Nos é interessante apontar, para que compreendamos o papel desempenhado pelo
Cristianismo na legitimação do império durante o século IV como, já no século III, Roma recebia influências religiosas dos seus territórios vizinhos, como Irlanda e Hungria, que estavam em processo de cristianização. Esse processo paulatino de aproximação à nova religião acabou por ser corroborado pelo apelo por uma sacralização da imagem do imperador, muito importante para que se criasse uma espécie de diferenciação entre ele - e sua figura endeusada - e os demais, o que se fez efetivo através dos rituais e festividades. Muito embora se trate de um fenômeno progressivo, efetivamente, é após a conversão do imperador Constantino e parte da casa real, que o Cristianismo transforma-se em uma força legitimadora, que lhe permite controlar as diversas instâncias políticas e sociais, tornando-se, posteriormente, um fator de coesão entre os romanos e os povos germânicos. Através das transformações trazidas pelo imperador cristão, o poder eclesiástico passa a ser parte importante - e muito atuante - do poder imperial, que nesse momento enfrentava uma efusão de novas ideias em seu governo, que iam ao encontro de uma série de reestruturações (BROWN, 1999, p. 37). Ainda que se conte sobre o sonho do imperador, que o levou a vencer uma importante batalha sob o símbolo de Cristo e, assim, o teria convertido, a historiografia nos mostra que é a adesão das elites à fé Cristã (WICKHAM, 2017, p. 26) que o leva a declará-la a religião oficial do império e, uma vez que esta passa a ser uma maneira de aproximação à aristocracia, progressivamente, o Cristianismo atinge também as demais camadas da população. Tendo em vista as considerações anteriores, nos é possível pensar na constituição e consolidação dessa religião - enquanto parte das dinâmicas do império - através da ótica das rupturas e continuidades, visto que, ao inserir-se como fé oficial do império, o Cristianismo trouxe efetivas transformações às práticas religiosas, ao entendimento da religiosidade e, principalmente, às relações políticas - enquanto fé do próprio imperador -, porém, para difundir-se e atingir as diversas camadas da sociedade, necessitou apropriar-se de ritos e costumes pagãos, se mesclando à cultura vigente. É interessante ressaltar que, por influência de Constantino, a figura dos imperadores romanos sempre foi associada à de um líder militar e, consequentemente, guerreiro e expansionista, o que muito vai ao encontro da forma como a imagem do Deus Cristão irá se cristalizar, chegando até nós através do “Deus do velho testamento”. Isso ocorre devido à convergência entre os interesses do império e a afirmação do Cristianismo. Uma vez que Roma cresce, conquista novos territórios e, em especial, vence as batalhas que luta, reafirma para si as bênçãos de seu Deus, que possui um arquétipo também guerreiro e conquistador. Dessa forma, as relações entre a crença e a política se estabelecem, em um aspecto, enquanto alicerces uma da outra, contribuindo para a legitimação do poder imperial. Porém, isso só se faz possível após a realização do Concílio de Nicéia, em 325 d.C., quando as múltiplas interpretações sobre Deus (BROWN, 1999, p. 13), existentes até então, são resumidas a uma única. Isso ocorre devido à necessidade de se extinguir a paradoxal imagem do Deus considerado Uno, já que isso gerava dois questionamentos incômodos: primeiramente, se Deus era Uno, como ele poderia dividir-se na figura da trindade? E, sem segundo lugar, se tratava-se de um todo poderoso omnipotente, omnisciente e omnipresente, qual seria sua relação com a figura - até então divina - do imperador? Mais do que uma crise existencial da fé, essas questões causavam fragilidades na estrutura do império, podendo enfraquecê-lo. Para que o imperador pudesse ser humano e, ao mesmo tempo, divino, o Concílio constrói delicadamente o Deus dos Cristãos, e o delimita: Cristo é Deus, apesar de ser homem. Para adiante, a religião Cristã passou a exercer um forte poder no império, em aspectos internos (através do papel desempenhado pelo episcopado na administração local) e, também, externos (na conformação e expansão fronteiriça). Em âmbitos internos, a elite senatorial, após converter-se, assume a maioria dos bispados e, enquanto mediadores entre Deus e os demais, consolidaram seus domínios através da influência local que exerciam. Ao passo que ocupam esse espaço de poder, levam a uma paulatina desvalorização das elites laicas, uma vez que a nova ordem social se circunscrevia enquanto continuidade da romana, e “preconizava um nobreza em Cristo” (MORSEL, 2008, p. 36-40). No que se refere ao seu papel político e social externo ao império, o Cristianismo se afirmou através da política expansionista já mencionada, se retroalimentando a cada batalha vitoriosa já que o sucesso representava que estavam atingindo a vontade de Deus. Logo, parte significativa do conceito de Romanidade é constituído pela fé Cristã, o que se mostra claramente no seu contato com os povos germânicos - que se inicia no século III e intensifica-se nos séculos IV e V - visto que, para um líder “bárbaro”, dizer-se Cristão perante seu povo era uma forma de se colocar como parte romano (GEARY, 2002, p. 92). O sucesso da expansão dos Francos é um claro exemplo. Sua recepção pelo episcopado romano foi facilitada devido a sua religiosidade Cristã, permitindo que se integrassem mais facilmente e passassem a serem vistos como aliados na luta contra os hereges. O rei franco Clóvis assume não somente o domínio que já possuía, sobre seu povo, mas também se auto intitula representante do imperador e do império romano, demonstrando o seu grau de assimilação. Assim sendo, ao passo que a expansão segue vitoriosa, mais a imagem do imperador se legitima e, consequentemente, também a do Cristianismo.
