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O Defensor Menor de Marsílio de Pádua

A história detalhada do impacto causado pela obra de Marsílio de Pádua no


Renascimento poderia caber melhor num trabalho de cinco páginas. Pela
necessidade temporal, com perdão do trocadilho, uniremos os dois temas advertindo
de início a brevidade na redação. Embora em muitos círculos de estudos sobre o
Renascimento a figura do paduano seja deixada de lado, a novidade de seu
pensamento precedeu em muito tempo a Reforma e os problemas levantados pelos
reformadores, Marsílio foi conselheiro de Luís IV quando este, em 1338, acusou o
papa João XXII de heresia. O Defensor da Paz de Marsílio, livro que constitui a base
do Defensor Menor, consta entre as obras de referência daquele príncipe em sua
acusação.

Precisamente a disputa entre um príncipe e o sumo sacerdote da religião


oficial do império deixa entrever o ponto em que o poder secular, farto das investidas
da Igreja, tomou inciativa e atacou abertamente após séculos de disputas
constantes. Marsílio não era ateu, pelo contrário. Apesar de não ter recebido ordens
sacramentais, o cristianismo fundamenta muito da sua visão de mundo, no entanto
sua fé se encontra associada a um princípio recusado pelo próprio papa. Bens e
propriedades eclesiásticas se acumulavam, a economia canônica das indulgências e
comutação dos votos tornou a Igreja extremamente rica e poderosa. João XXII, que
negou oportunamente a doutrina acerca da Pobreza absoluta de Cristo e dos
Apóstolos, era hábil financista e acumulou enormes somas de dinheiro nos cofres da
Igreja (Lucas, 1960, p.79). Aos olhos da civitas, a ganância pareceu emanar
diretamente dos cargos mais altos da hierarquia eclesiástica. Reinos material e
espiritual deveriam ter entre si um limite bem traçado para que a comunidade dos
fiéis – ou, como diz Marsílio, “sua parte mais relevante” – não fosse lesada
indefinidamente.

As ideias de Marsílio o levaram à corte de Luís IV em Munique onde, fugindo


dos tribunais católicos, deu continuidade a sua obra até falecer por volta de 1343
(Souza, 1997, p. 24). O paduano usufruiu um período propício para a conclusão do
Defensor da Paz, com a colaboração de João de Jandum em 1324. Um conflito
interno criava problemas para o Império desde 1314, quando Luís IV, mesmo tendo
obtido a maioria de votos dos príncipes eleitores, não foi coroado pelo papa. Criou-
se a abertura necessária para que Frederico de Habsburgo, com menos votos,
pudesse reclamar também seu direito ao trono. Ambos, Luís da Baviera e Frederico
da Áustria, eram candidatos à sucessão de Henrique VII de Luxemburgo e
combateram entre si até a morte de Frederico, em 1330 (Souza, 1997, p.16-22).
Neste período, o papa declarou o trono vago e assumiu a administração do Império.
Mais a frente, com o austríaco fora do caminho, a estadia do paduano na corte em
Munique, já que sua obra era bem conhecida, se tornou um entrave para que o papa
finalmente coroasse Luís imperador, mas o perigo para Marsílio desapareceu
quando, aconselhado por franciscanos dissidentes no caso das declarações de João
XXII acerca da Visão Beatífica, o monarca decidiu cortar relações definitivamente
com o papa, acusando-o de heresia pela segunda vez (Souza, 1997, p.23). O
posicionamento de Luís IV em relação à Igreja beneficiou Marsílio imensamente, já
que, além de um ambiente favorável e expansível para suas ideias, também
encontrou segurança na corte do Imperador eleito. O paduano desfrutou
proveitosamente de sua afinidade com o monarca e pode ser graças a Luís da
Baviera que a obra de Marsílio não encontrou um fim prematuro nas fogueiras da
Inquisição.

Suas críticas à ingerência eclesiástica nos assuntos do estado são ferinas.


Por vezes, com linguagem inconsequente e abusada, digna somente de quem conta
com a proteção de um rei, Marsílio denuncia as pretensões de controle do poder
temporal pela Igreja:

Aliás, isso tem sido, e até agora ainda é, a causa da dissensão contínua que
reina entre os fiéis cristãos e continuará a sê-lo, a menos que tal poder e
autoridade usurpados venham a ser tirados totalmente da mão dos clérigos.
Marsílio de Pádua, 1991, p.39

Para entendermos melhor o trecho acima, é preciso buscar algumas raízes do


debate em que Marsílio se posiciona. As disputas entre o poder temporal e
espiritual, mais precisamente a demarcação fixa dos limites de cada esfera,
desenrolavam-se já há gerações. O arcebispo de Bourges, discípulo de Tomás de
Aquino e defensor da plenitudo potestatis, Egídio Romano encontrava-se no lado
oposto de Marsílio. Segundo Egídio, que publicou cerca de 50 anos antes do
paduano, o pontífice exerceria poder absoluto na terra. Enquanto os reis prestariam
contas em juízo ao papa, o papa responderia em julgamento unicamente a Deus e
nenhuma criatura, viva ou no além, poderia repreendê-lo ou remover do posto.
Escreve Egídio no livro Sobre o poder eclesiástico:

