, p. 9), ou seja, de artistas da
palavra e das cores, Mário Cláudio estaria estabelecendo
um pacto intertextual de ancestralidades e orientações
estéticas, na medida em que “a obra de um festeja o
encontro amoroso dos sons e sentimentos, a do outro
celebra a erotização plástica da natureza. A excentricidade
dos artistas que repousa no ludismo, fá-los encontrarem
os seus ancestrais” (MARQUES, 1991, p. 11). Destarte,
D. Diniz, por parte de Manuel e pelo olhar de Cláudio,
e Leonardo da Vinci, por parte de Giovanni e pela
perspectiva de Olga, são convocados intertextualmente
pelos gestos das personagens, criaturas fabulares
da mão engenhosamente articuladora do seu criador
ficcional. São referências artísticas que se cruzam com
Vasco da Gama e Marco Polo, ou seja, outras duas de
ordem cultural e histórica, estabelecendo os contextos e
os espaços de origem e de fala de cada um deles:
Cláudio via pelas grades da varanda passar o marinheiro
Vasco da Gama, de braço dado com a fadista Amália,
explicando os ventos alísios e zombando das pantufas
de Calicute.
Cobriam-se as colinas de casas que trepavam até o céu
muito azul, parecendo pintadas a giz ou a polpa de pês-
sego.
Nas margens do canal Olga surpreendia Marco Polo, am-
parando o passeio da milionária Peggy, narrando o faus-
to do Grão-Khan ou comentando o preço dos cavalos.
Brilhavam ao sol os zimbórios redondos, um bando de
pombas como um lenço escurecia o pavimento das pra-
ças (CLÁUDIO, 1984, p. 9-11).
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Num instigante entrecruzamento de referências


culturais, artísticas e literárias, estabelece-se um pacto
entre animais e humanos e uma troca entre gestos
paticulares dos atos criadores. O gato do escritor exerce
agora a ação típica do pintor, qual seja, a de ver das
“grades da varanda” todo um cenário de inferências
culturais passadas e presentes (Vasco da Gama e Amália
Rodirgues), descritas por índices pictóricos muito fortes
e evidentes (“o céu muito azul, parecendo pintadas a giz
ou a polpa de pêssego”). Por sua vez, a gata do pintor
surpreende o navegador italiano num gesto mais próximo
do trabalho do escritor português, visto que Marco Polo
comparece narrando e comentando, num cenário cuja
descrição da paisagem acentua a musicalidade poética,
a partir da articulação entre as consoantes bilabiais /p/ e
/b/, numa espécie de sinfonia estilística (“Brilhavam ao
sol os zimbórios redondos, um bando de pombas como
um lenço escurecia o pavimento das praças”).

Nesta conjunção harmônica de pactos, inferências e


diálogos, o gato espectador e a gata ouvinte permutam
experiências estéticas, da mesma forma como os seus
donos trocam informações e referências dos seus objetos
inspiradores nas “cartas frequentes, dando conta de
suas maravilhas” (CLAUDIO, 1984, p. 15). Cada um, a
partir de sua urbes, passa a relatar os meandros de suas
respectivas poiésis, suscitando uma espécie de inversão
da orientação platônica de afastamento do poeta do
espaço da cidade4. Ao contrário do que imaginara o
filósofo grego, Mário Cláudio aposta numa releitura na
contramão deste isolamento dos homens das belas letras,
ao forjar duas criaturas que, à sua maneira, confessam

4 É bem conhecida a crítica tecida por Platão sobre o carater mimético da


poesia e a sua interferência pouco produtiva na construção de uma Polis
ideal. Segundo o filósofo, sobretudo emA República (Livro X, 595a a 621d),
para se chegar a esse grau de perfeição, tanto os poetas (os artífices e
imitadores da realidade) quanto os seus versos (entendidos como simulacros
de realidades) deveriam ser reconsiderados quando da tentativa de se chegar
a uma consciência e compreensão plena do mundo, dos homens e dos objetos.
Mais detalhes, conferir PLATÃO (1993, p. 451 e subsequentes).
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julho a dezembro de 2013


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uma a outra os recursos e as perspectivas utilizadas para


a concretização do fazer artístico, revelando o simulacro
de um mundo que não pode se afastar do contexto em
que se encontram inseridas, nem desprezar os outros
agentes e partícipes da aventura do amor e da vida a que
estão sujeitas. Dentre estes, elegem os seus gatos como
integrantes dos seus universos, metáforas também que
são deste amor partilhado pela vida e pela arte:
Manuel caríssimo,
Desenhei o rosto de três velhos, uma criança, uma lava-
deira, na cadência vagarosa dos versos heroicos. Olga,
laBella, caçou uma ratazana á saída do esgoto. Granbac-
cione, Giovanni.

Caro Giovanni,
Compus a quadra das quatro cores, com o primeiro ver-
so azul, o segundo vermelho, o terceiro violeta, o quarto
cor-de-rosa muito vivo. Claudio, o Malandrete, mijou na
tola dum polícia-de-giro. Grande abraço. Manuel (CLAU-
DIO, 1984, p. 17-19).

Se antes os gatos trocaram e experienciaram entre


si os gestos dos seus donos (o gato do escritor viu e
a gata do pintor ouviu uma narração), agora, são os
próprios donos que, numa relação especular entre si
e os seus ofícios e entre os gestos dos seus bichanos,
passam a perceber o mundo de uma outra forma, para
além daquela que as suas artes possibilitam. Destarte,
o pintor vislumbra uma paisagem cotidiana com suas
personagens mais comuns, cercadas porém de uma
“cadência vagarosa dos versos heróicos”, enquanto que
o escritor compõe versos marcados pela presença de
uma gama policromática, até atingir o ápice de um “cor-
de-rosa muito vivo” (grifos meus), conforme pode ser
observado na citação anterior.

Interessante observar que, na correspondência


trocada entre os dois amigos, também os gatos passam
a estabelecer vínculos de ligação entre si e entre os seus
donos, posto que cada um dos animais, na ausência dos
donos, vasculham ascartas procurando nelas perceber
a presença deles, mas também a do outro que amam e
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168 julho a dezembro de 2013

cuja presença desejam sentir. Destarte, se entre Manuel


e Giovanni, a troca efetua-se na tentativa de suprir a
falta e a arte ausente do outro – não serão eles que
perceberão o mundo com o toque e as tonalidades da
pintura e da poesia? –, também entre Cláudio e Olga,
as linhas parecem preencher os anseios que o corpo de
cada um procura. Nesta transferência típica do gênero
das fábulas (BARRETO, 2002), Mário Cláudio aposta
numa articulação de situações afetivas, onde, por trás do
amor pandêmico entre dois bichanos (Olga e Cláudio),
esconde-se levemente – e refiro-me, aqui, ao recurso
apontado por Ítalo Calvino – o amor homoerótico entre
dois homens (Mário e Giovanni)5. Mas, ao tratar de tema
tão delicado e complexo, Mário Cláudio opta exatamente
pela fuga dos lugares-comuns ao não incidir sobre sua
fábula qualquer sentido de moralidade conservadora,
antes, prefere a leveza, aquela forma de “desvios
imprevisíveis da linha reta” (CALVINO, 2006, p. 23), de
fugir do peso e da opacidade que o tema poderia fazer
incorrer sobre a sua narrativa, ao afirmar de maneira
genérica e ambiguamente especular: “E vivam um do
outro” (CLAUDIO, 1984, p. 23). Esta sentença, colocada
isolada numa folha em branco, sem imagens, parece
indicar um meio de percurso, onde as trajetórias se
confundem e se entrecruzam, tanto as dos gatos quanto
as dos seus donos.

Assim, entre Veneza e Lisboa, as trocas consolidadas


entre os ofícios artísticos estabelecem uma espécie de

5 No estudo já aqui referido, Maria Theresa Abelha Marques (1991) enfatiza o


jogo especular entre animais e seres humanos, a partir de uma articulação
do amor pandêmio existente entre Olga e Cláudio com o amor urânio, ou, na
esteira de Platão, o amor filerasta. Neste caminho de leitura, prefiro perceber
a presentificação de um amor homoerótico, ainda que estreitamente velado e
mascarado nas ambiguidades discursivas do narrador, na relação afetiva dos
dois artistas.
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julho a dezembro de 2013


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diálogo ekphrástico6, no sentido de cada arte passa agora


a conviver com a outra, num jogo retórico descritivo
onde as cores e os sons se misturam, sem hierarquias
e sem fronteiras separadoras, antes, os empréstimos
convocados contribuem não só para a percepção de mundo
de cada um deles, mas também para a compreensão
das ausências que, antes pressentida pela troca de
correspondências, passam a ser diluídas pela presença
do outro a partir daquilo que utiliza para manipular os
seus objetos artísticos. Na esteira de Roland Barthes
(2010), pode-se inferir que, entre Manuel e Giovanni, vai
se construindo assim uma espécie de amor feito entre
“óculos escuros” (BARTHES, 2010, p. 121), num jogo
salutar de ocultamentos e desvelamentos entre máscaras
construídas pelos gestos estéticos e jogos paradoxais
alicerçados na essência contraditória da paixão.

Tem razão, portanto, Maria Theresa Abelha Marques,


quando afirma que
A correspondência entre Manuel e Giovanni nasce do
reconhecimento de que descobrir o outro é explorar a si próprio,
é desvendar as comuns “maravilhas”, é o modo pessoal de
esperar e urdir racionalmente a esperança, de estabelecer
uma relação que gravita em torno de um único enunciado que
sofre variações [...]. Eros e logos se conjugam no discurso
da ausência do amigo como referente, mas na sua presença
como interlocutor (MARQUES, 1991, p. 11).

Ou seja, pela arte, cada qual vai devassando o


universo alheio, numa intensa necessidade de “fazer
o amor fluir para além da parede de suas identidades
irremediavelmente confundidas” (MARQUES, 1991, p.
11). Dos gatos aos donos, vai se estabelecendo nas
malhas do texto uma relação de amizade que extrapola

6 Entendido como um recurso artístico, para Edward Lucie-Smith (1995),


a ekphrasisconstitui uma “descrição de uma obra de arte, que poderá ser
imaginária, subentendida como um recurso retórico” (1995, p. 76). Roland
Barthes dá uma amplitude ao emprego da expressão, ao defini-la como “um
fragmento antológico, susceptível de ser transferido de um discurso para o
outro: descrição regulada de lugares, de personagens” (LUCIE-SMITH, 1995,
p. 34).
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os laços de um amor ágape, onde a sutileza, ou melhor


dizendo, a leveza parece ser o instrumento estético das
mãos criadoras de Mário Claudio para fugir da própria
opacidade e do peso que o tema do amor homoerótico
poderia suscitar num texto de curta extensão e
pretensamente dirigido a um público leitor mais jovem
e teoricamente menos experimentado nas virtudes das
paixões.

