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SUELI CAVENDISH

é professora de Inglês e
de Literaturas de Língua
Inglesa no Departamento
de Letras da Universidade
Federal de Pernambuco,
ensaísta e tradutora.

j onathan Culler, conhecido do

público acadêmico brasileiro

por meio dos livros Teoria Lite-

rária: uma Introdução1 e Sobre

a Desconstrução2, é um teórico

cuja obra se desenvolve tanto na

direção de uma reflexão própria

quanto na da disseminação de

determinados corpos de conhe-

cimento, o estruturalismo e a descons-

trução. Em relação à primeira direção,

O estado
é possível destacar os seus esforços
pela renovação de uma teoria literária

estruturalista, com a proposição da noção

da
de “competência literária”, que tem

Chomsky como ponto de partida, mas

cuja ênfase recai no conhecimento que

tem o leitor, conhecimento sistematizado e

crítica:
predeterminado pela convenção. Ao invés
SUELI CAVENDISH

de buscar o “significado secreto” de um

texto, a leitura crítica deve centrar-se nas

entrevista
operações que vão do texto à representação

da compreensão do texto; e na investigação

do aparato lingüístico do leitor como

com

Jonathan
1 Tradução de Sandra Vasconce-
los, São Paulo, Beca, 1999.
2 Tradução de Patrícia Burrowes,
Rio de Janeiro, Record/Rosa
dos Tempos, 1997.
conjunto codificado e sistematizado. Culler mais citado entre os teóricos vivos – no

vê a literatura como um signo institucional, tratamento das questões mais complexas.


que dá ao ser humano uma razão para crer Também conhecida no Brasil é a sua

que o resultado do seu esforço de leitura surpreendente intervenção nos Seminários

será recompensado. E a competência Tanner sobre Valores Humanos, em defesa

literária como a aquisição do sistema que da superinterpretação, ou da interpretação

é institucionalizado pela academia. paranóide: “[…] a interpretação só

Foi, porém, com os produtos da é interessante quando é extrema. A

segunda direção tomada pelo seu trabalho interpretação moderada, que articula um

em teoria literária que veio a notabilizar- consenso […] é de pouco interesse”3.

se. Em 1975 publicou Structuralist Depois de graduar-se com distinção em

Poetics: Structuralism, Linguistics, Harvard, em História e Literatura, Culler

and the Study of Literature, uma versão completou os seus estudos graduados em

revisada da tese de doutorado, com o Oxford, na Inglaterra, com o auxílio de

qual conquistou o prêmio James Russell uma bolsa de estudos Rhodes, na área

Lowell de melhor livro do ano em de Línguas Modernas. Foi professor

crítica literária, concedido pela Modern visitante na Universidade de Yale e,

Language Association of America. E em desde 1974, ensina na Universidade

1982 On Deconstruction: Theory and de Cornell, tendo assumido a cátedra

Criticism after Structuralism, com o Class of 1916 Professor of English and

qual introduziu o pensamento de Jacques Comparative Literature, antes ocupada

Derrida nos países de língua inglesa por M. H. Abrams. Atualmente é diretor

e consolidou a sua marca de pensador do Departamento de Literatura Comparada 3 Umberto Eco. Interpretação e
Superinterpretação, São Paulo,
claro e lúcido – Culler é hoje o quinto dessa mesma universidade. Martins Fontes, 1993.

Culler
ENTREVISTA

William Blake certa vez afirmou que Não tenho dúvidas de que me vejo como
o homem que não cria o seu próprio alguém que promove determinados tipos
sistema corre o risco de tornar-se presa de abordagem e que desencoraja, ao não
de um sistema alheio. Se há verdade nessa promovê-los, outros tipos; assim, certamente
afirmação, quero dizer que de modo algum não me vejo como alguém que tenha ficado
ela se aplica ao seu caso; se há verdade afastado de questões polêmicas. Além
nisso, o seu trabalho constitui uma honrosa disso, dirigi acirradas críticas à instituição
exceção. Colocando-se em um lugar de acadêmica por seu fracasso em constituir
onde articula diversas correntes de crítica uma crítica da religião, juntamente com a
e teoria literária, o senhor desempenha um crítica ao sexismo e ao racismo, que são os
papel extremamente importante ao expor seus alvos mais freqüentes.
os seus pressupostos epistemológicos e
suas fundações filosóficas e ao torná-las Em Teoria Literária: uma Introdução, o
disponíveis para muitos. Como avalia sua senhor registra que a teoria é um corpo de
própria trajetória em teoria e o que vê pensamento cujos limites são extremamente
como o produto mais importante de seu difíceis de precisar. Concebida, como tem
empreendimento na área? sido também a ficção, como uma “criação
de mundos”, a teoria se aproximaria da
Suponho que o produto mais importante, própria ficção? Nesse caso a teoria literária
assim como o efeito mais contundente do poderia ser considerada um gênero entre
meu trabalho em teoria literária, tenha sido, outros do campo literário, poderia alcançar
e seja ainda, o de familiarizar uma ampla o estatuto da arte?
variedade de leitores – tanto aqueles que
se profissionalizaram na especialidade dos Bem, essa é uma pergunta muito ampla
estudos literários quanto os que se situam sobre a natureza da teoria literária e dos seus
fora do domínio dos estudos literários – com efeitos e a forma como efetivamente nos
diversas correntes do pensamento moderno posicionamos depende da definição do outro
que considero extremamente importantes. termo. Em geral tenho sido extremamente
Avalio a minha contribuição como sendo a reticente em afirmar que a teoria literária
de tornar acessíveis certos tipos de crítica, a ou a crítica literária devam buscar para si
de promover certas correntes de pensamento mesmas o estatuto de arte. Houve de fato,
e a de preparar profissionais para a prática nos anos 80, uma vertente da crítica que
da crítica de um modo determinado, a de assim o fez. Geoffrey Hartman escreveu
induzi-los a perseguirem certas linhas de sobre a crítica como uma forma de arte –
investigação literária, sejam estas rotuladas defendia a noção da crítica enquanto criação
de estruturalistas ou desconstrucionistas. como uma forma artística – propugnava a
Certamente as pessoas lêem os meus prática da crítica, enfim, como uma forma
trabalhos com o objetivo de conhecer uma de auto-expressão. Na verdade, uma das
escola de pensamento ou uma determinada razões pelas quais venho resistindo a
prática crítica com as quais têm o interesse aderir a tal identificação é a de que muito
de se envolver. A disseminação desse tipo freqüentemente a tentativa de fazer da
de conhecimento, creio, é a minha maior crítica uma forma de arte envolve uma
realização. concepção de crítica como auto-expressão,
como a expressão das idiossincrasias da
O senhor considera que ficou afastado de individualidade do próprio crítico. Parecia-
questões polêmicas? Não parece haver me e parece-me, ainda, que não é aí que se
registro do seu envolvimento nas querelas encontra o valor, a despeito da importância
que são comuns ao campo. . . das formas criativas na escrita crítica.

