Você está na página 1de 20

1.

Introdução
Este pequeno ensaio trata de um estudo
sobre a concepção de metastasis em Eric
Voegelin e sua relação com outros autores e
experiência pessoais que dão substância a esta
investigação, tarefa que acredito ser de grande
valia para que saibamos se os conceitos que
apreendemos em livros tratam-se ou não de
cascas ocas. Acredito que tal sirva de
complemento e fundamento de algumas
concepções inicialmente vistas em Da Ideologia e
em Por uma Liberdade Prudente, ambos movidos
pelo desejo de cavar um buraco para fora da
caverna tanto de minha própria cabeça como
para trazer luz a quem mais puder. Aqui espero
trazer boas reflexões quanto ao caráter religioso
que dá fundamento às ideologias e suas raízes no
espírito humano, em especial no interior de
nosso pior vício, aquele que pode transformar
uma crença real em uma crença cancerígena.
2. Metastasis
A fé metastática é uma das grandes, se não a
principal, fonte de desordem no mundo
contemporâneo; e é uma questão de vida ou
morte para todos nós entender o fenômeno e
buscar remédios contra ele antes que ele nos
destrua.
Em biologia, quando um tumor maligno
espalha-se para além de seu ponto de origem,
dizemos que este entrou em estado de metástase.
Cânceres normalmente originam-se de células
normais defeituosas que passam funcionar de
modo disforme e a multiplicar-se
desordenadamente. Com crenças, ocorre algo
análogo: uma crença errônea costuma nascer da
corrupção de uma crença verdadeira, do mesmo
modo como a melhor forma de ludibriar –
inclusive a si mesmo – é através de um sofisma
com base verdadeira, o que costuma-se chamar
de ‘meia verdade’,
Eric Voegelin introduziu o
termo metastasis[1] para significar essa mudança
na constituição do ser, de sua forma
transcendente para uma forma imanente.
Quando estudamos ontologia, em certo
momento encontramos a noção de constituição
do ser: o ser é o que é, verum est id quod est,
sempre apontando para certa identidade do ser
enquanto ser, pois a matéria trata do ser
enquanto o sujeito cognoscente já sabe de sua
capacidade de captá-lo. Em epistemologia,
tratamos do modo como podemos captar o ser, e
de que modo podemos tratar dele.
Tradicionalmente, o ser mesmo deve ser sempre
visto como transcendente, englobando e
ultrapassando as coisas mesmas, às quais
chamamos ônticas; quando reduzimos o ser
enquanto ser às coisas mesmas realizamos a
redução do ontológico ao ôntico, o simbolizado
ao símbolo, e então os objetos determinados
adquirem certas propriedades do indeterminado.
Essa redução é o que dá origem a grandes erros
filosóficos, como o panteísmo, o materialismo, o
idealismo material[2], entre outros; quando a
cosmovisão das pessoas muda o modo de ver o
ser como transcendente e o reduz a essa forma
imanente, temos a metastasis; quando essa
mudança atinge a crença religiosa e a pessoa
passa a acreditar que certa transfiguração do
mundo pode ser realizada de forma imanente,
temos a fé metastática[3]. Ambos os fenômenos,
quando unidos à crença de que tal transfiguração
trará um fim ou sentido da história,
compreendem o que chamamos imanentização
do eschaton[4], e quando servem de causa formal
e final de um programa político, constituem o
que se conhece como ideologia.
Voegelin diz que a ideologia é
a nosos [νόσος], ou doença do espírito[5]. O
termo é retirado do livro O Sofista[6] e refere-se a
uma deformidade do conhecimento mais ou
menos ao modo da distorção
dramática[7] tratada por Lonergan. De qualquer
forma, a ideologia é um incêndio que só surge
após a faísca de uma crença corrompida e
cultivada a modo parasitário em algum sistema
outro até que este seja negado a modo de
substituição através da metastasis; tal negação é
o que se chamou negação metastática[8].
Quando tais crenças cancerígenas levam o fiel a
procurar realiza-las in re, – como aquele que nos
exortou a modificar a realidade em vez de
compreendê-la – temos a ação metastática[9], que
Voegelin bem definiu como uma tentativa de
transformação do real através de certa fantasia
escatológica, mítica ou historiográfica.
