Você está na página 1de 9

Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.

com/elisabeth-roudinesco-lacan-e-um-
logico-que-desafia-logica/

Elisabeth Roudinesco concedeu entrevista a Eduardo Socha e Rafael


Alves Lima (Revista CULT)

Com toda a controvérsia que advém da ousadia intelectual, o trabalho


da historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco é referência
fundamental para quem deseja compreender as origens, os destinos e a
relevância do pensamento de Lacan. Os dois volumes da História da
psicanálise na França e sua biografia Lacan, esboço de uma vida –
história de um sistema de pensamento, consagraram a autora como
uma das principais historiadoras da psicanálise. A partir dessas
publicações, e sempre orientada por uma reflexão rigorosa sobre os
impasses da psicanálise, sua obra ramificou-se para temas diversos.
Roudinesco publica regularmente na imprensa, tratando desde as novas
configurações familiares às formas contemporâneas de perversão.
Assume posturas combativas em defesa da psicanálise, contra o Freud
bashing (os ataques à vida e obra de Freud) e contra a medicalização do
sofrimento. Lacan, no entanto, nunca saiu de seu horizonte de reflexão.
Além da biografia lançada em 1993, Roudinesco publicou dois livros
sobre o psicanalista: Lacan, a despeito de tudo e de todos, em 2011, e
Lacan passado presente, em 2012, um diálogo com o filósofo Alain
Badiou, no qual ambos expõem convergências, dissensos e perspectivas
do pensamento lacaniano.

Nesta entrevista – realizada durante sua recente passagem pelo Brasil


para o ciclo de conferências Fronteiras do pensamento e para o
lançamento de sua biografia de Freud – Roudinesco faz um breve
panorama da atualidade de Lacan. Defende um modo de interpretá-lo a
partir das influências que o marcaram em cada momento, preservando
assim a tensão metodológica entre texto e contexto. Para ela,
historicizar a teoria de Lacan implica assumir riscos interpretativos,
adotar uma posição crítica, e não produzir idolatrias. O Jacques Lacan de
Elisabeth Roudinesco pode até ser refratário a unanimidades, mas não é
incongruente. Talvez seja o retrato do legado que o psicanalista francês
nos deixa: uma experiência intelectual viva, polêmica, nada opaca ou
desbotada, e que não se encaixa nas molduras anacrônicas que tendem
a estreitá-la.

Em seu Lacan, a despeito de tudo e de todos, você comenta que


Lacan sempre foi visto ou como demônio ou como ídolo…
Infelizmente!

Mas hoje, cinquenta anos depois da publicação dos Escritos


(1966), com certo distanciamento, num momento em que
declarações acaloradas “contra” ou “a favor” talvez cedam a uma
compreensão mais objetiva de sua obra, como você analisa o
legado do pensamento de Lacan?
Há uma grande diferença entre o legado de Freud e o de Lacan. Freud
deu origem a diversas correntes: a anglófona, a francófona etc.
Praticamente toda a obra de Freud foi escrita. Quando morreu, havia
mais de 15 mil cartas suas – uma correspondência enorme. Já em
relação a Lacan, é mais complicado. É verdade que Lacan não pertence
mais aos psicanalistas – o que é uma coisa boa. Tampouco pertence à
própria família, que, no entanto, ainda impõe proibições. Lacan é
comentado em todas as universidades, e não apenas nos departamentos
de psicopatologia, mas na filosofia, nos departamentos literários e
outros. Há uma verdadeira herança de Lacan enquanto pensador
moderno, pós-freudiano. Acredito que a grande contribuição de Lacan foi
– e digo isso sempre – a de reintroduzir a filosofia alemã em sua leitura
de Freud e também a de articular Freud com o estruturalismo.
Sinceramente, se Lacan não tivesse existido, eu não estaria aqui hoje,
teria feito outra coisa. Quando eu tinha vinte anos, a psicanálise na
França não tinha o menor interesse. Eu me interessava por Freud, mas
foi Lacan quem deu o grande impulso, justamente ao publicar os
Escritos. Havia algo de muito vigoroso, mesmo em seus excessos, sua
efervescência, seu jeito de ser. Era um grande intelectual que deu uma
dimensão de intelectualidade à obra de Freud. E evidentemente marcou
toda uma geração – a de Foucault e Deleuze –, que inclusive o criticou.
Por outro lado, a herança de Lacan na psicanálise foi catastrófica. Em
primeiro lugar, por causa da intervenção da família sobre seus escritos.
A família Miller ainda tem os direitos sobre a obra, por isso não há
arquivo, não há museu, não há acesso aos manuscritos. Quando fiz
minha pesquisa para o livro (a biografia de Lacan), até consegui obter
um vasto material, com cartas de Lacan. Mas não pude fazer nada com
elas, não pude publicá-las, pois os direitos pertencem a Jacques-Alain
Miller. Lacan não está em domínio público.
Então eu diria que há um legado muito interessante da obra de Lacan
nos estudos literários e na filosofia, mas também de outro lado, uma
ortodoxia entre psicanalistas. Não quero difamá-los, gosto muito deles –
eu mesma sou psicanalista –, mas eles tornaram-se cada vez mais
dogmáticos.