Faz valer-se, portanto, do jogo especular do amor de


dois animais, que passam agora a estabelecer um vínculo
reflexo com os vínculos fundados entre seus donos, para
neles situar a ambiguidade dos laços afetivos narrados:
Cartas e mais cartas receberam e mandaram os dois
amigos.
Em todas Olga e Claudio sabiam de seu amor.
E o tempo corria sobre as duas cidades, sobre Manuel e
Giovanni (CLAUDIO, 1984, p. 31).

De qual amor sabiam os gatos? Do deles próprios ou


dos dois amigos, que estreitavam a (homo)afetividade
pelas cartas trocadas? E se a história que o narrador
se propõe contar funda-se entre uma gata e um gato,
“cada qual em sua cidade” (CLÁUDIO, 1984, p. 31),
também entre os seus donos o cenário continua sendo o
mesmo, porque é nele que os reflexos se estabelecem e
contribuem para a ambiguidade e a leveza da construção
da trama. Se, definitivamente, “o tempo corria sobre
as duas cidades, sobre Manuel e Giovanni”, sem uma
indicação exata do que ocorrera ou poderia ter acontecido
no desfecho dos dois amigos, a ação inexorável daquele
faz-se sentir explicitamente sobre os animais: “Gato e
gata são agora muito velhos” (CLÁUDIO, 1984, p. 33).

Tem razão, portanto, Joaquim Matos, ao chamar a


atenção para o “tratamento alegórico, de intimidades que
se querem suspensas na penumbra. Mas, espantoso, à
superfície de tal película, uma luz se acende e torna a
leitura acessível a qualquer idade, no sabor da fábula,
com um gato e uma gata, símbolos de humanos” (MATOS,
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2004, p. 58, grifos meus). Se usando um tempero


singular na criação de sua fábula, Mário Cláudio consegue
sugerir de maneira sensível os laços homoeróticos que
envolvem a relação entre o pintor e o poeta, sem se
desvencilhar de suas criaturas felinas, espécie de reflexos
especularesda relação dos dois artistas,não poderia ser
outro o final, a não ser deixar em aberto um desfecho
possível de união, que também reverberasse a mesma
singularidade do pacto unificador entre Olga e Cláudio.
Assim, do mesmo modo como os dois bichanos “são
agora muito velhos”, não poderiam ser também os seus
donos? Afinal, o mesmo tempo que “corria sobre as duas
cidades” (CLÁUDIO, 1984, p. 33),e que causava a velhice
das criaturas felinas, era o que também atuava sobre as
trajetórias de Manuel e Giovanni.

Tal ausência de informação específica sobre os


dois homens, no desfecho da trama, pode até sugerir
uma tragicidade típica dos amores homoeróticos, como
apontara Peter Gay (2000) em certos textos ficcionais
ingleses marcados por uma tristeza irremediável, mas,
por outro, em Olga e Cláudio,é a repetição do mesmo
gesto narrativo, de terminar por onde se iniciara o fio
da trama, que acaba por quebrar não só o peso da
separação geográfica, mas também a opacidade que
a corrosão inevitável do tempo causa sobre os corpos.
Talvez, por isso, como Manuel e Giovanni, habitantes de
urbes diferentes, também os bichanos permanecem nos
seus locais de origem, conforme enunciados no início
da trama. Mas, apenas repetir também poderia incorrer
numa opacidade do próprio discurso poético, daí que
a artimanha criadora de Mário Cláudio invista numa
articulação diferenciada, como se o leitor estivesse diante
de uma peça de tema e variações; afinal, o desfecho é
próximo, mas não exatamente o mesmo que o início.

Se Maria Theresa Abelha Alves Marques vê na tessitura


deste texto uma espécie de incontida “arte de emocionar
o espaço” (MARQUES, 1991, p. 11), e onde “os bichanos
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da fábula convidam as crianças de oito a oitenta anos a


viverem esta felicidade” (MARQUES, 1991, p. 11), gosto
de pensar que toda esta gama de sentimentos surge
desperta graças à articulação daquela mesma leveza
de que nos fala Ítalo Calvino (2006). Isto porque, como
um reflexo daquele diálogo ekphastico dos gatos e dos
seus donos, também o narrador-poeta do texto de Mário
Cláudio vai encontrar o olhar narrante e poético da artista
plástica Maria António Pestana. Ambos, conjugando a
poiésis das palavras e das imagens, contribuem para
criar aquela “poesia do invisível, a poesia das infinitas
potencialidades imprevisíveis” (CALVINO, 2006, p. 23).

Publicado em Portugal, em 1984, ou seja, num contexto de


franca requisição da liberdade de ser homossexual, num momento
em que textos ficcionais, poéticos e ensaísticos começam a surgir,
abordando o tema abertamente – e confiram-se, neste caso, os
exemplos significativos de Jorge de Sena, Guilherme de Melo e
Natália Correia, apenas para ficar entre três nomes reconhecidos
publicamente7 –, Mário Cláudio toma um outro caminho de
tratamento temático, escapando, inclusive, da opacidade de
esquematismos panfletários, do peso de reivindicações político-
partidárias e da inércia dos discursos pedagogizantes, presente
muitas vezes na literatura para o público infantil.

Trata-se de uma maneira muito sutil, ambígua e


calvinianamente leve de tratar o tema, garantindo, acima
de tudo, nos jogos especulares entre gatos e artistas,

7 Quando Mário Cláudio publica Olga e Cláudio, em 1984, Portugal vivia uma
emergência de discussão temática das subjetividades sexuais, sempre
relegadas a um nicho marginal, dentro da intelectualidade portuguesa. Em
1979, ou seja, quatro anos depois da Revolução dos Cravos, vem à lume o
romance Sinais de fogo, de Jorge de Sena, uma das obras cimeiras em termos
de representação e discussão franca e direta sobre a homossexualidade. Em
seguida, em 1982, Guilherme de Melo publica Ser homossexual em Portugal,
trabalho de cunho jornalístico, onde o reconhecido escritor sublinha a
necessidade de se compreender e respeitar as diferenças, independentemente
de raça, origem, posição social e ocupação; e também Natália Correia publica,
em forma de ensaio, no Jornal de Letras, Artes e Idéias, a sua conferência
“Homossexualidade, mito e magna mater”, um dos textos mais pontuais
sobre as diferentes subjetividades e expressões da homossexualidade.
SocioPoética - Volume 1 | Número 10

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nestes “desvios imprevisíveis da linha recta” (CALVINO,


2006, p. 23) do discurso literário, uma inequívoca
“liberdade tanto da matéria como dos seres humanos”
(CALVINO, 2006, p. 23) em poder expressar as suas
versões afetivas. Esta pulverização do dizer abertamente
não significa necessariamente o assumir uma posição
alienante ou afastada do tema, muito pelo contrário,
posto que, ao optar pela leveza do como dizer o que
precisa ser dito, o escritor português consegue articular
um texto capaz de verbalizar o amor homoerótico sem o
peso das reivindicações ideológicas que o assunto tanto
requeria nos anos de 1980 e 1990.

A aposta do autor reside, portanto, numa escrita que


preza pela leveza, nos contornos apontados por Italo
Calvino (2006), reicidindo naquela dupla discordância de
construção do texto a partir da ambiguidade, conforme
sublinhado por ZoharShavit (2003). Segundo ela, a
opção pela escrita de um “texto ambivalente” oferece
ao autor “um leque maior de opções de manipulação do
que um texto univalente” (SHAVIT, 2003, p. 100). Isto
significa que o escritor tem a possibilidade de fugir tanto
dos modelos requeridos pelo sistema infantil, quanto
dos exemplos aceites nos textos para o leitor adulto.
Penso, nesta perspectiva, que, efetuando esta dupla
discordância, Mário Claudio situa a amplitude de criação
de Olga e Cláudio, fazendo com que a extensão curta e a
aparente simplicidade da trama sugiram um afastamento
da literatura para um público mais experiente, ao mesmo
tempo que a ambiguidade, a sutileza dos seus animais
e a leveza (calviniana) do discurso ficcional constituam
instrumentos significativos para uma saudável
inadaptação às soluções fáceis praticadas e pedidas pelo
mercado editorial dos leitores mirins?

Destarte, o não enquadramento exclusivo num único


modelo permite que Olga e Cláudio tenha uma “aceitação
simultânea por ambos os sistemas” (SHAVIT, 2003, p.
100), daí a conclusão de Maria Theresa Abelha Marques
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
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de que esta obra de Mário Cláudio constitui um “pequeno


grande livro que objetiva o público infantil, mas convida
o leitor adulto ao sonho” (MARQUES, 1991, p. 12). Trata-
se, portanto, de um texto que circula tanto entre leitores
infantis, ou mais jovens, quanto adultos.

A sutileza dos seus animais, a ambiguidade na


representação discursiva dos jogos apaixonados e
especulares entre os seus agentes e a leveza no
tratamento do tema do amor homoerótico permitem
colocar este texto de Mário Cláudio em sintonia com a
análise que faz, por exemplo, José António Gomes da
obra A nuvem cor de rosa, de Arsénio Mota, posto que
naquele, também, o leitor defronta-se com

[...] a crença no poder evocativo da palavra, o sentirmo-


nos, quase sempre, perante narradores que nos surgem
mais facilmente dominados pelo poder encantatório do
seu próprio discurso que pela diegese que têm em pro-
grama. Tal atitude deixa-se entrever especialmente em
textos em que é notório o investimento na inesgotável
sugestividade poética da descrição (GOMES, 1991, p.
46).

Da sugestão à leveza, Mário Cláudio operacionaliza,


em Olga e Cláudio, uma poética de dizer o amor entre
iguais, sem o contágio de conservadorismos deturpadores
e sem a opacidade das dificuldades impostas por um
modelo facilitador e superficial. A sua concepção criadora,
em consonância com a perspectiva da artista plástica
Maria Antónia Pestana, corrobora a lição deixada por
Ítalo Calvino, qual seja, a da “literatura como função
existencial, a procura da leveza como reacção ao peso
de viver” (CALVINO, 2006, p. 42).

