Você está na página 1de 5

Senhor Vicente,

jardineiro

cego, que

transformava

árvores em

esculturas vivas

Fotos:Arquivo Jerusa Pires Ferreira

Os Ofícios
JERUSA PIRES FERREIRA

Tradicionais
Cultura é memória
102 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 0 2 - 1 0 6, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6
Arquivo do IPAC/Dilton Mascarenhas
A primeira mulher tipógrafa do Brasil, Durvalina Peixoto, em foto de 18 de janeiro de 1977

H
á muito tempo me preocupo com os ofícios tradicionais, sua memória JERUSA PIRES
FERREIRA é
professora da
e transmissão, com as narrativas que os situam e com os termos que PUC-SP e autora de,
entre outros livros,
Armadilhas da
compõem uma espécie particular de repertório iniciático, com origem Memória – Conto
e Poesia Popular
numa espécie de revelação inicial. Eles são os fios da conexão entre a transmissão (Fundação Casa
de Jorge Amado).

de saberes hierárquicos e organizados e os grupos sociais que os acolhem. Pre-

sentes os tabus e as interdições, o prático e o mágico são inseparáveis, na condu-

ção complexa de vetores de comunicação. Técnicas que se aprimoram, cada dia

se enlaçam e parecem provir de um mesmo tempo arqueológico: as coisas e sua

nomeação, a natureza e seus domínios, os mistérios do conhecimento.

Ora, o mestre de um ofício é sempre um sabedor, é alguém bastante diferen-

ciado que encarna um semideus, um pactuante com o sobrenatural, um detentor

de um tipo de liderança, sobretudo por ser aquele que transforma, que inaugura

um novo estado cultural. É da sua memória que se projeta a construção do mundo.

