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A Universidade do Brasil

Um itinerário marcado de lutas

Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero


Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Introdução é ela própria; procura identificar no seu interior os


“grupos hegemônicos”, que a protagonizaram até
Este artigo é um dos produtos da pesquisa “A sua reestruturação nos anos 60; situa o papel e a
Universidade do Brasil: o grande projeto universi- composição dos órgãos colegiados, em que consis-
tário”.1 O trabalho passa em revista a concepção te o poder decisório desses órgãos, assinalando as
de universidade que marca a história dessa insti- condições institucionais para o desenvolvimento
tuição a partir de 1920, quando é criada, detendo- do ensino e da pesquisa, com vistas à produção do
se na Reforma Campos (1931), que a reorganiza, conhecimento.
e na Lei nº 452/37, que a institui como Universi- Desde logo, cabe observar que analisar a his-
dade do Brasil (UB), até 1965, quando recebe nova tória da Universidade do Brasil constitui tarefa re-
denominação: Universidade Federal do Rio de Ja- pleta de dificuldades, além de implicar um desafio
neiro (UFRJ). Analisa as percepções oscilantes do que se torna ainda maior quando dispomos de es-
princípio de autonomia universitária, como algo paço limitado para examinar sua história sem per-
inerente ao governo da universidade e cujo sujeito der de vista que seu modo de funcionar é localiza-
do e datado.
Assim sendo, se quisermos entender as origens
e a construção da Universidade do Brasil, hoje UFRJ,
1 Como resultado desse projeto outros trabalhos fo- como também, dentro dela, o significado de certos
ram produzidos, destacando-se a série Universidade do Bra- fatos e medidas, precisamos considerar algumas li-
sil: história e memória, a ser publicada pela Editora UFRJ
nhas de força do contexto que vão contribuir para
e cujos três primeiros volumes já se encontram no prelo: a)
A Universidade do Brasil: construção e mudanças; b) Guia
que determinadas propostas em relação a essa ins-
dos dispositivos legais da Universidade do Brasil e c) A Uni- tituição se efetivem; sentimos como necessário, tam-
versidade do Brasil, a dinâmica de seus cursos e unidades. bém, conhecer a superestrutura política e ideológi-

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ca com a qual e na qual as diferentes forças sociais descentralização, vão ocorrer algumas tentativas de
e pessoas estavam articuladas. criação de universidades, tendendo o movimento a
deslocar-se momentaneamente da órbita do Gover-
Os anos 20 e a criação da no Central para a dos estados. Assim, sob a influên-
Universidade do Rio de Janeiro cia desses princípios surgem a Universidade de Ma-
naus, em 1909, a de São Paulo, em 1911, e em 1912
Partimos da premissa de que a criação da Uni- a do Paraná, como instituições livres para as quais
versidade do Rio de Janeiro pode ser entendida co- as condições do meio não permitiram senão uma
mo um fato histórico; para estudá-lo, procuramos existência efêmera e precária (idem, p. 177).
relacioná-lo com as demais instituições da sociedade E mais, da Colônia à República, tentativas são
com a qual se articula e com os debates travados feitas em favor da criação de universidades no Bra-
sobre a questão da universidade nos anos 20. Des- sil. Até o final do período monárquico, mais de duas
sa ótica, torna-se possível uma compreensão mais dezenas de propostas e projetos foram apresenta-
abrangente das instituições universitárias ao longo dos sem êxito; após a Proclamação da República,
desses anos e as discussões a respeito do que deve- as primeiras tentativas também se frustraram.
ria ser uma universidade. Vale observar que, até os anos 10 deste sé-
Lembramos que os anos 20 foram marcados culo, o ensino superior sofreu várias alterações em
no Brasil por novas idéias, por movimentos cultu- conseqüência de dispositivos legais expedidos pelo
rais, políticos e sociais que tiveram profundas reper- Governo Federal. Mas somente em 1915 a Refor-
cussões nas décadas seguintes. Assim, promoveu-se ma Carlos Maximiliano, por meio do Decreto nº
a Semana de Arte Moderna de 22, em São Paulo, 11.530, dispõe a respeito da instituição de uma uni-
que rompeu com os moldes do academicismo na versidade. Embora de forma lacônica, a criação da
pintura, na música e na literatura, contribuindo pa- instituição universitária passa a ser reconhecida le-
ra um contato mais direto com a vida brasileira e galmente através do art. 6º ao determinar: “O Go-
com as novas tendências da arte européia mais viva. verno Federal, quando achar oportuno, reunirá em
Do ponto de vista político, temos uma série de re- Universidade as Escolas Politécnica e de Medicina
beliões, conhecidas como o “movimento tenentis- do Rio de Janeiro, incorporando a elas uma das
ta”, que culminaram com a Revolução de 1930. É Faculdades Livres de Direito, dispensando-a da taxa
nesse período, ainda, que se constituem, no Rio de de fiscalização e dando-lhe gratuitamente edifício
Janeiro, a Academia Brasileira de Ciências (ABC), para funcionar”.
em 1922, cujas origens datam de 1916, quando é Em decorrência, a 7 de setembro de 1920, por
fundada a Sociedade Brasileira de Ciências, e a As- meio do Decreto nº 14.343, o presidente Epitácio
sociação Brasileira de Educação (ABE), instituída Pessoa institui a Universidade do Rio de Janeiro,
em 1924. Essas duas entidades iniciam um movi- considerando oportuno dar execução ao disposto
mento pela modernização do sistema educacional no decreto de 1915. Reunidas aquelas três unidades
brasileiro em todos os níveis, incluindo o universi- de caráter profissional, foi-lhes assegurada autono-
tário (Schwartzman, 1979, p. 163). Nesse contex- mia didática e administrativa, cabendo sua direção
to, a última década da Primeira República apresen- ao presidente do Conselho Superior de Ensino, na
ta-se marcada pelo aumento da demanda por edu- qualidade de reitor, e ao Conselho Universitário.
cação superior, em decorrência das transformações Conseqüentemente, Ramiz Galvão, então pre-
econômicas, políticas, culturais e institucionais em sidente desse Conselho, órgão no qual estavam su-
processo no País (Cunha, 1980). bordinadas todas as escolas superiores do País, é
Cabe observar ainda que na primeira década designado como seu primeiro reitor, cargo que exer-
deste século, com base nos princípios liberais de ceu cumulativamente até 1925. O exame das Atas