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Entretanto penso, de fato, que a teoria uma “ciência da literatura” parece mais
literária, na medida em que é uma criação um oxímoro, uma combinação de termos
do espírito humano, uma tentativa de contraditórios. Em suma, a proporção em
compreender o mundo e especialmente de que a teoria literária e a crítica literária se
buscar a significância dos produtos humanos aproximam da condição de ciência depende
no interior desse mundo, pode certamente ser basicamente da concepção de ciência com
encarada como análoga à literatura, que é um a qual estamos operando.
outro empreendimento da mesma natureza;
ou seja, a teoria literária é uma tentativa de Em “Para Além da Interpretação” (“Beyond
encontrar o sentido da experiência humana, Interpretation”), primeiro capítulo de Em
da invenção humana de variadas espécies. Busca dos Signos (The Pursuit of Signs),
Ficaria, por conseguinte, feliz de poder, num o senhor parece qualificar a interpretação
nível bastante abrangente, situá-las uma ao como algo que atravanca o pensamento
lado da outra. Mas naturalmente nesse nível teórico. Nos Estados Unidos essa tendência
tão amplo como o que aqui discutimos, à interpretação de obras literárias, o senhor
também a ciência entra no quadro como uma afirma, é um legado da nova crítica. E
espécie semelhante de empreendimento; aponta, como uma razão para o sucesso da
com diferentes protocolos e visões distintas desconstrução nos Estados Unidos, a sua
do que conta como sendo válido, talvez, característica de poder tornar-se facilmente
mas ainda assim muito semelhante. Aquilo um método de interpretação. O que pensa
a que tenho resistido consistentemente é a a respeito dessa questão neste momento?
idéia de que a teoria literária existe apenas Não seria a falta de uma tradição filosófica
para servir aos interesses da interpretação nos Estados Unidos, além da tradição do
literária e de que a finalidade única da pragmatismo, o fator responsável pela
teoria literária é a de tornar possíveis novas debilidade do pensamento teórico?
interpretações de obras literárias. Creio
no valor da teoria literária em si mesma, Bem, essa debilidade é por certo um fator a
como uma tentativa de compreender ser considerado, mas eu estava interessado,
aspectos essenciais da atividade humana, por exemplo, em contrastar os destinos
não apenas no campo da literatura, mas dos do estruturalismo e da desconstrução nos
diversos usos da linguagem, a habilidade Estados Unidos, onde a desconstrução
de dar sentido à experiência, enfim. A foi muito mais rapidamente assimilada e
extensa gama das operações semióticas da teve uma disseminação bem mais ampla,
experiência humana pode ser vista como o enquanto o pensamento estruturalista,
objeto da teoria literária concebida em seu visto inicialmente como algo novo e
sentido lato. instigante, cedo encontrou também uma
Creio que a teoria é um empreendimento maior resistência. E com o advento da
maior, e quer se decida chamá-lo de científico crítica desconstrucionista de alguns textos
ou de artístico depende parcialmente da estruturalistas, teóricos e críticos mostraram-
noção que se cultiva a respeito da ciência. se muito inclinados a lançar mão da noção
Direi apenas, em acréscimo, que nos de um pós-estruturalismo como uma forma
Estados Unidos a ciência é geralmente de ultrapassar o estruturalismo, como uma
concebida como uma atividade empírica que maneira de não terem que se defrontar
necessita ser testável, ao passo que na maior com as ambições sistemáticas das teorias
parte das línguas européias a ciência, ou estruturalistas de várias espécies. Isso me
Wissenschaft, por exemplo, é compreendida levou a considerar a sedução esmagadora
como um pensamento sistemático ao invés exercida pela interpretação nos estudos
de um pensamento empírico, e é nesse literários, especialmente nos Estados
caso muito mais fácil de se conceber uma Unidos, como responsável em parte pelos
Literaturwissenschaft, uma ciência da destinos da desconstrução. Há outras
literatura, ao passo que nos Estados Unidos tradições filosóficas nos estudos literários