Se o seu texto não repete abertamente a fórmula “E


foram felizes para sempre”, de certo isto decorre do fato
de que, apreendendo a lição barthesiana do romance e da
paixão, ele compreende o amor vivido pelo poeta como
algo que, realmente, se cumpre “no sentido sagrado:
é um programa que deve ser percorrido” (BARTHES,
2010, p. 117). No entanto, neste percurso, não cabem
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repetições imediatistas e fáceis, em virtude da consciência


do encantamento suscitado pela própria trajetória dos
sujeitos oitocentistas recuperados. Ao longo de suas
linhas, aquela possibilidade de final transparece, de certo
modo, já antecipada e a cargo do leitor que, diante de
duas páginas em branco, pode também pintar ou arriscar
o seu desfecho ou a sua sequência, com a expressão –
ou será o verso poético? – que celebra tanto o amor
entre os gatos, quanto o jogo apaixonado desenvolvido
pelos dois artistas. Afinal, seja entre Olga e Cláudio, seja
entre Giovanni e Manuel, o leitor certamente poderá
ambiguamente dizer: “E viviam um do outro” (CLAUDIO,
1984, p. 25).
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARRETO, António Garcia. Dicionário de literatura infantil


portuguesa. Porto: Campo das Letras, 2002.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad.:


Isabel Pascoal. Lisboa: Edições 70, 2010.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milénio (Lições


americanas). 5. ed. Trad.: José Colaço Barreiros. Lisboa: Teorema,
2006.

CARPENTER, Humphrey & PRICHARD, Mari. The Oxford Companion


to Children’s Literature. Oxford : Oxford University Press, 1987.

CLÁUDIO, Mário. Olga e Cláudio. Porto: Afrontamento, 1984.

GAY, Peter. A experiência burguesa: da rainha Vitória a Freud.


Trad.: Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

GOMES, José António. Literatura para crianças e jovens. Alguns


percursos. Lisboa: Caminho, 1991.

LUCIE-SMITH, Edward. Dicionário de termos de arte. 2ª. edição.


Trad.: Ana Cristina Mântua. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

MARQUES, Maria Theresa Abelha Alves. “Olga e Cláudio: um


encomiona Eros”. In: Letras & Letras. no. 50, 03 de julho de 1991,
p. 11-12.

MATOS, Joaquim. Mário Cláudio: ficção e ideário. Porto: Edições


Caixotim, 2004.

PLATÃO. A República. 7ª. Edição. Introdução, tradução e notas


de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993.

SHAVIT, Zohar. Poética da literatura para crianças. Trad.: Ana


Fonseca. Lisboa: Caminho, 2003.
SocioPoética - Volume 1 | Número 10

julho a dezembro de 2013


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A homOAFETIVIDADE FEMININA em
Lygia Fagundes Telles

Carlos Magno Gomes (UFS)1

Resumo: Este ensaio apresenta um estudo sobre a identidade sexual homoerótica


na ficção de Lygia Fagundes Telles em seu primeiro romance, Ciranda de pedra
(1954), e no conto “Uma branca sombra pálida”, da coletânea A noite escura mais
eu (1995). Respectivamente, essas narrativas questionam o conservadorismo
da sociedade brasileira por meio da exploração do homoerotismo feminino
como transgressão identitária. Metodologicamente, exploramos conceitos de
identidade propostos por Judith Butler e Guacira Louro. Essas teóricas dialogam
quanto ao fato de essa identidade ser vista como uma forma de oposição e
resistência ao padronizado.

Palavras-chave: homoerotismo feminino, romance de formação, identidade.

THE FEMALE HOMO-AFFECTIVE


IN LYGIA FAGUNDES TELLES

Abstract: This paper presents a comparative study between the homo-affective


space in the works Ciranda de pedra (1954) and “Uma branca sombra pálida”
(1995), by Lygia Fagundes Telles. When describing female homo-affective
relations, this author question the conservative moral of the Brazilian societie.
Methodologically, we explore concepts of homosexual identity, proposed by
Judith Butler and Guacira Louro, who emphasize that sexual identity as a form
of feminine opposition and resistance.

Keywords: female homoeroticism, apprenticeship novel, identity.

1 Professor de Teoria Literária e Literaturas da UFS. Doutor em Literatura pela


UnB (2004), com pós-doutorado em Estudos Literários, pela UFMG (2013).
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178 julho a dezembro de 2013

Na literatura brasileira, a homoafetividade feminina


possui um discreto lugar, pois, quase sempre, fica restrita
a estereótipos que aprisionam mulheres a imagens
masculinizadas ou a seres assexuados. Essas marcas
são comuns a personagens andróginos, que transitam
entre os comportamentos masculino e feminino e são
vistos como excêntricos como nos contos “O corpo”
(1973), de Clarice Lispector, “Tigrela” (1977), de Lygia
Fagundes Telles, ou nos romances As parceiras (1980),
de Lya Luft, e Vozes do deserto (2004), de Nélida Piñon.
Essas representações rejeitam a premissa da solidez
da identidade que, por ser uma categoria negociável e
renovável, passa por decisões, caminhos percorridos,
maneiras de agir, e dificilmente se mantêm firme a um
centro, visto que o pertencimento identitário é flexível
(BAUMAN, 2005, p. 17).

Nessas narrativas, a homoafetividade entre


mulheres, a troca de afeto e carícias, vai além de um
comportamento exótico, pois questiona a identidade
heterossexual como um padrão fixo. Mesmo assim,
a crítica literária ainda trata essa representação pelo
paradigma da invisibilidade ou do “não-ser”. Portanto,
precisamos seguir uma proposta de intervenção crítica
capaz de resgatar a homossexualidade feminina do
espaço marginalizado da literatura brasileira (BAILEY,
2004, p. 02). Partindo dessa proposta, analisamos a
representação da homossexualidade como uma forma
de contestação das normas impostas e ressaltamos a
provisoriedade dessa identidade nos textos ficcionais.

Nos textos citados acima, a homafetividade feminina


não está relacionada a uma vida sexual ativa, mas à
amizade e à parceria que passam a ser usadas como
formas de resistência contra a opressão heterossexual.
Em oposição a esse padrão uniforme, as personagens
dessas narrativas transitam pelo território da sexualidade
homoafetiva, sem perder o vínculo com a sociedade que
SocioPoética - Volume 1 | Número 10

julho a dezembro de 2013


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as cerca. Tal representação foge dos paradigmas “que


tanto procuram controlar a sexualidade feminina, como
restringir o acesso da mulher a uma linguagem adequada
à representação de sua sexualidade” (BAILEY, 2004, p.
02)

Particularmente, na fição de Lygia Fagundes Telles2,


temos diversos exemplos desses amores platônicos
e ambíguos entre mulheres como a delicada relação
de Lia com uma amiga em sua juventude em As
meninas (1973). Para este ensaio, vamos fazer um
recorte das personagens femininas que apresentam
um comportamento homoafetivo em Ciranda de Pedra
(1954) e em “Uma branca sombra pálida”, da coletânea A
noite escura mais eu (1995). Ao descrever personagens
femininas com comportamento sexual ambíguo, a autora
propõe uma abordagem crítica dessa identidade sexual.
Essa representação debate as fronteiras da sexualidade
feminina, questionando a opressão e o preconceito contra
o amor entre duas mulheres dentro de uma concepção
existencial marcada pela heterossexualidade.

Metodologicamente, exploramos o conceito de


identidade sexual e de gênero proposto por Judith Butler,
que defende a flexibilidade e a performance corporal como
parte do processo contínuo da construção identitária “no
e através do outro” (2003, p. 205). Nessa mesma linha
de raciocínio, Guacira Louro reforça a premissa de que a
identidade sexual é flexível e é parte dos conflitos sociais
(2008, p. 27). Nesse sentido, fazemos um recorte teórico
do conceito de identidade homossexual para evitar a
complexidade e abrangência desse termo. Optamos pela
definição de Guacira Louro que reconhece essa identidade
pela escolha do par amoroso, pois “a identidade gay ou

2
Este artigo presta homenagem aos 90 anos de Lygia Fagundes Telles. Para os
estudiosos da autora, vale a pena consultar o volume especial da Revista In-
terdisciplinar, que também comemora essa data e esta disponível em: http://
www.seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/index
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
180 julho a dezembro de 2013

lésbica assenta-se na preferência em manter relações


sexuais com alguém do mesmo sexo” (2008, p. 33).
Outro aspecto teórico importante da ambiguidade sexual
é o fato de a representação da homossexualidade está
associada à “ausência de fronteira entre a sexualidade
masculina e a feminina” (TOURAINE, 2007, p. 68). Tais
particularidades estão presentes na narrativa de Lygia
Fagundes Telles.

Os ruídos provocados por essa representação


são fundamentais para entendermos de que forma o
preconceito e o estigma se repetem nos dois momentos.
Essa representação é polêmica por ir contra os “bons
costumes” e ser vista como espaço alternativo para a
identidade sexual transgressora. Diante de uma sociedade
castradora, Lygia Fagundes Telles apresenta o espaço
homoerótico feminino em contraposição ao social, isto é,
um espaço de contestação.

Nesse imaginário literário, a homoafetividade é


descrita por meio de uma heterotopia de desvio, visto
que a mulher abandona, mesmo que provisoriamente,
a opção normatizada, para experimentar uma viagem
erótica pelo corpo da amada. Em Ciranda de Pedra, temos
a personagem Letícia, que após uma decepção amorosa
com um homem, passa a se interessar afetivamente por
meninas. Em “Uma branca sombra pálida”, o amor entre
duas jovens ultrapassa a barreira da amizade e torna-
se um pesadelo para uma mãe castradora. Tais opções
trazem duas formas representação do homoerotismo
feminismo que tanto pode ser vista um processo de
desilusão feminina com o parceiro heterossexual, como
também parte do processo de formação sexual de uma
mulher (BAILEY, 2004, p. 10).

A opção estética que contesta as representações


tradicionais traz para o texto literário o debate social
dos significados morais e artísticos dessa identidade..
Nesses casos, o homoerotismo configura-se por meio da
SocioPoética - Volume 1 | Número 10

julho a dezembro de 2013


181

performance corporal do sujeito feminino que se desloca


em busca da liberdade e do seu corpo e da amada.
Portanto, o deslocamento da identidade feminina é
fundamental, visto que há um processo de aprendizado
sexual que vai além do contato físico, pois corresponde
a “novas formas” de vermos o mundo (LOURO, 2008,
p. 15). Além do mais, essa instabilidade pode ser vista
como uma possibilidade de desconstrução sexual, visto
que devemos levar em conta que há “a possibilidade de
colocar a consolidação das normas do sexo em uma crise
potencialmente produtiva” (BUTLER, 2001, p. 164).

Ao descrever que uma personagem feminina opta


pelo carinho de outra mulher, o texto nos sugere que algo
está sempre sendo adiado no processo de construção da
identidade sexual, visto que essa flexibilidade reforça a
premissa de que a identidade de gênero não é apenas o
resultado determinado pelas regras impostas, “porque é
antes um processo regulado de repetição que tanto se
oculta quanto impõe suas regras, precisamente por meio
da produção de efeitos substancializantes” (BUTLER, 2003,
p. 209). Para melhor exemplificar essas considerações
iniciais, passemos a comentar as particularidades dessa
representação na ficção de Lygia Fagundes Telles.