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da Assembléia das Congregações — outubro a de- Há felizmente, hoje, nesta Capital, todos os ele-
zembro de 1920 —, convocadas estas para a dis- mentos necessários à constituição da sua universida-
cussão e a aprovação do Regulamento da Universi- de; dois estabelecimentos oficiais de ensino superior
dade nos termos do § 2º do art. 2º do Decreto nº bem organizados, a Faculdade de Medicina e a Esco-
14.343, desse ano, nos leva a perceber como algu- la Politécnica; a Faculdade de Direito, resultante da
mas questões são recorrentes nessas reuniões. En- fusão das duas Faculdades reconhecidas de seus cor-
tre outras, destacamos: autonomia didática e admi- pos docentes. Dada esta convergência de elementos
nistrativa das unidades; atribuições e constituição valiosos, impõe-se a organização da Universidade do
das congregações das unidades; o papel e o direito Rio de Janeiro, como agremiação dos estudos supe-
de assento de professores substitutos nas congrega- riores, sob um laço forte e comum. Aí devem enfeixá-
ções; a acumulação de outros cargos e funções e o los todos os ramos do saber humano para desenvol-
magistério; a adaptação dos currículos e transferên- vimento e progresso das ciências, com que se prepa-
cias de alunos; a equiparação do pagamento dos ram os cidadãos para bem servir à Pátria e conduzi-
professores ao dos funcionários públicos federais. la aos seus gloriosos destinos. O exemplo salutar das
Finalmente, em 23 de dezembro de 1920 é nações européias, que, desde muito, aceitaram a or-
aprovado o primeiro Regimento da Universidade e ganização universitária e a praticam até hoje; o exem-
não o Regulamento, como aparece nas discussões plo dos países americanos, onde tem dado os melho-
das Assembléias das Unidades, através do Decreto res frutos essa organização; o afã demonstrado pela
nº 14.572, que dispõe, em seu art. 1º, ser objetivo nova geração brasileira, procurando acompanhar os
da Universidade do Rio de Janeiro: “estimular a cul- progressos da ciência universal, tudo isso impele, na-
tura da ciência, estreitar entre os professores os la- turalmente, o Brasil a estabelecer o regime universi-
ços de solidariedade individual e moral e aperfeiçoar tário, em que é lícito fundar as maiores esperanças. À
os métodos de ensino”. E, nas disposições gerais Universidade do Rio de Janeiro deverão suceder ou-
transitórias (art. 17), determina que prevalecerão, tras, correspondendo às necessidades da nossa popu-
para todos os casos compreendidos no Regimen- lação e à vastidão do nosso território, institutos para
to, as disposições da Reforma Carlos Maximiliano, os quais já existem apreciáveis elementos em vários
com a necessária adaptação ao regime universitário. Estados da República. É uma aspiração legítima, que,
Desse modo, a primeira universidade oficial é para se realizar, dependerá, unicamente, de autoriza-
criada. Resulta, como já assinalado, da justaposi- ção do Poder Legislativo.
ção de três escolas tradicionais, sem maior integra-
ção entre elas e cada uma conservando suas ca- E, a seguir, afirma que o Decreto nº 11.530,
racterísticas próprias, como se pode depreender da de 1915, revigorado pelo art. 8º da Lei nº 3.454,
leitura das “Atas da Assembléia constituída pelas de 6 de janeiro de 1918, possibilitou concretizar-
Congregações dos Institutos de Ensino Superior” se “assim, em preceito legal a antiga e constante
dessa instituição, tão logo foi criada. E mais, como aspiração da Universidade brasileira, graças à remo-
adverte Nagle: “não se consegue perceber na nova ção do único embaraço até agora existente, o de
estrutura qualquer forma de realização do que fi- duas Faculdades de Direito nesta Capital, desde que
cou explicitado na Exposição de Motivos do Mi- se operou entre elas a fusão e hoje constituem um
nistro da Justiça e Negócios Interiores Alfredo Pin- instituto com personalidade jurídica”.
to Vieira de Mello que encaminha o Decreto nº O confronto do que propõe o ministro com a
14.343” (1978, p. 282). forma simplificada e modesta, em termos de estrutu-
Vejamos, então, o que assinala o ministro na ra acadêmico-administrativa da primeira universi-
Exposição de Motivos: dade oficial no País, deu margem a merecidas críti-
cas (Nagle, 1978, p. 282). Entre outras, vejamos os

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comentários do educador José Augusto, em matéria que estão à frente do movimento pela criação da
publicada no Jornal do Brasil, de 24 de outubro do Universidade do Rio de Janeiro”.
mesmo ano, sob o título “Regime Universitário III De forma incisiva, José Augusto conclui sua
— O estado atual da questão no Brasil”. Assinala matéria insistindo ser “indispensável [...] não cen-
o autor: “O Decreto de 7 de setembro findo, com tralizar a vida universitária na Capital da Repúbli-
o qual o governo da República instituiu a Universi- ca, mas facilitar o aparecimento de núcleos diver-
dade do Rio de Janeiro, por julgar oportuno dar exe- sos em harmonia com as nossas múltiplas necessi-
cução ao disposto no art. 6º do Decreto nº 11.530, dades educativas”. E acrescenta que nunca é demais
de 18 de março de 1915, contém poucos artigos e insistir em um ponto: “ao adotarmos o regime uni-
trata a matéria que versa da forma mais geral e vaga, versitário, hoje dominante entre outros povos cul-
de modo a não deixar no espírito de quem lê a no- tos, não devemos ficar na etiqueta e nos rótulos, mas
ção exata e segura da verdadeira orientação a ser integrar as instituições que fundamos na corrente
seguida pelo nosso Instituto Universitário”. universal, realizando obra concordante com os in-
E prossegue: teresses sociais do Brasil e com imposições da civi-
lização contemporânea” (Augusto, 1920).
No conjunto das múltiplas disposições que for-
Todavia, apesar das restrições feitas à criação
mam o Decreto Carlos Maximiliano não se depara,
dessa Universidade, cabe assinalar que, na história
além do artigo acima transcrito, qualquer outra refe-
da educação superior brasileira, a Universidade do
rência ao regime universitário. Ao contrário, o que se
Rio de Janeiro (URJ) é a primeira instituição uni-
observa em cada um de seus princípios essenciais ou
versitária criada legalmente pelo Governo Federal.
nas suas menores particularidades, é o reinado do sis-
De acordo com o decreto que a instituiu, ela nasce
tema oposto, do sistema das escolas isoladas e autô-
realmente da aglutinação de três escolas profissio-
nomas, em vista do qual todo o edifício pedagógico foi
nais existentes na capital do País. No entanto, ape-
arquitetado e construído. A referência do artigo sexto
sar de todos os problemas e incongruências exis-
a uma Universidade no Rio de janeiro, de oportunidade
tentes em torno da criação dessa Universidade, um
dependente de critério governamental, vem como dis-
aspecto não poderá ser esquecido: a instituição da
posição isolada, sem integração perfeita na obra edu-
Universidade do Rio de Janeiro teve o mérito de
cativa que se visava realizar [...]. Assim, do confronto
reavivar e intensificar o debate em torno do proble-
ou combinação do que se dispõe no decreto de 7 de
ma universitário no País. Tal debate, nos anos 20,
setembro deste ano, com o que se contém no decreto
adquire expressão graças, sobretudo, à atuação da
que lhe serve de base, não resulta para o observador,
Associação Brasileira de Educação (ABE) e da Aca-
mesmo o mais atento, qualquer elemento que o possa
demia Brasileira de Ciências (ABC).
conduzir à compreensão exata de qual seja o conceito
Entre as questões recorrentes nesses debates
da Universidade tal como foi fundada no Brasil.
destacam-se: concepção de universidade; funções
Completando suas análises a respeito da re- que deverão caber às universidades brasileiras; au-
cém-criada Universidade, o autor faz outras obser- tonomia universitária; se o modelo de universidade
vações, ao mesmo tempo em que coloca algumas a ser adotado no Brasil deve ser único ou cada uni-
questões. Vejamos: “A instituição do regime, a que versidade deverá ser organizada de acordo com suas
se dá um nome ainda inédito na legislação escolar, condições peculiares e as da região onde se localiza.
revela evidentemente o desejo de mudar de rumo, No que diz respeito às funções e ao papel da
dando-se ao ensino superior do Brasil, nas suas múl- universidade, percebem-se duas posições: os que
tiplas faces, feição nova e adaptando-o às necessi- defendem como suas funções básicas a de desenvol-
dades complexas da civilização contemporânea”. E ver a pesquisa científica, além de formar profissio-
acrescenta: “esse, aliás, parece ser o pensamento dos nais, e os que consideram ser prioridade a forma-

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ção profissional. Há, ainda uma posição que pode- ra federal, com a Universidade do Rio de Janeiro,
ria talvez vir a constituir-se em desdobramento da nem na estadual, com a criação, em 1927, da Uni-
primeira. De acordo com essa visão, a universida- versidade de Minas Gerais, instituída, também, se-
de, para merecer essa denominação, deveria tornar- gundo modelo da primeira. A respeito, o professor
se um foco de cultura, de disseminação de ciência Raul Bittencourt, nos anos 40, assinala que, desde
adquirida e de criação da ciência nova (ABE, 1929). a Regência de D. João VI até a segunda década deste
Tais questões são também objeto de discussão século, vinham sendo criados cursos e depois esco-
na I Conferência Nacional de Educação, realizada las e faculdades de medicina, de direito, de pintura
em Curitiba, em 1927, a partir da tese As universi- etc. Mas nada se aproximava de um centro univer-
dades e a pesquisa científica, apresentada por Amo- sitário pela intercalação dos currículos e pelos obje-
roso Costa, na qual propõe: tivos de pesquisa desinteressada. A pesquisa, quan-
do existia, tinha mais um caráter individual e não
a) as Faculdades de Ciências das Universidades
institucional. E acrescenta: “o decreto de 1920 que
devem ter como finalidade, além do ensino de ciên-
institui a Universidade do Rio de Janeiro não fun-
cia feita, a de formar pesquisadores, em todos os ra-
dou porém, na realidade, universidade alguma”.
mos do conhecimento humano; b) esses pesquisado-
Isso para ele se explica, primeiro, “porque se limi-
res devem pertencer aos respectivos corpos docentes;
tava a estabelecer um nexo jurídico entre as Facul-
c) devem ser-lhes assegurados os recursos materiais os
dades que já existiam, todas de caráter profissional;
mais amplos: laboratórios para pesquisas biológicas
e, segundo, porque as relações entre os estabeleci-
e físico-químicas, observatórios astronômicos, semi-
mentos de ensino eram de fachada, cimentado e
nários matemáticos, bibliotecas especializadas, facili-
incongruente, sujeito ao controle minucioso do Mi-
dades bibliográficas, publicações periódicas para di-
nistro da Justiça e, mais tarde, da Educação e Saú-
vulgação de seus trabalhos, aparelhamento para ex-
de” (1946, p. 561-2).
plorações geográficas e numerológicas, biológicas, et-
nográficas; enfim a garantia de uma renumeração efi-
Os anos 30 e o
ciente para que eles dediquem todo o seu tempo a esses
projeto universitário brasileiro
trabalhos (apud ABE, 1929, p. 13).

