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ARTIGO ARTICLE 1041

A doença mental feminina em Porto Alegre,


Rio Grande do Sul, Brasil (1870-1910)

Mental illness in women in Porto Alegre,


Rio Grande do Sul, Brazil (1870-1910)

Cristiane Teresinha de Deus Virgili Vasconcellos 1,2


Silvio José Lemos Vasconcellos 3,4

Abstract Introdução

1 Amigos da Memória do The relationship between female gender and Este artigo procura descrever como as mulhe-
Hospital São Pedro, Porto
Alegre, Brasil. mental illness is complex, remaining largely a res consideradas loucas eram identificadas e
2 Oficina de Criatividade product of women’s social situation as daugh- tratadas no período de 1870 até 1910, na cidade
Nise da Silveira, Hospital
ters, wives, and mothers. The main objective of de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, bem
Psiquiátrico São Pedro,
Porto Alegre, Brasil. this article is to discuss the historical aspects como apresentar os fatores considerados desen-
3 Universidade Federal related to mental illness in women in Porto cadeantes desse quadro. O estudo mostra-se re-
do Rio Grande do Sul,
Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, from 1870 to levante pelo fato de não haver, em termos histó-
Porto Alegre, Brasil.
4 Faculdades de Taquara, 1910. The authors consulted records from sev- ricos, uma quantidade significativa de pesquisas
Taquara, Brasil. eral so-called insane asylums as well as periodi- contemplando esse assunto na cidade de Porto
cal articles published during the period. These Alegre, no momento histórico aludido, existindo
Correspondência
C. T. D. V. Vasconcellos documents provide good insight into how psy- ainda uma notória escassez de fontes que ofere-
Amigos da Memória do chiatrists and lay society interpreted mental dis- çam uma descrição mais ampla relacionada ao
Hospital São Pedro.
Av. Protasio Alves 770,
orders in women. The research contributes to an tópico. Acreditamos, também, que esta pesquisa
apto. 33, Porto Alegre, RS understanding of the historical issues related to possui caráter importante para a compreensão
90410-004, Brasil. diagnosis of mental illness and the implications do assunto, que, por sua vez, não só beneficiará o
cvirgili@pop.com.br
for current practice. estudo do passado, mas também promoverá uma
melhor análise do presente em relação à mulher
Mental Health; Women’s Health; History of portadora de sofrimento psíquico e à forma co-
Medicine mo nós a enxergamos hoje. O trabalho irá con-
tribuir, desse modo, para as disciplinas ligadas à
saúde pública e à problemática em questão.
As fontes primárias utilizadas para esta pes-
quisa foram a imprensa escrita do período, os
relatórios da Santa Casa, os processos-crime e as
papeletas do Hospício São Pedro (o atual nome
da instituição é Hospital Psiquiátrico São Pedro,
portanto, quando nos referirmos à instituição
no presente, é esse o nome que será utilizado;
quando a referência for no momento históri-
co pesquisado, será chamado de Hospício São

