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O mito de Cassandra e

o problema da credibilidade
EIITI SATO1

A mitologia conta que Cassandra e seu irmão gêmeo Heleno, ainda crianças,
costumavam brincar no Templo de Apolo. Ambos eram filhos de Príamo, rei de Tróia,
portanto irmãos de Heitor e de Paris, que seriam importantes protagonistas da guerra
de Tróia. Certo dia, os gêmeos brincaram até ficar demasiado tarde para voltar para
casa e, assim, foi-lhes arranjada uma cama no interior do templo. Na manhã seguinte, a
serva do templo encontrou as crianças ainda a dormir, enquanto duas serpentes passa-
vam a língua pelas suas orelhas. A serva ficou aterrorizada diante da cena, mas as crian-
ças estavam tranqüilas e ilesas. As serpentes haviam deslizado sobre os louros sagrados
de Apolo e, dessa forma, tornaram os ouvidos dos gêmeos tão sensíveis que lhes per-
mitiam escutar as vozes dos deuses.

Com o tempo, Cassandra tornou-se uma jovem de grande beleza e devota ser-
vidora de Apolo. Foi de tal maneira dedicada e sua beleza tão grande que – diz a lenda
– o próprio deus se apaixonou por ela, ensinando-lhe os segredos da profecia. Cassan-
dra tornou-se, assim, uma profetisa, mas quando se negou a dormir com Apolo, o
deus, contrariado, lançou-lhe a maldição de que ninguém jamais viria a acreditar nas
suas profecias. Como conseqüência, Cassandra passou a ser considerada louca ao ten-
tar comunicar à população as suas previsões de guerra e desgraça que haveriam de se
abater sobre o reino de Tróia.

Após anos de guerra, os gregos comandados por Agamenon pareciam bater em


retirada e Cassandra fez sucessivas tentativas no sentido de alertar o rei Príamo para
que destruísse o cavalo de madeira que Ulisses mandara construir deixando-o como
presente aos troianos. Diante da falta de credibilidade das profecias de Cassandra, os
troianos levaram em triunfo o grande cavalo de madeira para o interior da cidade mu-
rada, conforme havia engendrado o astuto Ulisses. A rejeição das profecias de Cassan-
dra também contribuiu para que os troianos não mantivessem a vigilância e não tomas-

1 Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.


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sem as providências necessárias para evitar a queda e a conseqüente destruição de
Tróia. Com a cidade já tomada pelos gregos, Cassandra refugiou-se no templo
de Atena, onde teria sido descoberta e violada pelo brutal Ájax, filho de Oileu. Na par-
tilha do butim de guerra, Cassandra foi dada a Agamenon, que a levou em seu navio,
na viagem de volta a Micenas, onde ele seria assassinado por Egisto, amante da rainha
Clitemnestra, esposa de Agamenon.

Mais tarde, diz a lenda, Cassandra fugiu de Micenas indo para a Cólquida, de
onde saiu com Zakintio para fundar uma nova cidade, pois ele alegava ter recebido
uma mensagem dos deuses para que fundasse uma cidade, com alguma mulher que
também pudesse ser sacerdotisa, como Cassandra o fora. Com efeito, como registram
os achados arqueológicos expostos no Museu de Arqueologia de Atenas, Cassandra
não foi morta em Tróia ou em Micenas, mas realmente teria ajudado na fundação da
nova cidade, deixando uma descendência de trinta gerações.

Os psicólogos e outros cientistas têm utilizado a expressão “complexo de Cas-


sandra” como metáfora para simbolizar a falta de confiança entre os seres humanos.
Todavia, dentre as muitas interpretações possíveis da figura de Cassandra, uma das
mais óbvias e mais abrangentes é a da falta de credibilidade que pode tornar nula uma
predição, um vaticínio ou mesmo uma previsão construída pelas ciências na moderni-
dade.