Ainda que existissem posições divergentes, o Se a Primeira República é caracterizada pela


que Amoroso Costa defendia, juntamente com o descentralização política, a partir dos anos 20 e so-
movimento liderado pela ABE, embora não houves- bretudo após 1930 essa tendência se reverte e co-
se dentro da Associação um conceito unívoco de meça a haver acentuada e crescente centralização
ciência, era introduzir a pesquisa como núcleo da nos mais diferentes setores da sociedade. Surge, en-
instituição universitária (Paim, 1982, p. 18). tão, um aparelho de Estado mais centralizado e o
Diante dessas percepções de universidade, che- poder se desloca cada vez mais do âmbito local e
gamos a entender que múltiplas foram as razões regional para o central.
para que houvesse um consenso acerca da criação Nesse contexto, o Governo Provisório, ainda
de universidades no País. Tal entendimento, no en- em 1930, cria o Ministério da Educação e Saúde
tanto, como assinala Paim, “resultou da mais vee- Pública, tendo como seu primeiro titular Francis-
mente condenação ao caráter meramente utilitário co Campos, que elabora e implementa reformas de
do ensino superior brasileiro” (1982, p. 51) nos ensino — secundário, superior e comercial — com
moldes em que vinha sendo praticado e que se con- acentuada tônica centralizadora.2
trapunha ao caráter próprio de uma universidade.
Tal visão de universidade, no entanto, não
2
chega a ser concretizada nos anos 20, nem na esfe- Apesar da tendência a uma centralização cada vez

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Trata-se, sem dúvida, de adaptar a educação todas consubstanciando os elementos de possível


escolar a diretrizes que vão assumir formas bem assimilação pelo meio nacional, de maneira a não
definidas, tanto no campo político, quanto no edu- determinar uma brusca ruptura com o presente, o
cacional, tendo como preocupação criar e desenvol- que o tornaria de adaptação difícil ou improvável,
ver um ensino mais adequado à “modernização” do diminuindo, assim, os benefícios que dele poderão
País, com ênfase na formação de elites e na capaci- resultar de modo imediato” (Campos, 1931, p. 3).
tação para o trabalho. Um ensino que contribuísse E ressalta: “embora resultando, em sua estrutura
para completar a obra revolucionária, orientando geral, de transações e compromissos entre as várias
e organizando a nacionalidade. tendências, correntes e direções de espírito, o pro-
Nessa linha, o governo elabora o seu projeto jeto tem individualidade própria” (idem).
universitário, articulando medidas, que se estendem Tal afirmativa parece-nos equivocada, porque
desde a promulgação do Estatuto das Universida- efetivamente se torna difícil a um projeto garantir
des Brasileiras à reorganização da Universidade do sua individualidade, quando resulta de transações
Rio de Janeiro, passando pela proposta de reestru- e compromissos. No entanto, o exame das Atas do
turação do Ministério da Educação e Saúde Públi- Conselho Universitário da Universidade do Rio de
ca em 1935, até chegar à institucionalização da Uni- Janeiro, referentes aos primeiros meses de 1931,
versidade do Brasil, em julho de 1937. leva-nos a perceber que esse órgão, através de seus
Em 11 de abril de 1931, é sancionado o pro- conselheiros e, em especial, das congregações da
jeto de reforma do ensino superior, que passa à his- Universidade, foi solicitado a apresentar propostas
tória com o nome do ministro que o encaminha. sobre a reforma.
Iniciando a Exposição de Motivos, Francisco Cam- Referindo-se às finalidades da Universidade,
pos assinala: “O projeto em que se consubstancia Campos insiste em não reduzi-las apenas a sua fun-
foi objeto de larga meditação, de demorado exame ção didática. “Sua finalidade transcende ao exclu-
e de amplos e vivos debates, em que foram ouvidas sivo propósito do ensino, envolvendo preocupações
e consultadas todas as autoridades em matéria de de pura ciência e de cultura desinteressada”. Para
ensino, individuais e coletivas, assim como auscul- o ministro, a universidade tinha duplo objetivo: o
tadas todas as correntes e expressões de pensamen- de “equipar tecnicamente as elites profissionais do
to, desde as mais radicais às mais conservadoras”. país e de proporcionar ambiente propício às voca-
A seguir, acrescenta que o projeto: “representa um ções especulativas e desinteressadas, cujo destino,
estado de equilíbrio entre tendências opostas, de imprescindível à formação da cultura nacional, é o
da investigação e da ciência pura” (idem, p. 4).
No plano do discurso, caberia à Faculdade de
Educação, Ciências e Letras, prevista no projeto de
maior, reflexo da política autoritária que já se faz sentir
1931, imprimir à universidade seu “caráter pro-
desde o início do Governo Provisório, há iniciativas em ma-
priamente universitário”. No entanto, a função de
téria de educação superior, nesse período, que expressam
posições contrárias. De forma bastante nítida, a Revolução investigação e de formação de professores, que ca-
Constitucionalista de 32 contribui para uma tomada de beria a essa Faculdade, em termos operacionais, é
consciência, por parte das elites paulistas, da falta de qua- esquecida pela iniciativa federal, até 1939, quan-
dros políticos com formação científica. É nesse contexto que do em abril desse ano, através do Decreto 1.190, é
surge, em São Paulo, em 1933, a Escola Livre de Sociolo-
criada a Faculdade Nacional de Filosofia.
gia e Política e, no ano seguinte, a Universidade de São Paulo
Em relação à institucionalização da pesquisa,
(USP). Ainda nos anos 30, no Rio de Janeiro, é criada por
Anísio Teixeira e seus colaboradores a Universidade do Dis- o mesmo vem a ocorrer. Para Schwartzman: “A sim-
trito Federal (1935), como parte de um programa de edu- patia que Francisco Campos manifestava pela ciên-
cação pública para a capital da República. cia é ilusória. Para ele, a pesquisa científica vinha