Em Ciranda de pedra, essa autora quebra o paradigma
social da heterossexualidade ao colocar a experiência
homoafetiva como parte do processo de formação da
jovem Virgínia, que, após anos de internato, volta para
viver com sua família, o pai, Natércio, e suas irmãs,
Bruna e Otávia, e reencontrar os amigos de infância,
Conrado, Letícia e Afonso. Após o reconhecimento do
jogo de interesses de familiares e amigos, Virgínia se
mostra descontente com todos e resolve abandonar
aquela ciranda de aparências.

O pioneirismo dessa obra está na exploração da
homoafetividade feminina como uma opção sexual para
a jovem em formação, Virgínia. Essa marca também
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
182 julho a dezembro de 2013

pode ser vista pela forma como a autora aborda tal tema
sem aprisionar a mulher a uma sexualidade fixa, nem
determinar o caráter dessa representação, vinculando-a
a questões de caráter e a de certas profissões como
pregam os estereótipos culturais (TOURAINE, 2007, p.
67).

No contexto da formação educacional da jovem


transgressona, Virgínia, o amor entre mulheres era visto
como um confronto com a tradição, por isso a passagem
por essa experiência sexual reforça seu lugar como um
espaço de resistência. Diversas vezes, Virgínia testa seu
pertencimento identitário quando se envolve com Afonso,
o cunhado e quando se sente rejeitada por Conrado, um
namorado platônico de infância. Diante desses episódios
de decepção com a afetividade masculina, ela se sente
desprotegida e vulnerável, por isso passa a aceitar os
convites de Letícia para fazer traduções e visitar seu
apartamento.

Ao se mostrar descontente com o jogo sexual dos


homens à sua volta, sem alternativa, Virgínia se deixa
levar pela sedução da amiga, mesmo quando tem
consciência que vai ser usada por ela. Dessa forma,
Ciranda de pedra reforça a premissa de que a identidade
nem sempre é coerente e consistente, porque necessita
de diferentes interseções com diversas identidades
(BUTLER, 2003, p. 20). O fato de Virgínia aceitar o
jogo de sedução feminino reforça sua necessidade de
experimentar outros pertencimentos identitários.

Com isso, a capacidade crítica desse romance está


na exploração da homoafetividade feminina como uma
possibilidade identitária para a mulher transgressora
e como um pesadelo para a identidade legitimadora
(BAUMAN, 2005, p. 38). Os deslocamentos sexuais
que sustentam o interesse de Letícia por Virgínia são
atravessados por questões sexuais e sociais. Apesar de
ser solidária e receptiva com Virgínia, Letícia, desde o
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início, tenta conquistá-la por meio de um assédio sexual


visível a todos. Com a insistência de Letícia, a relação
entre amigas vai ganhando dimensões homoafetivas,
que compreende da sedução inicial ao beijo forçado.
A performance sexual de Letícia merece destaque,
pois apresenta uma identidade sexual sempre em
transformação. Ela teve diversas relações heterossexuais
no passado. No presente, quando se sente atraída por
uma mulher, parte para conquistá-la, mostrando-se livre
das concepções sexuais impostas.

Por ser uma atleta, Letícia apresenta um perfil
andrógino que misturam características femininas e
masculinas: “magra mas musculosa” (TELLES, 1998, p.
102). Esse corpo masculinizado dá indícios da construção
identitária fora das normas ditas “femininas”. A partir
dessa performance corporal, a identidade sexual vai
sendo lapidada, uma vez que seu pertencimento sexual
fica exposto e aberto a outras possibilidades, revelando
autocríticas e performances de seu pertencimento
identitário (BUTLER, 2003, p. 211).

Por não ter um pertencimento identitário padronizado,
Letícia é uma personagem em trânsito que recusa a
limitação das fronteiras corporais. Ela assume socialmente
um pertencimento em movimento que se manifesta na
inconstância e na transição das identidades (LOURO,
2008, p. 22). Ela não só apresenta um tipo físico fora dos
padrões femininos tradicionais, como também opta por
comportamentos que contestam os valores familiares
burgueses.

No processo de aproximação das duas, o apartamento
de Letícia é usado como espaço de refúgio, no qual o jogo de
sedução vai se ampliando. Nesse sentido, o apartamento
pode ser visto como local de resistência para essa relação
ambígua, que envolve sedução e desejo. Esse espaço fora
do controle da família é o local da transgressão. Por ser
um lugar elitizado, ele é também marcado pela questão
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de classe e reforça certa invisibilidade para o lesbianismo,


que era visto por alguns setores da sociedade como uma
experiência sexual de classes altas, pois estava associado
a uma prática decadente ou fascinante e própria da elite
brasileira (BAILEY, 2004, p. 10).

Mesmo com a confirmação de que estava sendo
seduzida por Letícia, Virgínia não se afasta dela, pelo
contrário passa a jogar com aquela situação, e reconhece
que “isso lhe daria náuseas”, no entanto, agora não
sentia “nem náuseas nem espanto” (TELLES, 1998, p.
139). Nesse processo consciente de que está transitando
por territórios sexuais desconhecidos, essa protagonista
assume o risco de se envolver com outra mulher. Por meio
de um ato performativo, ela rearticula sua identidade
quando executa uma “prática discursiva” que a nomeia
de outro lugar (BUTLER, 2001, p. 167).

Depois de muita insistência, Letícia consegue seduzi-
la. No entanto, como a experiência é desagradável,
Virgínia retoma suas referências identitárias, passando
a se projetar sendo beijada por um homem, mostrando
o quanto está apenas testando seus limites sexuais:
“Entregou-se passiva ao beijo demorado. Fechou os
olhos. Conrado, Conrado” (TELLES, 1998, p. 144). Com
isso, essa obra tem a peculiaridade de destacar uma
protagonista que testa sua identidade sexual para além
das normas que lhe foram impostas, ao se deixar seduzir
por outra mulher.

Ao fazer referência ao carinho heterossexual, Virgínia
tenta desesperadamente voltar para o seu lugar cômodo
e se agarra às normas que conhece para fugir das carícias
da amiga. Nesse caso, ela opta por citar o discurso que já
conhece, visto que “a norma do sexo assume o controle
na medida em que ela é citada como tal norma, mas ela
também deriva seu poder através das citações que ela
impõe” (BUTLER, 2001, p. 168).

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185

Embora não se sinta bem, recebendo as primeiras


carícias e beijos de outra mulher, Virgínia continua
naquele jogo erótico a fim de testar seu pertencimento
e seus limites: “sentiu a boca de Letícia roçar-lhe pelo
pescoço e subir lenta até alcançar-lhe os lábios” (TELLES,
1998, p. 144). Dessa experiência, podemos destacar
que, embora não se mostre contente, Virgínia passou
pelo processo de pertencimento homoafetivo de forma
consciente, pois testou seus limites e expôs regras que
não conhecia como sua preferência afetiva pela carícia
de Conrado. Se, por um lado, Virgínia não se identifica
com aquela opção; por outro, Letícia reforça o quanto
domina aquelas técnicas de conquista feminina.

Assim, entre a tensão sexual que há entre as duas,
o processo do pertencimento sexual é testado, abrindo
espaço para a homoafetividade como uma das opções
possíveis, visto que a identidade sexual transgressora
se projeta como parte daquele contexto por meio de
um processo regulado de repetição que “tanto se oculta
quanto impõe suas regras, precisamente por meio da
produção de efeitos substancializantes” (BUTLER, 2003,
p. 209). Sem corresponder aos desejos de Letícia, Virgínia
opta por não dar continuidade aos carinhos da amiga. Ao
ratificar seu pertencimento heterossexual, percebemos
que “há diferenças a serem atenuadas ou desculpadas
ou, pelo contrário, ressaltadas e tornadas mais claras”
(BAUMAN, 2005, p. 19).

Dessa forma, ao fazer o questionamento das
fronteiras sexuais, Ciranda de pedra atualiza o debate
sobre essa representação e resgata o tema a partir
de uma experiência concreta na qual está em jogo a
identificação com essa sexualidade. Grosso modo, os
interesses das duas ressaltam que se trata de uma relação
correspondida, mesmo que com interesses diferentes.
Letícia com a finalidade de seduzir mais uma namorada;
Virgínia em busca de outros espaços para sua identidade.
Nessa interseção, a representação do homoerotismo
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feminino se projeta como um lugar de questionamento


e revisão das identidades tradicionais. Além disso, há
um diferencial nessa representação, visto que Letícia,
mesmo pertencendo a uma zona rejeitada socialmente,
reivindica sua autonomia à vida, pois sua identidade “é
constituída através da força da exclusão e da abjeção”
(BUTLER, 2001, p. 155).

Essa temática é retomada por Lygia Fagundes Telles


40 anos depois em “Uma branca sombra pálida”. Bem
diferente da primeira abordagem, esse conto aborda
o tema pelo prisma da mãe culpada pelo suicídio da
filha. Nesse caso, a identidade homerótica é vista como
um corpo abjeto, um corpo que pesa para a família
tradicional. Com isso, a ficção faz uma reflexão crítica
ao questionar a formação do sujeito homoerótico por
meio da normatização do sexo como um padrão cultural.
Esse processo pode ser identificado por meio de um
repúdio que produz a abjeção e reconhece na identidade
trasgressora um “espectro ameaçador” (BUTLER, 2001,
p. 156).

Esse espectro assombra duplamente a mãe diante do


túmulo da filha e de suas recordações do suicídio. Sem se
conformar com a perda da filha, a mãe busca explicações
para a tragédia que foi antecedida da relação homoafetiva
entre sua filha, Gina, e Oriana. Ao optar por uma ruptura
com o espaço tradicional da mãe, Gina também ressalta
sua rejeição ao padrão fixo da heterossexualidade. A
narrativa retoma os episídios dessa crise de identidade a
partir do entrecruzamento entre a cena no cemitério e as
cenas homoafetivas da filha. Nesse espaço do cemitério,
a mãe tradicional relembra, de forma sádica, cada um
dos episódios que levaram sua pequena Gina ao suicídio.

Ao optar por uma narrativa fatal, Lygia Fagundes


Telles destaca o choque entre a identidade homoafetiva
em oposição à postura castradora da mãe. Nesse
caso, o espaço do cemitério é muito importante para
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entendermos o que está em jogo nessa representação,


pois temos tanto o silenciamento da homossexual, como
os fantasmas do passado da mãe opressora. Nesse caso,
o cemitério aponta os espaços heterogêneos da mãe, no
qual ela é sulcada e corroída pelas “categorias de sexo”,
pois será assombrada “pelas próprias instabilidades
que as categorias efetivamente produzem e integram”
(BUTLER, 2001, p. 156).