O cientista substitui os sacerdotes e videntes

Desde a Antiguidade, nas mais diferentes culturas de que se tem notícia, a práti-
ca da profecia aparece desempenhando uma função social relevante, embora pouco
lembrada pelos estudiosos das culturas e das sociedades. Videntes e sacerdotes tidos
como dotados de meios para comunicar-se com os deuses, com habilidades para ler os
astros ou para interpretar sonhos e runas, eram objeto de temor e reconhecimento tan-
to por parte das pessoas comuns quanto por parte dos poderosos. Há versões do mito
que dizem que Cassandra não teria sido agraciada pelos deuses com o dom da previsão,
mas que esse dom teria sido obtido astuciosamente por ela que, ansiosa na obtenção
desse tipo de sabedoria, teria enganado Apolo por meio de artifícios, enfurecendo o

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deus e este, não podendo tomar de volta um dom concedido aos mortais, teria se vin-
gado amaldiçoando-a com a falta de credibilidade.
O fato é que as previsões ou profecias podem referir-se a tudo aquilo que im-
porta para as pessoas e, ao longo da história, as que recebiam mais atenção eram, obvi-
amente, as previsões que afetavam um número maior de pessoas tais como pragas,
guerras, secas prolongadas ou descendência de famílias reais. Dessa forma, ao nasce-
rem, príncipes eram objeto de profecias e reis, quando coroados ou quando estavam
diante de uma guerra iminente, não deixavam de consultar seus videntes, seus oráculos.
As pessoas comuns, por sua vez, também recorriam a videntes – como muitos conti-
nuam fazendo até hoje – para tentar desvendar os mistérios que o futuro lhes reserva-
va, se serão felizes no matrimônio, se terão um futuro de prosperidade ou se deveriam
precaver-se de algum infortúnio. O interesse em saber sobre o futuro, portanto, não
pode ser visto apenas como um interesse exótico de pessoas excêntricas ou incultas.
Esse interesse pelo futuro vai muito além da simples curiosidade. A história revela que
o interesse em prever o futuro, em muitos sentidos, eleva-se ao nível de verdadeira
necessidade inerente à natureza humana, que se angustia diante do incerto e do desco-
nhecido: nada mais tranquilizador do que ter a certeza do que fazer diante de qualquer
dificuldade, diante de um ambiente de incertezas.

Ao longo da história, aplacar essa angústia acerca do futuro foi, por muito tem-
po, um importante papel desempenhado por sacerdotes e videntes, não importando o
tipo de recurso ou de ritual utilizado e, em certa medida, não importando até mesmo o
quanto esses vaticínios pudessem ser verdadeiros. Em nossos dias, os planejadores go-
vernamentais têm seus fundamentos no princípio de que objetivos desejados serão
atingidos se certas providências forem tomadas e se certas ações forem realizadas no
tempo certo. No plano individual, a maioria das pessoas tem suas próprias receitas e
códigos de conduta que acreditam importantes para a construção de um futuro favorá-
vel e próspero. Em outras palavras, é da natureza humana angustiar-se diante do des-
conhecido e do futuro, que é sempre incerto, causando apreensão e temor e, assim,
para a maioria das pessoas, sobretudo em tempos de grande incerteza e de mudanças
profundas, as previsões emergem como a água que sacia a sede do viajante. Além disso,
saber o que virá, significa também saber o que deve ser feito e, por essa razão, mesmo

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os poderosos – faraós, reis e governantes de todo tipo – deveriam curvar-se à sabedo-
ria dos videntes. Desse modo, parece fazer bastante sentido a versão do mito de que,
na ânsia de obter o precioso dom da predição, Cassandra teria usado de astúcia enga-
nando Apolo.