Poderia falar um pouco sobre essa recepção problemática entre


os lacanianos?
Eu diria que eles não sabem mais realmente ler Freud sem Lacan.
Atribuem a Freud conceitos que vêm de Lacan. Lacan é hermético, difícil
de ler, mas não deixa de ser compreensível para quem tem formação
intelectual. Já os lacanianos formaram pequenos grupos, voltados
apenas para eles mesmos, seus discursos são frequentemente
incompreensíveis para o grande público. E os lacanianos não dominam o
mundo psicanalítico. Quem domina esse mundo é a IPA (Associação
Psicanalítica Internacional). Acontece que Lacan é lido por todos os
psicanalistas. Mesmo não havendo lacanianos na IPA, encontramos bons
leitores de Lacan lá, então encontramos mais hostilidade aos lacanianos
do que a Lacan. Afinal, a obra dele, como a de Winnicott, de Melanie
Klein, continua muito produtiva.

Entre os lacanianos, existe uma coisa realmente insuportável: eles


mantêm uma idolatria a Lacan. É algo que se vê na Escola da Causa
Freudiana, que trata Lacan como se ainda estivesse vivo, então não
querem saber de biografia nem de história. E quando um grupo
despreza sua própria história, está fadado a desaparecer. Escrevi uma
biografia de Lacan, que não é aceita pelos lacanianos, mas que foi
traduzida em mais de vinte línguas e é aceita em vários lugares, porque
procurou dar consistência a sua obra, sem idolatria, mostrando diversos
aspectos da sua vida. Frequento a IPA com minha biografia, por isso
muitos lacanianos me tomam por inimiga, como se eu tivesse traído
Lacan. Não quero entrar na polêmica, mas nunca consegui de fato – e já
se vão quarenta anos – ter boas relações com Jacques-Alain Miller.
Enfim, é uma história complicada.

Para além de qualquer nostalgia, o que poderia significar um


“retorno a Lacan”, se é que faz sentido hoje parafrasearmos
aquele “retorno a Freud” do próprio Lacan?
Conheci Lacan muito cedo. Minha mãe, Jenny Aubry, era psicanalista,
próxima dele e membro da Escola Freudiana de Paris. Eu gostava muito
dele, achava-o engraçado, tinha um humor corrosivo, um jeito
permanente de provocar. Era um personagem surrealista, parecia mais
Salvador Dalí do que Freud. E era incontestavelmente moderno, leitor de
Sade… enfim, havia algo de extraordinário em Lacan, ele fascinava as
pessoas, falava admiravelmente bem, era um grande orador. Mas eu
não podia fazer análise com ele, simplesmente não era possível. Era
uma pessoa sem esperanças, sobretudo no final de sua vida. Lacan fez
um “retorno a Freud”, eu leio Freud. Não faço um “retorno a Lacan”, eu
historicizo Lacan, assim como historicizo Freud. Acho que devemos levar
em conta toda a história da psicanálise não apenas para defendê-la, mas
porque é fundamental para compreendê-la.

O que em particular continua a lhe surpreender em Lacan?


Há momentos geniais. A leitura estruturalista que ele faz de Freud,
deslocando-o do campo do biológico para inscrevê-lo na filosofia via
teoria do significante, realmente é um grande momento. Isso permitiu
compreender Freud à luz das ciências humanas modernas, da linguística.
Entre as contribuições, a concepção de Lacan sobre psicose é decisiva,
não existia como tal em Freud: o conceito de real, do que é “forcluído”,
o pensamento da loucura. A teoria da sexualidade feminina, o conceito
de gozo feminino, não vem de Freud, mas da formação cristã de Lacan,
do êxtase dos místicos, assim como de sua leitura de Georges Bataille.
Existe ainda o Lacan intérprete dos grandes textos. Acho admirável a
leitura dele sobre Antígona, foi profundamente marcada por Auschwitz,
ou seja, pela ideia de que há um gozo próprio no assassinato. A despeito
de tudo e de todos – título de um livro que escrevi sobre Lacan – sua
leitura do Banquete de Platão é genial.