No processo de deslocamento pelo passado, a mãe


reconhece que a filha “parecia tão feliz lá no seu quarto
todo branco” e destaca o quanto a amizade das duas
lhe incomodava, pois “falavam e ouviam música e riam”
(TELLES, 1998, p. 132). Nessas viagens pessoais, que
as duas faziam trancadas no quarto, Gina se aproxima
de si, pois “a viagem transforma o corpo, o ‘caráter’, a
identidade, o modo de se e de estar” (LOURO, 2008,
p. 15). Por meio desses encontros, Gina experimenta
novas posições de gênero e de sexo. Sua aprendizagem
se consolida por meio dessas viagens trancadas em seu
quarto.

No cemitério, mesmo sendo um lugar de encontros


e desencontros, a mãe não consegue se livrar do seu
olhar castrador, pois não aceita que a namorada da
filha lhe traga flores vermelhas: “Depois veio o sol e
as vermelhonas se fartaram de calor, obscenas de tão
abertas” (TELLES, 1998, p. 128). As referências irônicas
à cor vermelha apontam a posição castradora da mãe
e sua forma conservadora de avaliar o desenrolar da
relação entre a filha e Oriana.

Nesse processo, temos pontos de partidas e chegadas


dessas duas identidades. Mãe e filha vivem encontros
e desencontros por meio da heterotopia do cemitério.
Desses desencontros, destaca-se a forma como as
duas viajam por universos opostos da sexualidade.
Essa oposição fica ressaltada pela fala disciplinadora e
excludente da mãe ao se referir à amizade afetiva das
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188 julho a dezembro de 2013

duas: “Ah, que coincidência, porque também eu não me


conformo, a diferença apenas é que você gosta de fazer
sujeira, Você é suja!” (TELLES, 1998, p. 128). Ao rejeitar
o relacionamento homoafetivo de Gina, a mãe tenta de
toda forma controlar a sexualidade da filha.

Sem aceitar os encontros de Gina com Oriana, a


mãe se mantém presa a um referencial afetivo fixo e
limitador, mesmo quando avalia suas imposições: “mas
não seria mais lógico cada qual cumprindo até o infinito
o ofício da paixão?” (TELLES, 1998, p. 130). Esse conflito
materno deixa uma brecha para interpretarmos que nem
ela mesma acreditava naquilo que questionava na filha,
visto que não existe um “eu” ou um “nós” que não tenha
sido submetido à idendidade de gênero e subjetivado
por ela, posto que o processo de identificação emerge no
interior das próprias relações de gênero e como matriz
dessas relações (BUTLER, 2001, p. 159).

Sem espaço para concretizar sua performance de


gênero, Gina parte para um deslocamento fatal. Ela
escolhe o domingo de Páscoa para fugir da opressão da
mãe que lhe impunha como única opção a identidade
homogênea: “Levantei a voz, mas falei devagar. A escolha
é sua, Gina. Ou ela ou eu, você vai saber escolher, não
vai? Ou fica com ela ou fica comigo, repeti e fui saindo
sem pressa” (TELLES, 1998, p. 137). Ao nomear a única
opção para a filha, a mãe decretava sua verdade, pois
“a nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de
uma fronteira e também a incultação repetida de uma
norma” (BUTLER, 2001, p. 161).

Depois de ter imposto um fim para a relação das


duas, a mãe se mostra aliviada, pois tinha cumprido seu
papel de normatizar o corpo da filha. Sem saber que
fora da opção dada à filha: “ou ela, ou eu”, havia outras
saídas, a mãe se tranquiliza porque as coisas voltaram
para seu devido lugar. Todavia, Gina não aceita essas
opções e parte para a saída radical: o suicídio. Ela
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julho a dezembro de 2013


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“escolheu, cortar com aquela tesourinha, tique! O fio da


vida no mesmo estilo oblíquo com que cortara os caules”
(TELLES,1998, p. 138).

Com esse deslocamento fatal de Gina, “Uma


branca sombra pálida” traz para a história da literatura
brasileira, uma narrativa que assinala o lugar da
identidade homossexual como parte dos fantasmas da
heterrossexualidade. Isso é possível porque esse conto
privilegia o olhar perturbado da identidade normatizadora,
pois o local do excluído limita o “humano” com seu exterior
constitutivo e assombra suas fronteiras com a persistente
possibilidade de sua rearticulação (BUTLER, 2001, p.
161). Portanto, esteticamente, esse conto questiona o
fascismo por trás da normatização heterossexual.

Além disso, os dois deslocamentos identitários dessa


narrativa reforçam a visão fantasmagórica da identidade
homossexual: o da filha de fugir da imposição materna;
e o da mãe de fugir do fantasma da homoafetividade da
filha. Tais deslocamentos opostos também estão presentes
nas dualidades do conto: entre a pureza da flor branca
e a luxúria da vermelha, entre a salvação da Páscoa e
a desgraça do suicídio, entre o amor das duas jovens e
a culpa do sexo homoafetivo. Nesse jogo de oposições,
temos pistas do entrelaçamento das identidades sexuais,
na quais as diferenças são ressaltadas como parte de um
todo.

O questionamento da filha morta também mostra o


quanto “Uma branca sombra pálida” atualiza o debate
sobre a representação da homoafetividade feminina
na ficção brasileira, ao enfatizar o desgaste do olhar
tradicional e questionar a visão fascista da normatização
heterossexual. Com essa opção ideológica, a posição
da mãe é castradora e não dá uma chance para as
ambíguidades sexuais da filha que apresenta uma
identidade transgressora, quando explora papéis sexuais
próprios de um sujeito ambíguo (TOURAINE, 2007, p.
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
190 julho a dezembro de 2013

67).

Ao mostrar diversos deslocamentos, esse conto


questiona o quanto a identidade tradicional busca
racionamente explicações incoerentes para sua forma
de homogeinizar as identidades sexuais. Com a ruptura
da norma, Gina mostra que sua identificação foi
superada com as normas patriarcais da mãe. Ao optar
pelo suicídio, ela ressalta seu momento de pânico, pois
apenas queria ser aceita pela mãe como ela era, pois
buscava “desesperadamente um ‘nós’” a que lhe desse
a oportunidade de viver seu pertencimento sexual
clandestino (BAUMAN, 2005, p. 30).

Portanto, como analisado neste trabalho, a


representação da personagem homossexual de Lygia
Fagundes Telles se desloca por espaços sociais e
imagináveis para ressaltar os discursos que controlam
o corpo da lésbica. As duas obras apresentam o
deslocamento da identidade homossexual feminina como
uma estratégia de desconstrução da norma vigente, ao
debater a construção da identidade sexual como uma
construção que atua através da reiteração de normas,
ao mesmo tempo em que produz e desestabiliza o curso
dessa reiteração (BUTLER, 2001, p. 163).

Nesse caso, nos espaços fugídios, a identidade


homossexual se projeta como um fantasma a
assombrar a estabilidade da heterossexualidade. Sem
ser aceita socialmente, a personagem lésbica precisa
de um outro espaço todo seu. Assim, as duas obras,
em contextos diferentes, apresentam os limites da
aceitação da sexualidade fora da heterossexualidade e
contextualizam a identidade de gênero como “um ponto
de convergência entre conjuntos específicos de relações,
cultural e historicamente convergentes” (BUTLER, 2003
p. 29), relativizando o padrão e a fixidez da identidade
legitimadora.
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Tanto em Ciranda de Pedra, como em “Uma branca


sombra pálida”, a homoafetividade é anunciada como um
projeto identitário que está sempre sendo adiado, pois a
norma e o padrão heterrossexual é imposto. Letícia não
consegue dar continuidade à sua conquista, pois Virgínia
não gostou da experiência homoafetiva. No caso de Gina,
a mãe não abre espaço para outra representação sexual
que não seja a tradicioanal. Mesmo sem essa realização
homoafetiva, os dois textos nos convidam a uma reflexão
crítica e propõem um sofisticado jogo de desconstrução
da identidade legitimadora. Isso só é visível por meio de
uma leitura preocupada com as questões de poder que
perpassam essa representação. Essa postura crítica é
parte desse novo paradigma de se fazer crítica literária,
valorizando a identidade homoerótica e as questões
invisibilizadas pela tradição literária (BAILEY, 2004, p.
16).

Nesses dois casos, a castração e o preconceito são


questionados como construtos sociais e deixam pistas
do quanto a identidade heterossexual não pode ser vista
como única, pois “a fragilidade e a condição eternamente
provisória da identidade não podem mais ser ocultada”
(BAUMAN, 2005, p. 22). Dessa forma, à proporção que
a construção da identidade passa a ser aceita como algo
provisório e variável, o corpo da mulher abandona a
posição fixa de submissão sexual para se projetar de um
lugar instável e provisório.

Diante do identificado no duplo deslocamento da


personagem feminina homoerótica, nas análises aqui
feitas, podemos afirmar que essas identidades são
marcadas pela vontade de liberdade e pela necessidade
de refúgio. Portanto, esse outro espaço, fora da família,
pode ser visto como uma marca do imaginário ficcional
de Lygia Fagundes Telles. Portanto, a não completude da
personagem homossexual, que viaja e se refugia, pode
ser vista como parte da incoerência social da normatização
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sexual. Essas personagens recusam identidades fixas e


optam por fronteiras. Com isso, assumem a inconstância
como uma marca de seus deslocamentos (LOURO, 2008,
p. 21).

Na narrativa de Lygia Fagundes Telles, a transgressão


sexual é também uma postura híbrida e faz parte dos
questionamentos dos valores morais que se perpetuam
no espaço da família burguesa, uma vez que, em Ciranda
de Pedra, Virgínia rompe com as limitações sociais para
atingir sua independência, deixando-se envolver pela
sedução de uma mulher, e em “Uma branca sombra
pálida”, Gina opta por assombrar a normatização da mãe
como uma terceira opção que estava fora de qualquer
lugar.

Nos dois casos, identificamos a representação da


identidade homoafetiva como parte de uma reflexão
política de contestação do padrão e do fixo, abrindo o
espaço da literatura para a luta política pelos direitos
dos homossexuais (LOURO, 2008, p. 32), pois rearticula
legitimamente “corpos que pesam”, “como formas de
viver que contam como ‘vida’, como vidas que vale a
pena proteger, como vidas que vale a pena salvar, como
vidas que vale a pena prantear” (BUTLER, 2001, p. 170).
SocioPoética - Volume 1 | Número 10

julho a dezembro de 2013


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Referências bibliográficas

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Vecchi. Tradução Carlos A. Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005.

BAILEY, Cristina Ferreira-Pinto. O desejo lesbiano no


conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Mulheres
e Literatura. Rio de Janeiro: UFRJ, ano 08, volume 01,
2004, p.1-17. Disponível em http://www.litcult.net/revistamulheres_
vol8.php?id=79. Acessado em 20 de abril de 2014.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Tradução de Renato


Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites


discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira. O corpo
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Thomaz Tadeu da Silva. 2ª. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
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LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo


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TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de pedra. 31a. ed. Rio


de Janeiro: Rocco, 1998.
TELLES, Lygia Fagundes. A noite escura mais eu. 4ª edição. Rio
de Janeiro: Rocco, 1998.

TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Tradução de Francisco


Morás. Petrópolis: Vozes, 2007.
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
194 julho a dezembro de 2013

O RETORNO DA FAMÍLIA NAS SÉRIES TELEVISIVAS

Ivia Alves (UFBA)*

Resumo:A mudança de temática das comédias inicia-se perto da virada do


século XXI, contaminando os dramas investigativos e jurídicos depois. As
comédias passaram a representação de mulheres vitoriosas na profissão, mas,
agora, em busca de uma relação afetiva estável.É evidente que estas mulheres
estão em várias profissões, mas o eixo da narrativa se volta para procura
de um par ideal, para a construção de um casamento estável. No entanto, o
casamento continuou nos moldes tradicionais, e esta mulher vai ter que se
moldar. Este ensaio contempla duas comédias que não tiveram êxito, mas que
fundamentaram tais mudanças.

PALAVRAS-CHAVE: Relações de Gênero, Feminismo, Representações, Séries

Abstract:Comedy themes began to change near the turn of  XXI Century,


spreading later to investigative and legal dramas. Comedies have focused the
representation of well succeeded women in their profession, but, this time,
searching for a stable relationship. It is clear that these women are in many
different professions, but the axis of the narrative turns to finding a perfect
match, to construct a stable marriage. But the marriage remains in traditional
fashion and these women have to adapt to fit in. This essay considers two
comedies that have not success, but substantiate such changes.

KEY WORDS:  Gender Relations, Feminism, Representations, Tv Series


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Quem imaginaria ligar a televisão em pleno século


XXI e assistir de um casal com todas as marcas de que
se trata de indivíduos inseridos na práxissociocultural
do século XXI, o seguinte diálogo essencialista: “Você
quer dizer que eu não sei o dia em que começamos a
namorar? Eu sou uma mulher!”1

Ouvi essa construção discursiva estarrecida, porque


logo me reportou para um retorno às características
naturalizadas da mulher. Embora este diálogo estivesse
inserido em uma comédia, de 2008, que estava se
propondo a mostrar o desempenho de três mulheres
que chegaram ao topo de suas carreiras, já começava
a se distorcer “a diferença” e volta-se ao sentido de
uma oposição entre características ditas femininas e
masculinas. Recompunham-se, assim, as diferenças como
elas tinham sido descritas por alguns séculos e enfatizada
nas primeiras décadas do século XX, ignorando toda a
agenda de lutas feministas da segunda onda (60/70) e
retomava-se a domesticação das mentes e dos corpos
das mulheres.

Talvez, tal frase, atualmente, não tivesse tanto


efeito quanto na época, dada a sua repetição e dada
à representação das mulheres atuais, porque naquela
época ainda a sociedade estava mergulhada no discurso
feminista e soou estranho tratar-se as mulheres pelos
seus aspectos fundamentalistas naturalizados, bem
como acentuar sua fragilidade e emotividade.

Mas antes de continuar comestas reflexões, acho que

1 *Doutora em Literatura Brasileira, Professora (aposentada)do Instituto


de Letras da Universidade Federal da Bahia, atuando, atualmente, como
pesquisadora permanente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
Mulher (NEIM/UFBA), e na Pós-Graduação do NEIM.
O embrião deste artigo foi uma comunicação oral apresentada noVI Encontro
da Rede Brasileira de Estudos e Pesquisas Feministas REDEFEM/ II Seminário
Internacional - Enfoques feministas e o século XXI: Feminismo e Universidade
na América Latina/ II Encontro Internacional política e feminismo,Belo
Horizonte, 2008, e desenvolvido e atualizado no momento atual.
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devo esclarecer porque o tema se refere as narrativas


de seriados televisivos2. Na realidade, não vejo muita
diferença entre a literatura e o seriado televisivo, se
enfocarmos apenas pela perspectiva de uma narrativa.
Por outro lado, quanto ao público alvo, se não é o mesmo,
parece-me que tais narrativas (inclusive a novela)
exercem grande fascínio nas gerações mais novas que
resistem aos livros de literatura, achando-os velhos ou
incapazes de lidar com os problemas atuais com os quais
lidam essas novas gerações. Assim, deslocando-me um
pouco da literatura para a televisão, que é assistida
por centenas ou milhares de pessoas, procurei verificar
como as conquistas feministas do século passado estão
sendo lidas e representadas pelos produtores de séries e
recebidas/interpretadas pelo seu público cativo.

A televisão tem um contrato ambíguo com seu público,


e no caso específico dessas séries principalmente, pois
não estabelece uma fronteira entre ficção e realidade.
Acrescente-se, ainda, a complexidade de negociações e
imposições que estão por trás de uma narrativa seriada:
a publicidade e os donos dos produtos que são divulgados
nos intervalos, que estão mais interessados em vender
seu produto e, portanto, não querem lidar com qualquer
mudança quando se trata da sociedade e das relações
sociais e a emissora, que sobrevive desses contratos
financeiros. Consequentemente, a medida que o público
quer um entretenimento passageiro, estabelece-se o
contrato com o telespectador de que tais séries são para
o lazer, para distração. Pincipalmente, quando se trata
de comédia.

Diante de tantos contratos implícitos, considero


possível começar a olhar este veículo com mais cuidado.

2 Este ensaio faz parte domeu projeto “Imagens e representações...


fragmentadas (a representação das mulheres através das imagens e
discursos da televisão)”, financiado pelo CNPq, concluído em 2014, o qual
teve como meta analisar como eram representadas as mulheres em séries de
televisão,no período entre 1980/90 a 2010.
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O mito que atravessa a maioria dessas séries é que elas


se baseiam na realidade cotidiana, são situações vividas
e experienciadas nas práticas sociais. Os personagens
televisivos parecem reais, pessoas com vida própria,
exemplos das relações da práxis social. E insisto em
estabelecer uma correlação: se a subliteratura dos séculos
XIX e XX conseguia formatar comportamentos e os desejos
de uma mulher (seja com romances sentimentais ou
mesmo revistas)3, as produções televisivas, atualmente,
concretizam e mobilizam as telespectadoras jovens (e
talvez maduras também)para modelagens ou modelos
do modo de viver tais relações na prática social.

Apesar de a televisão parecer um lazer de segunda


classe, menor, sem influência alguma para a permanência
de comportamentos (pelo menos a Academia não tem
dado a devida importância), considero esta mídia de
muita importância para a permanência de determinados
códigos os quais estabelecem determinados desejos e
comportamentos nas relações de gênero.

Quando o real se mistura à ficção ou vice-versa,


quando se vê a modelagem dos corpos das mulheres
em busca do corpo de modelos e celebridades, quando
se vê amesquinhar os limites dos desejos das mulheres
porque vêm sendo dirigidos, sutilmente, por reportagens,
documentários e séries, é impossível não se deter no
maior veículo de modelagem da vida contemporânea.

1.Na esteira de Sexy andthecity(1998-2004)

3 Na primeira metade do século XX proliferaram romances sentimentais


destinados às mulheres que moldavam seus ideais afetivos. Em quase todas
as editoras existia uma coleção destinada a elas. Como aBiblioteca das
moças, da Companhia Editora Nacional, Coleção Verde, da Editora Globo,
Coleção Rosa, da Saraiva, Menina e moça, da José Olympio. Revistas como
Grande Hotel (1947), Capricho(1952),em formato de fotonovelas, e a partir
de 1970,somente texto, as revistas Sabrina, Júlia, Bianca e várias outras,
destinadas às jovens. (Dados retirados de sites da internet)
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Retomo o enunciado da personagem do seriado


Cashmere Mafia, produzido em 2008, série que foi
amplamente divulgada como destinada às mulheres.
Logo de início, ao ouvir, literalmente, o enunciado: “Você
quer dizer que eu não sei o dia em que começamos a
namorar? Eu sou uma mulher!” me fez questionar qual
seria a relação intrínseca entre a mulher e a sua memória
sobre a data de algum evento. Por que a série retomaria
esta “aptidão construída” pela sociedade tradicional para
a mulher, quando a narrativa se propõe a trabalhar com
mulheres independentes e emancipadas economicamente
do século XXI? Este discurso essencialista sai da boca
de uma executiva, chefe-editora de uma grande rede de
revistas, no momento em que é pedida em casamento
e o futuro noivo insinua que é o mesmo dia em que se
encontraram pela primeira vez. Em nada a representação
desta personagem lembraria uma mulher dos anos
de1940 ou 1950, que dentro das normas da época, tinha
apenas por meta, o casamento, a estabilidade e seu
papel de subsidiar o bom andamento da família.

No entanto, tanto Cashmere Máfia quanto


Lipstickjunglevão na mesma direção de continuar o nicho/
tema aberto por Sex andthe City4, agora procurando uma
narrativa de mulheres já casadas e que mantêm suas
vitoriosas carreiras profissionais.

Na divulgação das duas séries acima citadas


eproduzidas para o ano de 2008, o noticiárioinforma
que têm estreitas relações com Sex andthecity, seja por
ter uma delas o mesmo produtor e a outra, basear-se
em livro da mesma autora. As duas foram amplamente
promovidas como sequências ou desenvolvimentos

4 A primeira série, que contempla os devaneios sentimentais de um advogada


bem sucedida é AllyMcBeal (1997-2002)
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daitoriosaSex andthecity5.

Sex andthecityse passa na cosmopolita Nova Iorque


e focaliza as relações íntimas de quatro amigas, três das
quais por volta dos trinta anos, e uma nos seus quarenta.
Todas com vitoriosas carreiras, porém solteiras. A ação
se inicia no momento em que elas estão a procura de
relações mais estáveis. Foi uma comédia de situação,
que a medida que ganhava audiência, inseriu alguns
elementos dosromances sentimentais, porém focalizou,
muitas vezes, assuntos relevantes, como o estatuto da
mulher na sociedade atual. A série, talvez pelo grande
número de roteiristas masculinos e também na direção,
de alguma maneira, colocou-se com um posicionamento
ambíguo. Se, de um lado, evidenciava as várias formas
de a mulher lidar com relacionamentos amorosos e sua
sexualidade, por outro, abria a possibilidade de aceitação
ou não de alguns comportamentos dessas mulheres/
personagens.

Assim, as duas séries que tentam perseguir a temática,


procuram dar um salto e aprofundar as atribulações
das mulheres casadas e com filhos, em cargos de alta
responsabilidade na vida pública. Mas, apesar de toda
esta propaganda, percebe-se grande diferença entre a
matriz, Sex andthecity esuas “herdeiras”.

