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à esq - Luciano
* Dourtor em Teoria da Literatura pela Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
-PUCRS. e-mail: robertocarlosribeiro@bol.com.br
Letras & Letras, Uberlândia 23 (1) 145-159, jan./jun. 2007
o seu caminho parecia sem volta. A partir do já famoso texto de Hans Robert
Jauss, A história da literatura como provocação à teoria literária (1967), a
história da literatura começou a se questionar e a procurar soluções para os
seus problemas.
Era preciso soltar as margens que até então encapsulavam a história
da literatura na camisa-de-força chamada positivismo. A partir do ensaio de
Jauss, a disciplina em questão passou a ter um sopro de vida, pelo menos do
ponto de vista acadêmico, com a estética da recepção nos anos 1970. De
outro lado, a nova história que provém dos historiadores que pertenceram àÉcole des annales –
Fevre e Braudel – e outros pesquisadores que se
interessaram pela questão, como Raymond Aron, Paul Veyne, De Certeau.
Grosso modo, todos estavam preocupados com a decadência do prestígio da
disciplina e, ao mesmo tempo, procurando saídas para a continuação dos
estudos historiográficos. Tornou-se necessário desvendar o lugar do historiador
para acabar com a mal usada objetividade da disciplina.
PERKINS, David. História da literatura e narração. Trad. Maria Ângela Aguiar. Porto Alegre:
FALE/PUCRS, 1999.
2 OLINTO, Heidrun Krieger. Interesse e paixões: histórias de literatura. In: ___ (Org.). Histórias
uma identidade característicos de um povo e uma cultura. Agora que tal definição
é questionada, qual seria a relação entre a história da literatura e a sociedade?
O tempo atual é de desconstruir núcleos homogêneos, centrais e únicos e
expor a diversidade formadora de uma sociedade. Para Paulo Franchetti 4, a
função primordial das histórias literárias era definir uma identidade nacional.
Agora que esse discurso foi posto de lado, não restaria nenhum outro objetivo
para a historiografia literária. Segundo o pesquisador, a pulverização ideológica
da unidade em pluridiversidade faz com que as histórias sociais, e das
mentalidades e costumes ocupem o espaço anteriormente preenchido pelas
histórias da literatura.
4 FRANCHETTI, Paulo. História literária: um gênero em crise. In: SEMEAR: Revista da cátedra
o tema, ele relaciona nove textos de origem, mas analisa apenas sete, fazendo
um resumo por alto. No caminho inverso, o texto de João Antônio Andreoni não
é citado na introdução do assunto, mas na análise surge ao lado da obra de
Frei Vicente do Salvador.
Da análise dos textos dos primeiros cronistas-viajantes, sobressaem
algumas características que apontam a relevância do assunto para Bosi. A
literatura de viagens era um gênero copiosamente representado durante o século
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Meio século depois, chega a vez de o Modernismo dar uma nova ênfase
ao motivo, segundo Bosi. Repare que o tema proposto pelo pesquisador de
levar a questão do relato de viagem do século 16 para as obras de Alencar e,
agora para Mário e Oswald de Andrade é puramente temática e visa somente
a figura do índio como remédio nativo para o excesso de cultura estrangeira
misturada nas letras brasileiras. Toda vez que o artista e/ou intelectual se vê
sufocado pelas formas e conteúdos alienígenas, busca rapidamente as raízes
brasílicas, ou seja, o nativo tupiniquim e seu legado oral de mitos e lendas,
incorporados por diversos escritores na cronologia histórica da literatura
brasileira. Vide o próprio Mário de Andrade que, para compor a sua rapsódia,
pesquisou e encontrou no lendário indígena recolhido pelo alemão Koch-
Gruenberg em Von Roraima zum Orinoco a imagem de Macunaíma.
10
PAES, José Paulo; MOISÉS, Massaud. Pequeno dicionário de literatura brasileira. São
Paulo: Cultrix, 1969.
11 Idem, ibidem, p. 436-7.
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Abstract: This article presents a study relating travel literature and the
busy place for them in some histories of brazilian literature. The authors
selected are: Alfredo Bosi, José Guilherme Merquior and Erico Verissimo.
The essay presents, also, an sketch of a possible trip literature history.
Referências bibliográficas
n. 7, 2002.
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Resumo: Embora haja o consenso de que os estudos literários sobre o “Brasil-Colônia” têm dado
passos consideráveis nos últimos anos, são poucas ainda as tentativas de mapeamento mais amplo
da produção recente, com vistas a demarcar e investigar tendências e, outrossim, a assinalar
aspectos eventualmente negligenciados ou insuficientemente explorados pela pesquisa. O propósito
aqui é contribuir nesse sentido, com algumas observações e reflexões acerca do assunto.
Palavras-chave: Estudos literários contemporâneos; “Brasil colonial”.
Abstract: Although it is unanimously recognized the significant advance of recent literary research
into “colonial Brazil”, there are not yet many attempts at surveying the whole array of studies that
have been developed during the last years, in order to identify and to discuss the main critical
trends, and to point out the blanks which still remain unexplored or insufficiently examined by the
experts. The purpose of this article is to sketch such an overview.
Keywords: Brazilian literary studies; “colonial Brazil”.