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que não tiveram tanta aceitação nos Estados Publicado nos anos 90, Teoria Literária:
Unidos, mas a obra filosófica de Derrida uma Introdução (Literary Theory: a Very
toma a forma de uma leitura de textos Short Introduction) alinha o formalismo
filosóficos; não consiste na construção russo, a nova crítica, o estruturalismo,
de uma teoria desde as fundações, uma as teorias feministas, a fenomenologia,
vez que é sempre uma leitura de Platão, entre outros, entre algumas das escolas
uma leitura de Rousseau, uma leitura de teóricas do cenário de então. O que muda
Heidegger. nesse quadro desde aquele momento? O
senhor poderia mapear o presente estado
dos estudos literários nos Estados Unidos,
A identificação da desconstrução com a articulando as diversas correntes às suas
América, a noção de que a desconstrução fundações filosóficas?
é um produto americano, parece ser uma
opinião corrente. Gostaria de ouvi-lo sobre Um dos principais problemas que identifico
essa questão. na atualidade é que as pessoas que trabalham
no campo dos estudos literários nos
Suponho que se deva parcialmente ao Estados Unidos têm assumido uma posição
fato de que a fortuna do termo tenha sido defensiva; essas pessoas não se sentem mais
singularmente produzida na América. Na como líderes de novos movimentos, nem
França a idéia da desconstrução como na crista da onda ou na vanguarda dos altos
um movimento é algo que se origina na estudos nas humanidades, de tal forma que
América, que retorna da América, no profissionais em outros campos não têm
sentido de que é devolvida pelo que aqui mais que se familiarizar com o que eles
se vem produzindo. Há filósofos como estão fazendo para também se tornarem
Derrida, Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue- atualizados e vanguardistas. Essa posição
Labarthe e Sarah Kaufman, cujo trabalho defensiva envolve certo grau de consolidação
se desenvolve numa tradição européia, do pensamento que tomou várias direções
na esteira de Heidegger, elaborando os durante os anos 80; por exemplo, é uma
seus projetos dentro dos marcos de uma consolidação no sentido de que os críticos
tradição continental. Suas obras vieram a ser não se mostram mais tão inclinados a se
identificadas como algo específico a que se identificarem com uma única escola crítica,
vem chamando de desconstrução por causa ou a serem vistos como seus defensores.
do sucesso da desconstrução na América, Os críticos da atualidade se mostram muito
por causa do seu sucesso no domínio dos menos inclinados a se denominarem de
estudos literários em particular. Esses críticos marxistas, ou como praticantes
filósofos começaram a ser chamados, então, de uma crítica fenomenológica, de uma
de “desconstrucionistas.” La Déconstrution crítica mítica, ou mesmo a se chamarem
veio a existir na França em razão da desconstrucionistas. Naturalmente há
América. Isso ocorreu provavelmente ainda alguns que se caracterizariam como
porque nos meios acadêmicos americanos novos historicistas; e o historicismo,
as novidades são sempre premiadas: há um como fenômeno crítico mais amplo, tem
desejo de cunhar novos termos para nomear conquistado um peso considerável em anos
novos movimentos; as pessoas desejam ver- recentes. Como resultado desse ganho de
se a si mesmas como participantes de uma força tem havido uma diversificação da
vanguarda crítica; como você mencionou crítica historicista, de tal forma que não
anteriormente, a falta de uma tradição há mais um único novo historicismo, mas
filosófica nativa, especialmente de uma muitas abordagens distintas. Há críticos que
tradição que seja responsiva às grandes se interessam particularmente pela cultura
obras da filosofia continental, pode tornar material e pela história do livro ou, ainda,
necessário criar um novo nome para algo pela história das práticas da impressão e da
como a obra de Derrida. disseminação. Indagam-se a respeito das