Na modernidade, esse papel social de aplacar as angústias geradas pelas incerte-


zas em relação ao futuro e ao desconhecido foi, em larga medida, assumido pela ciência
e há muitas razões para que isso ocorresse. A ciência desvendou total ou parcialmente
muitos dos fenômenos e anseios que eram vistos como mistérios cuja compreensão
ficava em algum lugar entre o céu e a terra. Por exemplo, os alquimistas, que eram uma
espécie de mistura entre o vidente que perscruta o futuro e o cientista moderno em
constante procura de fórmulas capazes de equacionar respostas para os anseios huma-
nos, jamais conseguiram seu intento de transformar o chumbo em ouro e de descobrir
o elixir da longa vida. Literalmente, a ciência moderna não conseguiu atingir esses in-
tentos dos alquimistas, mas é notável como a ciência, por meio de suas aplicações,
permitiu que uma substância pegajosa e de aparência muito pouco atraente como o
petróleo se transformasse em verdadeiro “ouro-negro”, responsável pela produção de
uma parte substancial da riqueza mundial. A ciência permitiu também que o silício, um
dos elementos mais abundantes na crosta terrestre – muito mais abundante do que o
chumbo – viesse a se tornar a matéria-prima básica da fantástica indústria da eletrônica.
Com efeito, é possível dizer que, na modernidade, os avanços nas ciências têm permi-
tido produzir riquezas em escala impensável para os alquimistas, enquanto o elixir da
longa vida vem sendo ministrado, ainda que gota a gota, pelas ciências médicas e pelos
estudiosos da farmacologia e da fisiologia humana e animal, além das ciências agrícolas
que tornaram a alimentação abundante para substancial parte da humanidade. O fato é
que ao longo do último século, a expectativa de vida dobrou e, sobretudo nas socieda-
des mais afluentes, uma pessoa com cinquenta anos de idade é ainda considerado jo-
vem e apto a manter a maioria dos hábitos e o modo de vida de alguém com a metade
de sua idade. Na realidade, em toda parte onde a ciência tem avançado transformando-
se em medicamentos, em cirurgias cada vez mais complexas e em alimentação farta, a
longevidade tem avançado a ponto de tornar-se até um problema social e econômico.
Em países como a Alemanha, a França, os Estados Unidos e até mesmo em algumas

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sociedades emergentes, a substancial elevação da expectativa de vida nas últimas déca-
das tem produzido acalorados debates sobre os custos da concessão de aposentadorias
e de outras formas de previdência social para uma população que permanece cada vez
mais tempo na condição de aposentado. Ou seja, embora não tenha sido possível atin-
gir literalmente os intentos dos alquimistas, em muitos aspectos, pode-se dizer que os
cientistas foram muito além em suas conquistas do que o alquimista mais otimista po-
deria ter imaginado. Além disso, sacerdotes e videntes jamais conseguiram a credibili-
dade e o reconhecimento que o mundo moderno passou a depositar na ciência e nos
cientistas.

Assim, parece bastante natural que o método científico tenha substituído a leitu-
ra dos astros, a interpretação das runas ou a observação das vísceras dos animais. Com
efeito, reis e outros poderosos costumavam tratar astrólogos, profetas e videntes com
alta consideração, mesmo que seus acertos fossem limitados e de difícil compreensão.
A Bíblia, no Livro do Gênesis (37-50), narra a trajetória de José no Egito e sua notável
ascensão em virtude de sua capacidade de interpretar os sonhos do Faraó. Por sua cre-
dibilidade, José torna-se conselheiro do Faraó e autoridade em comando na adminis-
tração das terras do Faraó. Na França do início do século XV, Joana D’Arc ouvia vo-
zes dos céus, de São Miguel e de Santa Catarina, e a credibilidade que inspirava levou
aquela pobre e iletrada camponesa, mal saída da adolescência, a liderar os exércitos da
França em batalhas decisivas que levaram à expulsão dos exércitos ingleses do territó-
rio francês e à coroação do rei Carlos VII no local onde Carlos Magno e São Luís havi-
am sido ungidos com o óleo sagrado.2 O mito de Cassandra mostra a situação oposta.
Pela lei criada pelos próprios deuses, um deus podia dotar um mortal de talentos e de
dons especiais mas, depois de concedidos, esses dons não poderiam ser tomados de
volta. Assim, Apolo ao ser rejeitado, não retira de Cassandra o dom da profecia, mas
retira dela a credibilidade anulando dessa forma a utilidade de sua capacidade de inter-
pretar os sinais que antecipavam o futuro. Ao contrário de José do Egito e de Joana
D’Arc, Cassandra tem suas profecias desacreditadas e seus avisos ignorados, sendo ao
final taxada de louca. Na ciência moderna, por sua vez, apesar de suas incontáveis e até