Um conhecedor do assunto há pouco chamava a atenção para o permanente desafio que o período
colonial tem representado para a inteligência brasileira e, em particular, para os estudos literários no
Brasil [2]. E não custa atinar com os porquês disso. Consideradas por alto a envergadura e a
complexidade do processo histórico que Alfredo Bosi acertadamente denominou de dialética da
colonização, observados de relance todos os meandros do sistema colonial, com os múltiplos nexos
e forças que o estruturam, bem como todas as especificidades da condição colonial, com os vários
conflitos e paradoxos que ela implica, já se faz idéia do longo rol de problemas a solicitar
equacionamento no caso. [3]
Por outro lado, às questões de cunho mais geral somam-se ainda as muitas outras que são
intrínsecas às formações discursivas coloniais, às dinâmicas da linguagem e da cultura, domínio
este no qual o estudioso brasileiro - como também o hispano-americano - tem atualmente de lidar,
conforme o lúcido juízo de Ana Pizarro, com um objeto tão intrincado quanto fugidio,
en donde líneas de desarrollo paralelo y de diferenciaciones leves, así como sistemas que expresan
tiempos culturales diferentes y a veces antagónicos, se articulen no ya en la dirección lineal y
monocultural de la historia literaria tradicional, asentada sobre un único canon de raíz
metropolitana, sino en líneas plurales en relación, en sus complejos movimientos de contacto, en
sus juegos de hegemonías y subalternidades, de paralelismos, de desfases, de rechazos o de
integración. [4]
Não admira perante tal quadro que restem tantas tarefas a cumprir na área de Letras em prol do
conhecimento da época de que tratamos. Este breve artigo tem o propósito de indicar, no que
respeita ao “Brasil-Colônia” [5], algumas dessas tarefas, propondo um primeiro escorço de
possíveis pautas teóricas nas quais inscrevê-las e discuti-las. Conhecendo as particularidades da
esfera de colonização espanhola no continente, o leitor hispanoablante da Espéculo talvez se
disponha a indagar, em um esforço conjunto de reflexão, acerca de temas e problemas de interesse
comum. Uma investigação comparativa da matéria, atenta a toda a gama de confluências e
disparidades em jogo, não será uma das mais importantes empreitadas que continuam à nossa
espera?
Antes de prosseguir, porém, cabe uma ressalva. Pois a afirmação de quanto há por fazer ainda quiçá
leve a supor que se repute pouco o que já foi feito, ou que se enxergue aí, necessariamente,
demérito. De fato, sobretudo em data recente, o que verificamos é bem o contrário. As publicações
vindas a lume nos últimos decênios dão prova expressiva do vigor das pesquisas em curso. A
diversidade de assuntos e de enfoques é inconteste e alvissareira, e a qualidade dos trabalhos muita
vez tem atingido um patamar excepcional. Não parece imprescindível nem sequer viável, aqui,
submeter toda essa produção a escrutínio, mas será ela a rigor o ponto central de referência das
considerações que se seguem.
A vertente que mais se destaca hoje nos estudos literários brasileiros sobre a era colonial guarda
significativa relação com o que certos autores vêm chamando de retorno contemporâneo da retórica
[6]. Na introdução a sua Máquina de gêneros, Alcir Pécora define em termos lapidares a diretriz
básica assumida pelos trabalhos que são representativos dessa tendência em nosso meio: ler os
textos “produzidos entre os séculos XVI e XVIII, a partir do exame de procedimentos previstos e
aplicados pelas convenções letradas em vigência no período em questão.” [7] A ênfase analítica
recai, portanto, no saber tradicional próprio daquele fazer, nas tópicas da inventio, nas operações da
dispositio e da elocutio, nas matrizes e nos modelos das formas de discurso, em suas hierarquias,
seus nexos institucionais e suas condições de performance, em todos aqueles aspectos, em suma,
que a vasta rede conceitual da retórica tão finamente apreende, regula e descreve.
Sugeriu-se ali e acolá que tal enfoque seria ditado por um gosto malsão do prolixo ou, pior ainda,
pelo endosso tácito a um parti pris teórico de feições conservadoras, se não taxativamente
reacionárias. No entanto, descontado o costumeiro lastro de ressentimento no bojo dessas censuras,
não lhes sobra grande coisa deveras consistente. O vocabulário retórico não é mais nem menos
arrevesado do que o de quaisquer outros jargões em uso entre especialistas. E razão nenhuma faz
crer aqui em mero recuo a concepções caducas ou sintoma de nostalgia por elas. Cumpre antes
notar, com John Bender e David Wellbery, que o já mencionado retorno da retórica na
contemporaneidade não é simples reprodução do mesmo; que ele pressupõe isto sim, “through its
very structure as return, an end of rhetoric, a discontinuity within tradition, and an alteration that
renders the second version of rhetoric, its modernist-postmodernist redaction, a new form of
cultural practice and mode of analysis.” [8]
Voltando uma vez mais aos argumentos de Pécora averiguamos assim que, salvo engano, estão
longe de ser retrógradas as premissas epistemológicas do tipo de abordagem crítica ali preconizada.
Não sem um quê de irônica provocação, sua proposta se reclama, em medidas idênticas e
complementares, tanto “historicista” quanto “nominalista”, adjetivos estes nos quais,
previsivelmente, aspas alertam para a conveniência de um entendimento diferenciado. Quanto ao
historicismo reivindicado na Máquina de gêneros, assegure-se desde logo que a exigência de Pécora
tem sobretudo fins profiláticos: trata-se de contrapor, às exorbitâncias de um possível abandono da
dimensão histórica, ou de um trato desavisadamente anacrônico do que é do tempo, a justa demanda
de que a análise se instale no chão irrevogável, conquanto impuro e impermanente, do obrar da
história. Quanto ao nominalismo, deve-se entendê-lo por um lado como um questionamento do que
Pécora designa de onipotência objetiva do contexto; nas palavras do próprio autor, “a ‘realidade’ de
que se pode falar é tão somente a que se compõe ‘junto’ daqueles que falam dela”, não algo
“extern[o] ou transcendente a todo acordo intersubjetivo” [9]. Real e contexto são concebidos nessa
ordem de idéias não como instância objetivamente dada mas, ao contrário, como constructos que
resultam de convenções e práticas determinadas. Tal como os textos, por outro lado, precisamente
nisso consistindo a segunda tese nominalista defendida em Máquina de gêneros.
