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DISCUTINDO PEDAGOGIAS CULTURAIS E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO

Joanalira Corpes Magalhães

A instituição escolar é tida, pela maioria d@s profissionais da educação,


como o espaço privilegiado no qual a pedagogia e o currículo estão presentes.
Entretanto, é necessário estar atent@s para os outros espaços que estão
funcionando como produtores de saberes, conhecimentos, formas de pensar e
agir. Nesse sentido, as diversas pedagogias culturais – revistas, programas de TV,
vídeos, propagandas, mídia, entres outros – vêm produzindo “[...] um certo corpo
de conhecimentos [...]” (SILVA, 2004, p. 140), interpelando os sujeitos,
(re)afirmando práticas e identidades hegemônicas. Neste texto, analiso revistas
que têm funcionado como um currículo cultural, nas quais as identidades de
gênero são constituídas e o conhecimento é produzido e legitimado por um saber
científico. Para tanto, utilizo-me dos campos teóricos dos Estudos Culturais1, pelo
viés de suas vertentes pós-estruturalistas.
Na perspectiva cultural, as pedagogias, enquanto processos sociais que
ensinam, estendem-se a todos aqueles espaços sociais implicados na produção e
no intercâmbio de significados (RIBEIRO, 2002). O conceito de pedagogia cultural
procura ampliar a noção de educação para além da escolar. O termo pedagogia
cultural supõe que a educação ocorra

numa variedade de áreas sociais, incluindo, mas não se limitando


à escolar. Áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é
organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas,
jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros,
esportes, etc. (STEINBERG, 2001, p.14).

Assim como a educação, as outras instâncias culturais – mídia, família,


religião, revistas, entre outras – também têm uma pedagogia, também transmitem
algo (SILVA, 2004, p. 139), ensinam conhecimentos, valores e habilidades. Para
Giroux e Maclaren (1995, p. 144), existe pedagogia em qualquer lugar onde o

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Os Estudos Culturais constituem-se em um campo de teorização, investigação e intervenção que
estuda os aspectos culturais da sociedade, que têm sua origem a partir da fundação do Centro de
Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra, em 1964.
conhecimento é produzido, em qualquer lugar em que existe a possibilidade de
traduzir a experiência e construir “verdades”, mesmo que essas “verdades”
pareçam irremediavelmente redundantes, superficiais e próximas ao lugar comum.
Segundo Ribeiro (2002), as pedagogias culturais que ensinam tipos de
pensamento e de ações em relação a si, as/aos outr@s e ao mundo estendem-se
a diferentes práticas que, ao produzirem e compartilharem determinados
significados, ensinam configurando tipos particulares de identidades e de
subjetividades. Tais pedagogias culturais produzem valores e saberes, regulam
condutas e modos de ser, fabricam identidades e representações e constituem
certas relações de poder2, entre outras coisas (SABAT, 2001).
Cabe salientar o entendimento de representação que trago neste texto.
Representação, na perspectiva dos Estudos Culturais – nas vertentes pós-
estruturalistas – é entendida como um modo de produzir significados na cultura
através da linguagem. Conforme destaca Silva,

a representação é um sistema de significação. [...] na


representação está envolvida uma relação entre um significado
(conceito, idéia) e um significante (uma inscrição, uma marca
material: som letra, imagem, sinais manuais). Nessa formulação,
não é necessário remeter-se à existência de um referente (a
“coisa” em si): as “coisas” só entram num sistema de significação
no momento em que lhes são atribuídas um significado. (2003, p.
35)

Dessa perspectiva, ao analisarmos algumas pedagogias culturais


destinadas ao público jovem, como a revista Capricho, vamos perceber como
essas, através de sua rede de discursos e representações, vão constituindo as
identidades e subjetividades desses sujeitos.
Nessa revista, na edição de agosto de 2007, existe uma reportagem
intitulada “Os meninos têm mais neurônios que as meninas?”, publicada na seção
“Alguém me explica – garotos”. A reportagem mostra as explicações e teorias
formuladas pelas neurociências e neuropsicologia quanto às questões

