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Resumo: Neste artigo, procuramos analisar a angústia em Franz Kafka. O universo dos
personagens de Kafka apresenta uma ruptura entre o homem e o mundo causando o sentimento
nomeado por Kierkegaard como angústia, ou seja, a aniquiladora proximidade consigo mesmo.
Partimos da análise do conceito de angústia formulado por Kierkegaard em 1844 para discutir a
relação entre inocência e auto-produção como fundamentos de uma postura ética. A relação entre
inocência e angústia é desenvolvida a partir da análise do conto “Um relatório para uma academia”.
Enquanto a discussão sobre a auto-produção gerada pela angústia é mediada por uma contraposição
entre o pensamento kierkegaardiano e alguns aforismos de Kafka. Ressaltamos, nesse, aspecto a
relação entre a teoria kierkegaardiana dos estágios da vida e a dicotomia entre decadência alienante
e salto angustiante, procurando entender em que medida esta teoria é compactuada por Kafka.
1. Considerações iniciais
As raízes latinas do termo angústia estão ligadas, em sentido próprio, a uma noção
de estreiteza, aperto, tendo a sua imagem plasmada como desfiladeiro. Com variações
figurativas pode variar seu significado entre a brevidade temporal e a precariedade de
recursos. Contudo, só existe um exemplo clássico de uso do termo em sentido
contemporâneo. Trata-se da única ocasião em que ele aparece no singular para se identificar
com um estado de espírito marcado pela aflição, uso sui generis adotado por Cícero em seu
De Natura Deorum.
Diante da imediatez da presença divina no encantamento comum ao mundo latino,
é possível identificar os elementos que permitem este uso contemporâneo do conceito de
angústia já no mundo antigo, principalmente pelo contexto de sua ligação a uma obra sobre
Deus. A estreiteza do desfiladeiro, que indica tanto o limite temporal e de recursos, é o
termo encontrado por Cícero para demarcar a condição humana frente a infinidade de Deus.
Outros termos, como medo e desespero, são mais comuns ao vocabulário arcaico como
1
Doutor em Ciência da Religião/Filosofia da Religião pela UFJF. Graduado em Filosofia pela UFSJ.
Professor da UEMG/Barbacena onde é pesquisador do Núcleo de Pesquisa “Educação: Subjetividade e
Sociedade” com projeto desenvolvido com fomento da FAPEMIG e bolsa do PAEx/UEMG/Estado.
A angústia não se apresenta como o meio mais fácil para sobreviver, mas como o
único capaz de realizar plenamente a nossa humanidade. Sem a angústia o homem poderia
permanecer em sua harmônica inocência, embora, se assim desejasse, estivesse, com isto,
Eu não tinha saída mas precisava arranjar uma, pois sem ela
não podia viver. Caso permanecesse sempre colado à parede
daquele caixote teria esticado as canelas sem remissão. Mas
na firma Hagenbeck o lugar dos macacos é de encontro à
parede do caixote – pois bem, por isso deixei de ser macaco.
Um raciocínio claro e belo que de algum modo eu devo ter
chocado com a barriga, pois os macacos pensam com a
barriga (1994, p. 60-1).
Analisando as possibilidades que se colocavam para ele, Pedro observa que ficar
ali parado, espremido no caixote, representava sua morte, a ida para uma prisão eterna no
zoológico foi uma opção logo descartada por ele; ficar preso às suas origens de símio e se
agarrar ao sonho de liberdade criando um plano de fuga terminaria, senão em sua morte, ao
menos em sua recaptura, e mais uma vez, ele se desvia de tais pensamentos; trair a sua
origem misturando-se aos conquistadores poderia levá-lo ao teatro de variedades onde ele
não estaria mais em uma jaula, eis o único caminho a seguir.
6. Kafka e Kierkegaard
Deste agosto de 1913, Kafka faz algumas referências a Kierkegaard em seu diário.
Influenciado por essas leituras de Kierkegaard, ele, em um dos aforismos de 1917, cria esta
alegoria:
7. Considerações finais
O universo dos heróis dos romances de Kafka se situa nesta angústia demarcada
pela ausência de sentimento de culpa e pela vontade de provar a sua inocência a todos os
que o culpam. Como a angústia causa uma vertigem insuportável, normalmente os homens
procuram fugir dela na de-cadência, o angustiado, assim, é visto como um caso patológico.
Imerso em sua angústia doentia, ele pretende questionar a ordem estabelecida para evitar
casos como o seu. No salto, o sujeito pode observar de cima todas as falhas do sistema;
como os demais não as vêem, ele é acusado por dizer aquilo que percebe. Tal qual o
indivíduo que foge da caverna na alegoria de Platão, esse angustiado não faz mais que
voltar para dizer que o mundo é nada. Não conseguindo aceitar sua culpa, ele
impacientemente luta por provar sua inocência e se afunda ainda mais na angústia. Segundo
Kafka: “A verdade é indivisível e, portanto, não conhece a ela mesma; o homem que deseja
conhecê-la deve ser falso” ([197-], p. 137). A exata falsidade que permeia o encontro com a
verdade é o único meio daquele que se diz inocente, para provar sua inocência aos outros.