Revendo o primeiro episódio da sériede 1998, observa-


se que existe uma gama diferenciada de comportamentos
das personagens e, em certos momentos, até uma crítica
ao contexto e posicionamento dessas quatro mulheres.
Logo no primeiro episódio, identifica-se uma personagem
através da qual haverá certa ressonância das ideias

5 Sex andthe City foi uma série norte americana, produzida pela HBO,
baseada no livro do mesmo nome, da jornalistaCandaceBushnell. A série foi
originalmente transmitida de 1998 até 2004, mas não foi fiel ao livro. Neste,
a autora coloca que as mulheres não se casam porque não querem.
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feministas (eclipsadas nos episódios posteriores). Em


um dos primeiros encontros das quatro, ao ver suas
amigas falando apenas sobre homens, namoros e o
homem certo para elas, Miranda, a advogada, retruca:
“Porque quatro mulheres inteligentes só sabem falar de
namorados? Somos como colegiais com conta no banco?
Porque não falamos de nós. O que pensamos, sentimos
e sabemos? Será que é sempre tudo sobre eles?” (Sex
andthecity,(HBO): Ep.1, 1998).

Analisando os seriados – dramas e comédias-,


produzidos nos finais da década de 90, observei que
alguns começaram a colocar as personagens em
situações diferenciadas, tentando representar a realidade
de mulheres emancipadas e inseridas no espaço
público,mas também casadas e com filhos. Nestes casos,
quase nunca a relação do casal é equilibrada, existindo
uma assimetria entre eles, seja porque o marido toma
as tarefas da mulher, ou por causa da dupla jornada
da mulher ou finalmente, porque o homem, enquanto
profissional, não tem o mesmo statusque a companheira.
Talvez esta complicação nestas representações da família
se apresente pela forma de retratar o casamentoainda
no formato tradicional, enquanto homens e mulheres
ganharam outra dinâmica na sociedade.

Mas a virada das narrativas com uma virada cômica e


com o foco nas relações afetivas estáveis se consolidou,nos
primeiros cinco anos do século XXI. Acompanhando as
séries produzidas nos EEE, UU. constatei que aquela
temática tornou-se dominante no período, enquanto
que comédias sobre amizade e tolerância que haviam
surgido uma década antes desapareciam (como
Friends(1994-2004), Will & Grace (1998-2006), Seinfeld
(1989-1998),em favor de um retrocesso com relação
aos comportamentos independentes das mulheres e em
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favor da família tradicional6.

Partindodesta perspectiva de análise e seguindo


a proposta de Susan Faludi(Rio de Janeiro: Rocco,
2001) de que, a partir de 1999, a mídia retomaum
discurso tradicional, por ela denominada debacklash7,
e é quando esses meios de comunicação de massa
iniciam uma campanha contra a mulher e os conceitos
feministas, seja evidenciando através deestórias
desastrosas de personagens que foram atingidas pelo
fenômeno,seja mostrando suas consequências na
mulher contemporânea. É a partir deste corte radical(e
eliminação das narrativasde 1990) quea pujança de um
discurso dominante tradicional começa a se consolidar
(eclipsando inclusive a palavra feminista do discurso
midiático), e que me proponhoa analisar as duas séries
produzidas e veiculadas em 2008/20098.

A Máfia de cashmere e A selva do batom

As formas de convívio e de organização social necessi-


tam ser revistas, com o intuito de assegurar às mulheres
e aos homens relações de equilíbrio e às organizações
sociais, formas menos autoritárias e hierárquicas de
existir.
(GHILARDI-LUCENA, 2003. p. 160)

Cashmere máfia (A máfia de cashmere) e


Lipstickjungle (A selva do batom), na minha observação,
vão em direção inversa à das narrativas dos anos noventa,
pois “ajustam” essas mulheres emancipadas, no topo

6 As melhores situações de representações de mulheres independentes


foram no gênero drama do tipo investigativo, com mulheres divorciadas,
com filhos. As poucas representações de mulheres casadas insinuavam a
dificuldade de uma convivência entre a vida profissional e a vida afetiva.
7 Cf.:Faludi, 2001. Disponível em: <www.planetanews.com/
produto/L/20852/backlash--o-contra-ataque-na-guerra-nao-declarada-
contra-as-mulheres-susan-faludi.html>.Acesso em: 20 maio 2008.
8 As duas séries não passaram da primeira temporada e foram apresentadas
pelos canais pagos sem grande sucesso, mesmo no país de origem.
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de suas carreiras, ao contexto cultural do momento,


que se direciona a reforçar as tradicionais instituições
burguesas capitalistas: o casamento, a maternidade e a
permanência dos papéis sexuais que estruturam a família
tradicional.

Já os próprios títulos simbolizam guerras e agregações,


como se as mulhereslutassem para permanecer no
espaço público,em lugar de destaque, mesmo quando
elas têm a responsabilidade de uma casa e de filhos.

Faz-se necessário, aqui, situar e contextualizar as


séries em foco9: Lipstickjungleé baseada no livrode
CandaceBushnell.A narrativa pretendeacompanhar a
vida de três das “50 mulheres mais poderosas”, segundo
um jornal de televisão que informa a um público maior
orank do jornal The New York Post. Esta é a primeira cena
da série, acrescentando ainda que elas estão“dispostas
a fazer quase tudo em troca do sucesso no mundo dos
negócios”.

As três amigas são Wendy Healyque é uma executiva


da indústria do cinema, casada – com um músico em
decadência - há mais de quinze anos, com filhos, e na
faixa etária dos 40 anos; Nico Reilly, 38 anos, é uma
editora-chefe de uma famosa revista de moda, também
casada− com um professor universitário de renome−,
sem filhos; finalmente, Victory Ford (Lindsay Price),a
mais nova, 30 anos, designer de moda e empresária,
com produtos distribuídos pelo mundo. Sendo solteira
ainda, buscaum homem, melhor um príncipe encantado,
pois este deve cortejá-la “romanticamente” como nos
filmes de outrora. Enquanto as duas mulheres casadas
não encontram no relacionamento uma efetiva parceria,
Victory vai encontrar o homem dos seus sonhos, rico,
empreendedor, que lhe proporciona muitas viagens

9 Para ser mais fiel, consultei e, muitas vezes, transcrevi as notícias veiculadas pelos
sites da Internet, tais como Minha série, Séries online, Maníacos por series, IMDb,
Teleséries, Ligado em séries, Tvguide, TVtome e alguns blogs específicos.
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inesperadas e que a surpreende convidando-a para cafés


da manhã,em Paris.

Na sequencia, enquanto a designer se deslumbra


com seu “amor romântico” à moda contemporânea, Nico,
insatisfeita, sofrendo a pressão do dono da revista que não
a quer nomear como editora geral da empresa, resolve
trair o marido com um jovem iniciante na profissão,
sem saber que seu marido a trai com uma estudante há
mais tempo ainda.Enquanto isso, Wendy tem grandes
perturbações no plano doméstico, com as insatisfações
de seu marido e com a rebeldia de sua filha de 14 anos.
Este casamento vai desaguar numa separação, trazendo
mais consequências para sua vida profissional.

Querendo narrar as dificuldades dos relacionamentos


atuais, a série não foi bem aceita pelos telespectadores,
sendo cancelada após 17episódios, com apenas duas
temporadas.

Já Cashmere Máfiasegue a mesma disposição


narrativa,com quatro personagens10. Também se passa
em Nova York e trabalhava os casais com mais densidade
e complexidade, porém não passou de sete episódios.
Narrava as estórias de profissionais em vários setores.
Zoe Burden, 40 anos, era diretora de Investimentos,
no maior banco do setor, e a sua maior dificuldade era
equilibrar as exigências da sua carreira – que a ocupava
dia e noite - com responsabilidade de esposa e de mãe
de 2 filhos pequenos. É hilariante a cena em que ela
se tranca no armário para dar prosseguimento a um
telefonema sobre como aplicar as ações do outro lado
do mundo.Mia Mason, 40 anos, é uma mulher forte e
decidida que atinge aeditoria de uma revista e compete
(com seu futuro noivo) para alcançar uma posição melhor

10 Nos releases sobre esta série, vem, como legitimação, o nome


de Kevin Wade, criador de Sex andthecity, para a televisão. A mudança é
mínima: colocar mulheres no topo da carreira, entre sua vida pública e seu
mundo afetivo.
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dentro do grupo que publica a revista.JulietDraper, rica,


casada, tem um casamento desgastado, seu marido a trai
constantemente, mas sua filha adolescente é seu maior
problema.É a chefe de operações de uma importante
cadeia de hotéis luxuosos, mas se sente frustrada nas
grandes reuniões porque, apesar de ter nas mãos as
decisões finais, era tratava pelos homens como uma
mulher que servia a eles, isto é, não conseguia fazer
com que eles a respeitassem.

Finalmente, a mais nova, ainda solteira, com mais de


30 anos é Caitlin Down, uma executiva brilhante numa
empresa de cosméticos mascom uma vida afetiva pouco
satisfatória.

Trilhando lado a lado com Lipstickjungle, A Máfia..


parecia mais densa e com situações mais desenvolvidas,
focando, principalmente, as assimetrias que ainda
existiam na vida profissional. Toda a narrativa se passava,
através de seus comentários, quando elas se encontram
em eventos ou nas reuniões íntimas semanais marcadas
por elas, quando conversam sobre seus problemas. Tais
personagens, duas casadas, uma noiva e outra solteira
tentam conciliar trabalho, família e suas relações afetivas.

ashmere Mafiairia abordar problemas mais


específicos da profissão, como deixa transparecer desde
o episódio piloto, inclusive, contemplando casais com
um relacionamento mais próximo das transformações
e contratos atuais de casamento.Aparentemente,
as duas séries estariam dispostas a apresentar
uma grande diversidade de mulheres, com vidas e
vivências diferenciadas. No entanto, ambas as séries se
reduziram,com o desenvolvimento dos episódios,a tratar
da instabilidade dos casamentos, dos conflitos amorosos,
traições, além dos constantes conflitos e competições
profissionais.
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Nos dois seriados11, a açãose passa em Nova York,


cidade cosmopolita e base financeira do país, em um
ambiente sofisticado, de classe alta executiva e, por
isto, aparecem cenas no ambiente do trabalho, além das
frequentes cenas em eventos super-sofisticados, a “nata”
dos eventos executivos, envolvendo as personagens.
Por sinal, todas as personagens são bonitas, magras, se
vestem muito bem (“na moda”) e apesar de apresentarem
idades diferentes, são amigas desde a universidade,
portanto tendo bastante intimidade para discutir suas
vidas. Quase todas as suas profissões se relacionam a
novíssimas áreas profissionais que se desenvolveram
nos últimos quinze anos, muitas delas voltadas para o
público feminino e todas as personagens estão no topo
da carreira, inclusive na hierarquia de suas empresas,
mas não estão contentes com suas vidas afetivas.

Assim, percebe-se que a análise de Faludi se


confirma: as mulheres que se tornaram profissionais
vitoriosas,atingidas pela agendafeminista, sofrem suas
consequências quando não conseguem administrar suas
profissões e o casamento.