R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 0 2 - 1 0 6, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 103
O FERREIRO – TRANSMISSOR como personagem ambivalente. Ligado aos
DE SEGREDOS mortos e aos vivos, ao confronto da luz com
as trevas. Pertencente ao mundo terrestre, e
O Ferreiro é o transmissor dos segredos ao subterrâneo, por causa de sua familiari-
do fogo, da forja e da bigorna, herói civilizador dade com os metais, como tão bem nos
por excelência nas comunidades arcaicas, mostra Mircea Eliade, no seu célebre estudo
condenado ao celibato ou à maldição, à con- Ferreiros e Alquimistas (3). Sua técnica o
dição de “sacerdote” ou de entidade maléfi- tornou mestre dos quatro elementos e seus
ca, indispensável porém à vida e ao epos nar- utensílios são carregados de muitas signifi-
rativo que mantêm a coesão desses grupos. cações simbólicas, de sentidos inten-
sificadamente sexuais. O ferreiro, mestre do
“Lá detrás daquela serra fogo, da água, do ferro, criador de armas e
passa uma estrada real... utensílios, detém um poder que o torna pró-
pois ali mora um ferreiro ximo de magos e sacerdotes. Etimo-
ferrador de animal logicamente, no Congo, como nos conta
Que sentado o dia inteiro Balandier (4), significa nganga, ou seja: “a
Na porteira do quintal capacidade de fazer”.
Conta histórias de guerreiros Apresenta Eliade uma série de documen-
De cavaleiros ligeiros tos relativos à função ritual da forja, ao ca-
do reino de Portugal.” ráter ambivalente do ferreiro, às relações
existentes entre magia, o domínio do fogo, o
É o que conta Elomar (1), no sertão do ferreiro e as sociedades secretas.
Brasil, ligando o artífice das ferraduras aos Entre os iorubás, Ogum foi o ferreiro pri-
enredos da memória, aos caminhos desbra- mordial, que forjou as primeiras armas, en-
vadores dos tropeiros e seus animais, e à con- sinou os homens a caçar, e fundou a socieda-
quista de novos espaços. de secreta de Ogboni.
Nas culturas rurais e em algumas co- A mitologia do ferreiro, “herói-civi-
munidades, desempenha sempre um im- lizador”, é extremamente rica, encontran-
portante papel, o de agente da transforma- do-se que, em algumas tribos, ele desem-
ção, e no seu estatuto social, como nos penha papel sócio-religioso mais importan-
lembra Boyer, é um ser à parte (2). O seu te do que o do rei. Eliade nos reporta às
saber técnico é uma das qualidades que o mitologias e às idéias religiosas para nos
marcam enquanto indivíduo, ao mesmo fazer compreender a função do ferreiro. No
tempo em que o isolam. A partir de um capítulo “Ferreiros-Mestres de Iniciação”
estudo feito sobre os fangas, na África, apresenta algumas etimologias que subli-
vê-se o ferreiro como um maldito, porta- nham, de maneira ainda clara, os laços es-
1 Cf. Na Quadrada das Águas dor do evur, uma espécie de escorpião que treitos entre esta profissão e a arte do poeta
Perdidas, disco de Elomar,
produzido por Marcos Pe- traz desgraça e desolação. Paradoxalmen- e do músico.
reira, década de 70-80.
te, é ao mesmo tempo um artesão útil à É sabido também que, depois da Europa
2 Pascal Boyer, “Le Statut des
Forgerons et ses vida de todos. A estratégia dos ferreiros, nórdica, Odhin e a caça furiosa foram assi-
J u s t i f i c a t i o n s
Symboliques”.Cf. ainda:
como curandeiros nessas comunidades, milados ao diabo e às hordas de condenados
“Os Ofícios Tradicionais”, in
História Geral da África,
consiste em compensar o aspecto anti-so- infernais. Isso representava um grande pas-
São Paulo, Ática, Unesco, cial do evur. O ferreiro é sempre temido so rumo à identificação do ferreiro e do fer-
1982.
pelo seu poder, não sendo um artesão como rador com o diabo.
3 Cf. Mircea Eliade, Ferreiros
e Alquimistas, Rio de Janei- os outros. Algumas sociedades o confinam Em Fausto no Horizonte (5) desenvolvo
ro, Zahar, 1979.
no interior de castas, outras o associam ao a aproximação deste ofício ao tema faústico,
4 Georges Balandier, “Le Fer
et la Palme”, in La Vie herói civilizador dando-lhe um estatuto su- lembrando que, poderoso agente da trans-
Quotidiènne au Royaume
du Kongo du XII au XVIII
perior, participante efetivo dos domínios formação, rebelde e ligado ao ato prometéico
Siècles, Paris, Hachette,
1965.
do sagrado e da transformação. do roubo do fogo e sua domação, se confun-
Em grande parte da África Ocidental, o de com Lúcifer, tornando-se semelhante aos
5 Fausto no Horizonte, São
Paulo, Educ/Hucitec, 1995. ferreiro inscreve-se no universo do mito, deuses. Maldito, ao mesmo tempo, pelo do-