O que está em causa então, de novo segundo as palavras do próprio autor, é a “crença de que os
diferentes gêneros retórico-poéticos dos [...] textos estudados não são formas em que se vazam
conteúdos externos a elas, mas determinações convencionais e históricas constitutivas dos sentidos
verossímeis de cada um desses textos.”[10] Mais ainda, postula-se no caso
uma semântica do objeto literário que não é ‘reflexo’ de referentes externos de qualquer espécie,
nem ‘representação’ de conteúdos, seres ou substâncias, mas sim operação particular de recursos de
gênero historicamente disponíveis, capazes de produzir certos efeitos de reflexo e representação,
sejam de conteúdos, seres ou substâncias. [11]
A crença e o postulado aí referidos dizem de modo bastante incisivo da novidade da posição crítica
que vamos caracterizando. Ter plena conta do arcabouço retórico-poético das obras com que se lida
porventura parecerá óbvio. No âmbito em que nos movemos, contudo, esse imperativo acarreta uma
problemática específica, pois nos obriga a admitir - como adverte Aron Kibedi Varga a propósito do
classicismo francês [12] - que são numerosos e estreitos os laços entre retórica e poética, que há
mesmo um vínculo de subordinação desta àquela nas letras quinhentistas, seiscentistas e
setecentistas. Ora, ainda em 1970 Kibedi Varga asseverava que
l’esprit moderne répugne à accorder une place aussi centrale à la rhétorique; on l’a trop souvent
décriée - les philosophes depuis l’antiquité, les écrivains surtout depuis le romantisme - pour qu’il
soit facile de la considérer comme la base de toute science littéraire. [13]
No que respeita ao Brasil em particular, Roberto Acízelo de Souza demonstrou, em um estudo
primoroso, que o longo império da eloqüência na cultura letrada nacional chega a termo ao findar o
século XIX [14]; a partir daí a retórica não só é eliminada dos currículos escolares e dos catálogos
editoriais, como em breve acaba presa da irreverência dos modernistas em seu afã de polêmica e
renovação. Acízelo de Souza aventa a interessantíssima hipótese de que a atitude anti-retórica do
modernismo foi em larga medida incorporada por nossa crítica e nossa historiografia literárias [15],
não sem prejuízo, claro está, para a capacidade de compreensão analítica de ambas diante de
escritos e escritores tributários, de uma forma ou de outra, quer dos usos, quer dos abusos da
eloqüência.
A sugestão do autor demanda, escusado talvez acrescentar, uma pesquisa tão extensa quanto
meticulosa. Basta o que ficou dito acima, todavia, para que se avalie com maior justeza o gesto
crítico de um João Adolfo Hansen quando define a poesia do Seiscentos, segundo critérios vigentes
à época seiscentista, como “um estilo, no sentido forte do termo, linguagem estereotipada de
lugares-comuns retórico-poéticos anônimos e repartidos em gêneros e subestilos”; estereotipada
significando no caso, “nem mais nem menos, fortemente regrada por convenções da produção e da
recepção [...] [16]. Ao proceder assim, o autor tinha de haver-se com óbices consideráveis, já que
era preciso não apenas ir de encontro a uma resistência, uma generalizada prevenção anti-retórica,
difusa, mas nem por isso menos tenaz, como também achar remédio para uma falta, resgatando da
dessuetude e do esquecimento a aparelhagem teórica descartada em conseqüência do colapso da
instituição oratória no país.
Acresce a tanto a dura crítica feita por Hansen, em termos bem próximos daqueles empregados por
Alcir Pécora, aos esquemas interpretativos que se configuram em torno das noções de representação
e de expressão, esquemas muito recorrentes, por exemplo, na leitura da sátira atribuída a Gregório
de Matos, não obstante obliterarem “a historicidade da prática satírica”, efetuando-a “como exterior
à sua própria história, ora como ‘reflexo’ realista, ora como ‘ressentimento’ e ‘oposição’ expressivos
[17]. O que se acusa aí, já vemos, é o vezo renitente e insidioso do anacronismo, o dilatamento
impensado do raio de alcance de conceitos de extração pós-ilustrada na compreensão e na valoração
dos produtos de uma cultura pré-iluminista. Em palavras de uma ironia que mal encobre a
acrimônia, Hansen passa em revista num átimo a fortuna crítica do “Boca do Inferno”, toda ela
quase sempre às voltas, no entender do estudioso, com os desafortunados equívocos resultantes da
extemporaneidade das categorias analíticas que a sustentam. Citemos o trecho mencionado:
[...] supostamente autor da obra unificada sob a rubrica de seu nome, [Gregório] é uma
subjetividade toda fel, toda pessimismo e ressentimento, nobreza togada de Goldmann fora do lugar
na Bahia, que não acha posição na aristocracia decadente, nem na ordem mercantil dos arrivistas,
nem na plebe, e a quem sobram em tanta falta, quando não é plágio de Gôngora ou Quevedo, o
revolucionarismo formal contraposto ao reacionarismo obsceno dos conteúdos fidalgos e classistas
com que expressa sua barroca angústia e desengano. [18]
A carapuça decerto serviu a muitos intérpretes e leitores dos versos atribuídos a Gregório de Matos.
Não contente com isso, entretanto, nem com os puxões de orelha aplicados a vários leitores e
intérpretes de Antônio Vieira, Hansen vai além, e indigita ainda as distorções de que costuma
padecer a abordagem do período colonial em nossa historiografia literária. O que o autor questiona
desta vez é a visada teleológica que tenciona buscar o sentido de uma realidade histórica não nesta
realidade mesma, mas na meta última a que presumidamente se destina. Operando “no modo do
ainda-não do Estado nacional”, do “demasiado cedo para o Advento”, subsumindo o colonial a um
“contínuo evolutivo”, os historiadores da nossa literatura passam então a vê-lo, à força de
“projeções retrospectivas”, como lugar de latência da brasilidade, “que se deixa entrever, aqui e ali,
como o Espírito que anda.” [19] A manobra inteira por conseguinte traz fruto duvidoso: o que a
investigação tem propriamente em mira desaparece por entre as miragens finalistas produzidas pela
perspectiva adotada, o passado se apaga em sua especificidade, para tomar viso de necessária
antecipação do que sucederá.