O próprio release de Lipstickmostra o desafio, neste


curto e incisivo discurso: “A ambição deste trio para
alcançar seus objetivos certamente pode levá-las ao
topo, mas a que custo pessoal?” Esta é a questão que se
coloca12.

Esta é a questão explicitada agora e que, nos anos


noventa, atravessava, subliminarmente, as séries nas
quais as mulheres tinham ou vivenciavam as conquistas
feministas: o custo pessoal, a relação afetiva e seus

11 Utilizo-me das palavras série e seriados de forma indiferente. Para os


EEUU, tais narrativas são denominadas de séries, que foram traduzidas para
o Brasil, como seriados, diferentemente da novela e das mini-séries.
12 Não se pode negar esta sutil referência ao feminismo quando se trata de
filmes comoO diabo veste Prada (2006),Mulheres perfeitas (2004) e o drama
para tvDamages (2007-2012).
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206 julho a dezembro de 2013

desdobramentos, casamento, filhos. E caímos na


instituição que, apesar de todas as transformações
conquistadas pelas mulheres, ainda é vista ou colocada
em cena sob uma perspectiva tradicional: o casamento e
os tradicionais papéis do homem e da mulher.

Não me parece um acaso ter a década de


noventaproduzido uma quantidade de seriadossobre
jovens, na faixa entre vinte e trinta anos e na faixa dos
trinta a quarenta anos proliferado tantos dramas policiais,
incluindo policiais-detetives solteiras e advogadas. Nas
décadas anteriores aos anos de 1990, não se tinha
representações de mulheres solteiras na faixa dos
quarenta anos, quase sempre, e nos poucos dramas que
enfocavam a família, elas estavam no espaço doméstico
e suas tarefas de casa eram alternadas com alguma
iniciativa profissional.13.

Voltando a analisar as representações dessas


mulheres nas duas séries focalizadas, percebi, porque
trabalho com a hipótese de um retrocesso (catapultando
a audiência jovem para fazer uma internalização dos
códigos da sociedade tradicional), de que elas são bastante
diferenciadas daquelas dos anos oitenta e noventa, ou
melhor, do momento das transformações feministas.

Em primeiro lugar, há a premissa de que o


deslocamento da mulher para o trabalho irá criar conflitos
entre o público e o privado, isto é, a crise dos papéis
convencionais dentro da família.

Nas duas séries, das quatro casadas, três casamentos


se apresentam em crise ou desestabilizados. As relações

13 Não se pode descartar a mesma proposição tradicional em séries como


Ghost wishperer e Medium que mostram casamentos alternativos à tradicional
instituição e com maior flexibilidade de papéis, sem maiores conflitos. Mas na
maioria das séries que apresentam a família, como as comédias, o casamento
é operado com situações disfuncionais, desarmonias, apesar de os papéis
desempenhados por homem e mulher (o casal) estarem nos devidos lugares
tradicionais.
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partem de situações familiares estereotipadas ou já


cristalizadas ao longo do tempo e que são destacadas
como um meio de impedir o trabalho e a carreira
ascensional das mulheres. São colocadas as seguintes
situações desestabilizadoras:

1) competição profissional entre o casal;


2) assimetria financeira entre o casal; e
3) inversão de papéis, quando há filhos e alguém
precisa “cuidar dos filhos”.

Por outro lado, tais mulheres com alta autoestima


em relação a suas carreiras profissionais, são carentes
afetivamente, exigindo sempre “atenção e atitudes de
comprovação da afeição de seus pares”, o que as leva
a procurar outros escapes. A intimidade da parceria no
casamento e o equilíbrio na vida profissional parecem
implicar, para estas personagens casadas, em rotina
e tédio, levando-asa encontros “romanescos” fora
do casamento, que são iniciados pelo homem ou pela
mulher14. É interessante notar que as representações
das mulheres mostram que elas não conseguem dialogar
com seus parceiros nem mesmo tomar iniciativas no
campo sexual. São formatadas como insatisfeitas, com
baixa autoestima e subalternas na relação amorosa.

Nas duas séries, é relevante observar que, embora as


mulheres tenham assumido postos mais altos ou iguais
aos homens, o conflito se dá ambiente no doméstico,
onde a assimetria dos papéis - do homem e da mulher
-são vistos de maneira tradicional, sem que possam ser
modificados ou negociados.

A situação mais aguda (crítica e criticável) está no


casal de Lipstickjungle, na personagem Wendy, que é
produtora executiva da indústria do cinema. Os projetos

14 A “traição” merece maior atenção, pois se apresenta em situações


diferentes. No caso da personagem feminina, ela se sentirá culpada.
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do marido não se concretizam e ele fica mais em casa


com os filhos (embora o casal tenha uma empregada,
o que mostra bem o nível econômico do par). É ele
que explicita o desconfortável lugar que ocupa quando
seus empreendimentos têm que ter o aval econômico
da mulher, como ele mesmo explicita quando fala que,
em casa, no ambiente privado, ele está bem, não se
importando com qual função exerce, mas, em público,
a assimetria (ou melhor, a inversão de posições) o deixa
desconfortável. Aqui, as relações de poder se mostram
bem explícitas e está sublinhado que a própria prática
social da sociedade permanece imutável, patriarcal,
mesmo em uma cidade cosmopolita e complexa como
Nova York.

Nos dois casais aparentemente em equilíbrio


financeiro e estabilidade negociada de papéis, porque
os pares encontram sucesso na vida profissional (um
casal em cada série), em um deles há uma negociação
para com os deveres com os filhos (Cashmere mafia),
embora, no outro, se instale uma crise do rotineiro e
do tédio. Neste caso, é a mulher que parte para uma
aventura, digamos, romanesca, com um indivíduo mais
jovem, por frustrações em casa e no trabalho, visto que
ela, segundo o diretor da empresa, chegou ao topo da
carreira.

Constatei, ainda,que, nos dois seriados, o contexto


sociocultural é configurado por uma sociedade tradicional,
muito mais competitiva nas relações de gênero e poder
e que passam a ser explicitado como uma selva. Tais
relações de poder assimétricas são visibilizadas para as
mulheres tanto no âmbito profissional quanto no campo
afetivo e doméstico. Na verdade, a mensagem é de
que esta competição atravessa quase todas as relações
sociais entre homens e mulheres, como também entre
mulheres: entre noivos apaixonados e comprometidos
com o casamento, entre marido e mulher e no trabalho.
Tais crises não aparecem com um tom de crítica, mas
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como naturais e passam pela posição de a mulher ceder


ou recuar diante da competição, da luta.

As séries procuram explicitar ou mesmo justificar:

1) a desestabilização do casamento, porque a


mulher ocupa um cargo de alta responsabilidade fora do
ambiente doméstico;
2) a crise no casamento e na família, porque os
papéis exigidos pela família não estão sendo preenchidos
a contento;
3) a instabilidade dos membros da família no momento
em que a mulher ocupa a “posição” de provedora, com a
“inversão” dos papéis pré-estabelecidos;
4) o fato de serem poucas mulheres em postos de
comando, por causa da maternidade, por elas não ficarem
focadas na empresa.

Para finalizar este aspecto, coloco em cena um


diálogo deLipstickjungle. Em um almoço, no qual
estão presentes o diretor geral e um seu colega, de
repentechega a executiva, editora da revista, que os
interrompepara reivindicar ser alçada ao posto de diretora
de criação(posto acima de sua posição atual), porém sua
pretensão é imediatamente desencorajada pelo diretor
geral. Ele retruca, diante do seu desejo, que não a vê no
posto de diretora de criação porque ela é uma mulher
de certa idade e que está se aproximando do “momento
crítico” de sua vida, que é a decisão de iniciar uma família
(isto é, ter filhos). Ela retruca que não tem esta intenção
e que seu colega (que está sendo preparado para o
cargo) tem dois filhos. Ao que o diretor responde: “Não
tem comparação. É o mesmo que giz e queijo”. E finaliza
com um exemplo: “a última mulher que eu promovi a um
cargo alto teve em seguida um bebê. E perdeu a direção,
a concentração. Homens e mulheres são bem diferentes.
Lógico que você pode me provar o contrário.15” Enfim,

15 Lipstickjungle,episódio 101.
SocioPoética - Volume 1 | Número 10
210 julho a dezembro de 2013

ele não tem certeza e não vai apostar nela.

Este é um ótimo exemplo para evidenciar o backlash


em que se lançou o nosso tempo e como este retorno
a um discurso dominante de ideologia patriarcal, põe
em questão as conquistas das mulheres do século
XX. Além de não perceber o atual deslocamento do
comportamento das mulheres de suas antigas limitações
de subalternidade, este discurso reforça a dualidade de
construções do homem e da mulher, demonstrando que
a mulher sempre privilegia a afetividade, o ser querida,
e o desejo de ser mãe.

Conclusões

Tais séries reiteram, com uma roupagem


aparentemente nova, atualizada, a mulher e seu papel
na família, colocando a antiga dualidade do pensamento
moderno: ou isto ou aquilo. Assim, Ghilardi-Lucena(2003. p.
160.) afirma que não basta estudar estas representações,
embora isto traga à tona e revele o quanto há a ser feito,
ainda, quanto ao “processo lento e secular de luta contra
a discriminação da mulher nas sociedades”.

representações que começaram pelo ano de


Estas
1998, hoje em dia se tornaram o único discurso possível
nos produtos de lazer, de diversão, pois os produtos
midiáticos insistem neste discurso dominante tradicional
de que as mulheres que têm sucesso profissional não
dão atenção à família (sequer têm possibilidade de
encontrar o parceiro afetivo), reimprimindo a construção
discursiva da modernidade: ou a família ou a profissão.
E esta temática encontra-se consolidada, não apenas
nas comédias atuais (que giram em torno da família),
mas também deslocou-se para os dramas investigativos
policiais.

Atualmente, se há pares formados por homens e


mulheres, como personagens principais, a narrativa vai
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desaguar na relação amorosa entre eles, a exemplo das


series leves como Castle (2009- ) e The mentalist (2008-
), sem falar no excelente seriado de investigação The
Closer(2005-2012) que concluíram suas temporadas
com um casamento e uma declaração de amor,
respectivamente. Só falta, agora, casar Olivia Benson,
de Lei e ordem: unidade de vítimas especiais. Tentaram
transformá-la em lésbica, viver com um companheiro, e
ultimamente, ela vai adotar uma criança. De qualquer
forma, contraria-se a caracterização da personagem,
mas a insere neste momento tradicional e conservador.
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Ligado em sérieshttp://www.ligadoemserie.com.br/

Maníacos por series http://www.maniacosporserie.com/

Minha série http://www.minhaserie.com.br/


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TVtomehttp://www.tv.com/

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