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formas pelas quais os meios materiais de vários métodos críticos que anteriormente
produção podem ser envolvidos na reflexão pareciam bastante diferenciados e que agora
sobre os textos literários em seus contextos. parecem mais propensos a se fundirem, a
Há outros interessados na história das idéias não ser facilmente identificáveis. Assim,
em um sentido foucaultiano, partindo do a psicanálise, por exemplo, que durante
pressuposto de que a exploração da história, certo tempo foi uma escola crítica ou uma
em sua acepção mais ampla de mentalité, modalidade crítica bastante agressiva,
deve ser vista como o empreendimento na qual os críticos utilizavam um jargão
mais fundamental da crítica. Creio que diria completamente distinto da linguagem
que, se é possível afirmar a existência de geral, ou a crítica feminista, que já foi
um modo dominante de crítica nas escolas bastante idiossincrática, vêm perdendo seus
de pós-graduação americanas, esse modo contornos mais agudos, suas arestas mais
seria foucaultiano. Os alunos dos programas afiadas e estão cada vez mais se fundindo às
de pós-graduação em Cornell tendem a outras, de tal forma que é possível haver uma
produzir dissertações que analisam uma dissertação na qual o escritor se utiliza de
variedade de obras literárias tomadas Freud e, entretanto, envolve-se numa espécie
como exemplares com relação a alguma de tentativa foucaultiana de identificar
mudança cultural profunda, a uma mudança categorias culturais fundamentais como
de atitudes com relação a algo, algum as que citei anteriormente e, mais ainda,
conceito ou categoria – alguma mudança tomando essas categorias de empréstimo
no pensamento sobre a sexualidade, alguma a Derrida, por exemplo. Estamos diante
transformação na concepção, por exemplo, de uma cena crítica na qual de algumas
do que seja o ciúme. Eu identifico esse tipo maneiras é difícil identificar vetores
de crítica como sendo, em termos gerais, particulares; é muito mais fácil identificar
historicista, no sentido de que todos esses influências e múltiplas espécies de fontes
jovens acadêmicos esperam encontrar e fundamentações teóricas e filosóficas. Eu
algum tipo de transformação que as suas não diria exatamente que é uma síntese; não
interpretações de obras literárias contribuam é que tenhamos alcançado uma síntese feliz
para rastrear. O foco pode estar em uma na qual todos os movimentos críticos do
única obra, mas pressupõe-se que a realidade passado tivessem se articulado dentro de
fundamental que eles estão investigando uma única corrente, mas sim que as divisões
não é uma questão acerca de gêneros entre as nossas tendências críticas atuais,
literários ou de estilo, mas um conjunto entre as nossas escolas críticas modernas,
de categorias culturais subjacentes. Avalio não são mais tão vigorosas e interessantes
esse tipo de estudo como uma crítica, no quanto já foram. Incidentalmente, esse fato
geral, foucaultiana, mesmo que os métodos tem tornado os departamentos de literatura
sejam bastante diferentes: variados tipos bem mais harmoniosos; as pessoas não se
de métodos formais podem ser usados, confrontam mais sobre as maneiras mais
a estilística, a interpretação de figuras, o adequadas de proceder. E fica também mais
foco na linguagem, a abordagem de obras difícil conceder entrevistas interessantes
literárias através de metodologias que o sobre o estado da crítica, assim como
próprio Foucault certamente não utilizaria. escrever artigos sobre a crítica, isso é
Mas de fato parece que em muitos dos inegável. Naturalmente o que pode estar
projetos de crítica nos dias atuais o objetivo ocorrendo é que eu, por ser bem mais velho
subjacente é foucaultiano: de uma forma ou agora, tenha mais dificuldade de identificar
de outra é o de traçar ou empreender uma novas correntes da crítica que alguém mais
espécie de arqueologia do presente ou uma jovem fosse capaz de abordar.
arqueologia do passado.
Suponho que a coisa mais fácil de se Qual o traço mais fundamental a opor os
identificar na cena crítica atual é o relativo estudos culturais e os estudos literários,
declínio de várias escolas críticas e de tomados estes últimos em seu sentido

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clássico? Em que ponto se tornam eles as características distintivas da linguagem
radicalmente incompatíveis? literária. Por conseguinte a questão em
torno da qual os estudos culturais e os
Houve certamente um momento em que estudos literários poderiam ser considerados
os estudos culturais se mostraram bastante incompatíveis vem a ser de fato a questão
agressivos, um momento em que afirmavam da linguagem. Deve a linguagem das obras
que deveriam ser a rubrica geral sob a qual literárias ser vista sintomaticamente, como
a literatura deveria ser estudada. E em fazem os estudos culturais, como sintoma
que afirmavam que o estudo da literatura de algo mais, de alguma formação social, ou
era simplesmente um caso especial dos deve ser vista como uma coisa importante
estudos culturais em geral. Creio que um em si mesma, por sua engenhosidade, sua
desenvolvimento importante em anos recentes eficácia, seus efeitos, devo dizer. Aqui se
tem sido o enfraquecimento desse traço encontra um divisor de águas. A visão de
agressivo dos estudos culturais. Com certeza que tal linguagem deva ser lida em si mesma
eles se encontram firmemente estabelecidos não é de modo algum majoritária, como
nos departamentos de literatura. Os estudos mencionei anteriormente quando falava
culturais são uma abordagem alternativa, sobre o que considero abordagens muito
mas não uma abordagem a que se tenha comuns entre nossos próprios alunos de
permitido tornar-se hegemônica. Creio ter pós-graduação. Eles demonstram certo nível
havido uma reviravolta, no sentido de que de desejo de interpretar essas obras como
a ênfase tem sido crescentemente deslocada reflexos de uma mudança social fundamental
para a importância do envolvimento com e, nesse sentido, talvez haja um substrato
a linguagem do texto literário. Percebo dos estudos culturais em operação mesmo
também a existência de um retorno crucial nos projetos que focalizam obras literárias
ao interesse pela estética, que durante e não apenas, por exemplo, o estudo do
certo tempo, sobretudo nos anos 90, era filme ou da cultura popular. Mas tem havido
considerada quase que uma palavra obscena; uma retomada importante das questões que
o “esteticismo” era um pecado do qual se os estudos culturais tendem a pôr de lado.
poderia ser acusado. No ano passado, em Entre nossos alunos de pós-graduação, por
Cornell, houve um curso de pós-graduação exemplo, os teóricos mais populares no
sobre a história da estética, oferecido por momento são Giorgio Agamben, um filósofo
um jovem professor do Departamento quasi desconstrucionista, que escreve sobre
de Alemão, Peter Gilgen, que de repente a forma literária, sobre o nascimento da
se tornou um curso que todos os alunos linguagem literária e sobre a história da
dos departamentos de literatura queriam literatura italiana em seus primórdios,
freqüentar. Esse professor atraiu 40 alunos e Alain Badiou, filósofo francês que
de pós-graduação para o seu curso, alunos escreve aforismos sobre estética. Além de
que queriam ler Kant, Hegel e Adorno – a Derrida são esses os filósofos continentais
história do pensamento estético moderno mais populares entre os estudantes de
tornou-se, surpreendentemente, um assunto pós-graduação, o que atesta o retorno do
de interesse fundamental. A estética deixou interesse em questões estéticas.
de ser algo passível de ser etiquetado como Devo acrescentar que os estudos cul-
descartável. Creio que tem havido também turais de fato alcançaram a sua completa
um considerável retorno do interesse em legitimidade nos dias atuais; deixaram
conceitos como o conceito do Belo, que de ser objeto de contestação; na verdade
durante certo tempo chegou a ser também asseguraram um lugar respeitável na maior
um tema expurgado do discurso crítico. parte dos departamentos de literatura e,
Elaine Scarry publicou recentemente um decerto, na maioria dos catálogos das
livro chamado Sobre a Beleza, por exemplo. editoras. Evidentemente os estudantes
Acredito haver em geral uma retomada do não consideram os estudos literários e os
interesse sobre questões da estética e sobre estudos culturais como opções mutuamente