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junto com a arte, como ornamento indispensável, bre a organização autônoma da Universidade do
mas sem dúvida postergável” (1979, p. 174-5). Rio de Janeiro”, insistindo nos arts. 3º e 4º:
Em decorrência da Reforma Francisco Cam-
A universidade, bem como os estabelecimentos
pos, em 1931, a Universidade do Rio de Janeiro
que a constituem, dentro das esferas relativas aos in-
passa por sua primeira reorganização. Seus estatu-
teresses peculiares a cada um deles; gozarão de perso-
tos são reformulados para poderem adequar-se aos
nalidade jurídica e de plena autonomia administrati-
dispositivos vigentes. Durante esse ano o Conselho
va, financeira e didática [...]. No exercício da autono-
Universitário da URJ, em vários momentos, discu-
mia administrativa, conferida por este decreto, a Uni-
te a questão da autonomia universitária, sendo en-
versidade praticará todos os atos necessários à sua ad-
tendida por alguns de seus membros como algo ine-
ministração, sem intervenção de qualquer autoridade
rente a sua própria essência e como condição neces-
[...]. No exercício de autonomia financeira compete à
sária para a concretização de suas finalidades. Ou
Universidade administrar o seu patrimônio; elaborar
seja, como uma exigência que se apóia na própria
o seu orçamento anual e aprovar o de cada dos estabe-
razão de ser dessa instituição. Entre os conselhei-
lecimentos componentes, [bem como] tomar contas aos
ros que assumem e defendem essa posição, merece
responsáveis e julgar da execução dos orçamentos, ao
destaque especial o prof. Ignácio Azevedo Amaral,
termo de cada exercício financeiro” (idem, p. 34-5).
representante da Escola Politécnica e, após o Esta-
do Novo, reitor da Universidade do Brasil. No que se refere à escolha de dirigentes, pro-
Com a instalação da Assembléia Nacional põe-se que compete ao Conselho Universitário ele-
Constituinte, o Conselho Universitário encaminha ger, dentre os professores catedráticos efetivos da
a essa Assembléia, em 28 de março daquele ano, Universidade, o reitor, e dentre os professores ca-
documento no qual se pronuncia de forma incisi- tedráticos, membros deste órgão, o seu substituto
va a respeito da autonomia universitária. Vejamos: eventual, o vice-reitor (idem, p. 37). Ao reitor eram
atribuídas competências que permitiam não só re-
A universidade bem entendida pressupõe auto-
presentar a instituição, mas efetivamente adminis-
nomia didática, administrativa e econômica. O Estado
trá-la, dirigi-la (idem).
exercerá ação fiscalizadora na criação dos institutos,
A partir de 35, a abertura suscitada pela Re-
regulará por lei geral o seu funcionamento, poderá
volução de 30 passa a ser vista como um erro a ser
manter delegado seu para controle oficial; a fiscaliza-
corrigido. Essa tendência se amplia, assegurando
ção maior e mais perfeita caberá entretanto às próprias
um clima propício à implantação do Estado Novo.
universidades, que velarão pelo sistema, numa orga-
Em novembro desse ano, com a “Insurreição Co-
nização inter-universitária (URJ, 1934, p. 54).
munista”, o Congresso renuncia às suas prerroga-
E complementa: “A universidade — repartição tivas e delega ao presidente plenos poderes, sendo
pública é coisa que não se entende. É um obstáculo decretado o “estado de sítio” e o “estado de guer-
à cultura. É a secretaria burocrática de ensinar. É ra” em todo o território nacional.
contradição” (idem). Diante desse quadro, é pertinente a indaga-
Tal proposta se torna mais clara quando ana- ção: como pensar em liberdade de pensamento e
lisamos a Exposição de Motivos e o Anteprojeto autonomia universitária plena quando o atestado
elaborados pelo Conselho Universitário, aprovados ideológico torna-se exigência para o preenchimen-
em sua sessão de 31 de março de 1934 e encami- to de cargos e o exercício de funções públicas? Co-
nhados ao governo. mo pensar em liberdade de pensamento quando, a
Essa exposição faz um retrospecto do trata- partir de 1935, a abertura admitida pela Revolu-
mento dispensado a esse princípio na legislação, de ção de 1930 passa a ser vista como um erro a ser
1911 a 1931, e apresenta proposta de decreto “so- corrigido?

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A Universidade do Brasil

É, também, em 1935 que o Poder Executivo tes da capital da República, mas também e sobre-
elabora e encaminha ao Legislativo o Plano de Reor- tudo por estudantes de todos os outros pontos do
ganização do Ministério da Educação e Saúde Pú- País, os quais, mediante determinadas condições
blica (MESP). Na exposição de motivos que acom- de merecimento, nela tenham matrícula e perma-
panha o projeto de lei, no item “Serviços relativos nência gratuitas ou muito facilitadas. Ela se torna-
à educação”, o ministro Gustavo Capanema assi- rá, assim, um grande e vivo centro de trabalho, on-
nala: “É a luz do critério de que a União não deve de, mercê da convivência, possam brasileiros das
criar, manter e dirigir senão os serviços de signifi- mais diversas regiões nacionais melhor conhecer-se
cação nacional, que vamos enumerar quais hão de e estimar-se.3
ser os serviços federais de educação” (MESP, 1935, Na inauguração dos trabalhos, o ministro de-
p. 26). E, entre outros, o primeiro a ser menciona- clara que a Universidade do Brasil, mantida pela
do é a Universidade do Brasil. A respeito dessa ins- União, “precisa ser perfeita”. Afirma ser intenção
tituição enfatiza: “É fora de dúvida que o Brasil do governo simplesmente “fazer uma universidade
precisa de universidades. […] À União incumbe, por que deixe de ser o que tem sido até hoje no Brasil:
outro lado, ter a sua própria universidade, instala- um postulado regulamentar, uma aspiração da lei.
da no Distrito Federal. Isto é mesmo para ela um Que ela se converta em uma realidade viva, em uma
dever constitucional”. E, continuando, frisa: “À comunidade escolar verdadeira. Para isso, torna-se
universidade, instituída, mantida e dirigida pela necessária a criação daquilo que hoje se tem cha-
União, há de caber, sob todos os pontos de vista, mado uma cidade universitária”.
uma função de caráter nacional” (idem). O projeto do governo é recebido, por um lado,
Sendo assim, insiste o ministro: em primeiro com entusiasmo e, por outro, com restrições e se-
lugar, ela deve tornar-se padrão. Não querendo afir-
mar com isto “que todas as universidades do Brasil
devam ser iguais à universidade federal. Ao contrá- 3 Em conseqüência, em 19 de julho, através de uma
rio, cada região do país deve dispor de sua univer- portaria ministerial, Gustavo Capanema nomeia uma Co-
sidade, de feição característica, organizada e orien- missão encarregada de estudar o problema da organização
tada segundo as exigências locais” (idem, p. 29). E da Universidade do Brasil. Essa Comissão, tendo como pre-
sidente, o próprio ministro, passa a ser constituída pelos
a seguir esclarece o que entende por ser padrão:
seguintes membros: Raul Leitão da Cunha (reitor da Uni-
Dizemos que a universidade federal deve ser pa- versidade do Rio de Janeiro); Filadelfo de Azevedo (profes-
drão, para significar que, nas linhas fundamentais de sor e ex-diretor da Faculdade de Direito da URJ); Edgar
Roquete Pinto (ex-diretor do Museu Nacional); M. B. Lou-
sua estrutura, nas suas instalações, na sua administra-
renço Filho (diretor do Instituto de Educação da UDF); Iná-
ção, no seu funcionamento, em todas as numerosas cio M. Azevedo do Amaral (professor da Escola de Enge-
manifestações de sua atividade, cumpre-lhe aparecer nharia da URJ); Jonatas Serrano (professor do Colégio Pedro
como um exemplo de boa organização. Em segundo II); José Carneiro Felipe (professor da Escola Nacional de
lugar, a universidade federal deve constituir-se um Química); Flexa Ribeiro (professor da Escola Nacional de
ativo centro de pesquisas científicas, de investigações Belas Artes); Juvenil da Rocha Vaz (professor da Faculda-
de de Medicina da URJ); Antonio de Sá Pereira (professor
técnicas, de atividades filosóficas, literárias e artísti-
da Escola Nacional de Música); Newton Cavalcanti (gene-
cas, de estudos desinteressados de toda sorte, que a
ral de Exército), Ernesto de Souza Campos (professor da
situem e definam como a mais alta expressão de nos- Faculdade de Medicina de São Paulo). Em 17 de setembro,
sa cultura intelectual (idem). a Comissão foi acrescida de dois membros: Paulo Everardo
Nunes Pires (professor da Escola Nacional de Belas Artes)
Outro aspecto que, segundo Capanema, deve e Luiz Catanhede Carvalho (da Escola de Engenharia, da
marcar o caráter nacional dessa universidade é que URJ). Como secretário foi designado Américo Jacobina La-
ela deve ser freqüentada não apenas por estudan- combe, secretário do Conselho Nacional de Educação.

