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A linguagem secreta que há nos gestos dos maestros

Braços esculpem o ar. Uma mão se fecha. Um dedo indicador se projeta. O torso oscila para
frente e para trás. E, não se sabe como, música jorra em resposta a essa dança misteriosa no
pódio, música coordenada com precisão e emocionalmente expressiva.

O público dos concertos sintoniza os ouvidos na orquestra e invariavelmente fixa os olhos no


regente. Mas mesmo o ouvinte mais experiente pode não ter consciência da conexão sutil e
profunda entre a sinfonia de movimentos do maestro e a música que emana dos instrumentistas.

Assim, num esforço para compreender o que acontece, entrevistamos sete regentes que
passaram por Nova York em temporadas recentes, procurando decompor os movimentos em
partes do corpo mão esquerda, mão direita, rosto, olhos, pulmões e, o mais indefinível, cérebro.

O objetivo fundamental do regente é infundir vida a uma partitura escrita, através do estudo, de
sua personalidade e sua formação musical. Mas ele demonstra o sentido da música por meio de
seus movimentos corporais.

Imagine-se tentando falar com alguém em uma língua totalmente desconhecida por você. Se
quisesse expressar algo a essa pessoa sem recorrer à linguagem, como você faria?, disse o
regente britânico Harry Bicket. É isso o que fazemos, na realidade.

Cada regente usa um estilo singular, mas todos querem arrancar dos músicos a performance
mais grandiosa possível. Portanto, nossa decomposição do gestual traz algumas generalizações
inerentes.

É preciso lembrar que a arte de reger não se limita a gestos semafóricos. É uma dança em
compasso de dois tempos, envolvendo corpo e alma, gestos físicos e personalidade musical. Um
regente com o maior domínio técnico do mundo pode produzir performances insossas. Outro,
que faça gestos aparentemente incompreensíveis, é capaz de gerar transcendência.

Você pode fazer tudo certinho e não criar absolutamente nada interessante, comentou James
Conlon, diretor musical da Los Angeles Opera. E pode ser enigmático, mas produzir resultados.

Mão Direita

Tradicionalmente (pelo menos para os destros), a mão direita segura a batuta e marca o pulso.
Ela controla o tempo e indica quantas batidas ocorrem em um compasso. A batuta geralmente
assinala o início de um compasso com um movimento para baixo (o downbeat). Um movimento
para cima (upbeat) é a preparação para o downbeat.

Os manuais de regência dizem que o upbeat e o downbeat devem levar o mesmo tempo e que o
intervalo deve ser igual ao comprimento da batida. O upbeat é a preparação para qualquer
evento, disse Alan Gilbert, diretor musical da Filarmônica de Nova York.

É crucial definir o tempo certo para uma frase musical. Ninguém menos que o compositor
Richard Wagner (1813-83), que também foi um dos primeiros maestros modernos, disse que o
dever do regente está contido em sua capacidade de sempre indicar o tempo correto.

Mas um regente não é um metrônomo de casaca. Um dos grandes equívocos em relação ao que
os regentes fazem é a ideia de que eles ficam lá, marcando o tempo, disse Bicket. A maioria das
orquestras não precisa de ninguém marcando o tempo.
A batuta também pode moldar o som. A natureza do downbeat abrupta, delicada transmite à
orquestra que tipo de caráter deve conferir ao som que vai produzir. A batuta pode suavizar
fraseados agitados, realizando o movimento de modo mais abrangente.

Um gesto mais horizontal pode pedir uma qualidade mais lírica, disse James DePreist, ex-
diretor de estudos orquestrais e de regência da Juilliard School. Um gesto para baixo que imite
um movimento de arco de violino, disse Bicket, pode colorir o ataque. De acordo com Gilbert,
mesmo quando marca o tempo em notas longas, o regente deve procurar comunicar a qualidade
sonora que busca, por meio do movimento da batuta.

Predecessor de DePreist em Juilliard, o professor de regência Jean Morel, ensinava que a mão e
o pulso direito devem ser totalmente autossuficientes, segundo James Conlon, um de seus
alunos; devem marcar o tempo, a expressão, a articulação e o caráter para que você possa então
aplicar a mão esquerda e reter conforme deseja.

Xian Zhang, que é mestre em esculpir uma linha musical com sua batuta, demonstrou isso
quando ensaiava a Sinfonia Concertante para Violino e Viola de Mozart com uma orquestra de
estudantes na Juilliard School.

O movimento de sua batuta correspondia estreitamente ao caráter da música, delicado nas


passagens suaves, pequeno para acompanhar as cordas, maior para uma melodia de trompa e
oboé. Os gestos de seus braços ficavam amplos nas frases vigorosas. Em alguns momentos, os
gestos de elevação da batuta pareciam literalmente arrancar os sons.

Alguns regentes preferem não usar a batuta em alguns momentos ou o tempo todo. Yannick
Nézet-Séguin, que a partir de setembro será o diretor musical da Orquestra da Filadélfia, é um
deles. Sua formação se deu principalmente em corais, nos quais raramente se emprega a batuta.