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exclusivas. Não se vêem na obrigação de
decidir sobre se irão trabalhar com temas dos
estudos literários ou dos estudos culturais,
embora, como afirmei anteriormente, eles
sejam incompatíveis com respeito a certas
questões. Cada vez mais determinadas
abordagens dos estudos culturais são aceitas
sem discussão, embora o interesse na forma
literária e no que foi estigmatizado como alta
cultura tenha aumentado. Por conseguinte
os estudos culturais estabeleceram a sua
legitimidade, mas não conseguiram eclipsar
ou marginalizar o estudo literário de obras
literárias, que tem retornado e permanece
como um projeto mais importante nos
estudos literários neste momento.

Mas qual é o seu ponto de vista pessoal a


respeito das contribuições mais importantes
dos estudos culturais?

Bem, eu tenho uma visão muito pouco


ortodoxa dos estudos culturais, que
certamente não é compartilhada pelos
praticantes americanos dos estudos
culturais, na medida em que os concebo
essencialmente como um prolongamento,
sob um novo nome, dos projetos inacabados
do estruturalismo e da semiótica, que afinal
de contas verdadeiramente se dispuseram a
compreender não apenas a literatura, mas a
mecânica do significado e o funcionamento
das formas culturais de modo geral. Os
estudos culturais freqüentemente se guiaram
pelos mesmos objetivos, enquanto tentavam
concomitantemente resistir à abordagem
filosófica ou ao interesse na semiótica,
enquanto tentavam identificar-se com o
popular, ao passo que o estruturalismo
nunca se concebeu como algo que tivesse
que se identificar com as formas culturais
populares que tomava por objeto de
estudo. Quando Roland Barthes escreveu
Mythologies ele certamente não se arvorou
em defensor das formas populares que
estudava, embora estivesse tentando expor a
maneira pela qual a burguesia impõe as suas
próprias normas culturais como naturais.
Entretanto, com freqüência os estudos
culturais, na esteira da tradição britânica,
têm se alinhado com a cultura popular contra

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a cultura de elite. Na tradição estruturalista alguma transformação expressiva, como
e semiótica essas práticas culturais eram Derrida afirmou que elas sofreriam, por
investigadas sem que necessariamente se influência da desconstrução?
tentasse promovê-las ou defendê-las. Vejo
de fato os estudos culturais como uma Há, decerto, nos Estados Unidos tentativas
disciplina importante ao dar seqüência aos de repensar a instituição, e não apenas
projetos do estruturalismo e da semiótica. nos estudos literários. O exemplo mais
É certamente uma abordagem legítima, na impactante talvez seja o livro de Bill
medida em que todas as espécies de práticas Readings intitulado The University in
culturais devem ser estudadas. Ruins (A Universidade em Ruína), mas
Em particular creio que o estudo do este foi um título dado pelos editores,
filme e do vídeo é um empreendimento depois de sua morte, ao manuscrito que
importante. Esse estudo parece haver ele vinha chamando de The University
caído no domínio dos estudos culturais e é, Beyond Culture (A Universidade para
portanto, uma manifestação das conquistas Além da Cultura). Ele refletia acerca das
dos estudos culturais que deve ser celebrada. transformações na universidade e como,
De fato creio, embora não seja de modo especialmente, a mudança daquilo a que
algum um especialista no assunto, que chamava de “a universidade da cultura”,
a teoria do filme tem estado demasiado que havia sido concebida para produzir
fundamentada em antigos modelos. E sujeitos nacionais, cidadãos culturais
que necessita ser repensada agora que a que herdariam o patrimônio cultural de
experiência primária do filme deixou de ser uma nação, para o que chamou de “a
a de estarmos sentados num auditório, em universidade da excelência”, “excelência”
meio a uma grande multidão, assistindo às tendo se tornado uma palavra vazia para
imagens numa tela ampla e distanciada, para promover o controle burocrático; eles
tornar-se cada vez mais a de consumirmos não se importam com o que você ensine
o filme em nossa própria tela, em casa, com contanto que você o faça com excelência,
um vídeo ou um DVD alugado, num tipo assim como determinam várias espécies
bastante diverso de espaço cultural. Muitas de mensurações – sejam estas avaliações
das teorias da recepção do filme tomaram dos seus colegas, grau de satisfação dos
as antigas condições de expectação como estudantes, número de diplomas obtidos e
norma para uma teoria crítica do filme, por assim por diante. O conteúdo da educação
conseguinte alguma reconsideração do olhar universitária deixa de ser importante e cada
cinemático se faz necessária. Creio que as vez mais o sucesso de um departamento ou
teorias do desejo cinemático no contexto de um programa ou mesmo da universidade
dos estudos culturais têm que passar por é avaliado em termos de várias escalas
transformações agora que a expectação quantitativas (avaliação dos colegas,
dentro de um cinema não é mais a norma. reação dos estudantes, contribuições para
É um tipo de experiência bem diversa a instituição, número de publicações e
que necessita ser teorizada pelos estudos assim por diante). Essa é uma concepção
culturais. bem distinta de instituição, e o livro de Bill
Readings é uma tentativa de repensá-la.
O que mudou no cenário institucional Naturalmente o próprio Derrida escreveu
americano desde o advento da descons- bastante sobre a instituição e eu tenho alguns
trução? Houve uma evolução em direção artigos sobre o assunto, mas não encontrei
ao que o próprio Derrida considerava nenhuma resposta para as questões que
essencial ao projeto desconstrucionista? coloco.
Por exemplo, as normas e premissas
fundamentais dos discursos dominantes, Mesmo Derrida tendo afirmado que “não
a estrutura das instituições acadêmicas há um fora do texto”, as relações entre a
e a pesquisa que as acompanha sofreram literatura e a cultura não são uma questão