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Pedro, pois foi esse o nome recebido em 1884, ano de Porto Alegre naquele período, bem como uma
de sua fundação). Conforme destaca Hischumül- pesquisa sobre os diagnósticos encontrados nas
ler 1, em diferentes contextos, observa-se uma fontes primárias, levando-se em consideração o
maior dificuldade em efetuar estudos de caso com que eles significavam e a qual alienista estavam
base nessas mesmas fontes. Não podemos deixar ligados.
de considerar que essas fontes primárias são ins- Desse modo, analisamos um conjunto de
trumentos utilizados prioritariamente pelo dis- vários olhares sobre a mulher tida como louca.
curso masculino vigente na época. Sabemos que O primeiro refere-se à comunidade e à família a
cada jornal possuía uma vertente política ideoló- que pertencia, as quais, diante da percepção da
gica, mas não nos detivemos nesse fato, já explo- alienação dessa mulher, pedem a sua interna-
rado por outros autores, como Petersem 2, o qual ção. Esses dados foram obtidos por intermédio
demonstrou, por intermédio de sua pesquisa, que das cartas contidas em algumas papeletas. Um
mesmo os jornais socialistas divulgavam uma segundo olhar refere-se ao jornal que relata o ato
imagem da mulher semelhante à divulgada pelos de “loucura” por ela cometido ou simplesmente
demais jornais. Resultado com o qual concorda- descreve a sua chegada à cidade. Por último, o
mos, pois, nos mais diversos periódicos, encon- olhar do médico, que verifica se ela realmente
tramos a mesma visão a respeito da mulher, mes- sofre de alienação mental, fornecendo o diagnós-
mo quando se tentava, de certa forma, encobrir tico e o tratamento.
essa posição. A imprensa propagou idéias, emi- Esta pesquisa está ligada ao cotidiano, aos
tiu opiniões e, em virtude da forma como retrava jornais, ao assunto loucura e mulher, temas an-
“a mulher louca”, criou uma imagem para esta. tes considerados marginais na história, mas ho-
Salienta-se que a pesquisa nos prontuários je já tendo décadas de pesquisa em diferentes
médicos (papeletas) foi precedida de uma autori- vertentes teóricas. Acreditamos que a história
zação formalizada pelo Comitê de Ética em Pes- cultural é a que nos possibilita maior liberdade
quisa do Hospital Psiquiátrico São Pedro a partir de ação em relação às fronteiras. Em outras pa-
do protocolo no. 00.005, estando adequada, ética lavras, realizamos uma pesquisa histórica, mas
e metodologicamente, às Diretrizes e Normas Re- dialogamos com a Antropologia, com diferentes
gulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres ciências voltadas para o psiquismo humano e
Humanos (Resolução no. 196/96 do Conselho Na- com as demais áreas afins. Conforme Chartier 3
cional de Saúde) e às Resoluções Normativas do (p. 16-7): “A história cultural, tal como a entende-
Comitê em Ética em Pesquisa do Hospital Psiqui- mos, tem por principal objecto identificar o modo
átrico São Pedro. Por motivos éticos, buscamos como em diferentes lugares e momentos uma de-
preservar o anonimato dos pacientes, colocando terminada realidade social é construída, pensada,
somente as iniciais dos seus nomes, incluindo dada a ler”.
os já relatados em publicações. Procuramos pre- O marco temporal foi escolhido por acredi-
servar, na transcrição das fontes primárias, a or- tarmos que esses quarenta anos foram a primeira
tografia do período e os erros de impressão ou fase da “consolidação” de um saber especializado
ortográficos, em face da importância relativa à sobre a loucura nessa cidade. Os pedidos para a
precisão dessas fontes, pois traduzem a forma de construção do hospício, a inauguração, a aboli-
expressão de uma época e de um lugar. ção da escravatura em 1884 mediante a presta-
A coleta nas fontes primárias foi iniciada pe- ção de serviços, a transição da monarquia para a
los jornais em 1999, buscando-se, num primeiro república, a Revolução Federalista no Rio Grande
momento, todas as pautas referentes ao assunto. do Sul (1893-1895), a fundação da Faculdade de
No ano de 2000, foram pesquisadas sete caixas Medicina em 1898 (nessa capital) e a formatura
contendo papeletas e documentos referentes aos de sua primeira turma em 1904. Nessa virada de
pacientes internados no Hospício São Pedro en- século, Porto Alegre é revitalizada, recebendo os
tre 1884-1910. Tais caixas não estavam comple- ares da modernidade 4. O limite é 1910, ano em
tamente organizadas em relação às datas; nelas, que as irmãs da Congregação de São José inicia-
encontraram-se poucos dados sobre os pacien- ram suas atividades relacionadas ao cuidado das
tes e, na maioria das vezes, não existia uma ex- pacientes. Acreditamos ser essa uma nova fase,
plicação para a internação. Por sua vez, encon- visto que a responsável, Madre Fraçois de Sales,
trou-se, nos jornais, a justificativa da internação vinda da França, havia recebido a formação de
de vários indivíduos e, quando havia relato de enfermeira no Hospital de Bourg-Saint-Mauri-
crimes, procedeu-se a uma coleta adicional nos ce, aperfeiçoando-se em Bourg-em-Bresse, local
processos-crime. Em relação à análise, buscou- em que adquiriu conhecimentos especiais para o
se averiguar a procedência e o nível social e eco- cuidado de alienados (Necrológios das Irmãs da
nômico das mulheres citadas, realizando-se uma Congregação de São José; s.d.).
comparação com a situação histórica da cidade

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Aspectos históricos do tratamento da os estragos causados por tais internos. O “asylo


