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logico-que-desafia-logica/
Mas Lacan não concluiu sua obra. Então é preciso considerá-la como
aberta, sempre suscetível a reinterpretações. Os Escritos, sim, foram
concluídos, a tese de doutorado, sobre o caso de autopunição de
Marguerite Anzieu, também. Os Escritos são uma coletânea, editada por
François Wahl, de artigos que Lacan publicou a partir de seus
seminários. Mas tome o “índice ponderado dos conceitos” que Miller
propôs e anexou no final desse livro. A maneira com que Miller
interpreta a obra de Lacan não é a minha. É uma interpretação muito
logicista, aliás muito comum entre os lacanianos. Em resumo, trata-se
da ideia de que a obra de Lacan evolui em função dela mesma, de que
haveria uma lógica interna que a conduziria do estruturalismo, do
significante, ao nó borromeano. Realmente, não posso concordar com
isso. Penso que uma obra precisa ser historicizada, pois não é imune às
influências exteriores. Por exemplo, em 1966, não há uma única palavra
sobre o fato de que Lacan havia lido Hegel somente após os cursos de
Alexandre Kojève. Não há uma única referência ao fato de que o
conceito de “estádio de espelho” é, no fundo, uma leitura de Henri
Wallon; uma única referência ao fato de que o conceito de Real vem, em
larga medida, de Bataille.
Por fim, sou crítica também do último Lacan. Acho-o magnífico, mas ele
realiza um gesto de dissolução total, de mergulho em direção à lógica –
nós borromeanos de um lado, matemas de outro. Compreendo essa
solidão, esse sofrimento, a melancolia de Lacan no final da sua vida. Mas
não acho que deveríamos transformar os tratamentos (cures) em nós
borromeanos. Hoje, na França – e sei que no Brasil isso acontece
também – encontramos pessoas que passam a vida inteira fazendo nós
borromeanos, matemas… Realmente acho que estão perdidos,
desesperados, porque ninguém mais os escuta, não têm público algum.
Lacan fascinava gerações inteiras, porém hoje, 35 anos depois de sua
morte, seus seguidores são ignorados, perderam relevância.
E em relação à interpretação que os filósofos fazem de Lacan?
Em relação aos filósofos, como não há clínica, tudo bem. Como disse,
Lacan é comentado de modo mais interessante hoje por filósofos como
Alain Badiou, Jean-Claude Milner. Mesmo nos EUA, Judith Butler e os
cultural studies são mais criativos com a obra de Lacan do que os
psicanalistas. Respeito muito, por exemplo, a leitura de Badiou,
chegamos a escrever um livro juntos sobre Lacan. Não temos o mesmo
Lacan – Badiou leva muito a sério a parte matemática de Lacan – mas
compreendo a leitura que ele faz.