Não pode haver dúvida, entre os sábios, que a autoridade sacerdotal


preceda em dignidade e nobreza à autoridade régia e terrena, coisa que
podemos afirmar de quatro maneiras: primeiro, pela doação dos dízimos;
segundo, pela benção e santificação; terceiro, pela aceitação do poder;
quarto, pelo governo das coisas. Egídio Romano, 1989, p. 46

Sua lógica garante a autossuficiência espiritual, política e econômica da


Igreja. Na prática, a pobreza absoluta de Cristo e dos Apóstolos já fora recusada
pela ortodoxia muito antes de João XXII publicar uma bula sobre o assunto. Egídio
procura fundamentar seu raciocínio de forma sólida, empregando a autoridade das
escrituras e dos padres teólogos. Como argumenta, os reis estão obrigados ao
dízimo, pois são tributários de Deus e Seus representantes escolhidos, precisam da
benção para reinar, pois aquele que abençoa é maior que o abençoado, devem
reconhecer sua inferioridade, pois o sacerdócio é mais digno que o poder temporal,
e, por último, devem reconhecer a ordem das coisas criadas por Deus, pois “o
mesmo Deus que rege toda a máquina do mundo é o governador especial de sua
Igreja e de seus fiéis” e não é a toa que Ele fez o mundo como fez (Romano, 1989,
p. 46-49).

Marsílio responde:

Por conseguinte, decorre igualmente que nem o bem-aventurado Pedro


nem qualquer outro Apóstolo possuíram tal jurisdição coerciva sobre os
demais ou ainda sobre os outros ministros da Igreja citados mais acima.
Disso resulta necessariamente que tanto o Bispo de Roma quanto os
demais citados ministros eclesiásticos estão subordinados real e
pessoalmente à jurisdição dos juízes e governantes atuando por força da
autoridade do legislador humano. Marsílio de Pádua, 1991, p.38

De um lado, a plenitudo potestatis avançava sobre o poder temporal


devorando toda a pretensão, ainda em germe, de unir a figura de um forte
governante com um estado verdadeiramente soberano; do outro, a submissão
sacerdotal diante o poder dos reis tirava qualquer pretensão política “da mão dos
clérigos”, ou seja, a Igreja seria rebaixada a um papel de coadjuvante no mundo
material, mesmo exercendo um papel fundamental na salvação dos homens. No
próximo trecho poderemos compreender um pouco mais o papel que Marsílio atribui
ao clero:

(...) não compete à autoridade ou ao poder dos sacerdotes excomungar


espiritual ou civilmente os fiéis (...) nem lançar interditos sobre as
comunidades dos fiéis, ou negar-lhes a celebração dos ofícios divinos. E
digo mais: o bispo ou sacerdote, não importa quem seja, peca mortalmente
interditando ou negando qualquer ofício religioso. Marsílio de Pádua, 1991,
p.74

O parágrafo acima é especialmente polêmico. A tese, exposta originalmente


no Defensor da Paz, inicialmente a um círculo privado e publicada dois anos mais
tarde, ataca a base do princípio de barganha política da Igreja Romana. Em termos
contextualizados, Marsílio deslegitimou publicamente as atitudes de João XXII que,
em meio aos conflitos políticos na Europa, não apenas decidiu não coroar Luís IV
imperador, como também, além de excomungá-lo, declarou-se no controle do
Império Romano. O Poder das Chaves, o poder último que teria sido conferido ao
chefe da Igreja na terra e transmitido diretamente pela linhagem de S. Pedro,
capacidade de perdoar e levar aos céus, ou condenar e enviar ao inferno,
funcionava também como princípio coercivo. Para Marsílio a coerção sobre as
coisas terrenas é uma competência do poder temporal e deve ser exercida apenas
por príncipes e juízes escolhidos, mas não por padres e bispos, tampouco pelo
pontífice, a quem coube outra tarefa, a de aconselhar, esclarecer a Lei Divina e
converter os pagãos, sempre com conselhos e nunca com coerção. Marsílio explica:

Considerando-se que esse poder é chamado poder espiritual, não podemos


por tal razão concebê-lo como uma autoridade ou jurisdição coerciva, apta a
infligir neste mundo a qualquer pessoa um castigo real e pessoal. Já nos
referimos antes a respeito da natureza desse poder para agir, ensinando,
exortando e argumentando. Marsílio de Pádua, 1991, p.46

