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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Bevilaqua, C. (2013). Espécies invasoras e fronteiras nacionais: uma reflexão sobre


limites do estado.​ Revista Anthropológicas, 24(1): 103-123

RESENHA CRÍTICA

Jéssica Nunes da Silva

O presente trabalho tem por objetivo sintetizar de forma crítica, o artigo intitulado
“​Espécies invasoras e fronteiras nacionais: uma reflexão sobre limites do estado”, ​escrito
pela Profa. Dra. Ciméa Barbato Bevilaqua e publicado na Revista Anthropológicas1, ano 17
(v.24), 2013. Partindo de uma análise da relação entre o Estado e a circulação de seres vivos
não-humanos, através de recursos como políticas voltadas para regulação e controle, a autora
propõe uma reflexão sobre os efeitos desta circulação - e com ênfase ao papel das “espécies
exóticas invasoras” - para os próprios limites (geopolíticos e jurídicos) e fronteiras dos
estados nacionais.
A hipótese de Bevilaqua (2013) é a de que o caráter de resistência e/ou rebeldia
verificado nos fluxos de mobilidade - muitas vezes indesejada - destas espécies “invasoras”,
irá interpelar os limites dos estados, concreta e discursivamente. Esta hipótese se converte
também em uma provocação por parte da autora, ao refletir no que se segue, sobre o fato de
que a circulação das espécies exóticas “invasoras” acaba também compondo mapas e limites
geopolíticos que irão atravessar e entrar em conflito com aqueles já pré-estabelecidos pelas
fronteiras dos estados nacionais modernos.
A partir desta relação entre as espécies invasoras e as fronteiras nacionais, Bevilaqua
(2013) é propositiva ao possibilitar a reflexão sobre questões como: a formulação de políticas