104 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 0 2 - 1 0 6, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6
mínio da natureza e pela aquisição de um MATRIZES ICÔNICAS DA
ofício mágico. O fato é que se tem sempre AÇÃO – SR.VICENTE,
um protagonista, para além da estreita O JARDINEIRO CEGO
mediania da vida cotidiana, disposto a pac-
tuar para superar limites. Conheci há muitos anos em Monte Sião,
Ouvindo em 1984 uma senhora portu- Minas Gerais, o jardineiro que esculpia nos
guesa de 75 anos (6), filha de um ferreiro, buxos da praça formas de bichos, insetos,
ressalta-se para ela a figura do pai como a de elementos orgânicos provindos de um imagi-
um homem trabalhando sem cessar, de olhos nário fantástico. Tive ainda a sorte de poder
vermelhos, cor de fogo e poucas palavras, entrevistá-lo em sua casa (1983), quando sua
com o peito todo chamuscado. Uma figura saúde era bem frágil. Há quarenta anos cuida-
de sombras: “Não nos dava conversa. Manoel va das formas que esculpia naquele jardim.
Maria era o seu nome; não fez convivência Italiano, tendo herdado a artesania do ofício
com nós, esquisito de gênio e danado como de jardineiro, construiu naquela cidade mi-
as cobras. Só fazia a forja: ‘mestre ferreiro neira de nome mágico seu espaço de vida e de
acima, que nós estamos fazendo as semen- atuação. Depois é que ficou cego. Ao pergun-
teiras’, era o que lhe diziam”. tar-lhe por que fazia seus jardins daquele
Lembrou-se também dos instrumentos de modo, ele me revelou, com voz trêmula, como
trabalho: “Malhos grandes e pequenos, bi- se provinda de mundos diáfanos e fugidios,
gorna em cima de um mosto, um tronco de que uma vez viu, nos jornais, fotos dos jar-
castanheiro. Casa velha e baixa, sacaria do dins de Pistóia na Itália. Admirara as verda-
carvão e pia com as tenazes. Fole grande, deiras esculturas que ali se faziam com os
varela de aço para compor as relhas, tinha a buxos, e partiu para “traduzi-las”, criando
capacidade de compor seis ou sete relhas. geometrias e formas orgânicas por sobre aque-
Trazia também um forcado (gancho)”. Esta- la imagem, aquela espécie de matriz
ria ela estabelecendo uma concreta relação compositiva que se formou em sua memória.
com o diabo? Depois de cego, conforme relatou sua mu-
Não é por acaso que o “ferreiro”, perso- lher, devota e dedicada que não poderia ter
nagem e agente transformador no poema de outro nome senão o de Maria, não dormia
Seamus Heaney (7) (prêmio Nobel de Lite- bem e passava as noites “visualizando” as
ratura em 1995), nos surge também, a partir esculturas que iria compor no dia seguinte. A
de uma espécie de extensão dos seus obje- graça e a beleza chegavam na treva das trevas
tos, e corresponde à descrição mitopoética e eram a iluminação para uma composição
feita por uma senhora, sem letras, de uma visionária, para um delírio compositivo que
aldeia transmontana: se representa na praça daquela cidade minei-
ra. Construiu, na adequação do seu repertório
“A forja à sua prática, um convite a uma espécie de
Só sei da porta para o escuro. Fora, zoologia estranha. Na praça, em contrafundo,
há velhos eixos e aros se oxidando. os montes e, ali, o sabedor de um ofício
Dentro, a bigorna ecoa o malho enquanto artesanal tão antigo como as histórias do
fagulhas abrem-se num leque ou chora mundo, ligação entre o que há de mais mila-
a ferradura nova em água fria. groso na terra, a seiva e a floração, o segredo 6 Maria Augusta Pinheiro, na-
A bigorna, no centro, é um unicórnio de Perséfone ou a remissão adâmica de culti- tural de Trás-os-Montes, li-
gada a mim por laços for-
quadrado num extremo: altar em torno var os jardins do Paraíso. Lembremos até que tes de amizade, deu este
depoimento em 1984. Fa-
do qual ele se esvai em melodia os jardins às vezes se representam como lem- leceu em 1985.
e forma. De avental de couro e pêlos branças, como imagens resumidas do mundo 7 Sobre Seamus Heaney, cf.
Nelson Ascher, in Folha de
nas ventas, ele encosta-se ao batente, (9). Recorrendo, no dia-a-dia, à tesoura e aos S. Paulo, 8/10/95.
rememorando, às vezes, atropelos ancinhos pôde podar, modelar, produzir a 8 Tradução de Nelson Ascher.
de cascos rua afora. Range os dentes, marca da cultura sobre a natureza. Mas o
9 Cf. “Jardin”, in Dictionnaire
entra batendo a porta e, com desvelo, paradoxo do jardineiro cego oferecia além de des Symboles, Chevalier et
Gheebrant, Paris,
aciona os foles, malha ferro ardente” (8). tudo um outro modelo de visão, a ideação que Seeghers, 4 vol.