As mãos estão ali para descrever um certo espaço do som e moldar aquele material imaginário,
disse Nézet-Séguin. Aquele corpo imaginário de som está em frente ao maestro, entre o peito e
as mãos, ele explicou. É mais fácil quando não há nada em uma mão. Ele começou a usar batuta
quando começou a atuar como regente convidado de grandes orquestras, que estavam
acostumadas com isso.

Valery Gergiev é outro maestro que frequentemente não usa batuta. Sua técnica foi evidenciada
num ensaio da London Symphony Orchestra, no Avery Fisher Hall, preparando uma
apresentação da Sinfonia nº 3 de Mahler.

Gergiev ficou sentado numa cadeira, de modo geral imóvel. Quase toda a ação vinha de sua mão
direita, que em muitos momentos estava plana, com o polegar paralelo, como as mandíbulas de
um jacaré. Sua mão esquerda fazia pouco, mas era usada ocasionalmente para apontar e encerrar
acordes.

Gergiev não marca o tempo com sua mão direita, exatamente, mas mexe os dedos no ritmo da
música. Seus dedos geralmente estavam esticados, com as palmas para baixo, o pulso voltado
para cima na altura de seu rosto. Às vezes ele formava um círculo de ok com o polegar e o
indicador e mexia os outros três dedos. À medida que o tempo acelerava, seu pulso ficava mais
mole.

Em entrevista, Gergiev sugeriu que o balançar de sua mão, que descreveu como sendo um
hábito, pode ter derivado do fato de ele tocar piano. Sou pianista, e às vezes eu toco a textura,
explicou.
Ele disse ainda que uma batuta pode se contrapor a um som de canto. O mais difícil na regência
é fazer a orquestra cantar, e é aqui que as duas mãos precisam basicamente ajudar os
instrumentistas de sopros ou cordas a cantar. Gergiev disse que movimentar uma batuta no ar é
como praticar esgrima: Não acho que isso ajude o som.

Mão Esquerda

Tendo entregado as incumbências rítmicas à mão direita, a mão esquerda tem finalidade bem
mais maleável. Para explicar em termos grosseiros, se a mão direita esboça os contornos gerais
da pintura, a esquerda preenche as cores e texturas.

A mão direita cria a casca de chocolate do bombom, e a mão esquerda molda o recheio. Sua
principal utilidade prática é dar deixas aos naipes ou músicos individuais sobre quando entrar e
quando cortar, o que faz muitas vezes com dedo indicador apontado.

Se a mão esquerda se fecha ou o polegar e os dedos se fecham, isso pode fazer a frase musical
encerrar-se suavemente. Um movimento rápido para baixo indica um corte abrupto no som.

James DePreist descreveu os gestos de mão esquerda às vezes inexplicáveis de outros regentes:
William Steinberg costumava esfregar os dedos, como no gesto usado universalmente como
símbolo de dinheiro. Antal Dorati fazia movimentos de empurrar abruptamente, como se
estivesse fazendo uma bola de som subir e ficar boiando no ar. Eugene Ormandy muitas vezes
mantinha a mão esquerda segurando a lapela da casaca, enquanto a Philadelphia Orchestra
produzia cascatas de sons, observou DePreist.

Nézet-Séguin é um dos regentes mais expressivos fisicamente, em razão de sua baixa estatura,
disse ele. Sua mão esquerda se movimenta constantemente. Ele contou que procura mantê-la em
posição lateral em relação à orquestra, para que sua região palmar anterior não seja vista pelos
músicos como uma barreira simbólica.

Em outro ensaio na Juilliard, Nézet-Séguin indicou entradas fazendo um círculo de ok ou


abrindo seu dedo indicador, para assinalar um ataque mais leve. Um dedo indicador que se eleva
com cada batida indicava mais volume.

Nos acordes de alto volume, ele colocava a mão em forma de concha voltada para cima. Uma
mão em forma de concha voltada para baixo pedia uma linha sonora sustentada. Acordes
marciais retumbantes eram assinalados por uma mão em punho.

A mão plana, com a palma para baixo, pedia um som sustentado e suave. Entradas repetidas
eram assinaladas por movimentos como tiros de revólver.

Gilbert observa que não é preciso dizer a músicos profissionais em que momento de um
compasso eles devem entrar. Ele frequentemente se prepara para dar a deixa a um músico,
olhando para ele antes da hora, para criar uma conexão com ele e intensificar a energia. O
objetivo de uma deixa é fazer com que as pessoas entrem na hora certa e do modo certo, dentro
do fluxo, disse Gilbert.