doença mental em Porto Alegre no de alienados da Santa Casa” é assim descrito no
período que precedeu a construção do relatório de 1873 (p. 10): “Os pavimentos baixos
Hospício São Pedro deste edifício, únicos em que se póde collocar os
loucos mais furiosos, são xadrezes escuros, frios e
Quando se pretende estudar sobre o tema lou- humidos, são verdadeiras masmorras, mais pró-
cura, é fundamental a leitura do livro História da prias por certo para fazer perder o juízo a quem o
Loucura na Idade Clássica, de Foucault 5, uma tiver do que para nellas recuperal”.
vez que se trata de um marco para a compreen- “Ao ver-se esses infelizes sepultados nessas hu-
são desse tema, fazendo-nos refletir e modificar mildes e sombrias enxovias parece que a sociedade
o próprio enfrentamento sobre o assunto, que não quer cural os mem mesmo atenuar-lhes os
até então era tido como “tabu”. Para o citado au- seus soffrimentos, e sim que considera um crime a
tor, cada época possui uma forma “estruturada sua desgraça e que os quer punir com isso” (Rela-
de experiência” que comanda a ordem tanto dos tório de 1873; p. 10).
discursos, quanto das práticas, além da própria Um caso que corrobora a afirmação de Picci-
ordem institucional. De acordo com Foucault 5, ninni 6 e a respectiva alusão ao fato de que os do-
para Descartes o louco está impossibilitado de entes eram mantidos em cárcere privado encon-
exercer a capacidade de pensar, justamente por tra-se no Processo Crime no. 2.789 de B. P. de Q. de
causa da sua insanidade mental, ou seja, é o mo- 1874. Há, no citado documento, um relato explí-
mento em que a razão exclui a loucura, e esse cito quanto ao fato de que a mulher em questão
gesto é simultâneo ao confinamento dos loucos. havia fugido da reclusão, quando assassinou um
Assim, o corte entre a razão e a desrazão é apenas escravo. Não podendo ser considerada crimino-
uma expressão institucional do que está ocorren- sa, o ato foi tido como improcedente. Assim, o
do. A história da irracionalidade deve estar den- promotor público escreve: “... advertindo mais,
tro das mesmas fronteiras que a história da razão, que no caso de ter de conservar-se a alienada em
pois são cúmplices. Para Foucault, a Psiquiatria é poder da familia, que se tomem as cautelas neces-
apenas o monólogo da razão sobre a loucura e, sarias, afim de evitar a repercução de fatos idênti-
em sua referida obra, realizou uma arqueologia cos” (Processo Crime no. 2.789; p. 33).
do silêncio que foi imposto à segunda. Quando Constam, nesse mesmo processo, alguns tes-
Pinel, em seu ato lendário, liberta os insanos das temunhos proferidos por diferentes indivíduos,
correntes, é pelo fato de que agora, através de nos quais se afirma que a mulher sofria das facul-
uma organizada nosologia, elas não serão mais dades mentais, estando reclusa em um quarto,
necessárias, pois as palavras passam a permitir conforme se pode ler na seqüência: “B. P. de Q.,
um outro tipo de aprisionamento 5. que disem soffrer de alienação mental, evadiu-se
O tratamento da doença mental sempre abar- da prisão em que se achava, fasendo grande baru-
cou inúmeras particularidades e súbitas mudan- lho; e conseguindo perpetrou um assassinato na
ças vinculadas a questões de época e lugar. Antes pessoa de M., escravo de C.” (Processo Crime no.
da fundação do Hospício São Pedro, os indivídu- 2.789; p. 2).
os considerados doentes mentais eram recolhi- “... a morte do dito escravo foi commettida
dos à Santa Casa de Misericórdia, bem como à em um accesso de loucura, depois de arrombar a
cadeia pública. Conforme assinala Piccininni 6 prissão que se achava” (Processo Crime no. 2.789;
(p. 96): “Os doentes mentais eram recolhidos às p. 47).
prisões, mantidos em cárcere privado no fundo Observa-se que a loucura era visualizada por
das fazendas ou recolhidos pela caridade pública leigos e aceita como um olhar legítimo pelas au-
aos porões da Santa Casa de Misericórdia”. toridades. Tal postura irá, então, mudar gradu-
No que se refere às condições em que os pa- almente, até a chegada de um período no qual
cientes eram mantidos na Santa Casa, revela-se apenas um saber especializado é capaz decifrá-
ilustrativa uma leitura de um relatório (Relatório la. No entanto, esse caminho mostrou-se longo,
do provedor da Santa Casa de Misericórdia da especificamente no Rio Grande do Sul, local on-
capital da Província do Rio Grande do Sul: José de a medicina consolidou-se apenas na década
Antonio Coelho Junior. Porto Alegre: Arquivo de 1940 7.
Histórico da Santa Casa de Misericórdia de Por- De acordo com o provedor da época, não
to Alegre; 1873), no qual constam afirmações de existiam, entretanto, condições de tratamento
que, no passado, o número de alienados na Santa para pessoas que perderam a razão. Em piores
Casa era insignificante, mas que havia crescido condições, estavam os alienados que eram en-
muito num período recente. Destaca-se tam- viados à cadeia.
bém, nesse mesmo relatório, a afirmação de que “Que tratamento podem ter na cadêa civil es-
não era pequena a despesa para manter e reparar ses desventurados, que não seja ainda peior do

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que o que podem ter neste estabelecimento?! E há mento, era fato sabido que as mulheres aliena-
de continuar uma sociedade chistã e civilizada, das davam muito mais trabalho que os homens.
a collocar aquelles que perderam a razão , mui- Apesar disso, porém, quem fez o regulamento do
tas vezes por injustiças da própria sociedade, nas Hospício São Pedro criou dois lugares para en-
mesmas condições em que colloca o malvado e o fermeiros e apenas um para enfermeira, sendo
criminoso” (Relatório de 1873; p. 6). esta menos remunerada que os homens. Obser-
Em 1874, mais uma vez, o provedor salienta vamos, dessa forma, que a visão sobre a loucura
a importância de um asilo de alienados. Relata a feminina diferenciava-se daquela que recaía so-
existência de alienados vagando soltos na socie- bre a masculina, considerando-se, ainda, que a
dade e que “a imprensa de quando em quando re- doente dava maior trabalho e que a enfermeira,
gistra crimes horríveis por elles praticados” (Rela- isto é, a mulher sadia que tinha o dever de cuidar
tório do provedor da Santa Casa de Misericórdia da paciente, trabalhava por um valor inferior ao
da capital da Província do Rio Grande do Sul: José valor comumente pago aos homens.
Antonio Coelho Junior. Porto Alegre: Santa Casa Salienta-se que o século XIX é conhecido co-
de Misericórdia de Porto Alegre, 1874; p. 10); em mo o século dos manicômios, pois nele se multi-
adição, em casas de particulares, há outros que plicaram as teorias a respeito da loucura e a cons-
“ao menor descuido causão grandes desgraças” trução de locais específicos para o tratamento da
(Relatório de 1874; p. 10). doença. Foi, portanto, no manicômio que surgiu
a psiquiatria como especialidade médica.