3. É interessante destacar a contribuição das novas tendências historiográficas para a
resposta desta questão, uma vez que elas nos possibilitaram vislumbrar a Idade Média sob a ótica das rupturas e continuidades e, assim, interpretar esse período como uma reorganização do império romano através de diversos pontos de influência, estando entre eles o seu contato com os povos germânicos e a formação de suas federações no século V. Como acabamos de descrever, por compartilharem com os romanos sua crença Cristã, os franco são rapidamente incorporados ao império, cabendo ao rei Clóvis exercer o poder local enquanto representante do imperador. Em um aspecto simbólico, podemos interpretar isso como uma ocupação dos vácuos de poder que, a essa altura, vinham sendo deixados no decorrer dos territórios conquistados, e se desdobrariam em diversas transformações nas dinâmicas sociais. Justamente pela extensa quilometragem atingida através das expansões territoriais, o império possuía, em si, uma vasta pluralidade cultural, que acabou por facilitar e contribuir para a absorção dos povos germânicos, em especial no tocante às fronteiras, que por existirem apenas em decorrência dos povos que a constituíam, acabavam por serem fluidas e permeáveis. Logo, a veloz integração entre as culturas “bárbaras” e romanas permitiram que os germânicos rapidamente passassem a ocupar relevantes postos militares e, assim, adquiriram prestígio e importância social (GEARY, 2002, p. 95). Visto que a manutenção das fronteiras era demasiado cara e trabalhosa, esses povos ocupantes do território, uma vez absorvidos, passam a desempenhar um papel central na administração imperial (BROWN, 1999, p. 33), posto que as Federações Bárbaras constituíam-se como um direito adquirido de naquele território viver, contanto que nele se produzisse e houvesse arrecadação de impostos. Assim, a presença dos povos germânicos nas fronteiras permitia uma otimização dos recursos e intensificação da segurança, uma vez que, estando os mesmo em postos militares, indiretamente, executavam uma correção das fragilidades fronteiriças ali existentes (GEARY, 2002, p. 101). Nos é possível comprovar empiricamente a forma fluida como os germanos se deslocam nas complexas camadas sociais romanas e “bárbaras” através das informações fornecidas pela arqueologia tumular. Morsel (2008, p. 28) nos traz um interessante trabalho que aponta para uma grande variedade de artefatos, encontrados em túmulos germanos, que mesclam moedas, armas de batalha, símbolos, indumentária e objetos pessoais, e demonstram que um mesmo líder “bárbaro” muitas vezes era também uma figura de influência entre os romanos, ou exercícia o comando de uma legião. É possível alcançar tais deduções devido ao costume de se sepultar conforme o status do indivíduo no momento de sua morte, cristalizando as relações sociais às quais ele pertencia naquele momento. Os casamentos mistos, por exemplo, que até aquele momento eram proibidos em muitos povos germânicos, inserem-se nas novas dinâmicas do império de forma fundamental, visto que possibilitam a formação de poderosas alianças, em especial no que se refere às instâncias locais, levando a criação de uma nova e importante aristocracia, que nasce da fusão entre as elites romanas e “bárbaras”. Assim, os germânicos passavam a adquirir o status de gens (MORSEL, 2008, p. 49), ou seja, direitos civis, e instauram a gens nobilis. Esse processo atinge seu ponto alto nas articulações entre Clóvis dos Francos e o império, quando o primeiro constrói relações tão próximas com o imperador que passam a gerir localmente em seu nome ao mesmo tempo em que exerce a função de rei franco, e na construção dessa dupla imagem política, acumula em si, consequentemente, um poder de duplo alcance. Tendo em vista que a expansão franca também é militar e, em diversos aspectos, se assemelha ao processo romano, ela passa a representar uma reconfiguração dos espaços que ocupa, e se constitui na reapropriação da ideia constantiniana (BROWN, 1999. p.74), onde o poder episcopal é visto como uma ferramenta que deve servir à realeza. Logo, há a adição do conceito de Capital de Honra, onde o sucesso e distinção na guerra leva a uma elevação social à posição de aristocrata, consequentemente permitindo a acumulação de prestígio que legitima não apenas o indivíduo, mas também sua família. Esse processo leva a uma reorganização da lógica social (MORSEL, 2008, p. 46). Portanto, a sobrevivência do império dependia necessariamente da sua capacidade em articular os interesses do imperador e os desejos e necessidades das aristocracias locais, que detinham o poder episcopal e a influência religiosa. Tal configuração nos faz vislumbrar um novo mundo em formação que descende do processo de reorganização do império, e se caracteriza por uma ordem político-social onde a guerra se transforma em símbolo de dominação da aristocracia.
Referências Bibliográficas
BROWN, Peter. A ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença,
1999. GEARY, J. Patrick. O Mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad Editora, 2005. MORSEL, Joseph. La aristocracia medieval. Valência, Universitat de Valência, 2008. WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages. Oxford: Oxford University Press, 2005.