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resolvida. Assim como também não é uma Penso efetivamente que a obra de Derrida
questão resolvida o conhecimento sobre a sobre a oposição entre o ficcional e o não-
natureza da ficção e sobre a sua função na ficcional é extremamente importante.
sociedade. Que correntes de pensamento Há certamente outras linhas teóricas
oferecem contribuições mais substanciais de investigação que são importantes.
ao equacionamento desses problemas? Tenho especial interesse nos trabalhos
de Walter Benjamin e Theodor Adorno.
Temos ficções para fazer sentido da ex- Acredito que são pensadores fundamentais
periência. Precisamos ser capazes de do século XX e que as suas respectivas
imaginar alternativas. A concepção das obras são extremamente importantes para
possibilidades do pensamento utópico a teoria literária americana. Benjamin mais
naturalmente requer que existam ficções; importante ainda que Adorno, por razões que
tanto o pensamento utópico quanto o talvez não me pareçam inteiramente válidas,
distópico são sempre acionados pela ficção. mas que se deva talvez ao fato de Benjamin
Uma das linhas de argumentação de Derrida ser tão enigmático e escrever ensaios curtos,
se encontra em um livro chamado Demeure: fragmentários, ao passo que há um volume
Fiction and Testimony (Morada: Ficção tão grande de Adorno para ler que lidar
e Testemunho) sobre Maurice Blanchot. com Adorno se torna uma empreitada bem
Nele Derrida argumenta que mesmo formas mais difícil. Não obstante, penso que estes
como o testemunho dependem, em última são dois teóricos que continuaremos a ler
instância, da ficção. A estrutura da ficção e sobre cuja obra continuaremos a refletir
se torna uma espécie de estrutura geral da nas décadas vindouras.
qual algo como o testemunho seria um caso
particular. Mais uma vez é uma questão de Quando lemos ensaios filosóficos ou
pontos de vista, creio: se a ficção é concebida psicanalíticos – os de Derrida, os de Lacan,
em oposição a algo mais – então teríamos os de Deleuze – ficamos com a impressão de
um tipo de resposta sobre a sua função – ou que eles se ajustam bem demais às questões
se é concebida como uma estrutura geral postas pela ficção literária. A ficção vem
da qual oposições emergem, teríamos algo primeiro, e o pensamento por conceitos
diverso. Neste último caso a ficção seria uma se desenvolve sobre a base do que põe a
categoria tão ampla que abrangeria tudo; literatura?
isso evitaria que algo se opusesse à ficção.
Assim, a não-ficção seria apenas um caso Certamente há esse ajuste perfeito, como
especial de uma ficcionalidade geral. E a você diz, mas eu também acho – como
ficção transforma-se em outro nome para mencionei anteriormente, Derrida pratica
um tipo de espacialização ou temporalização a filosofia empreendendo leituras de textos
que é a condição do significado em geral. filosóficos – que há casos em que a leitura de
Suponho, por conseguinte, que uma textos literários pode ser encarada como uma
das mais importantes contribuições do forma de trabalho filosófico. Isso me parece
trabalho de Derrida tenha sido o de um de fato fundamental e eu tento efetivamente
tipo de reestruturação que se torna mais convencer os meus alunos a pensarem
perceptível para nós em outras áreas: na leitura de obras literárias como uma
tal como a desconstrução da oposição modalidade de análise filosófica, ao invés
entre a fala e a escrita, e o argumento de imaginarem que devem simplesmente
de que a fala é um caso especial de uma abordar a obra literária com um conjunto
arquiescrita generalizada, uma archi- de conceitos e categorias filosóficas que
écriture. Argumentos semelhantes podem eles então aplicam à obra. No modelo
ser desenvolvidos em outros casos, tais sob o qual operávamos anteriormente, o
como o que diz respeito à distinção entre o objetivo era visto como sendo o de produzir
sério e o não-sério, o não sério como uma interpretações literárias: tomávamos os
condição ou uma possibilidade para o sério. conceitos de empréstimo à psicanálise,