Rosto

Depois dos braços, a parte mais importante do arsenal do maestro é seu rosto. Sinto como se
meu rosto cantasse com a música, disse Nézet-Séguin. Comunicar-se com os músicos por um
olhar pode tranquilizá-los e encorajá-los. Por outro lado, alguns regentes, como Fritz Reiner,
não mudam de expressão, mas suas gravações são completamente eletrizantes, afirmou Bicket.
Manter-se inexpressivo também pode beneficiar a moral dos músicos.
Demonstrar sua frustração ou seu desagrado na expressão facial é algo que não ajuda ninguém,
disse Bicket. Mas sobrancelhas erguidas podem ser maneiras sutis de transmitir insatisfação. O
rosto se torna ainda mais importante quando as mãos estão ocupadas com outra coisa, como, por
exemplo, quando um regente toca um teclado simultaneamente, prática comum de especialistas
em música antiga, como Bicket.

Os próprios olhos são o mais importante de tudo quando se rege, disse Zhang. Eles devem ser o
que mais revela a intenção musical. Os olhos são as janelas do coração. Eles mostram o que
você sente em relação à música.

Um semicerrar dos olhos, por exemplo, pode conferir à música uma qualidade distante, disse
DePreist. Um truque para criar um bom som orquestral é olhar para os músicos nos fundos da
seção de cordas. Com isso, você faz com que eles sejam incluídos no jogo, disse Nézet-Séguin.

Gergiev utiliza a mesma técnica com os músicos sentados ao fundo. O fato de olhar para ele
significa que estou interessado nele. Se estou interessado nele, ele está interessado em mim.
Certo? Procuro fazer tudo a partir da expressão e do contato visual.

Às vezes é igualmente importante não olhar para os músicos, especialmente durante solos
importantes. Essa é uma parte grande dos segredos de regência que não costumam ser
verbalizados, disse Zhang. Isso pode evitar que o músico ceda ao nervosismo.

E existe um ou outro caso raro do maestro que rege com os olhos fechados e produz grandes
performances, como muitas vezes fez Herbert von Karajan.

Leonard Bernstein foi um dos regentes mais expressivos fisicamente dos tempos modernos, fato
que, às vezes, atraía o desprezo dos críticos. Mas também era capaz de reger com as mais sutis
expressões faciais, conforme foi evidenciado por um vídeo clássico no YouTube em que suas
sobrancelhas dançam, seus lábios se comprimem e seus olhos se arregalam.

Costas

Nézet-Séguin disse que tomou consciência da postura das costas ao assistir a videoteipes de
Karajan. Na época, Nézet-Séguin trabalhava com Carlo Maria Giulini. A diferença principal
entre o som de um e outro se devia às atitudes humanas deles, que eram expressas por suas
costas, disse ele. A postura básica de Karajan era muito orgulhosa, com os ombros para trás e
atitude de estar no comando.

É a atitude de alguém que espera que as coisas venham a ele. Para Nézet-Seguin, essa qualidade
podia ser fria, majestosa, distante.

Mas o magrelo Giulini se debruçava para frente assim que a música começava, num gesto de
aproximar-se das pessoas, de lhes dar alguma coisa, de servir.

É uma linguagem corporal muito reveladora, disse o regente, e estava relacionada às


interpretações calorosas de Giulini.

Zhang costuma debruçar-se para frente para arrancar mais intensidade da orquestra. Às vezes,
inclina-se para trás para fazer com que os músicos toquem mais suavemente. Ou então se
inclina para frente para cobrir o som, disse ela, como quem apaga um incêndio.

Pulmões
Os regentes muitas vezes falam da importância da respiração: de inalar junto com o upbeat, para
preparar para uma entrada, mais ou menos como um cantor inala antes de começar a cantar. As
cordas precisam ser incentivadas a respirar, disse Nézet-Séguin, tanto quanto os instrumentos de
sopros. Isso torna a coisa toda mais natural.

Para Bicket, respirar junto quando ele rege é uma necessidade. Se suas mãos estão ocupadas de
outro modo, tocando cravo ou órgão, sua deixa para as entradas muitas vezes é uma respiração
audível. A natureza dessa respiração pode afetar a música. Uma inalação forte e aguda gera um
som mais nítido e destacado.

Cérebro

Nas entrevistas, os regentes deixaram claro que, para eles, os movimentos corporais são menos
importantes que a preparação mental e as ideias musicais que residem em outra parte do corpo:
o cérebro. Os regentes precisam até certo ponto não ter consciência do que estão fazendo com
seu corpo, disse Nézet-Séguin.

Ele disse ainda que Giulini ensinava que a clareza de um gesto vem da clareza de sua mente. A
confusão decorre daquela fração de segundo de hesitação, em que a mente está decidindo qual
gesto usar.

Zhang utiliza uma técnica adotada de seu mentor, Lorin Maazel: Uma projeção mental. Uma
imagem mental clara do som que você quer ouvir permite uma entrada clara. Projetar
mentalmente o pulso e o som, ela acrescentou, comanda nossas próprias mãos.

Como disse Conlon: Poderíamos discutir gestos e posturas físicas interminavelmente, mas, em
última análise, há um elemento impalpável e carismático que pesa mais que tudo isso. Até hoje
ninguém conseguiu enquadrar esse elemento. Graças a Deus.

Fonte: Folha OnLine

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