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Carta para Riobaldo (Cesar Sanson)

No Dia do Cerrado, a assessora do ISA Nurit Bensusan reflete sobre os descaminhos da savana mais rica em
biodiversidade do mundo em um texto poético endereçado a um dos maiores personagens da literatura brasileira.
O artigo é de Nurit Bensusan, bióloga, especialista em biodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA), publicado
por Instituto Socioambiental - Isa, 11-09-2019.

Eis o artigo.

O Cerrado é um bioma único: savana com a maior diversidade de árvores do planeta, lar de
muitas espécies que só existem aqui, encontro das nascentes de importantes bacias hidrográficas, casa
de povo e comunidades com rica cultura e lugar de paisagens ímpares. Eis aqui a minha experiência
única, nesse bioma único, como comemoração do dia do Cerrado, 11 de setembro.
Caminhei no sertão de Riobaldo e de Diadorim… andei pelo Cerrado com outros olhos, vi nas
paisagens modificadas, um sertão que não é mais infinito, mas que guarda o infinito dentro de si… De
lá, trouxe uma carta:

Riobaldo,

Mire e veja. Eu digo, o mundo mudou muito desde suas andanças pelo grande
sertão, mas viver continua perigoso. O sertão segue sendo um mundo, mas meio que não é
mais… O Urucúia, rio de seu amor, mingua e o bom peixe novo, que sempre se comia,
pescado fácil, está sumido. O Urucúia talvez não esteja mais sempre, ele corre ainda, mas
morre ao mesmo tempo. A Vereda Morta não é mais um nome e sim uma regra. Os buritis
rareiam e mal reviram suas altas palmas. Por toda parte, há areia, onde havia água.
Como em outras épocas, agora talvez ainda mais, são muitos os fazendeiros-mor,
sujeitos da terra definitiva, com todo poder do seu lado, e os jagunços e o povo não
passam de ser muito provisórios. Onde o mundo era vazio, só boi e campo, se tornou ainda
mais vazio, só soja, pastagens degradadas e veneno… muito veneno.
Veneno nos campos, nas comidas que vão ser, veneno nas cabeças, mal servidas ao
Demo, mas bem servidas aos patrões. Disserto assim, pois, em conformidade não é possível
estar. Adiantou, não canso de me perguntar, lutarmos com tanta coragem e destemor,
contra aqueles judas, para vingar nosso chefe e sem medo, desjagunçar e descansar
acreditando que nosso dever, tínhamos cumprido? E deixar o Grande Sertão, com suas
verdes veredas, seus campos verdejantes e seus mais belos pássaros nas mãos de judas
ainda mais traiçoeiros? Hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber
o que sabia…
Em nossos sonhos mais duros, em nossas ilusões sobre as cidades grandes, nada
imaginamos como esse futuro para o Sertão. Gente mais pobre, cidades cheias de beiradas
escorrendo sertanejos de outrora. Seu medo do homem humano tinha razão de ser.
Homem humano que destrói querendo fazer de tudo que é diverso, uma coisa igual. A
jagunçagem e as guerras dos bandos mimetizadas na cidade, a vida que nada vale, sem
coragem, nem sonho.
A travessia dos tempos, com suas encruzilhadas, não deixa duvidar, o Diabo não
existe pois sua maldade nem bem espelha a do homem humano. Esse, sim, se multiplica
em Hermógenes, naqueles em cujo mal floresce, frutifica e apodrece a alma. Esse mal
viceja na planta da soja, prenhe de um veneno de morte, no fim dos campos do sertão e no
mundo vazio de gente e cheio de bois.
Pensávamos que quem guerreava era o bicho e não o homem, mas agora desconfio
que bicho nenhum guerreia como homem humano. Bicho nenhum destrói, aniquila,
desfaz, elimina, extermina, arruina dessa maneira.
Tem trechos que a vida amolece a gente tanto que resta ser atropelado pelo tempo
liso, sem ter onde pegar, sem onde sequer se pode pendurar uma muda de roupa ou uma
esperança descolorida. Em um mundo que é o sertão e num sertão que é o mundo, mas
onde nada mais é, onde fica a coragem? E se o sertão não é mais, o mundo tampouco será?
As cartas demoravam a chegar de um lugar a outro no sertão, hoje tudo é mais
rápido. Melhor seria? Não sei, cada dia é um dia, carece não de alisar o tempo… Essa
demorou quase cem anos para ser escrita… mas quando o amor é muito, coração nem é
meio destino e sim destino e meio.
Sua D.
...
Riobaldo é o personagem principal do livro Grande Sertão Veredas, escrito em 1956 por Guimarães Rosa. No
romance, Riobaldo relembra as andanças dos bandos de jagunços pelo sertão – o Cerrado, e reflete sobre os medos,
o amor e o destino das pessoas e do sertão. A mistura de uma linguagem experimental com os temas regionais
resultou numa das obras mais importantes e inovadoras da literatura brasileira. Para um bioma único, uma obra
única.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/592525-carta-para-riobaldo

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