Todas essas reservas a modalidades de leitura de propensões anacrônicas e/ou teleológicas deixam-
se talvez reduzir a um só princípio: a recusa de um olhar que se limite, nas palavras de Ivan
Teixeira, à “busca da identidade do passado com o presente” [20]. Temerosa de homogeneizar o
ontem à imagem e semelhança do hoje, naturalizando o que é histórico, universalizando o particular
e substancializando o que é da ordem da contingência e da convenção, a crítica retórico-poética
elege uma estratégia de
nítida orientação arqueológica, segundo a qual a estrutura, a função e o valor das obras deverão ser
reconstituídos segundo sua ‘normatividade inicial’, como produção cultural específica de sua época,
e não como objetos passivos que se deixam unificar transistoricamente pelo olhar uniformizador do
presente. [21]
Sem embargo da pertinência de suas motivações, nem da importância dos resultados que obteve até
este momento, cumpre ressaltar que o projeto delineado acima suscita uma série de objeções
teóricas. Mencionemos aqui uma ou outra entre elas. Em artigo dedicado à poesia de Cláudio
Manuel da Costa, Ricardo Martins Valle reconhece ser preciso eliminar, na medida do possível, a
interferência de “anacronismos e pressupostos deslocados” [22]. Argumenta porém que a
perspectiva crítica baseada na reconstrução dos parâmetros de época não está isenta de “riscos e
limites”, que “são a constituição e estagnação de um sistema interpretativo fechado, que se restrinja
à reprodução das regras e critérios antigos, suprimindo o lugar histórico do leitor” [23] e excluindo
da leitura seu componente reflexivo. A braços com a problemática - e com as controvérsias - em
torno do barroco, Haroldo de Campos repudia por sua vez o determinismo sociológico da tese “que
liga a obra, irrevogavelmente, a seu público de época, o primeiro público ou ‘público específico’”
[24], enquanto Luiz Costa Lima, enfim, a propósito de um texto do próprio Hansen, faz a seguinte
pergunta: aceitos tais e quais os argumentos deste último, privilegiando um ponto de vista analítico
em estrita conformidade com os referenciais seiscentistas,
não se estará obrigado a subordinar-se a indagação do barroco a uma abordagem historicista? Isto é,
a fechá-lo inexoravelmente em seu próprio tempo, fazendo nosso o trabalho do arqueólogo que
procura reconstituir sua face inexoravelmente arruinada, a priori sabendo que se trata de um corpo
abolido, capaz de interessar apenas enquanto perempto? [25]
Eis aí questões que merecem detido exame e ampla discussão. O viés arqueológico da crítica
retórico-poética é muito bem-vindo por um lado, já que prioriza um esforço de compreensão
conjugado ao reconhecimento da alteridade das letras da colônia, garantindo assim à sua análise e
interpretação um senso mais vivo das distinções. Por outro lado, contudo, o prisma arqueologizante
pode ocasionar conseqüências indesejáveis, que abrangem desde uma espécie de musealização do
acervo letrado dos séculos XVI, XVII e XVIII, posto evidentemente sob a renhida guarda de seus
autoproclamados curadores, até um enganoso menosprezo do agora da iniciativa de leitura [26] a
despeito de ser ele afinal, em suas múltiplas determinações, o fator determinante do horizonte
sempre móvel da recepção e de cada nova interrogação dirigida aos textos.
Repita-se ainda uma vez porém que, apesar dos cabíveis reparos no plano teórico, não é lícito pôr
em dúvida o notável desempenho da crítica de vocação retórico-poética quando face a face com as
obras. O livro de Hansen sobre a sátira seiscentista, o de Pécora sobre o sermão vieiriano, e o de
Ivan Teixeira sobre o neoclassicismo luso-brasileiro [27]- para ficarmos apenas nestes exemplos -,
constituem realizações de primeira grandeza, cuja contribuição ao estudo de seus respectivos temas
foi nada menos que decisiva. E não se deixe de enfatizar o fato de que para além de seu aspecto
pontual, do avanço no domínio específico de cada matéria investigada, essa contribuição também
possui um teor mais geral, dadas as muitas possibilidades do método empregado na investigação e
as vastas regiões franqueadas à pesquisa a partir dos achados daqueles trabalhos. Devemos
observar, aliás, que o dado crítico novo de maior relevância no caso consiste exatamente na
redefinição do conjunto de problemas sob o escrutínio dos estudiosos. Terá ficado claro a esta altura
como colaborou para tal mudança o paradigma de análise retórico-poético. No entanto, não derivam
dele apenas as propostas de reorientação de rumo. Merece registro atento uma intervenção discreta,
mas especialmente significativa, já que procede de um historiador e crítico literário cuja obra tem
balizado boa parte do que empreendemos em nosso perímetro disciplinar.
Prefaciando o livro de Jorge Antonio Ruedas de la Serna, Arcádia: tradição e mudança [28],
Antonio Candido assinala a eventual importância de trabalhos feitos com espírito semelhante “para
o futuro dos estudos literários no Brasil” [29]. Segundo argumenta, ao “demonstrar que o nosso
Arcadismo só pode ser compreendido se pensarmos simultaneamente o caso português”, Ruedas de
la Serna decerto foi
beneficiado pela sua condição de mexicano, que o livrou dos resquícios de nacionalismo romântico
brasileiro, deixando-o perceber claramente a inserção das manifestações literárias locais num
contexto mais amplo. A sua posição é transnacional, afinada portanto com o ritmo do nosso tempo e
capaz de superar barreiras, alargando ao mesmo tempo o entendimento crítico. [30]
Candido sublinha o mérito desse “ponto de vista corretor” para efeito do conhecimento da variante
local da Arcádia, uma vez que todos nós que temos tratado do assunto” - e das letras na colônia de
maneira geral - “tendemos a restringir a investigação ao âmbito nacional” [31]. E sugere até mesmo
“uma revisão da nossa historiografia literária segundo uma perspectiva de fusão, não de separação
relativamente à portuguesa” [32]. A idéia, diga-se de passagem, é de enorme interesse, mas basta
para nossos fins reter a sugestão anterior. Uma perspectiva analítica que sobrepuje as limitações
nacionalistas e que dê conta da produção letrada da América Portuguesa em seus complexos
vínculos com a da Metrópole ainda está por explorar-se. Já não soa demasiado otimista porém o
prognóstico de que em breve não será mais assim.