2Na realidade a cerimônia da coroação de Carlos VII ocorreu em 1429 na nova Catedral de Reims, cuja constru-
ção no formato que hoje conhecemos se iniciara em 1211 e que seria concluída somente três séculos mais tarde.
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extraordinárias realizações, não quer dizer que o problema da credibilidade tenha dei-
xado de existir; apenas assumiu outras formas.

A ciência e o problema da credibilidade

Embora na ciência moderna a previsão seja apenas uma dimensão da pesquisa e


da observação científica, a preocupação com o uso do conhecimento científico para
prever problemas e construir um futuro de prosperidade e de abundância continua tão
viva quanto sempre fora com os videntes e perscrutadores do futuro antes da moder-
nidade. Não há governo que não se preocupe em formular “políticas de ciência e tec-
nologia”, mesmo que seja apenas no discurso, como forma de oferecer alguma satisfa-
ção à sociedade que, instintivamente, aposta no conhecimento científico para construir
seu futuro. Ou seja, nenhum governante em nossos dias ousa desafiar abertamente o
poder da ciência de colocar o conhecimento a serviço de um futuro de progresso e de
prosperidade para as sociedades. Prever desastres naturais e controlar seus efeitos é
apenas uma das preocupações da ciência, na realidade, acredita-se que todo o mundo
futuro, todo o modo de vida no futuro, está irreversível e irremediavelmente associado
ao avanço do conhecimento. Não há sociedade ou governo de país considerado “civili-
zado” que não destine vultosas quantias de recursos em investimentos em áreas do
conhecimento consideradas vitais para o futuro dos negócios, para a melhoria da saúde
pública, para a redução da pobreza, ou para qualquer outro objetivo considerado soci-
almente desejável. Mais recentemente, constatou-se que muitos dos sucessos trouxe-
ram consigo também grandes problemas como novas doenças, poluição, deterioração
da qualidade de vida em áreas metropolitanas, velhice desprovida de propósitos, etc.
Face a essa constatação, a ciência passou a preocupar-se também com a construção de
um “mundo que queremos”, isto é, por meio do emprego do conhecimento, a ciência
deveria redirecionar os padrões e os hábitos de consumo de forma que os indivíduos e
as coletividades, no futuro, vivam melhor e mais de acordo com seu meio ambiente
físico e social.

Apesar da fé quase irrestrita no poder da ciência, o problema da credibilidade


persiste e se manifesta de muitas maneiras; desde a forma de expressar as formulações
científicas, até os métodos utilizados para se obter essas formulações. O problema da
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forma adequada de se expressar uma hipótese, uma descoberta científica, foi bem ilus-
trada na conhecida fábula O Pequeno Príncipe, escrito por Saint-Éxupery, na qual o as-
trônomo turco descobre a existência do minúsculo planeta onde vivia o personagem,
mas é desacreditado no congresso científico em razão das roupas que usava, que eram
típicas de sua cultura, mas inadequadas para o círculo dos “cientistas”. 3 Na fábula, o
cientista é reconhecido quando muda sua roupa, sua aparência, e muda também a for-
ma de expressar sua descoberta atribuindo um nome “científico” ao pequeno planeta.
Isto é, para ter credibilidade, a ciência precisa apresentar-se de forma adequada e ser
expressa de forma “apropriada”.