Revista Brasileira de Educação 23


Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero

veras críticas, sobretudo pela forma como se pro- A matéria conclui indagando como o presiden-
cedeu o seu encaminhamento no Legislativo. Veja- te da Câmara arroga a si autoridade para se opor
mos, por exemplo, o que registra o Correio da Ma- a um pronunciamento do Senado. O assunto é re-
nhã de 13 de setembro de 1936, na matéria inti- tomado, na mesma seção, durante alguns dias. Duas
tulada “O obstinado”: o ministro da Educação aca- questões são levantadas: “a primeira é como o Se-
ba de consubstanciar, num anteprojeto, o seu pla- nado assiste, sem mostras de sensibilidade, a usur-
no de Cidade Universitária e “elabora, artigo por pação de suas atribuições pelo presidente da Câma-
artigo, um grande projeto de lei instituindo a UB”. ra dos Deputados (...)”; a segunda, é o fato de o
O matutino tece severas críticas, por considerar que Presidente da Câmara Sr. Pedro Aleixo ter declara-
essa atitude do ministro é uma forma de manipu- do: “Está aprovada a redação final e o projeto vai
lar a Câmara dos Deputados. Assinala que a histó- ser remetido à sanção” (Jornal do Brasil, 24/06/
ria do Legislativo apresenta capitulações desse po- 1937), o que vai ocorrer em junho de 1937.
der diante da vontade do Executivo. Mas “um Mi- Embora a crítica se tenha voltado mais para
nistro de Estado fabricar a lei que o Legislativo de- os procedimentos adotados pelo ministro no enca-
verá integralmente votar, e publicá-la antes na im- minhamento do projeto, há também outros aspec-
prensa, constitui certamente um fato inédito”. tos considerados problemáticos: “o financiamento
A crítica mais grave, no entanto, refere-se à da obra projetada” e as condições efetivas para que
circunstância de que mais uma vez o Senado ficará essa Universidade se constituísse “num ativo cen-
privado de colaborar em uma lei de sua alçada. O tro de pesquisas científicas, investigações técnicas
Jornal do Brasil, na seção “Educação e Ensino”, as- e de atividades filosóficas e artísticas”, como pre-
sinala: “A sofreguidão em ver promulgadas as re- conizava o ministro Capanema (Jornal do Brasil,
formas de sua emenda, que há três anos está [...] na 22/06/1937).
Câmara dos Deputados, tem levado o senhor Gus- Os jornais da época noticiam com destaque o
tavo Capanema a dispensar nelas a colaboração do fato e chamam especialmente a atenção para a “Ci-
Senado, viciando-a de irreparável inconstituciona- dade Universitária cujo custo total vai consumir
lidade” (Jornal do Brasil, 22/06/1937). anualmente vinte mil contos, além de outros recur-
E complementa: “Assim sucedeu com muitos sos orçamentários provenientes da venda de imó-
dispositivos da lei que reorganizou o Ministério da veis pertencentes ao patrimônio nacional” (Jornal
Educação e assim acontece agora com o projeto so- do Brasil, 19/06/1937).
bre a Universidade do Brasil. [...] A alegação prin- Enquanto o projeto que institui a UB tramita
cipal para subtrair o voto do Senado ao projeto que na Câmara, o reitor Raul Leitão da Cunha convo-
instituiu a UB é que neste não se cuida de diretri- ca sessão extraordinária do Conselho Universitário
zes da educação e sobre estas é que o Senado tem para que este manifeste ao presidente da Repúbli-
que opinar”. Todavia, lembra o periódico: “O sofis- ca “o seu aplauso ao projeto que acabava de ser
ma é evidente. O Plano Nacional de Educação que aprovado em redação final pela Câmara dos Depu-
contém o conjunto das diretrizes da educação deve tados, instituindo a Universidade do Brasil”. É en-
compreender o ensino de todos os graus e ramos, tão encaminhada uma “proposta subscrita por vá-
inclusive o ensino superior e universitário. Não será rios membros do Conselho no sentido de ser conce-
possível tratar das diretrizes sem assentar as bases dido o título de doutor honoris causa, pela Univer-
desse grau de ensino. É o que faz o projeto 237 que sidade do Brasil ao Presidente” (URJ, Ata do Conse-
institui a Universidade do Brasil. Define a universi- lho Universitário, 22/06/1937). Chamamos a aten-
dade, discrimina suas finalidades, estabelece os seus ção, no entanto, para um fato, no mínimo, curio-
cursos e o seu funcionamento e isso é o que consti- so: no momento em que os jornais tecem graves
tui as diretrizes do ensino universitário” (idem). críticas ao processo de encaminhamento da Lei no

24 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
A Universidade do Brasil

Congresso, o Conselho Universitário silencia ou não entre as manifestações recebidas no decurso da minha
se pronuncia a respeito, parecendo desconhecer “as vida pública, nenhuma assumiu tão alto e tão nobre
maquinações” do ministro para obter a aprovação significado como esta da Universidade do Brasil. [No
da Lei, sem a audiência do Senado (Correio da Ma- seu governo] havia, entretanto, um aspecto que, não
nhã, 24/06/1937). obstante críticas fundamentais e constantes, conti-
Observamos, ainda, que as medidas adotadas nuava a desafiar solução: era o articular e hierarquizar
pelo governo após 1930 revelam uma percepção da o ensino superior, desenvolvendo-o no sentido da
escola como instrumento capaz de assegurar a ideo- qualidade. Para consegui-lo, tornava-se indispensável
logia dos grupos dominantes e de preparar, ao me- criar o centro diretor das atividades culturais, dota-
nos intencionalmente, os que vão ocupar papéis ou do dos meios mais modernos de pesquisa e experimen-
funções na divisão social e técnica do trabalho. Ou, tação, onde não se fizesse apenas aprendizado estatís-
como Gramsci deixa entrever, tal preocupação se tico, mas permanente elaboração científica (Vargas,
coloca para o ministro como uma prioridade por- 1938, p. 231-2).
que: “A Universidade é a escola da classe (e de pes-
soal) dirigente, é o mecanismo através do qual faz- O ministro Capanema profere, também, um
se a seleção dos indivíduos das outras classes que discurso, no qual assinala que a lei, que está sendo
devem ser incorporados no quadro governante, ad- sancionada, resulta de um projeto enviado pelo Exe-
ministrativo e dirigente” (1980, p. 305). Análise cutivo ao Poder Legislativo, em dezembro de 1935,
mais atenta das exposições de motivos que acom- e que, “ela fixa de maneira clara, todo o plano da
panham as reformas de ensino, mesmo antes da de- Universidade do Brasil”. Para ele, “dois princípios
cretação do Estado Novo, evidencia o quanto o Es- inspiraram a criação da Universidade do Brasil, nos
tado distinguia na escola um lugar capaz de formar moldes em que foi estruturada”: o primeiro é que,
os que a freqüentavam, segundo a conveniência de “ela terá a função de fixar o padrão do ensino su-
seus interesses e das classes que os representavam. perior em todo o país; o segundo princípio é ser a
O exame de jornais da época leva a perceber, UB uma instituição de significação nacional, e não
também, que a aprovação do projeto de institucio- local”. Em decorrência da Lei 452/37, a Universi-
nalização da Universidade do Brasil resulta de uma dade seria constituída por 15 escolas ou faculdades
trama bem-sucedida por parte do Executivo. Final- que passariam a ter o adjetivo Nacional. A fim de
mente, em 28 de junho de 1937, o projeto é enca- cooperar nas atividades desenvolvidas por essas uni-
minhado à sanção presidencial, sem que tenha sido dades, integrariam a Universidade do Brasil alguns
completada a norma processual do Legislativo. As- institutos, além do Hospital das Clínicas para a prá-
sim, em 5 de julho desse ano, é promulgada a Lei tica médica e como instituições complementares, o
452, que institui a Universidade do Brasil, referen- Colégio Universitário, destinado ao ensino secun-
dada pelos ministros da Educação, Fazenda, Avia- dário complementar, e a Escola Ana Neri, dedicada
ção, Agricultura e Guerra, definindo essa Univer- ao ensino de Enfermagem e Serviço Social.
sidade em seu art. 1º como “uma comunidade de Vale observar, ainda, que ao ser instituída a
professores e alunos consagrados ao estudo”. O ato Universidade do Brasil, a Lei 452 que lhe dá forma
assume caráter de “maior solenidade” por haver a faz referência ao princípio de autonomia em suas
Universidade conferido o título de doutor honoris disposições gerais, ou melhor, à ausência de auto-
causa ao presidente da República. Nessa oportuni- nomia da Universidade em relação ao governo. As-
dade, o presidente Vargas faz um discurso de agra- sim, no artigo 27 é disposto que tanto o reitor como
decimento à Universidade pela homenagem recebi- os diretores dos estabelecimentos de ensino seriam
da e destaca: escolhidos pelo presidente da República, dentre os
respectivos catedráticos e nomeados em comissão.