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ou à filosofia ou a qualquer outro corpo quanto às maneiras pelas quais podemos
de conhecimento e aplicávamos esses nos enredar nos processos do texto.
conceitos à obra literária a fim de gerar uma Creio que a sua pergunta é muito boa, na
interpretação particular. Mas se deixamos medida em que enfatiza a complexidade da
de conceber a interpretação literária relação entre o leitor e o texto, que muito
como o objetivo dos estudos literários freqüentemente tendemos a simplificar.
genericamente, e deixamos de concebê-la Por exemplo, pensamos no texto como um
também como o objetivo de toda reflexão objeto e pensamos em nós mesmos como
nas ciências humanas, então é fundamental sujeitos, projetando nossa subjetividade
que se considere a tradição filosófica que no texto, enquanto qualquer leitura digna
nos precede não como um conjunto de desse nome é aquela na qual o texto
instrumentos a serem aplicados, mas como executa certas operações sobre o leitor
recursos que nos tornam capazes de também a fim de torná-lo capaz de fazer coisas
nos envolvermos com questões filosóficas. que não conseguiria fazer antes de seu
O que se desdobra da leitura de Derrida de envolvimento com aquele texto particular.
obras literárias não é uma nova interpretação Esperamos que boas interpretações sejam
de Blanchot, ou daquilo de que Ponge produzidas à medida que sejam modificadas
realmente trata, ou qualquer outro resultado pela performance do texto, mas os alunos
similar, mas uma reflexão sobre problemas podem também estar tão absorvidos com
filosóficos tais como a representação, o eles mesmos que não observam aquilo que
problema da assinatura do nome próprio, ou o texto lhes pede para fazer. Sou favorável
questões da ficção e da representação como a induzir os alunos a realizarem operações
em Demeure. Embora pudéssemos pensar a com os textos que envolvam um certo grau
respeito desse livro como uma interpretação de sistematicidade, em parte como uma
da obra de Blanchot, ele na verdade reflete estratégia de estranhamento. Se pedirmos
muito mais um compromisso com as questões que escrevam o que eles acham sobre o
filosóficas; conseqüentemente me parece tema do texto, começarão com as idéias
um bom modelo a ser seguido, embora que lhes vêm à cabeça. Mas se pedirmos
seja, obviamente, uma maneira complexa que escrevam alguma coisa sobre uma
de proceder. única sentença de um texto breve, sem
que lhes seja permitido ignorar quaisquer
Se os leitores são “jogados” pelos textos, no dos termos, devendo registrar tudo em
sentido de que os textos literários prefiguram minúcias, certamente podem ser forçados
todas as possíveis interpretações até o a sair de seu próprio quadro de referência e
ponto da contradição, no sentido de que impelidos a observar elementos específicos
os textos sempre retornam ao seu próprio do texto. Na verdade uma das virtudes da
emaranhamento, a tarefa da interpretação abordagem de Barthes em S/Z é o fato de ele
ou do trabalho filosófico com textos se haver obrigado a comentar cada frase, a
literários não levaria necessariamente tornar explícito o que geralmente permanece
a aporias e paradoxos? Os textos não inarticulado – o que lhe permitiu alcançar
posicionam os leitores numa plataforma novas reflexões e todo tipo de releituras. Tive
oscilante onde encenam infinitamente os recentemente um aluno que trabalhava com
pontos cegos que os constituem? Há um um texto de Derrida chamado “Aphorism
caminho para fora do texto? Counter Time” (“Aphorisme Contretemps”),
que é sobre Romeu e Julieta e consiste em
Em um certo sentido não, estamos sempre 39 seções, 39 aforismos de um tipo ou de
dentro de um texto. Não há um caminho outro. Esse aluno se propôs a tentar produzir
para fora de um texto; nós simplesmente uma espécie de mapa do texto, explorando
exploramos vertentes de pensamento o tema de cada aforismo e a maneira
facilitadas pelos textos e as exploramos como se relacionavam uns aos outros. Era
com um certo grau de autoconsciência preciso que ele demonstrasse algum tipo de

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organização – não necessitava provar que Lacan é muito engenhosa. Acho que em
estava bem organizado – mas ao menos muitos casos ela interpreta Lacan como se
ele tinha que mapear sistematicamente a ele já afirmasse o que ela própria absorveu
organização do texto. Isso pode parecer um de Derrida, encontrando, assim, no texto
exercício mecânico, mas foi de fato bastante de Lacan, implicações que o próprio Lacan
produtivo porque não lhe era permitido provavelmente rejeitaria, e que Barbara
simplesmente focalizar o que quer que Johnson não seria capaz de alcançar
lhe parecesse mais importante, como, por sem Derrida. Mas dado o encontro entre
exemplo, uma visão geral do tema do texto; Derrida e Lacan, da forma como Derrida
ele tinha que descobrir como esse texto de o encena, é certamente tentador dar um
fato operava. Esse tipo de estratégia, que passo a mais e reverter a relação entre eles.
requer uma espécie de close reading, dá ao E por certo outros leitores que vêm em
texto a oportunidade de nos fazer descobrir seguida a Barbara Johnson podem tentar
como responder a ele. Creio que essa é demonstrar como os seus movimentos já
uma exigência para uma leitura válida, ou haviam sido antecipados nos textos de Poe
para uma leitura interessante de um texto, ou de Derrida.
colocando-nos na posição de sentir ou de
perceber sua estranheza e de permitir que Deixo aqui o espaço para quaisquer
essa estranheza opere sobre nós. observações de sua própria escolha…