O Hospício São Pedro


Motivos que a sociedade julgava serem
O Hospício São Pedro, mesmo não estando total- suficientes para uma mulher enlouquecer
mente construído, foi inaugurado com solenida-
de no dia 29 de junho de 1884, sendo transferidos Como bem destaca Canguilhem 8, o comporta-
para lá 14 homens e 11 mulheres da Santa Casa e mento considerado normal pode variar signi-
10 homens e 6 mulheres provenientes da cadeia ficativamente no tempo e no espaço, ou seja, é
pública. um processo histórico que se modifica de cultura
No relatório de 1884 do Dr. Carlos Lisbôa (Re- para cultura. Dessa forma, os motivos que supos-
latório do Hospício São Pedro apresentado ao Ex- tamente explicam o enlouquecimento de uma
mo. Sr. Coronel Joaquim Pedro Salgado, provedor mulher também variam para a sociedade em di-
da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. ferentes épocas. Nesse sentido, descreveremos
Porto Alegre: Arquivo Histórico da Santa Casa não o comportamento anormal, mas as razões
de Misericórdia de Porto Alegre, 1884), constam que supostamente sustentaram tal concepção.
referências ao fato de ainda não haver, nesse pe- Se para muitas “loucuras” não se encontram os
ríodo, uma farmácia, bem como de existir um motivos, exatamente pelo fato de serem “loucu-
limitado número de drogas. Por outro lado, a res- ras”, para outras, eles estão presentes. Certas mu-
peito do tratamento moral apregoado na época, lheres poderiam ter a sua “loucura” desencadea-
Dr. Lisbôa lamentava não poder utilizá-lo com da por uma dor moral muito forte, uma doença
todos os requisitos, tendo em vista que faltavam orgânica, ou por qualquer outra causa. Assim,
recursos para tanto. Destaca-se o fato de o citado tendo por base uma análise mais detalhada das
diretor ressaltar a existência de duas teorias so- papeletas do Hospício São Pedro (Arquivo Públi-
bre a loucura, uma que a considerava como um co do Rio Grande do Sul, caixas 1-7; 1884-1910)
fato de ordem puramente física, cujo tratamento e dos jornais da época, o presente artigo passa-
deveria ser estritamente físico, e outra que afir- rá a explicitar alguns casos elucidativos no que
mava ser a loucura uma perturbação psicológica, diz respeito aos motivos que eram, no período
e só o tratamento moral seria satisfatório. Lisbôa em estudo, concebidos como desencadeantes da
acreditava que a mera utilização de uma sem a própria alienação.
outra nada produziria para a melhora do aliena- Rohden 9 escreve que a mulher era vista como
do; esta só poderia ocorrer com a combinação um ser sempre ligado a sua função reprodutora,
de ambas. A prática desse ecletismo dura trinta e as fases de sua vida, como puberdade, gravidez
anos no Hospício São Pedro, apesar do precoce e menopausa, podiam ser desencadeantes de de-
falecimento do médico. sequilíbrios emocionais. Dessa forma, durante
No mesmo relatório, Lisbôa relata existir uma toda a vida, a mulher seria um ser propício a per-
proporcionalidade no que diz respeito ao núme- turbações mentais, e a menstruação estava em
ro de mulheres e homens e, justamente por isso, destaque nas discussões a respeito desse proble-
queixa-se, pois, de acordo com o seu entendi- ma. Marland 10 destaca, além disso, a relação das
mento, em termos de especificidade do trata- próprias doenças que supostamente atingiriam o