Feitas todas as contas, portanto, o balanço aqui mostra-se irrecusavelmente positivo [33]. Estando
bem azeitada a máquina da crítica e havendo rica matéria-prima textual a alimentá-la, não é de
estranhar que as pesquisas sobre as letras da América Portuguesa exibam hoje, no quadro mais
amplo dos estudos literários no Brasil, níveis incomuns de vigor, de solidez e de refinamento. Mas
nem tudo anda como deve nesse domínio. Com efeito, a julgar pelas advertências de alguns
especialistas, há um aspecto sobretudo, de importância fundamental, em que o deficit vem de longa
data e segue possuindo proporções consideráveis. Em texto referido páginas atrás, José Américo
Miranda lembra que em 1863 um dos primeiros historiadores da literatura brasileira lastimava os
empecilhos a estorvar o acesso a suas fontes de estudo. Repara todavia José Américo que não
obstante o alerta de Ferdinand Wolf, e de vários outros, grande parte dos escritos da era colonial
“continua até hoje desconhecida, dispersa, não editada ou miseravelmente publicada.” [34] A
severidade dos termos quiçá surpreenda, mas não se pode negar razão ao estudioso. Um século e
meio quase após o Brésil littéraire wolfiano, encontre-se o pesquisador em Viena ou em Belo
Horizonte, o trânsito até as fontes permanece dificultoso, quando não impossível. Faltam textos
estabelecidos com o necessário zelo crítico e edições merecedoras de fé: “nesse campo tudo
continua por ser feito.” [35]
É coisa sabida aliás que em geral se flagra entre nós um inteiro descaso para com a disciplina da
ecdótica, circunstância essa que, se não explica de todo a incúria editorial em torno da produção
letrada da colônia, com certeza avulta como uma de suas maiores causas. Vão de fato muito além
dos limites do nosso assunto as conseqüências do rotineiro menoscabo dos problemas de
estabelecimento crítico do texto nos estudos literários brasileiros. Elas demandam por isso um
exame específico e cuidadoso. Afinal, até que ponto sabemos o que estamos lendo, sem uma
aferição crítica das edições de que nos servimos para ler, desatentos ao sinuoso percurso de
transmissão e de impressão das obras que temos sob os olhos, carentes de efetivo discernimento no
que concerne à materialidade mesma daquilo de que nos ocupamos? Esta única ponderação basta
para que se previna o equívoco de confundir a ecdótica com um refugo positivista da ciência da
literatura do século XIX ou com mero apego de antiquário a velhos manuscritos e edições princeps,
para que se tome consciência de que o apuro da lição textual não é luxo nem lixo filológico, mas
algo assim como um imperativo categórico de nosso ofício [36]. Ouvidos moucos, no caso,
representam um sintoma gravemente preocupante.
E visto que falamos de deveres, um outro problema ainda precisa ser considerado. Seus contornos
ganharão mais nitidez à luz das reflexões de Luiz Felipe Baêta Neves nas páginas introdutórias de
Vieira e a imaginação social jesuítica: Maranhão e Grão-Pará no século XVII. Após levar a cabo
uma rápida sinopse da bibliografia pertinente, Baêta Neves verifica uma acentuada escassez de
estudos específicos de porte sobre os múltiplos aspectos do objeto de seu trabalho. Indício de
irrelevância do tema escolhido? Muito pelo contrário. Conforme argumenta o autor, a análise da
ação missionária inaciana nas aldeias do Maranhão e Grão-Pará concorreria para o esclarecimento
de questões fundamentais, já que oferece oportunidade de inspecionar,
- em um mesmo fenômeno - as diferenças que existiam entre projetos de uma mesma ordem
religiosa (e de ordens diferentes), acabando com a imposição de um tratamento único e homogêneo
em toda a colônia; a realidade econômica singular que resultou de uma intenção ideológica de tom
autárquico, e as relações internas de trabalho e os modos de articulação com o colonialismo; o
efetivo sistema de relações políticas entre a Igreja, as ordens religiosas (as ordens entre si,
igualmente), entre a metrópole e as forças políticas locais da colônia - sistema extremamente
complexo e que, em geral, é visto de modo exacerbadamente generalizado e sem nenhum respeito
pelas alterações conjunturais, pelos deslocamentos de alianças, pelos matizes regionais; [as
minúcias] da vida das Aldeias, de sua organização do tempo, do espaço, de suas regras de vida
cotidiana - expressões de um singular convívio entre diferentes culturas (sendo bom salientar que
havia grupos indígenas diferenciados reunidos em um mesmo local com os jesuítas), que não se
resume ao mero “recalcamento” e “supressão” cultural freqüentemente denunciados, mas que forma
uma positividade histórica nova que é preciso pesquisar; as formas reais de transmissão cultural
“ocidental”, que não se pode confundir com uma história institucional-escolar, [devendo-se] indagar
de todos os agentes envolvidos no processo pedagógico e das tramas que formavam em suas
relações complexas; a verdade da aliança entre a ideologia religiosa e o colonialismo - aliança que,
em geral, é vista como óbvia e monolítica, o que é desmentido pelos sermões de Vieira, p. ex., que
retiram tanto da legitimação ideológica da escravidão, repetida e violentamente atacada pelo
pregador jesuíta; as concretas relações entre saber e poder na colônia. [...] Enfim, os exemplos
poderiam se suceder, mas o que importa assinalar aqui é o caráter estratégico [...] que o estudo
proposto possui não só para a análise da evolução histórica das sociedades indígenas na Brasil e
para aquilo que genericamente se chamaria de história da religião no país, mas para a compreensão
das complexas relações entre colonialismo e Igreja sem as banalizações e apriorismos vigentes. E
com respeito, portanto, pelas fontes documentais e pelas notáveis conquistas teórico-metodológicas
recentes. [37]
O longo trecho citado deixa ver com facilidade que as conquistas teóricas e metodológicas a que se
refere Baêta Neves pertencem a dois compartimentos disciplinares em especial: a história e a
antropologia. Convém fixar este dado, pois haveremos de retomá-lo adiante. Por ora, entretanto,
uma pergunta exige resposta. Se prometem resultados de tamanho vulto, por que são infreqüentes
pesquisas pontuais e alentadas, por exemplo, dos aspectos arquitetônico, econômico, político,
teológico, institucional e cultural dos aldeamentos jesuíticos a norte e nordeste do território luso na
América? Em termos mais drásticos, como entender o relativo desdém da historiografia da religião
na colônia pela investigação setorizada e minudente, ciosa do singular e do concreto das distintas
conjunturas em jogo? [38] Raciocínios monocausais pouco ajudam aqui, mas para nossos interesses
será suficiente salientar apenas um dos fatores discutidos por Baêta Neves. Vasculhando o
repertório conceitual da produção historiográfica ligada a seu assunto, o autor detecta uma situação
de carência e de precariedade:
Fala-se em “Igreja”, “colonialismo”, “escravidão”, “índios”, “invasões estrangeiras”, “metrópole”,
“holandeses”, “protestantes” e assim sucessivamente, como se tais noções: a) não precisassem ser
rigorosamente definidas; b) expressassem realidades únicas e homogêneas; c) fossem de
aplicabilidade geral; d) pudessem ser facilmente comprovadas e manipuladas. [39]
Sob o império dessa abusiva generalidade nocional, não admira que se menospreze a interrogação
circunstanciada do particular, que formas e processos de dinâmica complexa - os quais cumpriria
“parcelar, diferenciar, discriminar melhor” [40] - acabem descaracterizados por visões globais
simplistas e redutoras.