No Defensor Menor, Marsílio explica o equívoco sobre a coerção. Logo de


início, é preciso compreender que existem dois tipos de lei, a divina e a humana, e
que ambas possuem seus preceitos específicos. A Lei Divina, por exemplo, é
promulgada diretamente por Deus e “contém um preceito coativo a ser infligido
àqueles que a transgridem neste mundo, sob a forma de uma pena ou castigo a ser
aplicado na outra vida, não nesta” (Pádua, 1991, p.35); a lei humana é estatuída
pelo conjunto dos cidadãos, que devem “legislar por deliberação imediata sobre os
atos humanos voluntários que cada pessoa deve realizar ou se esforçar por fazê-los
neste mundo para atingir o melhor fim” (Pádua, 1991, p.36), sendo que a pena ou
castigo para aqueles que transgridam a lei humana é aplicado nesta vida, não no
além. Marsílio não nega que Cristo exerça coação, mas Ele encarnou em si a
plenitude do poder, Sua pessoa era divina e humana, diferente dos bispos e
presbíteros, que são pessoas humanas apenas. O único com poder de condenar ao
inferno é Deus e, como se trata do reino espiritual e a nenhum sacerdote foi dado
este poder, Marsílio insiste constantemente no limite legal a ser traçado entre os
reinos, sempre escoltado pela autoridade dos apóstolos e dos padres doutores.
Ainda, é preciso considerar o legislador humano, para Marsílio, o legítimo detentor
do poder absoluto no reino material:

O supremo legislador humano, desde a época de Cristo, e talvez mesmo há


algum tempo antes, até hoje foi, é e deve ser o conjunto de todos os
homens ou sua parte mais relevante em cada uma das regiões e províncias,
os quais têm de estar subordinados aos preceitos coercivos da lei. Marsílio
de Pádua, 1991, p.81

Único capaz de derrubar príncipes e imperadores, o legislador humano reina


absoluto no tempo. Sua plenitude de poder é constituída pelas armas deste mundo,
acessórios profanos que a Igreja não deve utilizar. Marsílio cita a segunda epístola
aos coríntios:

Paulo escreve: “As armas com que combatemos não são carnais” (2Cor
10,4), mas são espirituais, isto é, verbais. Ao contrário, as armas, graças às
quais os homens são coagidos a fazer algo, são carnais, quer dizer,
materiais ou corporais. Marsílio de Pádua, 1991, p.42

Os problemas concernentes à jurisdição do príncipe, enquanto este seja


legítimo representante, se materializaram na prática quando Luís IV pediu a
anulação de um casamento. Para tornar a questão ainda mais polêmica, o noivo,
que era seu filho, marquês de Brandemburgo, era primo da escolhida. Marsílio e
Guilherme de Ockham socorreram Luís na disputa. Ockham escreveu Consulta
sobre uma Questão Matrimonial, Marsílio, Sobre a jurisdição do Imperador em
Questões Matrimoniais, ambos avançando sobre um tema ainda tabu. Para Marsílio,
não é surpresa, o imperador tem jurisdição sobre o casamento.
Não é possível extrair da leitura do Defensor Menor qualquer indício da
opinião de Marsílio acerca da eucaristia, tema de grande importância para a
Reforma, embora a leitura do Defensor da Paz pareça indicar sua aprovação.
Podemos traçar um paralelo nítido entre as reinvindicações do paduano e as dos
reformadores, quanto mais nos referirmos à comunicação direta dos fiéis com Deus,
a postura anti-papista e à contestação dos sacramentos. Destes, o casamento e a
confissão atraem a atenção do paduano na medida em que, discorrendo sobre os
limites do poder eclesiástico, nosso autor afirma que a característica civil destes dois
sacramentos transfere sua jurisdição ao legislador humano.

Para não nos alongarmos muito, podemos concluir lamentando novamente a


brevidade com que discorremos sobre alguns temas levantados por Marsílio no
Defensor Menor e o contexto histórico que embalou a jornada do nosso autor, assim
como pela escolha arbitrária que nos fez deixar de lado temas preciosos, como as
indulgências e a comutação dos votos. Os desdobramentos de sua obra são
inúmeros, como demonstra Gregório Piaia na introdução brasileira do Defensor da
Paz, e a influência que exerceu posteriormente na Reforma é inegável. Devemos
admitir que Marsílio foi um homem à frente de seu tempo e suas reflexões, ainda
hoje, nestes tempos em que grupos religiosos “usurpam” o poder político, como
quando a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) aprovou a
“redução da maioridade penal” em nosso país apoiando-se em trechos bíblicos, isto
em pleno ano de 2015: há quase setecentos anos Marsílio nos avisou.

REFERÊNCIAS

LUCAS, Henry S. The Renaissance and the Reformation. Nova Iorque: Harper
& Brothers, 1960

PÁDUA, Marsílio de. Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997

PÁDUA, Marsílio de. Defensor Menor. Petrópolis: Vozes, 1991

ROMANO, Egídio. Sobre o poder eclesiástico. Petrópolis: Vozes, 1989

SOUZA, José Antônio Camargo Rodrigues. O Defensor da Paz: Introdução In


PÁDUA, Marsílio de. O Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997 págs.13-41
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“Júlio de Mesquita Filho”

Filosofia Medieval e Renascentista II

Prof.: Matteo Raschietti

Gabriel Florentino Gonçalves

R.A.: 141064757

MARÍLIA-SP
2014/2015

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