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psiquismo feminino com o ciclo reprodutivo em ternada novamente com o mesmo diagnóstico,
seus diferentes aspectos. vindo a falecer em 20 de janeiro de 1948. Seus
Nas referidas papeletas, é possível encontrar: diagnósticos, no tempo em que esteve internada,
“M. dos S. L., no 2945, 24 anos, casada com M. A. foram de mania aguda, mania crônica, erotismo
de R., brasileira. Admitida provisoriamente em e demência senil.
05/02/1909 e definitivamente em 20/02/1909. Ado- Rohden 9 relata o caso Abel Parente, médico
eceu 15 dias depois do parto. Diagnóstico: ‘Loucu- italiano que clinicou no Rio de Janeiro no final do
ra post-partum-depressão melancólica delirante’. século XIX e início do XX. Médico “de senhoras”,
‘Impressões suicidas levadas pelas idéias deliran- realizava em suas pacientes uma técnica para
tes’. Saiu curada do acesso em 17/06/1910”. impedir a concepção e foi acusado de esteriliza-
“L. M. J., no 3021, 17 anos, casada, branca, bra- dor e responsável pelo enlouquecimento de sua
sileira, admitida provisoriamente em 10/08/1909 paciente M. A. de F. do B.
e definitivamente em 25/08/1909. Diagnóstico de “Afirmam, parentes e amigos que, algum tem-
confusão mental. Saiu curada em 06/01/1910”. po depois das primeiras intervenções, começou a
“Atestamos que D. L. M. J. com 17 anos de idade, paciente a apresentar modificação de caráter, tor-
branca, casada, acha-se soffrendo de uma pychose nando-se tristonha e concentrada, de jovial que
consecutiva a um estado puerperal, necessita, por antes era. Este estado de espírito foi cada vez mais
isso, ser internada no Hospício S. Pedro, afim de se acentuando, de tal forma que, em princípios do
ser convinientemente observada e tratada. Porto mês de novembro, apresentou-se em franco estado
Alegre, 09 de agosto de 1909. Dr. J.”. melancólico. No dia anterior ao da conferência
“A. F., no 1761, 20 anos, diagnóstico de mania teve violenta crise de agitação, acompanhada de
aguda, entrou em 23.03.1901 e saiu curada em delírios eróticos, manifestando atitudes obscenas
24.04.1902 e seguiu para Pelotas a pedido de seus e usando de linguagem incompatível com a sua
familiares. Deu à luz uma criança do sexo femi- educação” 9 (p. 180).
nino no dia 23.04.1901 que foi levada para a Ro- Rohden 9 observa que a falta de razão de M. A.
da do Expostos da Santa Casa de Misericórdia de de F. do B. era evidenciada pela recusa em obede-
Porto Alegre”. cer ao marido e por expressar desejos eróticos, e
Conjeturamos, pois não temos dados para que isso só poderia ter ocorrido (conforme acre-
uma análise conclusiva, que talvez algumas mu- ditavam alguns médicos do período) em virtude
lheres possam ter sido internadas para darem à das intervenções externas, no caso, a supressão
luz longe da sociedade, como podemos observar brusca das regras provocada pelo procedimento
em “M. K., no 2245, 18 anos, solteira, que entrou em médico. A autora também salienta que, quando
25.08.1904 e saiu curada em 25.05.1905” (Papele- uma mulher realizava um comportamento anti-
tas do Hospício São Pedro). No dia 29 de março social, ela não era acusada e, sim, definida como
de 1905, é anotado que ela chegou ao hospício uma vítima ou uma doente, o que retirava dela o
grávida e pariu um menino de parto normal. Ou poder de demonstrar suas insatisfações em rela-
seja, ela “enlouqueceu” ao engravidar e curou-se ção à situação que vivia. Rago 11 lembra que, para
logo após ter a criança. Seu diagnóstico era de Lombroso, a prostituta é uma “louca moral”; lo-
excitação maníaca. go, a mulher normal é aquela com instintos ma-
“S. B. 1.183, vide 494, com 25 anos, solteira, ternais e deserotizada. Foucault 12 afirma que, no
parda, brasileira. Foi admitida em 15/07/1897 e século XIX, desenvolve-se um saber a respeito da
teve alta em 15/09/1898. Seu diagnóstico era de sexualidade. Dessa forma, a sexualidade permiti-
“excitação maníaca remittente”. Alta curada em da é aquela concebida como saudável, higiênica,
15/09/1898. Observação: a doente a quem se refere realizada no casamento, entre quatro paredes e
esta papeleta já esteve neste estabelecimento so- com fins reprodutivos. Em oposição, apresenta-
frendo também de excitação maníaca, q. foi gra- se outra, que é danosa, ilícita e perigosa para a
dativamente cedendo, a proporção q. progredia a saúde, quer física ou mental. Nesse sentido, a
gestação, sob cuja influencia apareceu a moléstia mulher normal é a esposa e mãe; opondo-se a
mental que a trouce a este Hospício, donde afinal ela, está a prostituta. Essa mulher normal tem
sahiu curada em 21 set de 1890, tendo dado en- seu corpo voltado inteiramente para as funções
trada em 11 de junho do mesmo ano (Dr. T. T.)” reprodutoras, sendo esse corpo perturbado por
(Papeletas do Hospício São Pedro). essas mesmas funções 12.
“L. M. B. casada com A. B., branca, brasileira, O sofrimento também era uma razão que po-
profissão serviços domésticos, admissão definitiva deria levar à loucura. Numa das papeletas, en-
em 26/02/1901 teve alta melhorada a pedido do contramos a paciente “M. C. S., Classe: 3o, no 1083,
marido em 08/08/1901” (Papeletas do Hospício internada em: 21/11/1896, tendo em 5/12/1896 al-
São Pedro). Seu diagnóstico era de mania aguda ta a pedido”. Tinha cinqüenta anos, era casada e
e erotismo. Mas, em 19 de março de 1903, é in- de nacionalidade italiana. A requisição para sua