O problema da credibilidade pode manifestar-se no próprio método científico e,


quando isso ocorre, a preocupação com a credibilidade pode distorcer a própria ciên-
cia. Na Economia, por exemplo, a idéia de transformar a ciência da economia numa
ciência exata, expressa por meio de fórmulas matemáticas, foi uma tentação pratica-
mente irresistível em vista de tantas variáveis do mundo da economia que podem ser
medidas e expressas em quantidades e valores numéricos bastante precisos. No subs-
trato dessa preocupação havia o pressuposto de que eventuais hipóteses a respeito do
crescimento econômico, sobre o temor de um processo inflacionário ou sobre varia-
ções nos níveis de emprego teriam mais credibilidade se fossem expressas em lingua-
gem matemática, em valores precisos e em equações que ligassem causa e efeito de
forma indiscutível. Obviamente, dados numéricos são sempre úteis e a estatística tem
proporcionado ajuda significativa ao aprimoramento da ciência da Economia, a distor-
ção surge quando, na tentativa de restringir as explicações dos fenômenos econômicos
a expressões matemáticas, fatos e desenvolvimentos essenciais que ocorrem na vida das
sociedades são postos de lado por não poderem ser expressos numericamente. Uma
discussão teórica muito interessante das tentativas de restringir a análise econômica a
formulações matemáticas pode ser lida no artigo de Antonio Maria da Silveira intitula-
do ”A indeterminação de Senior”.4 Antonio Maria chamava de “vício ricardinao” à prática
de se construir arquiteturas teóricas bastante sofisticadas, mas construídas sobre um
terreno cheio de incertezas e de imprecisões. Por que algumas sociedades tornam-se
ricas e poderosas enquanto outras fracassam, geralmente mergulhadas em guerras e

3 Antoine de SAINT-ÉXUPERY (1900-1944), O Pequeno Príncipe (1943), cap. IV.


4 Revista de Economia Política, vol. 11, no. 4, Out-dez 1991.
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disputas intermináveis, ou simplesmente em decorrência de políticas ineficazes? Estas
são questões essenciais da economia que têm ocupado a atenção de gestores, dos polí-
ticos e dos analistas e, apesar do amplo conhecimento das teorias econômicas, dos
números e grandezas das economias nacionais e dos valores agregados internacionais,
as respostas oferecidas a essas questões continuam objeto de controvérsias insolúveis.
As incertezas geradas por crises políticas e por guerras são imponderáveis e impossíveis
de serem expressas em equações matemáticas mas sua influência sobre o comporta-
mento das economias é enorme e não pode ser ignorada. Assim, a inevitável pergunta
é: qual a relevância e a confiabilidade de modelos analíticos que excluem fatores como
guerras e crises apenas porque não podem ser quantificados?

A credibilidade das previsões e suas interpretações e reações

A falta de credibilidade de uma profetisa como Cassandra que, apesar de fazer


previsões que se revelavam corretas, era desacreditada, podia ter por origem sua voz ou
sua aparência que, por alguma razão, não inspiravam confiança; ou talvez tivesse ori-
gem na maneira de formular suas previsões, que não convencia. Apolo, ao ser rejeita-
do, pode ter adicionado à beleza de Cassandra algum traço, algum elemento que a tor-
nava uma figura pouco agradável, pouco confiável e até suspeita. Os economistas, na
ânsia de buscar a certeza indiscutível, tentaram transformar a ciência da economia nu-
ma ciência “exata” mas, com isso, retiraram das formulações dessa ciência muitas ocor-
rências e fenômenos essenciais da vida das sociedades como guerras, ideologias e polí-
ticas governamentais, além de fatores culturais que, embora difíceis de serem transfor-
mados em cifras, movem a maioria dos impulsos que orientam e dão sentido ao com-
portamento econômico. Não é incomum legisladores e pensadores sociais falarem de
maneira arrogante, usando palavras pomposas ou desnecessariamente especializadas
provocando o efeito oposto ao desejado. Se forem palavras escritas provocam o desin-
teresse do leitor, se forem ditas de viva voz, tornam-se pedantes e tediosas para os ou-
vintes. Em qualquer caso, ao invés de comover e convencer, essas palavras induzem o
leitor ou o ouvinte a rejeitar ou simplesmente a ignorar suas teses e seus argumentos.