Não é demais repetir que de meados da década de 1980 até o presente o quadro descrito por Baêta
Neves não se manteve inalterado. Trabalhos valiosos vieram a lume nesse meio-tempo [41] e outros
mais por certo vão sendo realizados. Além disso, não se deixe de frisar que as implicações da
problemática em exame ultrapassam em muito o terreno da competência do estudioso de literatura.
Sem qualquer pretensão de dar plena conta do debate - ou mesmo daquela parte dele que concerne a
nossa área -, cuidemos tão-só de uns poucos desdobramentos das questões que foram expostas, na
esperança de que se provem estratégicos para efeito de leitura e análise da produção letrada
colonial. Como se viu, certa recorrente generalidade nacional parece oferecer sério obstáculo a um
conhecimento mais matizado da “imprecisa realidade do contato” [42] entre jesuítas e nativos nos
primeiros séculos da colônia. Ilustra bem o ponto, por exemplo, a nunca apaziguada contenda a
dividir apologetas e detratores da empreitada evangelizadora dos milicianos de Loyola [43]. De um
lado prevalece a hagiografia: loas piedosas à domesticação do silvícola e ao lançamento da pedra
fundamental do Brasil cristão. De outro, predomina o martirológio: ira e ranger de dentes ante o
legado infame da criminosa devastação perpetrada pela Companhia. De parte a parte resta o mal-
entendido, o que escapa à compreensão em conseqüência da rigidez apriorística do ângulo de mira
privilegiado. No espaço dicotômico dessa controvérsia, dificilmente os escritos jesuíticos poderiam
levar longe. Posta a serviço de uma tese, confinada a sentidos retilíneos e fixos que a precedem, a
leitura semelha no fundo uma contrafação - pretexta-se o texto mesmo para não ler.
Há entraves mais sutis porém, e não por isso menos substantivos, a um convívio arejado e fecundo
com o acervo letrado que herdamos dos inacianos. Uma ligeira incursão pela fortuna crítica do
teatro de José de Anchieta virá a propósito para que se tente descortinar um outro tipo de
impedimento ao avanço da pesquisa. Podemos dispensar-nos de referir aqui, passo a passo, a bem
conhecida praxe do comentário sobre os autos anchietanos [44]. A poesia dramática do “apóstolo do
Brasil” é obra de circunstância, presidida pelo intuito de conquista das almas, de pedagogia,
conversão e doutrinamento dos gentios. Sendo lingüisticamente heterogêneo o público a que se
destinavam - “indígenas, soldados, colonos, marujos e comerciantes, [...] habitantes permanentes ou
eventuais das primitivas aldeias [...] nas origens de nossa civilização” [45] - os autos fazem uso de
diferentes línguas, o português, o espanhol e o tupi, e como sua própria designação patenteia,
possuem íntimo parentesco com o universo cênico do medievo e com o teatro de Gil Vicente. Em
suma, conforme as palavras de Claude-Henri Frèches, trata-se de
une leçon de catéchisme en images, dynamique plus que savante, mais non dépourvue d’habilité.
On pourrait encore avancer que ces drames constituent des embryons de pièces à thèse ou de
comédies de moeurs: ces deux aspects se réunissent d’ailleurs volontiers en un même auto. [46]
Evocada em suas linhas mestras, a recepção crítica das peças de Anchieta não aparenta padecer de
lacunas ou deficiências. Essa aparente justeza, contudo, consiste ela mesma em uma parte do
problema, pois acarreta a falsa impressão de que já se dispõe de resposta para todas as perguntas
relevantes. Ora, os recursos cênicos e dramatúrgicos da obra do autor demonstram inequívoca
relação com os palcos vicentino, ibérico e medieval. Mas que sabemos em pormenor de tais
vínculos? O sentido dos autos anchietanos está sem dúvida atrelado à catequese e ao proselitismo
religioso; mas quanto entendemos desses textos, se desconsideramos sua espessura sígnica, se não
meditamos na singularidade de sua linguagem como teatro?