Mas Lacan não concluiu sua obra. Então é preciso considerá-la como
aberta, sempre suscetível a reinterpretações. Os Escritos, sim, foram
concluídos, a tese de doutorado, sobre o caso de autopunição de
Marguerite Anzieu, também. Os Escritos são uma coletânea, editada por
François Wahl, de artigos que Lacan publicou a partir de seus
seminários. Mas tome o “índice ponderado dos conceitos” que Miller
propôs e anexou no final desse livro. A maneira com que Miller
interpreta a obra de Lacan não é a minha. É uma interpretação muito
logicista, aliás muito comum entre os lacanianos. Em resumo, trata-se
da ideia de que a obra de Lacan evolui em função dela mesma, de que
haveria uma lógica interna que a conduziria do estruturalismo, do
significante, ao nó borromeano. Realmente, não posso concordar com
isso. Penso que uma obra precisa ser historicizada, pois não é imune às
influências exteriores. Por exemplo, em 1966, não há uma única palavra
sobre o fato de que Lacan havia lido Hegel somente após os cursos de
Alexandre Kojève. Não há uma única referência ao fato de que o
conceito de “estádio de espelho” é, no fundo, uma leitura de Henri
Wallon; uma única referência ao fato de que o conceito de Real vem, em
larga medida, de Bataille.

Lacan interpretou a seu modo o complexo de Édipo. O que lhe interessa


é Antígona e Édipo em Colono, ou seja, o pai frágil guiado pela sua filha.
Freud prefere Édipo Rei, não Antígona. Lacan acentua, a cada momento
de sua trajetória, um registro de sua tópica do Simbólico, Real e
Imaginário: no início, o primado do Imaginário (ISR), depois do
Simbólico (SIR), por fim do Real (RIS), da loucura, do que escapa à
lógica.
Lacan é um lógico que desafia a lógica. É um gesto fascinante, mas não
interpreto o primeiro Lacan à luz do último Lacan. Releio sua obra em
função daquilo que ele assimilava em cada época, a filosofia alemã, a
fenomenologia do pré-guerra, depois a linguística estrutural, depois
evidentemente o momento logicista. É isso que me interessa, não a ideia
de que seu pensamento evoluiria a partir de si mesmo. Foi por isso que
fui atrás de Jacques Derrida anos depois. Depois de 1980, comecei a me
orientar pelos trabalhos historiográficos de Michel de Certeau, que era
meu amigo e mestre. Nunca me interessei em comentar frase por frase
de Lacan.

E o que, na sua opinião, talvez tenha se tornado obsoleto em


Lacan?
Muitas coisas. A prática das sessões curtas, por exemplo.

A noção de tempo lógico?


Não, essa noção é central. A ideia de que a sessão possui um tempo
lógico, que é preciso fazer pontuações e não fixar em cinquenta minutos,
foi uma inovação técnica importante nos anos 1960. Ocorre que as
sessões passaram a durar cinco minutos. No final da vida de Lacan, já
não havia sessão alguma, pontuação alguma, fala alguma. Considero
uma verdadeira catástrofe essa prática generalizada das sessões curtas,
que parte da ideia de que o paciente precisaria se virar sozinho com seu
inconsciente, de que o analista está lá somente para intervir de vez em
quando. Chamo isso de maus-tratos. As pessoas que procuram análise
necessitam de empatia, não de bons sentimentos, mas também não de
maus-tratos. Atualmente, essas sessões curtas vêm sendo objeto de
grande reprovação, e acho que devemos criticá-las seriamente. Que as
sessões devam ser pontuadas, isso sim. Concretamente falando: o
analista deveria ter, digamos, pacientes a cada 45 minutos e, dentro
desse período, fazer o corte somente depois de vinte, eventualmente
dez minutos, mas não cinco. O que se tem hoje é: com a falta de
pacientes, os analistas lacanianos baixaram os preços e atendem a cada
5 minutos. Quais os pacientes que hoje em dia suportam uma sessão
tão curta? Na minha opinião, ou aquelas pessoas que realmente estão
muito mal, não os neuróticos comuns, ou os membros da associação
psicanalítica. Acho que devemos simplesmente abandonar a sessão curta
tal como Lacan praticava no final de sua vida.

Outro ponto a ser criticado, e isso não só em Lacan: sou absolutamente


contra o silêncio do analista. É criminoso. Conheci vários analisandos
que nunca ouviram uma fala sequer do seu analista. Não digo que é
necessário um excesso de fala, mas também não a ausência. E é claro
que, em cinco minutos, não há tempo para falar. Essa crítica também
faço aos não lacanianos, pois existe certo costume no movimento
psicanalítico mais ortodoxo de fazer sessões em silêncio. Acho que
existem pacientes que necessitam do silêncio do analista e eles dizem
isso já de saída; nesses casos, deveríamos nos calar. Mas não entendo
por que ficar quieto quando se tem vontade de falar.