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Na esfera internacional, nos últimos anos a Conferência Mundial do Clima
(COP) tem se realizado regularmente e é muito interessante notar a grande preocupa-
ção com a demonstração “científica” dos problemas climáticos e de suas possíveis con-
sequências. Há uma grande parcela da comunidade científica que tem se dedicado a
estudos geológicos e ambientais e também às relações das variações nos regimes climá-
ticos com as atividades econômicas e sociais, especialmente nos grandes centros urba-
nos e industriais. São estudos e pesquisas importantes, mas que se revelam pouco efi-
cazes como justificativa para que governos e autoridades tomem medidas efetivas com
vistas a promover transformações nos padrões tecnológicos e de consumo. A principal
razão, na realidade, não se situa numa possível controvérsia a respeito da confiabilidade
dos dados apresentados pelos cientistas em relatórios do IPCC.5 Hoje, praticamente
esse tipo de controvérsia desapareceu, prevalecendo a percepção de que há, efetiva-
mente, um processo de aquecimento global em curso e que a ação humana é o princi-
pal fator responsável pelo processo. Talvez o debate tenha praticamente desaparecido
não tanto em razão da força das hipóteses e dos argumentos científicos, mas muito
mais em virtude do fato de que, mesmo aqueles que continuam céticos em relação às
manifestações dos cientistas do clima, não deixam de reconhecer que o mal uso dos
recursos naturais tem produzido enormes desperdícios e que muitas das práticas cor-
rentes têm deteriorado a qualidade de vida em muitos aspectos e em muitas regiões,
especialmente nos grandes centros urbanos. A explicação mais plausível para a pouca
eficácia dos avisos sobre mudança climática parece situar-se no fato de que as questões
relacionadas ao meio ambiente e às mudanças climáticas exibem um tipo muito especi-
al de mal comum que costuma assolar as políticas governamentais: a indiferença em
relação a questões de longo prazo.

Em outras palavras, mesmo que os trabalhos realizados pelos cientistas do clima


sejam admitidos como hipóteses cientificamente comprovadas, esse fato não tem im-
pedido que as medidas propostas nas Conferências do Clima sejam consideradas de
baixa prioridade ou simplesmente postergadas diante de demandas mais imediatas. Be-

5 O IPCC é uma organização de base científica criada pela ONU em 1988 numa iniciativa conjunta do Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM) com o
objetivo de sintetizar e divulgar os conhecimentos mais recentes sobre as mudanças climáticas que hoje afetam o
mundo. O IPCC não produz pesquisa original, mas reúne e resume conhecimentos produzidos por cientistas de
alto nível independentes, mas reconhecidos por governos.
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nefícios de longo prazo, mesmo quando reconhecidamente valiosos, costumam desper-
tar muito menos interesse do que medidas que produzem resultados imediatos. Tor-
nam-se ainda menos atraentes quando significam restringir atividades que, no presente,
trazem lucros, confortos e bem estar para certos grupos ou pior, para a sociedade co-
mo um todo, em troca de um futuro cujos benefícios se afiguram difusos, distribuídos
por todo o planeta e até incertos sob alguns aspectos.