Um passo indispensável rumo ao entendimento dessa singularidade será reler os escritos teatrais de
Anchieta à luz do paradigma crítico que denominamos anteriormente de retórico-poético, tendo em
vista com a devida exatidão os preceitos teológicos e políticos a que atendem e as convenções
letradas com que operam. Não custa advertir, no entanto, que não deveríamos nos dar por satisfeitos
demasiado cedo. Em uma análise da imagem dos indígenas do Brasil nos discursos quinhentistas,
Manuela Carneiro da Cunha flagra um momento notável no Recebimento que fizeram os índios de
Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte. Na cena aludida pela antropóloga, a inspiração
cristã de Anchieta não hesita em valer-se do “ritual máximo da antropofagia tupi” [47]. Espada
embagada a mando de Tupansy, um índio guerreiro da communitas fidelium racha “a cabeça a um
diabo - o Macaxera - e sobre ela toma novo nome - Anhangupiara, ou seja, inimigo de Anhang:
Pronto! Matei Macaxera!
Já não existe o mal que era...
Eu sou Anhangupiara!” [48]
O formidável jogo cênico dessa personagem fornece a deixa para um último questionamento. Está
correto João Adolfo Hansen quando afirma que os textos jesuíticos dos séculos XVI e XVII “são
inventados retoricamente como imitação de gêneros, formas, tópicas e estilos de autoridades latinas,
patrísticas e escolásticas”, quando lembra que o missionário inaciano não entende o indígena “como
Outro, segundo a diferença cultural de uma definição ‘antropológica’ que então obviamente não
existe, mas como Mesmo, natureza humana pecadora”, à qual se trata de impor o “controle dos
apetites e a concórdia das paixões”, mediante “o auxílio das boas formas do Verbo catolicamente
revelado” [49].
Importa contudo assinalar que, tomadas como “forma cultural específica”, as práticas de escrita dos
inacianos não se caracterizam apenas pela “fusão de retórica antiga e teologia-política escolástica”
[50]. O fragmento que citamos terá talvez evidenciado que a efetividade teatral do auto anchietano
permanece ilegível até certo ponto na falta de uma perspectiva antropológica, de um olhar crítico
capaz de aperceber-se do outro que o texto supõe um mesmo como outro, como alteridade que se
insinua na linguagem da obra em marcas significativas, as quais se torna imperioso então
reconhecer e analisar.
Tomamos o cuidado de enfatizar mais atrás, a propósito das reflexões de Luiz Felipe Baêta Neves, a
preciosa contribuição posta hoje a nosso alcance pelas disciplinas da história e da antropologia.
Deve estar evidente a esta altura a razão pela qual o fizemos. Em sua metódica ojeriza ao
anacronismo, a crítica retórico-poética vem mostrando nos últimos vinte anos que uma consciência
histórica mais acurada traz inestimável proveito ao estudo das letras da América Portuguesa.
Todavia, o pesquisador brasileiro de literatura parece pouco disposto ainda a um diálogo amplo e
sistemático com o saber antropológico. É como se tendêssemos a esquecer (ou a escamotear) que as
práticas letradas do colonizador não se transplantaram para um vazio sociocultural, que a escrita se
produziu na colônia em situações específicas e complexas de contato com o(s) outro(s) e sua(s)
linguagem(ns). Não deparamos aí, no mínimo, com uma limitação de nosso repertório conceitual?
No Prólogo aos fascinantes ensaios que coligiu em A inconstância da alma selvagem, Eduardo
Viveiros de Castro declara que o desiderato maior do seu trabalho tem sido o de forjar uma
linguagem analítica à medida dos mundos indígenas. Segundo o antropólogo, a elaboração de tal
linguagem
envolve forçosamente uma luta com os automatismos intelectuais de nossa tradição, e não menos, e
pelas mesmas razões, com os paradigmas descritivos e tipológicos produzidos pela antropologia a
partir de outros contextos socioculturais. O objetivo, em poucas palavras, é uma reconstituição da
imaginação conceitual indígena nos termos de nossa própria imaginação. Em nossos termos, eu
disse - pois não temos outros; mas, e aqui está o ponto, isso deve ser feito de um modo capaz (se
tudo “der certo”) de forçar nossa imaginação, e seus termos, a emitir significações completamente
outras e inauditas. [51]
A título de provisória conclusão, talvez seja o caso de fazer um pouco nosso o desiderato de
Viveiros de Castro. À revelia de certos automatismos de nossa tradição crítica e das orientações
teóricas já consolidadas, talvez seja o caso de postular uma linguagem analítica sensível o bastante à
relação entre as letras e seus outros. Significações outras e inauditas, outros percursos de leitura, ao
menos - as possibilidades, convenhamos, não são nada más.
Notas:
[1] Uma versão abreviada deste texto foi apresentada como conferência no X Congresso de Estudos
Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo,
evento realizado em Vitória, de 04 a 07 de novembro de 2008, e dedicado ao tema “A crítica
literária: percursos, métodos e exercícios”.
[2] Ver MIRANDA, José Américo. Eusébio de Matos, um poeta possível. In MATOS, Eusébio de.
A Paixão de Cristo Senhor nosso: desde a instituição do Sacramento na ceia até a lastimosa
soledade da Maria Santíssima; apresentação e notas José Américo Miranda; apuração do texto José
Américo Miranda e Nilton de Paiva Pinto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p.14.
[3] BOSI, Alfredo. Dialética da colonização; 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Sobre
a distinção entre sistema e condição colonial, ver especialmente p. 26 e seguintes.
[4] Ver PIZARRO, Ana. Palabra, literatura y cultura en las formaciones discursivas coloniales. In
PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura; Vol. 1: A situação colonial.
São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1993, p. 25.
[5] As aspas na expressão antecipam uma das principais questões com que lidaremos. A sugestão de
cautela que transmitem deverá precisar-se ao longo do texto.
[6] Sobre o assunto, ver BENDER, John & WELLBERY, David. Rhetoricality: on the Modernist
Return of Rhetoric. In BENDER, John & WELLBERY, David (ed.). The Ends of Rhetoric. History,
Theory, Practice. Stanford: Stanford University Press, 1990.
[7] PÉCORA, Alcir. À guisa de manifesto. In Máquina de gêneros. São Paulo: Edusp, 2001, p. 12.