Veja, faço críticas à sessão curta, ao silêncio do analista, mas não às


razões pelas quais Lacan fazia sessões curtas ou ficava em silêncio. Não
podemos abandonar a reflexão. Penso que a única maneira de ser fiel a
um legado é a de ser infiel a ele, ou seja, criticá-lo – uma frase de
Derrida de que gosto muito. Não podemos continuar a interpretar Lacan
como se ele ainda estivesse vivo. E isso, evidentemente, explica certo
desinteresse que hoje a psicanálise enfrenta no mundo inteiro, e
sobretudo entre os lacanianos.

Por fim, sou crítica também do último Lacan. Acho-o magnífico, mas ele
realiza um gesto de dissolução total, de mergulho em direção à lógica –
nós borromeanos de um lado, matemas de outro. Compreendo essa
solidão, esse sofrimento, a melancolia de Lacan no final da sua vida. Mas
não acho que deveríamos transformar os tratamentos (cures) em nós
borromeanos. Hoje, na França – e sei que no Brasil isso acontece
também – encontramos pessoas que passam a vida inteira fazendo nós
borromeanos, matemas… Realmente acho que estão perdidos,
desesperados, porque ninguém mais os escuta, não têm público algum.
Lacan fascinava gerações inteiras, porém hoje, 35 anos depois de sua
morte, seus seguidores são ignorados, perderam relevância.
E em relação à interpretação que os filósofos fazem de Lacan?
Em relação aos filósofos, como não há clínica, tudo bem. Como disse,
Lacan é comentado de modo mais interessante hoje por filósofos como
Alain Badiou, Jean-Claude Milner. Mesmo nos EUA, Judith Butler e os
cultural studies são mais criativos com a obra de Lacan do que os
psicanalistas. Respeito muito, por exemplo, a leitura de Badiou,
chegamos a escrever um livro juntos sobre Lacan. Não temos o mesmo
Lacan – Badiou leva muito a sério a parte matemática de Lacan – mas
compreendo a leitura que ele faz.

Há um texto fundamental de Lacan que comentei bastante, “Kant com


Sade”. Lacan certamente foi capaz de pensar melhor a perversão do que
Freud, e “Kant com Sade” descreve o próprio modelo da perversão. Em
meu livro A parte obscura de nós mesmos, dedico uma discussão
considerável a Lacan, leitor de Sade…

Uma ideia decisiva também para Adorno e Horkheimer na Dialética do


esclarecimento…
Exatamente. Sou uma grande admiradora de Adorno e Horkheimer, e
também de Hannah Arendt. Creio que Lacan foi profundamente marcado
pela Dialética do esclarecimento, que esse livro de 1947 teve um efeito
considerável sobre ele: não haveria “Kant com Sade”, nem sua leitura de
Antígona sem Adorno. É um texto sobre a parte sombria da Aufklärung,
as sombras do iluminismo. E Lacan pertence a esse iluminismo sombrio,
foi um pensador a partir de Auschwitz, tem esse pessimismo
fundamental, vê sempre o pior. No fundo, não está errado.

Por que ele não mencionava parte de suas influências filosóficas?


De fato, há influências que são nomeadas por Lacan: Jakobson, Lévi-
Strauss; ele fala elogiosamente de Foucault. Mas existem aquelas que
não são nomeadas: ele nomeia Hegel, mas não Kojève; Baitaille, sem
dúvida, mas não tanto assim. Lacan tinha essa representação da sua
obra, que lembra um pouco, aliás, a dos grandes lógicos: como se fosse
Fênix, algo como “inventei quase tudo, sou o único freudiano que
presta”.
Você afirmou recentemente que se o século 20 foi freudiano, o
século 21 já é lacaniano. O que deste início de século permitiria
constatar que ele já é lacaniano?
Lacan foi quem melhor pensou, entre os psicanalistas, a pulsão de
morte, o racismo, a organização insana do capitalismo, a sexualidade
feminina, a criminalidade. Era isso o que eu queria dizer: o século 21
reivindicará esse pensamento permanentemente subversivo. Lacan é
fulgurante como um surrealista. Isso vai ficar. Seu pensamento não
pertence mais aos psicanalistas. Provavelmente será comentado cada
vez mais pelos filósofos, pois Lacan vai entrar para a história do
pensamento, assim como Derrida, Foucault, e toda uma geração
francesa dos anos 1960.

Fonte: Revista Cult

Você também pode gostar