Derrida não faz a desconstrução voltar-se Foi um prazer discutir com você essas
contra ele mesmo quando repete os erros questões. Penso que as perspectivas
que acusa Lacan de cometer na análise de sobre esses desenvolvimentos teóricos
“A Carta Roubada”, de Edgar Allan Poe? europeus e americanos, que adquirimos
Não seria essa repetição um efeito mesmo dos povos de outros países, são com
da “Carta”, tencionado por Poe? Então em freqüência extremamente interessantes,
que medida a própria desconstrução seria porque são independentes dos investimentos
um efeito dos textos literários? particulares desses países, onde as leituras
e as interpretações dos textos da tradição
Esta é uma boa pergunta, difícil de responder. podem ser levadas a cabo através de um
Naturalmente Barbara Johnson escreve olhar distinto, com certa distância, de uma
muito bem sobre essa relação em sua análise perspectiva diversa. Naturalmente, no seu
da leitura de Derrida da leitura lacaniana país vocês perseguem os seus próprios
de Poe (“The Frame of Reference”). Pode- interesses e estabelecem os seus próprios
se observar de que forma discordâncias compromissos. Eu não posso avaliar a
interpretativas que ocorrem em torno proporção em que a herança portuguesa
de um texto são prefiguradas no próprio é crucial para o Brasil, em que medida a
texto de uma forma ou de outra, são de linguagem transporta a bagagem cultural da
alguma maneira tematizadas no texto. tradição de pensamento europeu. Pergunto-
Essa questão talvez envolva uma leitura me qual deve ser a experiência de ter uma
um tanto quanto alegórica do próprio texto relação diferente com a tradição européia
e de suas interpretações. Mas tudo isso e se o fato de vocês falarem português
não significa que, ao ler um texto, alguém num continente em que o espanhol é
possa visualizar antecipadamente qual será predominante tem como conseqüência uma
a história das interpretações subseqüentes. relação especial com a tradição européia.
Somente quando já se tem essa história Creio que devo mencionar, à guisa
pode-se com freqüência retornar a ela e de conclusão, que tenho um livro sendo
observar como as leituras tradicionais já publicado no outono (2006), pela Stanford
haviam sido encenadas, já haviam sido University Press, chamado O Literário
prefiguradas no jogo do texto. Certamente em Teoria. É uma coleção de ensaios que
a leitura de Barbara Johnson de Derrida e venho publicando em anos recentes e que

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endereça justamente as questões de que (pelos estudos culturais e pelos vários
vimos tratando nesta entrevista: em que historicismos) esse papel tem sido agora
medida a noção do literário e da literatura nitidamente revigorado e continuará sendo
– que durante um tempo foi contestada e extremamente importante. Parece-me,
esteve sob o ataque dos estudos culturais –, de fato, que cada vez mais as tendências
em que medida essa noção agora retorna? filosóficas de interesse para aqueles que
Quando me iniciei nesta profissão meu trabalham nas humanidades de um modo
interesse maior era o estruturalismo e em geral são aquelas que levaram a sério a
certa medida o formalismo russo, onde a noção do literário, sejam as de Derrida,
questão do literário era vista como crucial as de Giorgio Agamben ou Alain Badiou.
ao empreendimento teórico, a questão da Mesmo que o estado atual dos estudos
natureza da literariedade era central tanto literários nos Estados Unidos não pareça
ao formalismo quanto ao estruturalismo. muito promissor – mesmo que os estudos
Tenho interesse em indagar sobre a evolução literários pareçam estar numa posição
desse processo, e sobre qual tem sido defensiva – a mim parece ainda que a
o papel do literário na teoria em anos fortuna do literário nas humanidades
recentes. A minha suposição é a de que é bastante auspiciosa e destinada a
depois de um período em que foi contestado permanecer muito importante.

LIVROS DE JONATHAN CULLER

Flaubert: The Uses of Uncertainty. London, Elek Books; Ithaca, Cornell University Press, 1974 (Revised edition: Cornell
University Press, 1985).
Structuralist Poetics: Structuralism, Linguistics, and the Study of Literature. London, Routledge and Kegan Paul; Ithaca,
Cornell University Press, 1975 (Revised edition: Routledge Classics, 2002. Spanish, Japanese, Portuguese,
Chinese, and Croatian translations).
Saussure. London, Fontana; Brighton, Harvester, 1976; New York, Penguin, 1977 (Second revised edition, Ithaca,
Cornell University Press, 1986; London, Fontana, 1987. Japanese, Serbian, Slovenian, Portuguese, Turkish and
Finnish translations).
The Pursuit of Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction. London, Routledge and Kegan Paul; Ithaca, Cornell Univer-
sity Press, 1981. (Revised edition, Routledge Classics, Routledge, 2001, Cornell University Press, 2002. Japanese
translation).
On Deconstruction: Theory and Criticism after Structuralism. Ithaca, Cornell University Press, 1982; London, Routledge,
1983 (Japanese, Spanish, Italian, German, Portuguese, Serbian, Chinese, Polish, Korean, Hungarian, and Czech
translations).
Barthes. London, Fontana; New York, Oxford University Press, 1983 (Japanese, Portuguese and Chinese translations.
Revised and expanded edition: Roland Barthes: A Very Short Introduction, OUP, Oxford, 2001).
(Ed.). The Call of the Phoneme: Puns and the Foundations of Letters. Oxford, Blackwells and Norman, University of
Oklahoma Press, 1987.
Framing the Sign: Criticism and Its Institutions. Oxford, Blackwells and Norman/University of Oklahoma Press, 1988
(Japanese translation).
Literary Theory: a Very Short Introduction. Oxford, Oxford University Press, 1997 (Polish, Chinese, Korean, Portugue-
se, Italian, German, Spanish, Croatian, Japanese and Romanian translations).
(Ed. with Kevin Lamb). Just Being Difficult? Academic Writing in the Public Arena. Stanford, Stanford University Press, 2003.
(Ed.). Deconstruction: Critical Concepts. 4 vols. London, Routledge, 2003.
(Ed. with Pheng Cheah). Grounds of Comparison: Around the Work of Benedict Anderson. Routledge, 2003.

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