3. Libido Dominandi
A história moderna é o diálogo entre dois
homens, um que acredita em Deus, outro que
acredita que é deus.
Nicolás Gómez Dávila
Mircea Eliade afirma que por mais alto que
seja o nível de dessacralização em que o homem
se encontre, ainda assim não poderá abandonar,
em algum nível, o comportamento religioso[10];
não é um pensamento fácil de engolir à primeira
vista, mas também não é algo que se possa
descartar. Para que possamos tratar do assunto
como se deve, preenchamos nossos conceitos
com alguma substância empírica. O homem
dessacralizado é facilmente encontrável; em
verdade é comum o gracejo de que tal espécime
não é encontrado, mas ele de fato vem a nós e se
apresenta como um exemplar do tipo assim como
o fazem determinados praticantes de exercícios
multifacetados e apreciadores de vegetais. Por
exemplo, podemos observá-lo na filosofia sob
variadas roupagens: o defensor de determinada
ética – ou metaética – de sabor pragmático, o
defensor de certa dialética que relaciona a
história e a matéria, aquele que traz à luz uma
prova ontológica da existência do mundo, ou até
aquele que na falta de uma ontologia[11]que o
satisfaça, procura defender apenas o que satisfez
melhor seus próprios desejos. Mas o que nos
interessa no momento não é analisar cada uma
dessas vertentes que nos saltam aos olhos, – cada
uma possui mais de dez grandes autores, de
modo que quando um cai outro se levanta, como
a eterna noite dos mortos vivos da refutação –
mas observar alguns pontos essenciais que já nos
foram escancarados tantas vezes, tal qual como o
óbvio ululante de que são em sua esmagadora
maioria, doutrinas imanentes – e aqui incluo até o
famigerado good vibes filosófico, o relativista.
Mas antes urge que analisemos algumas coisas.
O monge Enzo Bianchi em seu pequeno
artigo Contra as Três Libidos[12] trata de três
esferas do pecado: a corrupção do amar, (Libido
Amandi) a corrupção do querer (Libido
Possidendi) e a corrupção de si (Libido
Dominandi); e esta última é a que nos interessa.
A Libido Dominandi é a tentação do
poder[13], da afirmação de si a modo de adoração,
ou culto de latria se desejarmos o termo
teológico; modernamente, se olharmos em
especial nos meios individualistas encontraremos
tal libido sob o hieróglifo de amor-próprio, tema
bem tratado por Louis Lavelle em seu O Erro de
Narciso. Aquele que já topou com um narcisista
ou pretendente a tal, com alguma probabilidade
percebeu que “O amor-próprio corrompe de
muitas maneiras nossas relações com os outros
homens”[14], e trata-se uma pessoa difícil de se
lidar especialmente em suas formas extremadas.
De qualquer forma, observando nosso narcisista
primordial, percebemos certo movimento [do
amor de] de si para si, ou ao menos uma
consciência de si enquanto digno de elevada
estima. Ora, não podemos negar algum grau de
dignidade à pessoa, nem que seja a que possui
por ser uma; mas além da hipérbole do narcisista,
e seu oculto desejo de culto, percebemos que um
sentimento do tipo – se quisermos ser
estritamente coerentes – só pode se dar sob as
condições de uma cosmovisão imanente: uma
cosmovisão que inclua algo incontestavelmente
superior em dignidade anula o desejo do culto de
si como libido dominandi em estágio final. Talvez
sejamos contestados pelos asseclas de certa
doutrina que prega o culto de si através de um
transcendente; pois respondemos que tal
doutrina não pode existir senão como inverso e
caricatura de outra, a modo de um
verdadeiro tumor metastático em uma doutrina
anterior que lhe empresta seus símbolos
corrompidos.
Doutrinas imanentes possuem certo
movimento de natureza centrípeta, digo, devem
apontar para seu interior e rogar para si duas
coisas: a negação da transcendência – no caso da
filosofia, do ser enquanto ser – e a afirmação de
certo fundamento dado ou no sujeito mesmo –
supremacia da razão, do sujeito – ou num objeto
englobado na esfera do mundo – na esmagadora
maioria dos casos, a matéria; esse movimento
centrípeto já é uma forma
de metastasis. A metastasis não obrigatoriamente
se realiza numa ordem imanente, mas toda
ordem imanente é obrigatoriamente metastática,
e toda crença religiosa que se desenvolva dentro
de tal cosmovisão é também; do mesmo modo,
toda religião, quando pelo capricho racionalista é
endossada pela razão mesma como adequada –
ao modo Kantiano em seu A Religião nos Limites
da Simples Razão? – fatalmente se tornará uma fé
metastática, visto que a transfiguração enquanto
símbolo da reconstrução do homem – como na
ressurreição – será transferido para o homem
mesmo transfigurado no mundo.