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Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero

Por outro lado, torna-se expressamente proibida aos O exame da documentação referente a essa
professores e alunos da universidade qualquer ati- instituição — Atas do Conselho Universitário, Anais
tude de caráter político-partidário ou comparecer etc. — deixa entrever um outro aspecto relevante:
às atividades universitárias com uniforme ou em- a complexidade da questão do poder e de quem
blema de partidos políticos. decide o quê na Universidade. Mas, de forma níti-
Tais medidas não parecem estranhas, se tiver- da, percebe-se a influência, o prestígio das grandes
mos presente o contexto em que elas são elabora- escolas; as ligações e/ou relações de poder de ca-
das. As diretrizes ideológicas que norteiam a edu- tedráticos representantes de determinados cursos,
cação durante o Estado Novo são pautadas, como grupos e interesses. Assim, podemos entender por
já assinalamos, por um caráter fortemente centra- que, de 1920 a 1965, os reitores dessa Universida-
lizador e autoritário, o que traz sérios problemas de, sem exceção, saíram das três grandes escolas:
para as instituições universitárias, em geral. Durante Medicina, Direito e Engenharia, de onde emanam,
esse período, o autoritarismo se expressa, em alguns em geral, as propostas de outorga de títulos hono-
momentos pelo abuso de princípios e/ou normas em ríficos e o encaminhamento de muitas decisões a
que se apóia o governo. É curioso notar, durante respeito da abertura de concursos para preenchi-
os anos de 1937 a 45, o modo como o Poder Cen- mento de cátedras.
tral chama a si, particularmente através do minis- A análise da composição dos órgãos colegia-
tro da Educação, Gustavo Capanema, o controle dos superiores e das unidades deixa perceber, tam-
sobre a vida das instituições universitárias. Em no- bém, como a cátedra se mostra dentro da Universi-
me do princípio da autoridade e da disciplina, de- dade marcada por um caráter centralizador, opera-
cisões são tomadas e a autonomia universitária é cionalizando-se, com algumas exceções, de cima
totalmente esquecida. Com freqüência, o autorita- para baixo. No caso dos institutos das faculdades
rismo se apóia numa autoridade questionável; dele e escolas, a concentração de poder nas mãos dos
se abusa e se omite, mascarado pela defesa de va- catedráticos se evidencia nos dispositivos legais que
lores como disciplina, progresso, interesse comuni- organizam a instituição como um todo, bem como
tário etc. Nesse período, algumas medidas adota- nos seus regimentos. Tal concentração se faz sen-
das apresentam-se como um retrocesso, se compa- tir sobretudo na concepção de sua direção acadê-
radas ao que dispunha o Estatuto das Universida- mico-administrativa, formada por um diretor, um
des Brasileiras, de 1931, o qual estabelecia, entre Conselho Técnico-Administrativo e uma Congrega-
outras determinações, ser a escolha dos dirigentes ção. Dessa composição, os diferentes seguimentos
— reitor, diretores de unidades — efetuada a par- da comunidade acadêmica praticamente não se fa-
tir de lista tríplice. zem presentes.
Durante esse período, a UB vive sob o contro-
le explícito dos poderes instituídos. Nesse contex- A Universidade do Brasil,
to, a Universidade do Brasil, como as demais uni- do pós-45 até 1965
versidades, se torna vítima de uma organização
monolítica do Estado, sem qualquer autonomia. No Governo Provisório que se seguiu à que-
Há uma exacerbada centralização de todos os ser- da do Estado Novo, sendo ministro da Educação
viços de educação, decorrendo daí a concepção de o professor Raul Leitão da Cunha, que exercera
que o processo educativo poderia ser objeto de es- durante onze anos o cargo de reitor da UB, o pre-
trito controle legal. Com essa orientação, o gover- sidente José Linhares sanciona o Decreto-Lei 8.393,
no central reserva para si o pleno direito, como já de 17 de dezembro de 1945, dispondo que a Uni-
assinalado, de designar em comissão os dirigentes versidade do Brasil tem por objetivos a educação,
universitários. o ensino e a pesquisa e que gozará de autonomia

26 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
A Universidade do Brasil

administrativa, financeira, didática e disciplinar. Em do Brasil algumas tentativas de luta por uma auto-
cumprimento a esse dispositivo, o reitor passa a ser nomia universitária, não só externa, mas interna.
escolhido pelo presidente da República mediante Isso se delineia dentro das congregações na busca
lista tríplice, organizada pelo Conselho Universitá- e reivindicação por parte de alguns membros desse
rio, tal como está disposto no Estatuto de 1931. órgão deliberativo, para que as unidades fossem
Para exercer esse cargo, o Conselho Universitário ouvidas e envolvidas no que tange ao processo de-
elabora uma lista, a qual é liderada pelo professor cisório de suas respectivas unidades, aos seus pro-
Ignacio Manuel Azevedo do Amaral. Aprovado seu blemas e às questões tanto de caráter acadêmico,
nome pelo presidente da República, ele assume o quanto administrativo e disciplinar. Nesse contex-
cargo, agora como o primeiro reitor da Universida- to, as congregações discutem e criticam que, em
de “autônoma”. No que se refere aos diretores de diferentes momentos, as relações de poder na Uni-
unidades, sua nomeação é feita pelo reitor com pré- versidade se expressam de cima para baixo, carac-
via autorização do presidente da República, obti- terizadas como relações desiguais e relativamente
da por intermédio do Ministério da Educação, sen- estabilizadoras de forças.
do a escolha efetuada a partir de lista tríplice, or- Segundo Raul Bittencourt, um dos ex-catedrá-
ganizada pela respectiva congregação. ticos da UB, mesmo depois do Estado Novo, quan-
Em cumprimento a esse decreto-lei, a adminis- do a UB torna-se autônoma por decreto, a situação
tração superior da Universidade passa a ser exercida não muda muito. É suficiente pensarmos no “DASP
não apenas pelo Conselho Universitário e pela Rei- a intervir, dia a mais dia, na vida das universidades
toria, mas também pelo Conselho de Curadores. federais, com aspereza e inciência” (1946, p. 562).
Quanto às faculdades e escolas, são organiza- Quanto aos objetivos proclamados para a Uni-
das em departamentos dirigidos por um chefe, es- versidade do Brasil, no Decreto-Lei nº 8.393/45, o
colhido entre os respectivos catedráticos. Ainda que exame realizado em fontes documentais permite
pareça estranho, na UB, embora a cátedra fosse a inferir que é a partir dos anos 40 e com mais ênfa-
unidade de fato operativa de ensino e pesquisa, ela se na segunda metade dessa década que a pesquisa
passa a existir, ao menos legalmente, “integrada” se institucionaliza na UB. Para confirmar essa as-
a um departamento, a partir de 1946. sertiva, lembramos que o Instituto de Biofísica é
No que tange à autonomia outorgada à Uni- instituído em 1946, voltado desde o início para a
versidade do Brasil em 1945, a discussão sobre esse pesquisa básica e tendo na sua direção o professor
princípio, dentro da Universidade do Brasil, não es- Carlos Chagas Filho. Em 1947, é também integra-
barra apenas nas relações entre a Universidade e/ou do à Universidade o Museu Nacional. Todavia, não
suas unidades e os órgãos do governo. Dados obti- se pode afirmar que antes a pesquisa estivesse to-
dos da análise de documentos da própria institui- talmente ausente da UB. A título de exemplo, cabe
ção, em especial, das atas do Conselho Universitário lembrar ainda a participação de Carlos Chagas Fi-
e da Congregação da Faculdade Nacional de Filoso- lho, como professor catedrático da Faculdade Na-
fia, deixam perceber, de forma muito clara, que a au- cional de Medicina, em reunião promovida pela
tonomia administrativa, financeira, didática e disci- Academia Brasileira de Ciências, a 7 de agosto de
plinar outorgada à Universidade não chegou a ser 1940, juntamente com seus assistentes, fazendo de-
implementada. Essa inferência nos leva a reconhe- monstrações experimentais das pesquisas em anda-
cer que, ontem como hoje, a autonomia outorgada mento sobre a produção de eletricidade pelos seres
geralmente não passa muitas vezes de uma ilusão, vivos (Paim, 1982).
embora se apresente, por vezes, como um avanço. Outro pesquisador que, como Carlos Chagas,
Tanto no final dos anos 40 como no início dos na Universidade contribuiu em várias frentes para
50, vemos esboçar-se aqui e acolá na Universidade a pesquisa foi o professor Paulo de Góes, com suas