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Utilizo poder numa perspectiva foucaultiana, ou seja, como uma relação de ações sobre ações –
algo que se exerce, que se efetua e funciona em rede. Nessa rede, os indivíduos não só circulam,
mas estão em posição de exercer o poder e de sofrer sua ação e, conseqüentemente, de resistir a
ele (FOUCAULT, 2006).
relacionadas às diferenças na anatomia e fisiologia do cérebro de meninas e
meninos.
O texto começa respondendo a pergunta que intitula a reportagem. A
resposta é afirmativa, ou seja, meninos possuem mais neurônios que as meninas.
Ressalta que os garotos “[...] têm o cérebro 3% maior [...] e, por isso, têm mais
neurônios” e que as garotas são beneficiadas por terem “[...] mais fibras que
conectam o lado direito e esquerdo” (FATURETO e MORAES, 2007, p. 90).
Segundo as autoras, isso explicaria as habilidades específicas de cada sexo.
Destaco abaixo fragmentos e imagens de tal reportagem. Analiso texto e
imagem, pois a relação entre esses elementos torna-se importante, na medida em
que eles são indissociáveis na (re)produção de representações culturais (SABAT,
2001).

Cérebro masculino:

Garotos têm desenvolvimento precoce


do lado direito do cérebro, responsável
pelo processamento de imagens. Por
isso, têm melhor desempenho em jogos
de tabuleiro e videogames. Porém, por
terem menos conexões cerebrais que as
meninas, eles normalmente são menos
atentos que elas.

Cérebro feminino:

Nós temos mais conexões cerebrais!


Essa rede mais ampla permite que o
nosso cérebro lide com as
informações de maneira mais
abrangente. E é por isso que até a
adolescência as mulheres têm a
linguagem mais desenvolvida, falam
e se expressam melhor e tiram
melhores notas no colégio.

Ao analisar tal matéria, percebe-se algumas representações de gênero


presentes na sociedade e o quanto o discurso posto aí é marcado pela linguagem
científica e biológica, para apontar, determinar e justificar as diferentes aptidões,
habilidades e comportamentos entre meninas e meninos.
Destaco, também, uma outra imagem, que
aparece ao final da reportagem. No balão está escrita a
seguinte frase: “Placar: 2 X 2. Apesar do time
desfalcado, as meninas empatam o jogo!!!!”. Com a
expressão “time desfalcado”, as autoras pretendem
enfatizar a questão das meninas possuírem menos
neurônios, o que as tornariam intelectualmente
inferiores. Outro aspecto que me chamou muita atenção foi que essa figura parece
ser a de uma professora, condizendo com o discurso apresentado no quadro
acima, onde se coloca que as meninas “tiram as melhores notas no colégio” e que
os meninos “são menos atentos”.
Em um outro artigo, publicado na revista de divulgação científica Viver,
Mente e Cérebro (2007), também são colocadas algumas questões referentes ao
diferente desempenho escolar de meninas e meninos, e como a ciência e a
psicologia vêm tratando dessas questões.

Alguns professores criam os próprios modelos de bom e mau


aluno: caderno limpo e caprichado é coisa de menina; já material
desorganizado e sujo é de menino. [...] Nas meninas, a apatia,
costuma ser interpretada como submissão; nos meninos, como
desleixo. (CAVALCANTI, 2007, p. 64-65).

Esses dois exemplos possibilitam observar que tanto em uma revista para
o público adolescente, como a Capricho, quanto uma revista que tem como
leitor@s alvos pessoas inseridas ou interessadas nesse campo de estudos
(neurociências) – Viver, Mente e Cérebro – apresentam discursos construídos pela
linguagem biológica e marcados pela autoridade da ciência, tendo, com isso, sua
legitimidade dificilmente questionada. Esses discursos vêm mostrando as
diferenças entre meninas e meninos relacionadas ao funcionamento do cérebro de
ambos, focando nesse órgão a origem das distinções/diferenciações entre os
gêneros.
Cabe salientar que entendo os gêneros como construções sócio-históricas
produzidas sobre as características biológicas (LOURO, 2000), produto e efeito de
relações de poder, incluindo os processos que produzem, distinguem e separam
os corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade (MEYER, 2003). Contudo, ao
enfatizar o caráter construído dos gêneros não estou negando a materialidade
biológica dos corpos, mas sim busco problematizar as representações que se
apóiam nas características biológicas para justificar diferenças, desigualdades e
posicionamentos sociais.
Os discursos científicos presentes nessas pedagogias sugerem que o
gênero encontra-se inscrito na anatomia do sujeito, numa determinada região do
cérebro, pré-existindo uma normalização na conduta de meninos e meninas
(MEYER, 2003). Espera-se, então, que essas “marcas naturais” expressem a
subjetividade e a identidade dos indivíduos. Ribeiro e Soares (2007, p. 27)
destacam que