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internação foi emitida pelo desembargador che- Em 1896, o jornal Correio do Povo (1896; 24
fe de polícia. O diagnóstico foi de “lypemania” set; p. 2) noticia que: “Diz-se que enlouqueceu a
e, embora não tenha sido possível encontrar o italiana M. C. S., mãe da menor C., protagonista
motivo de sua loucura e nenhuma descrição his- do caso das Dores. M. C. reside á rua Riachuelo
tórica relativa a sua doença, no livro de Correa 13, no 178, e consta que terça-feira será recolhida ao
verificamos que o motivo para o seu enlouqueci- hospício S. Pedro”. No Arquivo Histórico do Rio
mento era o estupro de uma filha, cometido por Grande do Sul, encontram-se mais detalhes so-
um padre. Tais considerações baseiam-se no que bre o crime (Códices da Polícia, livro 04; p. 51.).
os jornais evidenciam por intermédio dos arti- Observando que existiam padrões para o
gos transcritos. Alude-se a um motivo justificá- comportamento feminino e para o masculino,
vel, uma vez que o crime cometido por um padre constata-se que o que pode causar o desequilí-
abala a estrutura familiar, e uma mãe zelosa não brio mental de um não é necessariamente o que
consegue suportar. Entendemos que o enlou- vai causar o do outro. A mulher estava circuns-
quecimento dessa mulher enfatiza a crueldade crita ao lar, ao marido e aos filhos; já o homem
cometida, permitindo uma maior culpabilidade deveria sustentar essa família. Isso não significa
não só pelo ato, mas por toda a conseqüência que era o que de fato ocorria, mas sim que era
gerada. Dessa forma, não só o anticlericalismo um padrão de comportamento esperado, pois
apontado por Correa 13 é manifestado, como observamos que as mulheres 14 das classes po-
também a loucura feminina ganha visibilidade. pulares assumiam o papel de provedoras de seu
O ponto para o qual chamamos atenção refere-se grupo, realizando, dessa forma, papéis que eram
ao fato de que tal crime enlouquece uma mulher, masculinos. Mas, se, nas classes populares, isso
ou seja, a mãe. O pai, de outro modo, não en- era compreendido, o mesmo não ocorria com
louquece; é tão-somente desonrado. A mulher é as mais abastadas, que recebiam uma instrução
concebida como frágil, e a sua natureza é afetiva adequada para o seu papel de esposa e de mãe
e passiva. De acordo com tal concepção, não se educadora dos filhos, mas como alguém que não
estranha que a dor do acontecido a desestruture. deveria trilhar os caminhos intelectuais devido
Acrescentamos, também, o fato de que ela, como ao seu frágil cérebro que acabaria por sofrer gra-
mãe, é vista como a responsável pela preserva- ves perturbações mentais.
ção da virgindade de sua filha. Apesar de o jornal Um bom exemplo, nesse sentido, diz respeito
Correio do Povo (1896; 27 set: p. 1) noticiar que aos jornais da época, nos quais se podem encon-
o exame médico legal não constatou seu “deflo- trar determinadas características e qualidades
ramento”, consta em suas páginas que “embora relativas ao que era esperado de uma mulher.
virgem, embora pura, embora innocente, quem Para um homem, a ruína nos negócios era um
ahi a quereria para esposa?”. motivo justificado para o seu enlouquecimento,
Segundo Correa 13, no jornal A Gazetinha de uma vez que ele era visto como o pai de família, o
25 de julho de 1896, consta a denúncia de um provedor responsável pelo meio externo. No que
estupro cometido por um padre contra uma me- se refere à mulher, entretanto, a loucura é justifi-
nina de 11 anos, C. S. Em 11 de outubro de 1896, é cada pela dor de perder um filho, já que ser mãe
publicado nesse periódico: “É em nome da moral era o fim último de uma mulher.
social, senhores da justiça - toda a inexorabilidade Dessa forma, a causa da loucura aludida
na punição do miserável roupeta que estuprou a no jornal cuja transcrição é apresentada na se-
pobrezinha C. S. A perdição de uma criança, a lou- qüência encontra legitimidade com base nos pa-
cura de uma desgraçada mãe, o súplicio avérnico péis atribuídos aos sexos. Embora os casos nar-
da desonra de um pai, o infortúnio de uma famí- rados não tivessem acontecido em Porto Alegre,
lia, tudo isso afinal deve mover a inclemência da os jornais que os noticiaram eram dessa cidade,
justiça contra quem o causou” 13 (p. 56). exercendo, assim, influência na forma como era
No dia 26 de novembro 1896, no mesmo concebida a insanidade nesse contexto. No Jor-
jornal (A Gazetinha), temos o artigo A Louca: nal Mercantil (1884; 4 ago; p. 2), lemos o artigo
“Quando crente de que estava preparando uma “Louca de dor. O tristissimo caso que segue ocor-
esposa digna de qualquer homem honrado e reu em Buenos Aires. M. T. C. é uma pobre jovem
escrupuloso em pontos de moralidade, se lhe italiana, de 28 annos de idade, que há poucos me-
destrói essa esperança tão razoável, tão simples zes ficou viúva, sendo mãe de dous meninos, um
e tão natural. (...) A desonra de uma criança e de 10 annos de idade e outro de um ...”. O menino
quiçá o nome de uma família inteira, a loucura de dez anos adoeceu e acabou por falecer no hos-
da progenitora daquela, eis o que foi o resultado pital: “O enfermeiro lhe respondeu seccamente: -
da entrega de uma consciência infantil, por meio ‘o ocupante d’este numero falleceu esta noite’. A
dos embustes das sacristias, a um Dom Juam de pobre mãi não disse uma palavra: estreitou con-
Batina” 13 (p. 55). vulsivamente o outro filho que levava nos braços,