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Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero

investigações no Instituto de Microbiologia, con- realizados em colaboração entre a Faculdade Na-


siderado a matriz e o celeiro de toda uma geração cional de Filosofia e o Centro Brasileiro de Pesqui-
de microbiologistas brasileiros (Miranda, 1997, p. sas Físicas – CBPF (idem).
31-2). É na FNFi, ainda, que são iniciados os traba-
Na UB, não podemos deixar de fazer referên- lhos de investigação em física nuclear teórica que
cia ao trabalho do matemático Maurício Mattos continuaram, depois, em colaboração com o CBPF.
Peixoto, “Presidente da Academia Brasileira de Nessa Faculdade, em 1948, é criada a primeira cá-
Ciências por cinco mandatos sucessivos, e que de- tedra de física nuclear no País, que foi oferecida ao
senvolveu grande parte do seu trabalho em Semi- professor César Lattes, mas, por não existirem con-
nários na Escola Nacional de Engenharia. O Cha- dições em termos de recursos para funcionamento
mado Teorema de Peixoto, um dos marcos da Teo- dos laboratórios, não foi possível desenvolver os
ria dos Sistemas Dinâmicos” (idem, p. 33-4.). trabalhos nessa direção (idem, p. 141).
Reforçando essas nossas inferências vale lem- Na matemática, merece destaque a atuação do
brar, também, o trabalho dos professores estrangei- professor português Antonio A. Monteiro, a partir
ros na Faculdade Nacional de Filosofia que deixa- de 1945, que, segundo o professor Leopoldo Nach-
ram suas marcas, formando escola. É o caso de Lui- bin, teve influência marcante no que diz respeito ao
gi Sobrero e Gabrielle Mammana na área da física, ensino e à pesquisa no Departamento de Matemá-
que, a partir de 1941, mobilizavam os alunos para tica. Sua presença foi significativa, segundo a pro-
a pesquisa, anunciando e propondo seminários na fessora Maria Laura Leite Lopes, na formação de
FNFi e cujos resultados, até hoje, são lembrados por matemáticos brasileiros (apud Fávero, 1992).
físicos do porte de José Leite Lopes e Jayme Tiom- Quanto à química, encontramos registros na
mo, seus alunos e discípulos. Na física mereceu des- documentação analisada de trabalhos de pesquisa
taque, além desses dois físicos brasileiros que tam- do professor Cristhóvão Cardoso nos laboratórios
bém fizeram escola, o professor Joaquim Costa Ri- de físico-química e das investigações realizadas pelo
beiro, reconhecido pela sua capacidade de pesqui- professor Athos da Silveira Ramos. De acordo com
sa e com prêmios internacionais. Em 1940, seus depoimento da professora Silvia T. Tomasquim, em-
primeiros trabalhos sobre a radiatividade de mine- bora a pesquisa nessa área não tenha desempenho
rais brasileiros, decorrentes de pesquisas realizadas satisfatório no período por nós analisado, por não
nos laboratórios de física da Faculdade Nacional de apresentar uma produção científica contínua, o en-
Filosofia, são publicados nos Anais da Academia sino da química serviu de base à formação de pes-
Brasileira de Ciências. Sobre esses problemas foram quisadores de renome (apud Fávero, 1992, p. 514).
depois editados vários trabalhos e comunicações Na área da história natural, apesar da preca-
científicas. No domínio da física experimental, ti- riedade das condições de trabalho oferecidas pela
veram início, em 1943, pesquisas sobre dielétricos UB, houve trabalhos desenvolvidos na Faculdade
sob a responsabilidade do professor Costa Ribeiro Nacional de Filosofia que marcaram em termos de
e colaboradores, constituindo-se esse grupo em ver- estudo e pesquisa. Entre seus professores e pesqui-
dadeiro precursor das pesquisas sobre estado sóli- sadores, o nome de maior destaque é o de Antonio
do no País (Leite Lopes, 1969, p. 135-6). Lagden Cavalcanti, que publica, em 1948, um tra-
De acordo com o professor Leite Lopes, no balho no periódico Genetics, à época a mais impor-
domínio da física teórica, a associação dele com os tante revista especializada em genética nos Estados
professores Jayme Tiommo e Guido Beker muito Unidos. Neste mesmo ano, o cientista Theodosius
contribuiu para um satisfatório desenvolvimento Dobzhansky vem ao Brasil e reúne uma equipe de
das pesquisas, bem como para a formação de no- doze geneticistas, constituída por brasileiros, argen-
vos pesquisadores através de cursos e seminários tinos, chilenos e suíços, sob o patrocínio da Funda-

28 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
A Universidade do Brasil

ção Rockefeller. De acordo com o professor Lagden, “Reunião de Peritos Científicos da América Latina”
daí nasceu a pesquisa genética no Brasil, tornando- em Montevidéu, apresenta juntamente com dois
se a quinta ou a sexta do mundo, de 1948 a 1968. outros cientistas brasileiros, membros da delegação,
E o importante, assinala, “é ter nascido nas Facul- os professores Miguel Osório de Almeida e Mau-
dades de Filosofia, Ciências e Letras da Universida- rício Rocha e Silva, várias teses incorporadas às
de de São Paulo e da Universidade do Brasil” (apud conclusões daquele evento, entre as quais se desta-
Fávero, 1992, p. 43). No campo da genética, a par- ca “O regime de tempo integral para pesquisado-
tir de 50, é criado na Faculdade Nacional de Filo- res e a instituição de fundos nacionais de pesquisa”.
sofia um Centro de Pesquisas Genéticas. No final dos anos 40, tais reivindicações e exi-
Ainda nos anos 40, encontramos também na gências passam a ser consideradas fundamentais
área da geografia professores que procuram integrar para se fazer ciência na UB. Tornam-se questões re-
conhecimentos teóricos e pesquisa de campo. É o correntes em alguns de seus institutos e faculdades,
caso do professor Josué de Castro, catedrático de como é o caso do Instituto de Biofísica e da Seção
geografia humana e chefe do Departamento de Geo- de Ciências da Faculdade Nacional de Filosofia.
grafia, que considera ser “a finalidade precípua do Enquanto na USP o trabalho dos pesquisadores en-
curso formar nos alunos uma ‘mentalidade de geó- contrava apoio nas autoridades universitárias, o
grafo’, dando ao ensino das ciências geográficas uma mesmo não ocorria em relação à Universidade do
abordagem em nível universitário moderno” (MES, Brasil, que não atribuía à Faculdade Nacional de
1947, p. 115-6). Entre os professores daquele De- Filosofia e a outros institutos dotações necessárias
partamento, há um destaque para o trabalho do pro- para o aparelhamento dos laboratórios, das biblio-
fessor Hilgard Sterneberg, em geografia do Brasil. tecas, bem como vencimentos adequados a seus pro-
Na regência dessa cadeira, adota “processos de ensi- fessores, cujo enquadramento, de acordo com as
no e pesquisa com observação direta, inquéritos, in- normas do Departamento Administrativo do Ser-
terpretação de textos, de mapas e excursões” (idem). viço Público (DASP), impedia a equivalência dos
Na geografia, também, um nome citado com salários aos da USP (Leite Lopes, 1969, p. 135). Se-
muita ênfase por ex-alunos da Nacional de Filosofia gundo o professor Leite Lopes, até a Fundação Ro-
é o do francês Francis Ruellan. Sua presença na Fa- ckefeller teve seus esforços frustrados no sentido de
culdade é marcada pelos trabalhos de campo e pela auxiliar a Universidade do Brasil a estabelecer tem-
introdução do método de pesquisa aplicada na área. po integral para professores pesquisadores, por fal-
Mesmo que a pesquisa não tivesse consegui- ta de descortínio dos que detinham então poder
do institucionalizar-se na UB nos primeiros anos, administrativo (idem).
como era desejável, com esses dados é possível in- Como saída alternativa, físicos e matemáticos
ferir que, a partir dos anos 40, ela começa a deixar da Faculdade Nacional de Filosofia fundam, em
suas marcas em diferentes unidades dessa Univer- 1949, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, ins-
sidade. Importa observar, no entanto, que até os tituição que vai integrar vários pesquisadores de
anos 50 as condições para fazer pesquisa na Uni- reputação internacional, vários deles provenientes
versidade eram difíceis e precárias. Lembramos que da própria FNFi, a exemplo de César Lattes, José
somente em 1944 o Conselho Universitário discute Leite Lopes e Jayme Tiommo. Em poucos anos o
e propõe a criação do regime de tempo integral para CBPF se torna o principal núcleo de pesquisas físi-
os professores desenvolverem ensino e pesquisa na cas do País, agregando número expressivo de pes-
Universidade. Mesmo assim, essa proposta só irá ser quisadores da América Latina (idem).
efetivada anos depois. Somente em 50, a reivindicação de tempo in-
Em 1948, o professor Costa Ribeiro, designa- tegral e dedicação exclusiva vai ser contemplada na
do pelo governo como representante do Brasil na Universidade do Brasil. Inicia-se nessa década um