De tal observação podemos seguir Eliade
quando este afirma que certos misticismos
políticos – e aqui acrescentamos também os
filosóficos – são comportamentos religiosos
degenerados[15] que normalmente nascem
da libido dominandi; não nos cabe dizer se
Nietzsche foi ou não irônico, mas é um fato
notório que tal trecho descreve com maestria o
que queremos apontar como a raiz de certos
pensamentos:
Hei de vos abrir, porém, inteiramente o
meu coração, meus amigos; se existissem deuses
como poderia eu suportar não ser um deus?! Por
conseguinte, não há deuses. [16]
4. Coincidentia Oppositorum
A dialética de Nicolau de Cusa, entre suas
várias nuances, nos apresenta as categorias
de maximum e minimum, que, enquanto
superlativos, tornam-se a coincidência dos
opostos. Não pretendo tratar aqui do tema, mas
utilizar suas linhas gerais ao modo de um logos
analogante em nosso tema proposto. São
Bernardo de Claraval, quando escreveu Os Graus
da Humildade e da Soberba, elencou tais tipos de
virtude e vício em doze graus, onde o máximo de
humildade é a rememoração da própria pequenez
e a degradação dos pecados, enquanto o máximo
da soberba é o costume de pecar[17]. São
superlativos opostos, do mesmo modo como a
crença imanente e a crença transcendente: na
primeira a transfiguração é in e na segunda, ex.
Mas devemos atentar que o comportamento de
ambos não difere segundo o modo, mas segundo
o objeto; como Eliade aponta[18], o
comportamento do a-religioso não difere do
religioso nesse aspecto, e foi essa intelecção que
fez com que o primeiro estudo sobre ideologias
de Voegelin recebesse o nome de As Religiões
Políticas[19]. Tendo em vista tal diferença de
espécie, mas não de gênero, estamos em
condições de dizer que não há muita diferença
entre as práticas do fiel que crê na salvação
transcendente do que crê na salvação imanente e
isso se aplica mesmo ao nível ritualístico
contendo até encenações iniciáticas[20]. Se
quisermos exemplos próximos daqueles que
consideramos ideólogos ou pelo menos fiéis
metastáticos, podemos observar as pequenas
seitas que surgem normalmente em cursos de
humanas, – nomeadamente os movimentos ditos
sociais – com seus dialetos e práticas próprias.
Normalmente os membros de tais “tribos”, talvez
por certa atração mas ao mesmo tempo repulsa
pelo transcendente ou pelo menos pelo oculto,
alguns terminam por se tornar adeptos de cultos
esotéricos que os permitam continuar com suas
práticas corriqueiras sem que a pesada mão da
culpa os reprima; esse curioso fenômeno foi visto
por C.S. Lewis, que não tardou a gracejá-lo
chamando tal estranho tipo de mago
materialista[21]. De qualquer forma,
tal coincidentia oppositorum é pura libido
dominandi.
5. Epílogo?
Normalmente, ao tratarmos de ideologia,
olhamos sempre para o fim da história mundano,
a imanentização do eschaton. Aqui procurei,
através da leitura de Voegelin e Eliade, levar o
leitor a perceber que muitas vezes a gnose e a
ideologia – caso se trate de um tema político –
muitas vezes não é apenas caracterizada por esse
desejo de salvação intramundano, mas também
de um desejo oculto de culto nascido de sua libido
dominandi. Pessoalmente, a esmagadora maioria
dos ideólogos com os quais tive contato aderiu a
tais ideologias por motivos que podem ser
facilmente incluídos aqui, e através da análise de
consciência que Lavelle nos força a fazer e as
reflexões que Eliade nos traz, tais impulsos
podem ser facilmente identificados e
neutralizados quando vistos em pessoas próximas
que possamos ajudar. Também acredito que tais
reflexões sejam úteis para a análise da conjuntura
política, que no momento em que este pequeno
artigo é escrito, mostra-se um verdadeiro show
trash gnóstico onde algumas figuras conhecidas
exibem uma fé metastática. Espero que tal traga
bons frutos àquele que o lê assim como traz para
mim a leitura das fontes que o tornaram possível.