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DOENÇA MENTAL FEMININA EM PORTO ALEGRE 1047

passou um olhar desvairado pela sala e deu uma de fundo hysterico, de forma (...), com intervalos
sonora gargalhada. Estava louca! Innuteis foram lúcidos de duração variável, apresentando recru-
os promptos auxílios que lhe prestou o medico de descencias bruscas e transitorias, nestes intervalos,
serviço no hospital. T. passou successivamente do o que é comum a esta forma de loucura. Julgamos
riso ao desespero e d’este á manifestação da mais assim de imprecindivel necessidade a internação
acerba dor: arrancava os cabellos e intentava ba- desta senhora no hospício de Porto Alegre, pois que
ter a cabeça contra as paredes. Com muito custo se só o isolamento completo ou relativo, lhe poderá
pôde tirar o menino que tinha nos braços, do qual proporcionar restabelecimento completo ou rela-
apertava com tal força que por pouco o afogou. tivo, das faculdades mentais. Bagé 14 de janeiro de
A policia, como era de seu dever, interveio n’este 1909. (R. V. S. Doutor em ciências medico cirúrgico
lamentável incidente, tomando a si a louca, em pela faculdade do Rio de Janeiro)” (Papeletas do
quem devia affectuar-se o reconhecimento medico Hospício São Pedro). Observação: Essa paciente
legal de pratica, e procedeu á indagação do ocorri- foi internada 12 vezes, de 1909 até 1946. Seu pri-
do. A policia, também chamou o menino que a po- meiro diagnóstico foi de “loucura hysterica” e o
bre mãi trazia nos braços no momento de perder a último de “psicose maníaco-depressiva”.
razão em occasião de supremo desespero”. “Attesto que a Srt.a M. da G. M. B., branca,
Dezesseis dias após essa noticia, na mesma solteira, 28 annos de idade, natural desta capi-
imprensa escrita, outro relato sobre um “enlou- tal, profissão domestica, residente á rua Demetrio
quecimento”, dessa vez o de um homem. Infe- Ribeiro no 57, está soffrendo de moléstia mental
re-se que a manifestação da doença mental era pela qual necessita isolamento e tratamento em
algo que devia ser transmitido aos leitores, afinal estabelecimento especial. Chefatura de polícia. Dr.
o Hospício São Pedro havia sido inaugurado há C. P. 20/11/1907. Obs. Diagnóstico ‘loucura hyste-
menos de um mês e era importante que perce- rica’, saiu curada em 16/03/1908” (Papeletas do
bessem o quando essa doença estava presente. Hospício São Pedro).
“Louco por quebrar. Constava na corte, por te- No século XIX, segundo Foucault 12, acontece
legramma recebido de S. Paulo, que enlouquecera a histerização da mulher, pois ela estava ligada
em Santos, o negociante S. Q., sócio da importante ao seu corpo de uma forma diferente do homem,
casa daquella praça S. Q. e V. informaram de que estava presa a sua condição reprodutora. Salienta
esse desastre fora devido a transacções de café, em Venâncio 16 (p. 296): “O corpo feminino aparecia
que elle tivera prejuízo calculado em 1,600 con- como mais permeável à histeria do que o orga-
tos” (Jornal Mercantil 1884; 20 ago; p. 2). nismo masculino, considerando-se inclusive sua
maior predisposição em fases específicas como
puberdade, gravidez e menopausa”.
Motivos que justificavam a internação Foucault 17 lembra, ainda, que Esquirol pos-
tulava que os loucos deveriam ficar isolados, já
Quando a sociedade não encontra referencial que somente dessa forma seria possível a realiza-
simbólico que justifique a atitude de um de seus ção de um tratamento adequado. Suas justifica-
membros e este não consegue manter-se dentro tivas baseiam-se principalmente em: viabilizar a
dos padrões de normalidade de sua comunida- segurança do doente e de sua família; libertá-lo
de, esta tende a vê-lo como alienado. Quando de influências externas; vencer as resistências
alguém sai do padrão estabelecido e realiza ati- pessoais do insano; submetê-lo à força a um re-
tudes descabidas, tornando-se incapaz de ser gime médico; impor-lhe novos hábitos morais e
normativo, pode verdadeiramente ser definido intelectuais.
como louco: “Una definición perfectamente cor- “Certificado medico: Eu abaixo assignado Me-
recta de uma persona loca es que ésta se conduzca dico Cirúrgico formado pela Faculdade de Pádua
de uma forma no predecible, dejendo de hacer lo (Itália) attesto que a Colona O. F. de 29 annos de
que la sociedade espera de ella” 15 (p. 67). idade esta affecta de mania de perseguição em
Nesses termos, constata-se que a internação alto grau, accompanhada com allucinações men-
normalmente era realizada a pedido da própria taes de forma delirantes. A dita demente torna-se
família ou da comunidade que, observando o incompatível de conviver na sociedade, é por isto
desajustamento social de um individuo, pedia a de imprescindível necessidade recolhe-la em um
internação deste a uma autoridade competen- hospício. Dr. O. P. Medico Cirúrgico 04/07/1909”
te. Observa-se, também, que a necessidade de (Papeletas do Hospício São Pedro).
isolamento, tal como é possível ler nos seguintes A agressão que algumas alienadas realizavam
casos, era uma das justificativas para esse ato: também era um fator relevante para o pedido de
“attesto que D. G. B. P. de cor branca, solteira, de seu tratamento.
vinte e quatro anos de idade, natural deste estado “A. dos S. P., 41 anos, portuguesa, casada,
e residente nesta cidade sofre de loucura periódica, branca desta capital, admitida em 30/01/1891