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Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero

movimento para desenvolver a pesquisa de forma Janeiro, responsável pela distribuição de verbas para
institucionalizada em diferentes áreas do conheci- a pesquisa. Nesse período, o CNPq também apóia
mento e não como um trabalho a ser realizado em a área de História”. E a professora completa: “Lem-
torno de alguns catedráticos. Nesse período são or- bro que passei três horas para convencer a CAPES
ganizados diversos institutos e se estabelecem con- que deveria dar bolsa para a pesquisa histórica. Foi
vênios com agências de fomento e apoio à pesqui- uma luta e uma conquista porque a história não
sa nacionais e internacionais. Vale lembrar, tam- tinha o mesmo status de outras áreas de conheci-
bém, que uma nova geração de professores, alguns mento” (Lobo, 1989, p. 27).
formados pela própria Universidade, procuram re- Importa lembrar que o período de 1959 a 64
novar as disciplinas introduzindo a pesquisa como é bastante fértil, desde que se considerem as várias
parte integrante dos cursos. propostas formuladas para enfrentar os problemas
Não resta dúvida de que a criação do Conse- diagnosticados na universidade brasileira e que é
lho Nacional de Pesquisas (CNPq), em 1951, cujo no limiar da década de 60 que se inicia na então
objetivo precípuo era desenvolver a pesquisa cien- Universidade do Brasil uma reforma universitária.
tífica e tecnológica em todos os campos do conhe- Assim sendo, é criada uma Comissão Especial, pe-
cimento, devendo para tanto fixar critérios de con- lo Conselho Universitário, em fevereiro de 1962,
cessão de bolsas, sobretudo a professores e pesqui- para tratar da questão. Constituída a comissão é
sadores, bem como auxílio às universidades para a decidido que seria de grande interesse e importân-
implantação de núcleos de pesquisa, muito contri- cia fazer uma consulta à comunidade acadêmica
buiu para essa renovação dentro da universidade. da própria instituição, bem como de outras univer-
Na mesma direção, também em 1951, é instituída sidades, igualmente interessadas nos problemas
a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pes- universitários.
soal de Nível Superior (CAPES), com a finalidade Em decorrência, é criado o Escritório de Pla-
de assegurar a existência de pessoal especializado nejamento da Reforma da Universidade do Brasil,
em quantidade e qualidade suficientes para atender para coordenar os trabalhos e elaborar um docu-
às necessidades dos empreendimentos públicos e mento baseado nas opiniões colhidas. Como resul-
privados, que visassem ao desenvolvimento eco- tado dos trabalhos, foi elaborado um documento
nômico e social do País (Decreto 29.741, de junho no qual são definidas as Diretrizes para a Reforma
de 1951). Com a preocupação de adaptar o ensino da Universidade do Brasil.
de engenharia, é constituída, ainda, a Comissão Su- Esse documento foi apresentado ao Conselho
pervisora do Plano dos Institutos (COSUPI), atra- Universitário em junho de 1963, mas, com a mu-
vés da Portaria Ministerial nº 102, de 28 de feve- dança política ocorrida no País após a implantação
reiro de 1958. do regime militar, em abril de 1964, sua execução
Embora comece de fato a existir na Universi- é sustada.
dade pesquisa institucional com auxílios financei- Baseado nos resultados dos estudos empreen-
ros, essa prática ainda não pode ser generalizada a didos na Universidade do Brasil pela Comissão an-
todas as áreas. É o que deixa entrever a professora tes mencionada é que o então ministro da Educa-
Eulália Lobo, referindo-se à pesquisa em história: ção e Cultura, Raymundo Moniz de Aragão, ex-
“Antes, o que ocorria era a pesquisa individual, membro da Comissão de Reforma da UB (agora
como uma publicação por conta própria, por al- UFRJ)4, “dirige, em 1966, aviso ao Conselho Fede-
guma editora particular”. Mas, no período 1967-
1968, passa a existir pesquisa institucional, com 4 É pertinente lembrar que a Universidade do Brasil,
verbas. “Havia um pequeno Conselho, chamava-se a partir de novembro de 1965, através da Lei 4.851, passa
o ‘Conselhinho’ da Universidade Federal do Rio de a chamar-se Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

30 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N º 10
A Universidade do Brasil

ral de Educação, solicitando-lhe a assessoria no sen- também a do pensamento liberal e autoritário, cujo
tido de formulação do diploma legal que corpo- imbricamento marca fundo a história das institui-
rificaria aqueles objetivos” (Aragão, 1968, p. 10). ções universitárias no País, como parte de uma rea-
O anteprojeto, elaborado pelo Conselho Federal de lidade concreta permeada de contradições.
Educação, com pequenas alterações, foi transforma-
do no Decreto-Lei nº 53, de 18/11/1966, que fixa
princípios e normas para as Universidades Federais. MARIA DE LOURDES DE ALBURQUERQUE FÁ-
Logo a seguir, e ainda com a participação do Con- VERO é professora adjunta aposentada da UFRJ e pesqui-
selho Federal da Educação, é formulado o Decreto- sadora do CNPq. Coordena o PROEDES – Programa de
Lei nº 252, de 28/02/1967, que estabelece normas Estudo e Documentação Educação e Sociedade da Faculda-
de de Educação da UFRJ. Publicou onze livros, sendo sete
complementares ao Decreto-Lei 53/66. Em conse-
em co-autoria e mais de cinqüenta capítulos de livros e ar-
qüência dessa legislação reestruturadora, a Univer-
tigos, em geral, sobre educação superior e instituições uni-
sidade Federal do Rio de Janeiro foi a primeira a versitárias. É responsável pela organização do Dicionário
apresentar o seu Plano de Reestruturação, expedido de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais, junta-
pelo Decreto nº 60.455-A, de 13 de março de 1967. mente com o professor Jader de Medeiros Britto, a ser publi-
E, em 8 de fevereiro de 1968, o Estatuto da UFRJ cado este ano, em co-edição da Editora UFRJ com o INEP.
É responsável também pela série Universidade do Brasil:
é aprovado pelo Conselho Federal da Educação.
história e memória, com três volumes, em fase de publica-
Um exame do Plano de Reestruturação da
ção pela Editora UFRJ.
UFRJ permite observar que se trata de um docu-
mento, aprovado por um decreto presidencial, pe-
lo qual se redefinem as finalidades, funções, orga- Referências bibliográficas
nização e administração da Universidade. Nos ter-
mos em que é apresentado, tem força de um dis- ARAGÃO, Raymundo Moniz, (1968). Introdução. In: A
positivo legal e vai determinar a mudança do Es- reforma da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio
tatuto dessa Universidade e dos regimentos das de Janeiro: Gráfica da UFRJ.
unidades e subunidades.5 ABE – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO
(1929). O problema universitário brasileiro. Rio de Ja-
neiro: A Encadernadora.
Concluindo
AUGUSTO, José, (1920). Regime Universitário III: o esta-
do atual da questão no Brasil. Jornal do Brasil, 24 out.
Vale ressaltar que todo o processo de constru-
ção e crescimento dessa Universidade até 1965 não BITTENCOURT, Raul J., (1946). Autonomia universitária.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 7, nº 21,
se deu de modo uníssono e unilateral. Malgrado os
p. 561-3.
problemas, materiais e humanos, ela foi e continua
CAMPOS, Francisco, (1931). Exposição de Motivos, apre-
sendo um espaço que vem contribuindo para a pro-
sentada ao Chefe do Governo Provisório, encaminhan-
dução de conhecimento e para a socialização do
do o projeto de Reforma do Ensino Superior. In: Minis-
saber no País. tério da Educação e Saúde Pública. Organização Univer-
Finalizando, é importante registrar ainda que sitária Brasileira. Decretos nº 19.850, 19.851 e 19.852,
estudar a história da Universidade do Brasil signi- de 11 de abril. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
fica revisitar, não apenas a própria história da ins- CORREIO DA MANHÃ (1936). O obstinado. Rio de Ja-
tituição que no ano 2000 fará oitenta anos, mas neiro, 13 set.
__________ (1937). Rio de Janeiro, 24 jun.
CUNHA, Luiz Antônio, (1980). A universidade temporã:
5A questão comporta uma análise mais detalhada em o ensino superior da Colônia à Era Vargas. Rio de Ja-
outro momento. neiro: Civilização Brasileira.

Revista Brasileira de Educação 31


Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero

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