R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 0 2 - 1 0 6, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 105
junta o fazer do ofício à capacidade de que lhe transmitiu as artes, os múltiplos
reinventá-lo. Um verdadeiro espanto. encargos, os vínculos sociais. Morrendo o
O jardim aparece como o lugar de crença patrão, deixou a dona Durvalina o ter de
do ponto de encontro entre o interior e o ex- sustentar uma viúva despreparada (como
terior – resumo do universo captado. costumavam ser as mulheres dos patrões),
Transmitiu então a seu filho a técnica e a cinco filhos para criar e a gráfica, fonte de
conservação daquele jardim. Lamentava e manutenção de todos.
sofria, ao saber que pedaços dele estavam As mãos se alongaram, o corpo cur-
sendo cortados e inutilizados pela Prefeitu- vou-se, o dorso tomou aquela configura-
ra, como passagem de rua, que os espaços ção, de tanto e ininterruptamente carregar
iam diminuindo, que algumas de suas cria- a pesada caixa de tipos. Alicerçou-se en-
ções iam sendo profanadas, para dar lugar tão a condição de celibato (que em geral se
àquilo que se pretendia como modernização associa à integridade do ofício), e outra
caótica e estúpida. Só não pôde transmitir ao não poderia ser sua escolha.
seu continuador o sonho, o delírio da com- O fato porém é que ali ela nos falava,
posição, aquilo que fazia dele, para além do com muito orgulho, de seu saber e de sua
artífice, um criador. competência, das noites curtas para o dia
longo de trabalho, e nos dizia, que susten-
A ARTE DA TIPOGRAFIA – DONA tou a família com aquele trabalho, que
DURVALINA, A PRIMEIRA aprendeu todos os segredos da atividade
MULHER TIPÓGRAFA DO BRASIL gráfica, os meandros do seu fazer contínuo.
Exibe-nos cada peça do maquinário,
Neste mesmo espírito de pensar nos ofí- cada detalhe do seu funcionamento e nos
cios, no trabalho como revelação, é que, convida depois à sua casa. Ali em cima,
andando pelas ruas da cidade da Bahia, em numa água-furtada pintada de azul-claro
companhia do poeta Carlos Cunha, sabe- e muito limpa, três andorinhas de louça
dor dos subterrâneos da cidade, numa ma- em linha ascendente e diagonal, coloca-
nhã de sol fui parar no prédio da rua do das na parede, evocam a obstinação da
Maciel, zona do Pelourinho (ainda não re- personagem, um quadro de São Jorge
formado). Iríamos também visitar uma an- completa o décor. Encontramos então sua
tiga e pequena empresa gráfica, imprimin- irmã e coadjuvante, que nos fala de dona
do então convites baratos, impressos e Durvalina como sua heroína. Conta-nos
talonários para diversos fins. Fui avisada de sua capacidade de trabalho, de seu tra-
de que dona Durvalina (10) nos falaria de balho contínuo, das refeições que lhe pre-
seu ofício. Sua aparição teve um impacto para e serve, e de como a outra fez para
inesperado. Mulher negra, porém não tan- chegarem ambas ao ponto em que estão e
to, baixinha, de óculos, mãos enormes e de que se orgulha. Assume claramente o
dorso deformado, curvado em espalhada papel de auxiliar e se curva como nós,
corcova. Essa mulher tinha uma grandeza diante da grandeza de quem, ao receber o
especial, sobretudo quando falava do seu dom de um ofício, o conservou, levando-
ofício e da profissão que exercia, ao longo o ao máximo de suas forças e de sua com-
de toda a sua vida. Ali na tipografia que patibilidade social.
era a sua, nos mostrava as caixas de tipos Infelizmente, dona Durvalina se calou
que tinha carregado e manuseado desde em 1985 e, ao homenageá-la hoje, tería-
criança. Seus olhos brilhavam intensamen- mos de dizer que ela não ficou “cozinhan-
te e parecia que suas mãos se alongavam do intrigas” mas fez do seu saber a obsti-
ainda mais, quando relatava a história de nação que a distinguia dos outros, desalo-
sofrimento, o martírio do trabalho, mas a jando mesquinhos limites: ela, a detentora
10 Dona Durvalina Peixoto, realização e a grandeza do ofício. Descen- de uma prática eterna, de um poder de
moradora do Solar Ferrão,
proprietária de tipografia do dente de escravos, como era visível, foi modificar o mundo que poucos pressen-
2o subsolo, segundo arqui-
vo do I.P.A.C. criada de um português dono da tipografia tem e assumem.

106 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 0 2 - 1 0 6, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6

Você também pode gostar