Do ponto de vista teórico, Mancur Olson formulou um paradoxo que ficou as-
sociado ao seu nome – o “paradoxo de Olson” – e que pode ajudar a compreender o
fenômeno. Olson refere-se à dificuldade que atinge diretamente os bens públicos:
quanto maior o número e mais generalizado o interesse das pessoas por uma causa,
menor será o número de pessoas dispostas a implementar essa causa.6 Olson dá o e-
xemplo da ação dos sindicatos nos EUA que, em várias ocasiões, precisaram recorrer a
“piquetes”, muitas vezes usando de ações violentas, para realizar greves por aumento
de salários. Um aumento de salários é algo que beneficia a todos os trabalhadores e,
justamente por essa razão, cada trabalhador, observa Olson, tenderá a ficar à espera de
que alguém arrisque perder o pagamento pelos dias parados, e até o próprio emprego
numa greve para conseguir um aumento salarial que, afinal, beneficiará a todos, mesmo
àqueles que nada arriscaram. Esse comportamento de “carona” se aplicaria de forma
provavelmente ainda mais aguda em questões envolvendo a promoção de bens públi-
cos de alcance tão amplo como é o caso do aquecimento global. As medidas requeridas
implicam esforços, custos e perdas diferenciadas em favor de um benefício futuro cu-
jos ganhos mais significativos não serão auferidos necessariamente por aqueles que
mais tenham contribuído com a causa. As pessoas podem estar convencidas de que
conter o aquecimento global é algo que trará benefícios a todos, mas há sempre uma
demanda mais imediata a ser atendida e um sentimento de que outros deveriam estar se
esforçando mais e despendendo mais recursos por essa causa. Os governantes, por sua
vez, estarão sempre mais sensíveis a demandas mais imediatas como a redução do de-
semprego, o aumento das exportações ou, provavelmente, muito mais sensíveis ainda a
medidas que favoreçam sua própria popularidade com vistas a uma possível reeleição.
Além disso, notícias ruins costumam ser mal recebidas e seus portadores tendem a ser
vistos com desconfiança e rejeição. O mito de Cassandra diz que seus vaticínios a res-
6 Mancur OLSON, The Logic of Collective Action. Public Goods and Theory of Groups. Harvard University Press, 1965.
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peito dos destinos de Tróia foram desacreditados, mas talvez não seja despropositado
pensar que os troianos ouviram e compreenderam muito bem as profecias de Cassan-
dra mas, após dez anos de guerra e de sofrimento, e diante da aparente retirada dos
gregos, seus anseios por uma noite de celebração eram demasiado intensos para optar
pela vigília e pela continência.

Francis Bacon, em sua reflexão sobre o mito de Cassandra, aponta ainda outra
ordem de dificuldade com que as profecias e, hoje, as previsões tidas como científicas,
se deparam: frequentemente os conselhos, sobretudo os que prenunciam problemas,
não são recebidos com a racionalidade e a boa vontade que se espera. 7 Pessoas francas
e sensatas – argumenta Bacon – embora possam dar conselhos sábios e oportunos, por
mais que se esforcem, dificilmente conseguem persuadir. Ao contrário, infelizmente,
com frequência provocam rejeição e até apressam sua ruína. Bacon encerra sua refle-
xão lembrando o caso de Catão Uticense que previu o esfacelamento e a queda de sua
querida Roma após a tirania de César e, com isso, teria até apressado as calamidades
políticas que levariam Roma ao declínio irreversível. Bacon cita a carta escrita por Cíce-
ro a um amigo referindo-se a esse fracassado conselho de Catão: “Cato optime sentit, sed
nocet interdum reipublicae: loquitur enim tanquam in republica Platonis, non tanquamin faece
Romuli”.8

Revisão/Dezembro/2016

7 Francis BACON, A Sabedoria dos Antigos. Editora UNESP, 2002 (pp. 23-4)
8 “Catão tem ideias sensatas, mas às vezes prejudica o Estado ao arengar como se estivesse na República de Pla-
tão e não na latrina de Rômulo” (idem, p. 24).
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