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​Disponível em: <​https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaanthropologicas/article/view/23791/19416​>
públicas voltadas ao controle e regulação da circulação de espécies não-humanas entre as
fronteiras nacionais; e através disto, as diversas categorias de classificação pelas quais são
denominadas, agrupadas e “rotuladas” estas espécies; os possíveis diálogos (ou a inexistência
de tais) entre estas políticas e a própria ciência; dentre outros aspectos a serem detalhados a
seguir.
O primeiro argumento a ser destacado no texto diz respeito ao chamado “gradiente”
que irá distinguir as formas pelas quais pode se caracterizar a circulação de seres vivos
não-humanos, frente às instituições estatais. Este gradiente é composto por: animais de
companhia (em um extremo), espécies silvestres migratórias (no extremo oposto, e
considerando seus padrões de deslocamento transnacionais), e o trânsito das espécies
“exóticas invasoras”. Dedicando-se ao terceiro elemento - as espécies ​invasoras​, a autora irá
caracterizar a mobilidade destas espécies e seus efeitos, como estando “imperfeitamente
adequado” ao gradiente de distinção. Isto porque nas duas extremidades do mesmo, podemos
verificar deliberações legais específicas.
No caso dos animais de companhia, cuja mobilidade estará condicionada pelos
trajetos de seus “donos”, haverão diretrizes legais e regulamentações específicas consideradas
até mesmo análogas às aplicáveis aos seres humanos - tais como variações do Passaporte,
vacinas e dispositivos de identificação - pautadas por acordos e relações diplomáticas entre os
países envolvidos. No caso das espécies migratórias, há a variável de que estas não poderiam
ser vinculadas originalmente a nenhum território específico, o que acaba suscitando a
necessidades de acordos internacionais e convergência de regulamentações legais que
assegurem a proteção destas espécies e até mesmo o controle destas rotas migratórias entre
fronteiras nacionais, de modo a evitar problemas. Por fim, o trânsito das espécies “exóticas
invasoras”, não poderia ser tão simplesmente delimitado, regulamentado ou controlado. Seja
pela impossibilidade de prever sua periodicidade, e até mesmo pelo fato de que a ocorrência
destas espécies pode se configurar simultaneamente “como legal e ilegal, dependente e
independente da ação humana, previsível e imprevisível, ocasional e permanente”
(BEVILAQUA, 2013, p. 108).
Em um segundo momento, serão discutidas as Políticas classificatórias através das
quais é entendida, categorizada e até mesmo enquadrada a multiplicidade de espécies que
conhecemos. Para a autora, as categorias de classificação nas quais são inseridas estas
espécies, irão adquirir diferentes pesos morais, que podem determinar as formas de gestão a
serem aplicadas às mesmas (temos por exemplo, as espécies classificadas como ​ameaçadas,
que irão acumular uma série de diretrizes legais voltadas à sua preservação). Neste ponto,
será trazido o conceito de ​espécie exótica invasora, descrito pela autora segundo o que consta
no ​Programa Global de Espécies Invasoras (GISP - Global Invasive Species Programme,
elaborado em 1997). Conforme o artigo, inversamente à espécies ​nativas​, haveriam também
aquelas que “introduzidas fora da sua área de distribuição regular são definidas como exóticas
(ou não-nativas), e consideradas invasoras quando causam danos a ecossistemas, habitats ou
outras espécies” (BEVILAQUA, 2013, p. 109).
Aqui aparece também o conceito de introdução​, que está diretamente associado à ação
humana. Uma espécie exótica, ao ser introduzida de maneira intencional ou não-intencional,
poderá ser considerada invasora ao causar desequilíbrios ou danos ao ambiente no qual está
se inserindo. Esta não-intencionalidade (traduzida em: espécies ‘transportadas’
acidentalmente em bagagens, água do lastro de navios, etc), irá servir de base para a refletir
sobre a hipótese central do texto. E se constitui também, como sendo o elemento que irá
desequilibrar a agência dos estados sobre as espécies consideradas invasoras; a autora
menciona nesse mesmo viés, a inspiração militar presente no termo ​invasora​, para designar
algo ou alguém que ingressa sem permissão em determinado território.
No que se segue, serão trabalhadas as políticas, normativas e regulamentações que
tratam das espécies invasoras​. Traçando um breve panorama histórico e fazendo uma revisão
de alguns dos principais documentos e diretrizes internacionais neste campo, Bevilaqua
(2013) acaba por verificar uma série de lacunas e contradições entre a formulação e aplicação
das mesmas. O crescente fluxo de pessoas e mercadorias entre fronteiras nacionais, têm
propiciado consideravelmente a ocorrência de espécies invasoras, de modo que ainda se
mostram insuficientes as técnicas jurídicas empregadas para sanar este “problema”. Uma das
questões principais neste sentido é a dificuldade de comunicação entre os estados e o caráter
fragmentário destas resoluções, visto que em cada jurisdição serão desenvolvidas
determinadas diretrizes, sempre divergentes - em consonância com o fato de que uma espécie
pode ser ao mesmo tempo ​nativa ​e ​exótica, dependendo do território no qual estiver
ocorrendo.
Desde os anos 50, segundo a autora, têm sido priorizados os acordos e consensos na
formulação destes documentos entre países, modificando-se também o seu caráter: de
preocupações consideradas sanitárias, para aspectos que priorizam os impactos ambientais
decorrentes destes fluxos. Mas destaca, enquanto principal viés para a análise dos problemas
referentes a estas normas
a ambiguidade inerente a essas iniciativas regulatórias, uma vez que a
introdução não intencional de espécies invasoras ​ocorre exatamente pelas
mesmas vias que sustentam a circulação intencional, autorizada e desejável
de pessoas, animais e bens através das fronteiras físicas dos estados.
(BEVILAQUA, 2013, p. 113).

Ainda em se tratando de ambiguidades e ineficiências, são apresentadas também


algumas da variáveis envolvendo conflitos entre as normas ambientai e comerciais. Visto que
a circulação de mercadorias é uma das formas mais comuns pelas quais ocorre a incidência de
espécies ​invasoras​. Concluindo, a autora sintetiza, apontando para a necessidade de
reconhecer que “a própria normatividade estatal encontra limites ao pretender controlar e
conter os movimentos indesejáveis de certas categorias de seres vivos” (BEVILAQUA, 2013,
p. 117).
Ao final, são apresentados três pontos importantes para possibilitar reflexões futuras
sobre o tema. Em um primeiro eixo, a autora elucida a problemática referente ao
pertencimento e noções relativas a espaços e territórios originários como sendo, grande
medida, a base para a formulação das produções normativas estatais. Segundo ela
se é preciso supor que cada espécie pertence a um espaço particular para que
ela possa se tornar invasora alhures, também é preciso supor que não são
apenas espécies, ​mas também estados, que cruzam as fronteiras uns dos
outros. ​(BEVILAQUA, 2013, p. 117).