Notas:
[1] “Não existe nenhum termo técnico que
descreva o estado da psique no qual a experiência
de ritmos cósmicos, no contexto da forma
histórica, dá nascimento à visão de um mundo
que mudará sua natureza sem deixar de ser o
mundo em que vivemos concretamente. Vou
introduzir, portanto, o termo metastasis para
designar a mudança na constituição do ser
contemplada pelos profetas. ” Israel e a
Revelação p. 507
[2] Por idealismo material entendo a
posição de Descartes e Berkeley como exposta e
recusada por Kant: “O idealismo (o
idealismo material, entenda-se) é a teoria que
considera a existência dos objetos fora de nós, no
espaço, ou simplesmente duvidosa
e indemonstrável, ou falsa e impossível; o primeiro
é o idealismo problemático de Descartes, que só
admite como indubitável uma única afirmação
empírica (assertio), a saber; eu sou; o segundo é o
idealismo dogmático de Berkeley, que considera
impossível em si o espaço, com todas as coisas de
que é condição inseparável, sendo, por
conseguinte, simples ficções as coisas no
espaço.” Crítica da Razão Pura b274
[3] “Eric Voegelin usava o termo “fé
metastática” para designar a crença ou
esperança numa repentina transfiguração da
estrutura da realidade e na subsequente
emergência de uma ordem paradisíaca. A
expectativa dessa transformação perpassa toda a
literatura revolucionária desde o século XVI. Com
o tempo, acabou por se tornar uma figura de
pensamento incorporada de tal modo nos usos
populares, que a ela se pode recorrer com relativa
certeza do efeito psicológico, a despeito do
fracasso de todas as transfigurações anteriores.
” Para Além dos Milagres.
[4] “A análise pode ser retomada agora ao
nível dos princípios. A tentativa de construir
um eidos da história conduzirá à imanentização
falaciosa do eschaton cristão. No entanto, a
compreensão da tentativa como falaciosa suscita
questões desconcertantes com respeito ao tipo de
homem que se deixa por ela enganar. A falácia
parece bastante óbvia. É possível presumir que os
pensadores que empreenderam a tentativa não
eram suficientemente inteligentes para discerni-
la? Ou a discerniram, mas não deixaram de
propaga-la por alguma obscura e malévola razão?
A simples formulação dessas perguntas indica
que a resposta é negativa. Sem dúvida, não se
pode explicar sete séculos de história intelectual
em termos de ignorância ou desonestidade. Por
isso, cumpre presumir que alguma força agia na
alma desses homens, impedindo-os de ver a
falácia. ” A Nova Ciência da Política p.93
[5] “A ideologia é a existência em rebelião
contra Deus e o homem. Ela é a violação do
Primeiro e do Décimo mandamentos, se
quisermos usar a linguagem da ordem israelita;
ela é o nosos, a doença do espírito, se quisermos
usar a linguagem de Ésquilo e Platão. ” Israel e a
Revelação p.32
[6] 227c em diante.
[7] INSIGHT p.204 em diante.
[8] “A constituição do ser é o que é, e não
pode ser afetado por caprichos humanos. Assim,
a negação metastática da ordem da existência
mundana não é uma proposição verdadeira na
filosofia, e nem um programa de ação que
pudesse ser executado. A vontade de transformar
a realidade em algo que, por essência, ela não é
representa a rebelião contra a natureza das coisas
ordenada por Deus. ” Israel e a Revelação p.508
[9] “Na variedade de formas simbólicas é
reconhecível a substância comum da vontade
metastática de transformar a realidade por meio
da fantasia escatológica, mitológica, ou
historiográfica, ou pela perversão da fé em um
instrumento de ação pragmática. ”Israel e a
Revelação p.508
[10] É preciso acrescentar que uma tal
existência profana jamais se encontra no estado
puro. Seja qual for o grau de dessacralização do
inundo a que tenha chegado, o homem que optou
por uma vida profana não consegue abolir
completamente o comportamento religioso. Isto
ficará mais claro no decurso de nossa exposição:
veremos que até a existência mais dessacralizada
conserva ainda traços de uma valorização
religiosa do mundo. O Sagrado e o Profano p.27
[11] Digo com o significado de “fundamento
filosófico mais ou menos sólido”.