O que ele pensa não passa de um aspecto desta indivisibilidade da verdade, o aspecto mais
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sombrio. Trazer este posicionamento para a luz requer um esforço que só pode ser
conquistado por aquele que não se restringe à verdade. O impaciente no auge de sua
angústia não consegue ultrapassar os limites daquilo que pensa ser a verdade, portanto,
jamais poderá alcançá-la.
Apesar de não conquistarem a verdade, realmente, como afirmam Deleuze e
Guattari, o sentimento de culpa não cabe a estes personagens porque isto seria fruto de um
julgamento externo:
É bem verdade que neste trecho os autores se referem ao pacto entre Kafka e suas
parceiras de correspondência, mas o mesmo poderia ser afirmado de sua produção literária
como um todo. O drama que aflige a esses personagens não é uma questão palpável;
encontra-se em um conflito com forças muito maiores que rompem a estrutura do real. Esse
drama acumula todo o peso de um embate heróico entre um simples sujeito e uma ampla
divindade. A culpa só seria possível se o sujeito reconhecesse seu crime, ou mesmo se
acolhesse à autoridade do outro como possível; ambas não são esferas vivenciadas por estes
personagens. Eles se lançam em um pacto com a angústia, que aumenta sua percepção das
coisas, mas ainda assim não lhes permite compreender as relações estabelecidas entre os
sujeitos “normais”, decadentes, e a ordenação do mundo.
Para Anders: “A consciência insegura da competência de seus deveres chega,
através de sua insegurança, a um pânico de consciência que se acumula automaticamente e
que tem, finalmente, de convencer o atormentado de que ele de alguma forma deve ter
cometido pecado. Essa insegurança da consciência explica a humildade pregada por Kafka”
(1969, p. 33). Este julgamento de Anders visa encontrar um sentido, a humildade, na
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produção kafkiana, mas o mestre da aporia não tem uma grande preocupação com a
presença de sentido. Em verdade, Kafka adverte que existem “duas incumbências no limiar
da vida: estreitar seu círculo cada vez mais, e procurar certificar-se constantemente de que
você não se ocultou em algum lugar no exterior dele” ([197-], p. 139-40). Tudo o que
realmente importa ao homem é a construção deste círculo e a sua integração a ele. A
humildade exposta por Anders é apenas uma forma de concretizar este objetivo. Os heróis
kafkianos, como Josef K., são incapazes desta humildade e, por isso, estão
permanentemente angustiados e fora do círculo.
Se a angústia kierkegaardiana é fundamentalmente associada à evolução religiosa,
esta posição dos personagens kafkianos demonstra uma nova passagem de tempo. Assim
como o conceito de angústia de Kierkegaard retoma uma posição manifesta em Cícero,
embora modificada, substancialmente, em relação às suas origens. A angústia manifesta nos
personagens de Kafka retoma Kierkegaard, embora naquele não exista mais a perspectiva
de salvação tão presente neste. Em Kafka, a angústia se manifesta de forma mais terminal,
ela devora os heróis que não conseguem visualizar outra saída que não o ocaso. Se em
Kierkegaard ela é a passagem para o ético, em Kafka, ela representa a impossibilidade da
constituição de um mundo ético, logo é também a denúncia da falta de ética constitutiva da
realidade hodierna.
A saída para a angústia kafkiana não se encontra nas atitudes dos heróis propostos
por ele, mas na atitude do próprio autor que lê suas obras entre crises de riso. Se, em
Kierkegaard deve se ultrapassar o ético por meio do humor, em Kafka, a impossibilidade do
ético gera o mesmo processo, não para alcançar o estágio religioso, mas para se
compreender ante a impossibilidade do ético. O humor em Kafka é parceiro da angústia,
não seu substituto. Kafka não ri do mundo que criou por acreditar que é uma criatura
absurda; em verdade, ri do absurdo que constitui o mundo a que ele revela em sua obra. Ri
sem abandonar a angústia, sem, portanto, se tornar religioso no sentido kierkegaardiano.
Angustiadamente, ri de quem se deixa devorar pela angústia, tanto quanto ri de quem se
deixa levar por uma religiosidade puramente alienante. Sua angústia retoma o significado
original e não pretende oferecer qualquer ponte para transpor o abismo que abriu diante do
homem.
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Referências:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro:
Imago, 1977.
________. Nachgelassene Schriften und Fragment II. Frankfurt: S. Fischer Verlag, 2002
(Franz Kafka Kritische Ausgabe).
______. O desespero humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os pensadores).
Abstract: In this article we try to analyze the dread in Franz Kafka. The universe of Kafka’s
characters shows a rupture between the man and the world, causing the feeling named by
Kierkegaard as dread, which means the annihilating proximity of one with him/herself. The first
question is the analysis of Kierkegaard’s concept of dread according to his 1844’s book. In this
concept we discuss about the relationship between the innocence and the self-production as
foundation of an ethical posture. The relationship between innocence and dread was developed in
the analysis of the narrative “A report to an Academy”, and the discussion about the self-production
generates to the dread is thought in the contraposition of the Kierkegaard’s think and some of
Kafka’s aphorisms. In this aspect, we highlight the relation between Kierkegaard’s theory of the
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stages of life and the dichotomy between the alienating decadency and the jump of dread, trying to
understand how this theory is agrees with Kafka.