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1048 Vasconcellos CTDV, Vasconcellos SJL

teve alta para assistência em 31/12/1914. Muitas 1896: Acha-se soffrendo das faculdades mentais a
vezes furiosa atira-se contra aos propris filhi- mulher B. A., que se acha recolhida à casa de cor-
nhos com ímpetos de estrangulal-os outra offen- reção desta Capital, solicito-vos a sua admissão
de a moral publica” (Papeletas do Hospício São nesse estabalecimento” (Papeletas do Hospício
Pedro). São Pedro).
“L. P., 35 anos, admitida provisoriamente
em 13/08/1908 e definitivamente em 28/08/1908,
diagnóstico: ‘demencia paranoide. Idéias mysti- Conclusão
cas’, tendo alta por falecimento devido a ‘caquexia
por enterite chonica’ em 04/10/29” (Papeletas do Procuramos mostrar, por intermédio principal-
Hospício São Pedro). mente de fontes primárias, a forma como a lou-
Em carta para o diretor do Hospício São Pe- cura feminina era descrita e ganhava visibilidade
dro, o intendente municipal de Alfredo Chaves nesse contexto. De modo geral, esta pesquisa evi-
escreve: “segue para ser internada no Hospício denciou uma forma distinta de enxergar a mu-
São Pedro em Porto alegre, por conta desta inten- lher considerada “louca” no período estudado,
dencia, a alienada L. P., filha de R. P., com trin- na cidade de Porto Alegre, e, ao mesmo tempo,
ta e seis annos de idade, residente nesta villa de uma forma condizente com uma série de con-
Alfredo Chaves, natural da Itália, branca, casada cepções da época. Este estudo necessita de uma
(abandonada pelo marido) profissão serviços do- continuidade, bem como de uma ampliação.
mésticos. Motivo sua reclusão no hospício repe- Acreditamos que as fontes primárias são o me-
tidas tentativas de incêndio e espanacamento de lhor caminho para uma investigação desse tipo.
crianças encontra à rua” (Papeletas do Hospício Dentre elas, uma escolha que deve ser conside-
São Pedro). rada é a busca pela produção médica da época, o
No jornal A Federação (1896; 23 mar; p. 2), que não foi contemplado em nossa pesquisa.
lemos: “Foi presa B. A., em flagrante, quando, ar- A loucura feminina foi “diagnosticada” tan-
mada de uma faca na Igreja dos Passos, produzin- to por leigos, como por especialistas, e, embo-
do grande alarido entre o povo que la estava, e ter ra hoje possamos não concordar mais com tais
ferido levemente uma preta já idosa, de nome J. da classificações, esse “diagnóstico” mostra-nos um
C.. Segundo informações que temos B. A. sofre de pouco dessa sociedade e a forma como ela mani-
alienação mental”. festou-se diante de uma problemática específica.
No Hospício São Pedro, encontramos relatos “A História deve buscar a compreensão de como as
sobre uma paciente com o mesmo nome (pro- percepções acerca do estar no mundo mudaram
vavelmente a mesma referida no jornal) que foi e, para tanto, não tem como deixar de reconhecer
internada no dia 2 de abril de 1896; tinha qua- que não trabalha com o estanque, pois remete-se
renta anos presumíveis, era solteira, 4a classe, ou exatamente ao mais dinâmico” 18 (p. 500). O olhar
seja pobre. Seu diagnóstico foi de megalomania que a sociedade dirigia para a alienada mental
e faleceu no mesmo ano, no dia 22 de julho, de era, portanto, condizente com o momento histó-
tuberculose pulmonar. O requerimento para in- rico, assim como o olhar que hoje lançamos para
ternação, como podemos ler, era da chefatura esses mesmos trabalhos demonstra ser concor-
de polícia: “Cheffatura de Policia 27 de março de dante com nossas concepções presentes.

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Resumo Colaboradores

A relação entre mulher e loucura é complexa. Remete- C. T. D. V. Vasconcellos realizou a pesquisa nas fontes
nos amplamente à situação social das mulheres como primárias e elaborou texto, assim como a pesquisa bi-
filhas, esposas e mães. O principal objetivo deste arti- bliográfica. S. J. L. Vasconcellos participou de uma parte
go é discutir os aspectos históricos relacionados à in- da pesquisa bibliográfica, bem como da elaboração e
sanidade das mulheres na cidade de Porto Alegre, Rio revisão final do texto.
Grande do Sul, Brasil (1870-1910). Os autores consul-
taram um grande número de registros hospitalares e
artigos de jornais publicados no período mencionado.
Esses documentos fornecem uma boa compreensão da
forma como os alienistas e membros da sociedade em
geral interpretaram a doença mental nas mulheres.
A pesquisa contribui para a compreensão da questão
histórica relativa ao diagnóstico da doença mental,
bem como de suas implicações para as práticas atuais.

Saúde Mental; Saúde da Mulher; História da Medicina

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