[12] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/52
4266-contra-as-tres-libidos-resistir-resistir-
resistir-artigo-de-enzo-bianchi
[13] “A última tentação “mãe” é a do poder,
da afirmação de si sobre os outros: a libido
dominandi, talvez o ídolo que requer a adoração
mais total, quando chega até a exigir o sangue
dos outros nossos irmãos e irmãs em
humanidade. Não por acaso, para o Apocalipse de
João, esse ídolo chega a assumir os traços do
próprio Deus (cf. Ap 13), a se travestir de Deus
para ver voltadas a si a adesão e a adoração que
devem ir somente a Deus. ” Contra as Três
Libidos.
[14] O Erro de Narciso p. 131
[15] “Mas não é apenas nas “pequenas
religiões” ou nos misticismos políticos que se
reencontram comportamentos religiosos
camuflados ou degenerados: pode se reconhecê-
los também em movimentos que se proclamam
francamente laicos, até mesmo anti-religiosos.
Citamos, por exemplo, o nudismo ou os
movimentos a favor da liberdade sexual absoluta,
ideologias nas quais é possível decifrar os
vestígios da “nostalgia do Paraíso”, o desejo de
restabelecer o estado edênico anterior à queda,
quando o pecado não existia e não havia rotura
entre as beatitudes da carne e a consciência. ” O
Sagrado e o Profano p.169
[16] Assim Falou Zaratustra p.80
[17] Os Graus da Humildade e da
Soberba p.89
[18] “A grande maioria dos “sem religião”
não está propriamente falando, livre dos
comportamentos religiosos, das teologias e
mitologias. Estão às vezes entulhados por todo
um amontoado mágico religioso, mas degradado
até a caricatura e, por esta razão, dificilmente
reconhecível. ” O Sagrado e o Profano p.167
[19] Die politischen Religionen, editado em
1938.
[20] “Além disso, é interessante constatar
quantas encenações iniciáticas persistem ainda
em numerosas ações e gestos do homem a
religioso de nossos dias. Deixamos de lado,
evidentemente, as situações onde sobrevive,
degradado, um certo tipo de iniciação; por
exemplo, a guerra e principalmente os
combatentes individuais (sobretudo entre
aviadores), efeitos que implicam “provas”
equiparáveis às das iniciações militares
tradicionais, embora, em nossos dias, os
combatentes já não percebam o significado
profundo de suas “ provas” e, portanto, tirem
pouco proveito de seu alcance iniciático. Mas
mesmo técnicas especificamente modernas, como
a psicanálise, mantêm ainda o padrão iniciático.
O paciente é convidado a descer muito
profundamente em si mesmo, a fazer reviver seu
passado, enfrentar de novo seus traumatismos –
e, do ponto de vista formal, essa operação
perigosa assemelha se às descidas iniciáticas aos “
Infernos”, entre os espectros, e aos combates com
os “ monstros”. Assim como o iniciado devia sair
vitoriosamente das provas, em suma, “ morrer” e
“ressuscitar” para alcançar uma existência
plenamente responsável e aberta aos valores
espirituais, o analisado de nossos dias deve
afrontar seu próprio “ inconsciente”, assediado de
espectros e monstros, para encontrar nisso a
saúde e a integridade psíquicas, o mundo dos
valores culturais. ” O Sagrado e o Profano p.169
[21] “[…]tornar a ciência dos homens
emocional e mítica a ponto de passarem a des
confiar daquilo que na verdade é a crença na
nossa existência (embora não sob esse nome) ao
mesmo tempo que suas mentes se mantêm
fechadas para o Inimigo. A “Força da Vida”, a
veneração do sexo e outros aspectos da
Psicanálise podem ser bastante úteis nesse
sentido. Se pudermos produzir nossa obra
perfeita – o Mago Materialista, o homem que não
apenas utiliza, mas que na verdade venera aquilo
a que dá o nome vago de “Forças”, ao mesmo
tempo que nega a existência de “espíritos” –,
então saberemos que a batalha chegará ao fim. ”
Cartas de um diabo a seu aprendiz p.32

Você também pode gostar