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Lévi-Strauss - A Antropologia Face Aos Problemas Do Mundo Moderno PDF
Lévi-Strauss - A Antropologia Face Aos Problemas Do Mundo Moderno PDF
Claude Lévi-Strauss
Ed. du Seuil 2011
pp. 60-75
Trad. Livre Thiago Novaes
Em minha primeira conferência, eu disse que tentaria definir e cercar alguns problemas que se
apresentam ao homem moderno, e à solução com as quais o estudo das sociedades sem escrita pode
em parte contribuir. Para isso, seria-me necessário considerar essas sociedades sob três ângulos: sua
organização familiar e social, sua vida econômica, e enfim seu pensamento religioso.
Quando consideramos de um ponto de vista mais geral os caracteres comuns às sociedades que
estudam os antropólogos, uma constatação se impõe: como eu brevemente indiquei, essas
sociedades fazem apelo ao parentesco de uma maneira muito mais sistemática que não é o caso hoje
entre nós.
Então, elas utilizam as relações de parentesco e de aliança para definir o pertencimento ou não
pertencimento ao grupo. Muitas dessas sociedades recusam aos povos estrangeiros as qualidades de
seres humanos. E se a humanidade acaba nas fronteiras do grupo, ela se reforça no interior de uma
qualidade suplementar: os membros do grupo não são apenas os únicos humanos, os únicos
verdadeiros, os únicos excelentes. Eles não são apenas concidadãos, mas parentes de fato ou de
direito.
Em segundo lugar, essas sociedades assumem o parentesco e as noções que a ele se ligam como
anteriores e exteriores às relações biológicas, tal é a filiação pelo sangue, as quais nós mesmos
tendemos a reduzi-las. Os laços biológicos fornecem o modelo sobre o qual são concebidas as
relações de parentesco, mas essas oferecem ao pensamento um quadro de classificação lógica. Esse
quadro uma vez concebido permite distribuir os indivíduos em categorias pré-estabelecidas
designando a cada um seu lugar no seio da família e da sociedade.
Enfim, essas relações e essas noções compenetram o campo inteiro da vida e das atividades sociais.
Reais, postuladas ou inferidas, elas implicam em direitos e deveres bem definidos, diferentes para
cada tipo de parente. De maneira mais geral, podemos dizer nessas sociedades o parentesco e a
aliança constituem uma linguagem comum, própria para exprimir todas as relações sociais:
econômicas, políticas, religiosas, etc., não apenas familiares.
Sobre todas essas questões, os antropólogos têm muito a dizer, porque as sociedades que eles
estudam se colocaram esses problemas e porque elas lhes oferecem soluções. Certamente, essas
sociedades ignoram as técnicas modernas de fecundação in vitro, de remoção de óvulo ou de
embrião, de transferência, de implantação e de congelamento. Mas elas imaginaram e puseram em
prática fórmulas equivalentes, ao menos sob os ângulos jurídico e psicológico. Permitam-me dar
alguns exemplos.
A inseminação com doador tem seu equivalente na África, junto aos Samo de Burquina Faso
segundo minha colega Mme Françoise Héritier-Augé que me sucedeu no Collège de France. Nessa
sociedade, cada menina se casa muito cedo, mas antes de ir viver com seu esposo ela deve, durante
três anos ou mais, ter um amante de sua escolha e oficialmente reconhecido como tal. Ela leva ao
seu marido a primeira criança nascida por obra de seu amante, mas que será considerado como o
primogênito da união legítima. De seu lado, um homem pode ter muitas esposas legítimas, mas se
elas rompem com eles, ele restará o pai legal de todas as crianças que elas puseram no mundo
posteriormente. Em outras populações africanas, o marido tem também direito sobre todas as
crianças futuras, sob condição de que esse direito seja reinstaurado depois de cada nascimento
[decorrente] de uma primeira relação sexual post partum. Essa relação designa o homem que será o
pai legal da próxima criança. Um homem casado cuja mulher é estéril pode assim, mediante
pagamento, entender-se com uma mulher fecunda para o que ela o designa. Nesse caso, o marido
legal é doador inseminador, e a fêmea aluga seu ventre a um outro homem, ou a um casal sem
criança. A questão, quente na França, de saber se o empréstimo de útero deve ser feito gratuitamente
ou pode receber uma remuneração não é então colocada.
Junto aos Índios Tupi-Kawahib do Brasil, que visitei em 1938, um homem pode se casar
simultaneamente ou sucessivamente com muitas irmãs, ou com uma mãe e sua filha de uma união
precedente. Essas mulheres têm em comum suas crianças com pouca consideração, me pareceu,
sobre se a criança da qual essa ou aquela mãe se ocupa é a sua ou a de uma outra esposa de seu
marido. Uma situação simétrica prevalece no Tibeb onde muitos irmãos têm em comum uma única
esposa. Todas as crianças nascidas são atribuídas ao primogênito, que eles chamam de pai. Eles
chamam de tio os outros maridos. Nesse caso, a paternidade ou maternidade individual são
ignorados, ou não se leva em conta.
Retornemos à África, onde os Nuer do Sudão assimilam a mulher estéril de um homem. Na
qualidade de “tio paternal”, ela recebe então o gado representando o “preço da noiva” (em inglês
bride price) pago para o casamento de suas sobrinhas e ela se serve disso para comprar uma esposa
que lhe dará crianças graças aos serviços remunerados de um homem, frequentemente estrangeiro.
Entre os Yourubá da Nigéria, as mulheres ricas podem, elas também, adquirir esposas que elas
empurram para se por em casamento com um homem. Quando as crianças nascem, a mulher,
“esposa” legal, as reivindica, e os procriadores reais, se eles querem guardá-las, devem pagá-la
generosamente.