E neste ponto deve-se ressaltar o fato de uma espécie exótica passar a ser classificada
como invasora, no momento em que move-se de seu ​país de origem​, e ​invade outro país. ​A
autora dialoga também com Leirner (2012), ao apontar a já mencionada inspiração militar
presente no termo ​invasora​, remetendo a um inimigo que invade o seu território; e ao propor
uma quebra na perspectiva antagonista entre o político e o doméstico. Esta quebra se traduz
na proposta de compreender o “ que o político ​é domesticação”(BEVILAQUA, 2013, p. 118),
na medida em o próprio estado se constituiria enquanto um processo “sempre incompleto e
ambíguo”, e cita Leirner (2012), ao descrevê-lo como “um esforço incessante de digerir o
natural, o exterior, o inimigo”.
O segundo eixo diz respeito à prerrogativa da estabilidade, que norteia grande parte
das diretrizes legais trabalhadas ao longo do texto. Ou seja, estas se baseiam em noções que
compreendem as espécies e suas interações, enquanto “conjuntos estáveis e discerníveis por
seus atributos respectivos” (BEVILAQUA, 2013, p. 119), sendo que na prática, esta
estabilidade idealizada não pode ser verificada. Neste ponto, o debate sobre a hibridização
destas espécies, faz muito sentido.
Ao final, temos o terceiro eixo, que trata da dinâmica própria, autônoma e muitas
vezes imprevisível da circulação de seres vivos não-humanos. Esta dinâmica, ainda que
muitas vezes condicionada ou relacionada à agência humana, prova-se autônoma e dotada de
variáveis que não estão circunscritas nos limites geopolíticos e regulatórios estatais. Aqui,
propõe-se justamente a reflexão sobre as formas de delimitação dos espaços, que segundo a
autora, acabam por ser excludentes em muitos aspectos.
As contribuições da autora são bastante interessantes, especialmente do ponto de vista
reflexivo. Ao conceituar alguns dos pontos-chave para a compreensão da temática trabalhada,
provoca e nos motiva a empreender em algumas quebras teórico-metodológicas no que diz
respeito às políticas da natureza - suas formulações, trajetórias e correlações. O caráter quase
que introdutório do artigo, acaba tornando didáticas suas colaborações, ainda que seja
necessário um maior aprofundamento o tema, para ser possível uma perspectiva mais crítica a
respeito.
O debate sobre a relação entre o ​doméstico e o ​político, por exemplo, é um destes
aspectos que poderiam até mesmo, serem aprofundados no próprio artigo. Pois ainda que
esteja clara a ideia de quebra, ao conceituar que “o político ​é domesticação” (p. 118), à
medida em que os trajetos de circulação destas espécies invasoras ​se inscrevem ​nestes
percursos legalizados, normatizados e (por consequência desta análise) domesticados, um
maior aprofundamento neste tópico em específico, poderia situar de forma mais completa a
reflexão trazida pelo Eixo 1.
Seguindo, temos que um dos pontos mais interessantes abordados pela autora, é a
possibilidade de relacionar e sobrepôr as fronteiras traçadas geopolítica e juridicamente, com
os trajetos e percursos das espécies ​invasoras ​através dos diferentes territórios pelos quais
circulam. Esta relação possibilita refletir sob outro prisma, a respeito de como estas fronteiras
e delimitações territoriais são traçadas, seus limites e outras possibilidades de interpretação.
Em termos práticos, a dificuldade estaria em equacionar tais perspectivas, sem invalidar
como um todo a ação do estado em termos de organização social.
Ainda que esteja nítida ao longo do texto a insuficiência por parte das diretrizes e
normas legais, ao tentar exercer controle sobre as rotas e ocorrências das espécies invasoras
(isso se explica, certa medida, com as concepções da autora ao concluir suas elucidações nos
três eixos reflexivos), fica evidente também, a necessidade de diálogos transversais na
elaboração destas políticas, entre estado e ciência, pautados por uma perspectiva menos
determinista sobre a natureza. Os problemas decorrentes da circulação de espécies invasoras
podem ser verificados de forma prática, visto que pode causar danos à biodiversidade e
impactos ambientais. A questão poderia estar centrada em equacionar ações preventivas,
acompanhamento e pesquisa, à noções noções menos estáticas sobre uma suposta estabilidade
ideal destes sistemas. Esta é, certamente, uma das contribuições mais instigantes do artigo de
Bevilaqua.

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