em cada sociedade, o ser "menino" ou "menina", é transmitido às


crianças desde o nascimento, pelas práticas culturais
estabelecidas num primeiro momento pela família e depois pelas
diferentes instâncias sociais como a escola, a igreja, o clube, a
mídia. Instituem-se aí, as estereotipias de gênero [...]. Meninos são
fortes, jogam bola, usam roupa azul. Meninas são carinhosas,
brincam de casinha, de boneca, usam roupa rosa, por exemplo.

(Re)afirmando as diferenças entre os gêneros, tais pedagogias culturais –


como exemplo as revistas aqui mencionadas – fazem um investimento reiteirando
identidades e práticas hegemônicas enquanto subordinam, negam ou recusam
outras identidades e práticas através de seus discursos e representações
(LOURO, 2001). Esses discursos, marcados pelo determinismo3 biológico,
pretendem mostrar, de forma naturalizada, as preferências, aptidões, habilidades,
e comportamentos de cada gênero, como se essas fossem características
oriundas somente do corpo biológico e dadas a priori. Para Louro (1998), na

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Segundo Silva (2000, p. 39), determinismo é a “tendência a atribuir um peso e um grau
exagerados à determinação que um certo fenômeno exerce sobre outro. Dependendo de qual fator
se considera determinante, pode-se falar em determinismo biológico, determinismo econômico,
determinismo tecnológico etc.”
medida em que o conceito de gênero afirma o caráter social do feminino e do
masculino, pretende-se afastar as proposições essencialistas. A ótica fica dirigida
para um processo, para uma construção, e não para algo como dado a priori.
Essas pedagogias culturais interpelam os sujeitos, (re)afirmam as
diferenças entre os gêneros. Segundo Silva (2004), embora não tenham o objetivo
explícito de ensinar, elas acabam transmitindo uma variedade de formas de
conhecimentos. Ensinam modos de ser uma ou um adolescente, ou seja, tais
pedagogias também têm um currículo. Tal como o currículo escolar, o chamado
currículo cultural contém um conhecimento organizado em torno de relações de
poder, de regulação e controle (SABAT, 2001). Ainda que não sejam, de maneira
geral, reconhecidas como tais, as pedagogias culturais são importantes na
formação das identidades e subjetividades dos sujeitos.
Conforme destaca Silva,

revoluções nos sistemas de informação e comunicação, [...],


tornam cada vez mais problemáticas as separações e distinções
entre o conhecimento cotidiano, o conhecimento da cultura e o
conhecimento escolar. É essa permeabilidade que é enfatizada
pela perspectiva dos Estudos Culturais. A teoria curricular crítica
vê tanto a indústria cultural quanto o currículo escolar como
artefatos culturais – sistemas de significação implicados na
produção de identidades e subjetividades, no contexto de relações
de poder. (2004, p. 141-142)

Cabe salientar que, neste texto, também pretendi discutir e problematizar


as chamadas interpretações biológicas como “invenções”, como construções
históricas, portanto, humanas e contingentes, que são produzidas a partir dos
“próprios fatos”, já imersos em teorias, com valores já carregados de teoria
(HARAWAY, 1991). Ou seja, pretendi mostrar que os conhecimentos científicos
produzidos sobre as diferenças entre mulheres e homens são culturalmente
construídos, carregados de valores, significados e representações que estão
presentes em nossa sociedade.
Referências Bibliográficas:

CAVALCANTI, Laura Battaglia Pires. Na sala de aula. Viver Mente & Cérebro
Scientific American, São Paulo, n. 10, p. 62-67, edição especial 2007.

FATURETO, Fernanda; MORAES, Rebeca de. Os meninos têm mais neurônios


que as meninas? Revista Capricho. n. 1025, p. 90, agos, 2007.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

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Lopes; NECKEL, Jane Felipe, GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo,
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RIBEIRO, Paula Regina Costa. Inscrevendo a sexualidade: discursos e


práticas de professoras das séries iniciais do ensino fundamental. 2002. 126
f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas: Bioquímica)
Instituto de Ciências Básicas da Saúde. Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2002.

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STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Jon (Orgs.). Cultura infantil: a construção
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