Em todos esses casos, os casais formados por duas mulheres e que, literalmente falando, nós
chamaríamos de homossexuais praticam a procriação assistida para ter crianças em que uma das
mulheres será o pai legal, a outra a mãe biológica.
As sociedades sem escrita conhecem também os equivalentes da inseminação post mortem, que os
tribunais franceses proíbem, enquanto que na Inglaterra o comitê Warnock propõe que uma lei
exclua a sucessão e a herança do pai toda criança que não se encontre em estado de feto no útero da
mãe a partir dos descendentes de seu marido. E, contudo, uma instituição atestada depois de
milênios (porque ela existia já entre os anciãos Hebreus), o levirat, permitia e por vezes mesmo
impunha que o irmão caçula levasse o nome de seu irmão morto. Entre os Nuer sudaneses dos quais
falei, se um homem morria solteiro ou sem descendência, um parente próximo podia retirar o gado
do falecido bem como comprar uma esposa. Esse “casamento fantasma”, como dizem os Nuer, o
autorizava a levar o nome do falecido, posto que esse último tinha fornecido a compensação
matrimonial criadora da filiação.
Em todos os exemplos que dei, o estatuto familial e social da criança se determina em função do pai
legal (mesmo que seja aqui uma mulher), essa criança não conhece os meios de identidade de seu
genitor, e os laços de afeto os unem. Inversamente ao que nós acreditamos, a transparência não
suscita, na criança, um conflito resultante do fato que seu procriador biológico e seu pai social são
indivíduos diferentes.
Essas sociedades não experimentam mais uma crença do gênero que engendra em nós a
inseminação com o esperma congelado do marido falecido, ou mesmo teoricamente falando, de um
ancestral distante: para muitas delas, as crianças são consideradas como sendo a reencarnação de
um ancestral que escolhe reviver nessa criança. E o “casamento fantasma” dos Nuer admite um
refinamento suplementar no caso em que o irmão, substituído no falecido, não teria gerado por sua
própria conta. O filho surgido com o nome do falecido (e que seu pai biológico considera então
como seu sobrinho poderá render a seu pai biológico o mesmo serviço). Esse genitor sendo então o
irmão de seu pai legal, as crianças que ele colocará no mundo serão legalmente seus primos.
Todas essas fórmulas oferecem um tanto das imagens metafóricas antecipadas das técnicas
modernas. Nós constatamos, assim, que o conflito que tanto nos embaraça entre a procriação
biológica e a paternidade social não existe nas sociedades que estudam os antropólogos. Elas dão
sem hesitar a primazia ao social, sem que os dois aspectos se enfrentem na ideologia do grupo ou no
espírito dos indivíduos.
Se me detive a esses problemas, é porque eles mostram muito bem, me parece, que tipo de
contribuição a sociedade contemporânea pode esperar das pesquisas antropológicas. O antropólogo
não propõe aos seus contemporâneos que adotem as ideias e os costumes desta ou aquela população
exótica. Nossa contribuição é muito mais modesta, e ela se exerce em duas direções. Então, a
antropologia revela que o que nós consideramos como “natural”, fundado sobre a ordem das coisas,
se reduz às adversidades e aos hábitos mentais próprios a nossa cultura. Ela nos ajuda então a nos
livrarmos de nossos antolhos, a compreender como e porque outras sociedades podem ter como
simples e além de si usos que, para nós, parecem inconcebíveis ou mesmo escandalosos.
Em segundo lugar, os fatos que recolhemos representam uma experiência humana muito vasta posto
que eles provêm de milhares de sociedades que se sucederam no curso de séculos, por vezes
milênios, e que se repartiram por toda a extensão da terra habitada. Ajudamos assim a identificar o
que podemos considerar como “universais” da natureza humana, e nós podemos sugerir em quais
quadros se desenvolverão evoluções ainda incertas, mas que cometeríamos o erro de denunciar
adiantadamente como desvios ou perversões.
O grande debate que se desenvolve atualmente sobre a procriação assistida é sobre saber se convém
legislar, sobre o que, e em que sentido. Nas comissões e outros organismos instituídos pelos poderes
públicos de vários países com assento para os representantes do parecer, juristas, médicos,
sociólogos, às vezes antropólogos. É surpreendente que esses agissem em toda parte no mesmo
sentido. Contra uma enorme pressa para legislar, para permitir isso e proibir aquilo.
Aos juristas e aos moralistas muito impacientes, os antropólogos oferecem conselhos do liberalismo
e da prudência. Eles fazem valer que mesmo as práticas e as aspirações que mais chocam a opinião
– procriação assistida a serviço de mulheres virgens, solteiras, viúvas, ou a serviço de casais
homossexuais – têm seu equivalente em outras sociedades que não se portam mal com isso.
Eles gostariam então que se deixe fazer, e que se remeta à lógica interna de cada sociedade para
criar em seu seio, ou para eliminar, as estruturas familiares e sociais que se revelarão viáveis e
aquelas que resultarão em contradições em que apenas o uso pode demonstrar que elas são
insuperáveis.
[1] O Brasil não possui legislação específica sobre o tema da reprodução assistida, mas segue-se o
Conselho Federal de Medicina que decidiu, e foi publicado no Diário Oficial da União no dia 6 de
janeiro de 2011, autorizar o uso das técnicas de reprodução assistida e bancos de sêmen para a
procriação de solteiros e casais homossexuais. http://portal.cfm.org.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=21235:conselho-federal-estabelece-novas-normas-para-
reproducao-assistida&catid=3?n=142