[8] BENDER, John & WELLBERY, David. Ob. cit., p. 4.
[9] PÉCORA, Alcir. Ob. cit., p. 15.
[10] Idem, p. 11.
[11] Idem, p. 13.
[12] VARGA, Aron Kibedi. Rhétorique et littérature: études de structures classiques. Paris: Didier,
1970, p. 12. Sobre os vínculos entre letras e retórica, ver ainda o estudo indispensável de
FUMAROLI, Marc. L’âge de l’éloquence: rhétorique et “res litteraria” de la Renaissance au seuil
de l’époque classique; 2ème ed. Paris: Albin Michel, 1994.
[13] VARGA, Aron Kibedi. Ob. cit., p. 9.
[14] SOUZA, Roberto Acízelo de. O império da eloqüência. Rio de Janeiro: EdUERJ; Niterói:
EdUFF, 1999.
[15] Idem, p. 90.
[16] HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII.
São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria de Estado da Cultura, 1989, p. 16.
[17] Idem, ibidem, p. 15.
[18] Idem. Colonial e barroco. In 4º Colóquio UERJ - América: descoberta ou invenção. Rio de
Janeiro: Imago, 1992, p. 348. A impaciência de Hansen para com a noção de barroco periga dar a
impressão de que foi inteiramente negativo o saldo deixado por este dispositivo conceitual em nossa
produção crítica. Para uma visão mais equilibrada do problema, ver GOMES JR., Guilherme
Simões. Palavra peregrina: o barroco e o pensamento sobre artes e letras no Brasil. São Paulo:
Edusp, 1998.
[19] Todos os fragmentos citados provêm do artigo de João Adolfo Hansen referido na nota anterior.
[20] Cf. TEIXEIRA, Ivan. Hermenêutica, retórica e poética nas letras da América Portuguesa.
Revista USP, nº 57. São Paulo: Coordenadoria de Comunicação Social USP, março/abril/maio de
2003, p. 142.
[21] Idem, p. 155.
[22] VALLE, Ricardo Martins. Entre a tradição e o Novo Mundo: um ensaio sobre a poesia de
Cláudio Manuel da Costa. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, DLCV/ FFLCH/ USP, nº 2. São
Paulo: Ed. 34, 2001, p. 194.
[23] Idem, ibidem.
[24] CAMPOS, Haroldo de. De Babel a Pentecostes. In FABBRINI, Regina & OLIVEIRA, Sergio
Lopes (org.). Interpretação (Série Linguagem, nº 3). São Paulo: Lovise, 1998, p. 28 (nota).
[25] LIMA, Luiz Costa. Comentário à comunicação de João Adolfo Hansen. In ob. cit. (ver nota nº
17), p. 363.
[26] Em livro publicado há pouco, Eneida Leal Cunha toma o caminho inverso, explorando uma
perspectiva de leitura dos textos coloniais que se quer “um conjunto de ‘acontecimentos
discursivos’ - no sentido que lhes dá Michel Foucault -, explicitamente constituído num presente
que interpreta, a seu modo, as singularidades de um outro conjunto de ‘acontecimentos discursivos’
formulado em tempo diverso e remoto” (cf. CUNHA, Eneida Leal. Estampas do imaginário:
literatura, história e identidade cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p.32).
[27] HANSEN, João Adolfo. Ob. cit. na nota 13; PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento: a unidade
teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. São Paulo: Edusp; Campinas: Ed. da
Unicamp, 1994; TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica: Basílio da Gama e a
poética do encômio. São Paulo: Edusp, 1999.
[28] RUEDAS DE LA SERNA, Jorge Antonio. Arcádia: tradição e mudança. São Paulo: Edusp,
1995.
[29] Candido, Antonio. Prefácio. In RUEDAS DE LA SERNA, J.A. Ob. cit., p. XIV.
[30] Idem, ibidem, p. XIV-XV.
[31] Idem, ibidem, p. XII.
[32] Idem, ibidem, p. XV.
[33] Como dizíamos no começo deste artigo, não se trata aqui de proceder a um levantamento mais
exaustivo das publicações recentes na área dos estudos da produção letrada colonial. Vale a pena
entretanto referir, em reconhecimento de seus méritos, três outros títulos concernentes à temática
em exame: Uma república de leitores: história e memória na recepção das Cartas Chilenas (1845-
1989), de Joaci Pereira FURTADO (São Paulo: Hucitec, 1997), estudo muito revelador sobre as
sucessivas leituras de que foram objeto os versos satíricos atribuídos a Tomás Antônio Ganzaga;
Estes penhascos: Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (1753-1773), de Sérgio
ALCIDES (São Paulo: Hucitec, 2003), análise erudita e refinada das Obras poéticas do árcade
Glauceste Satúrnio; Um coração maior que o mundo: Tomás Antônio Gonzaga e o horizonte luso-
colonial, de Ronald POLITO (São Paulo: Globo, 2004), estudo instigante do opus gonzaguiano,
abrangendo não apenas a poesia do autor, mas também seu Tratado de direito natural e outros
escritos. Sobre os títulos de interesse vindos a lume nos últimos anos ver RUSSEL-WOOD, A. J. R.
“Brazilian archives and recent historiography on colonial Brazil”. Latin American Research Review,
vol. 36, n°1, 2001.
[34] MIRANDA, José Américo. Ob. cit. (ver nota nº 1), p. 14. A citação seguinte provém do mesmo
lugar.
[35] Com as exceções de praxe, evidentemente, que também desta vez corroboram a regra. Citemos
algumas investidas exitosas dos últimos anos, graças às quais podemos nos permitir a esperança de
um quadro futuro menos acabrunhador. Ao empenho do próprio José Américo Miranda devem-se as
valiosas edições de A paixão de Cristo senhor nosso (ver nota n° 1) e do Sermão do Mandato (Belo
Horizonte: Fale/UFMG, 1999), aquela obra atribuída a Eusébio de Matos e esta seguramente de sua
lavra. Ronald Polito incumbiu-se de editar, com muito esmero, os fragmentos remanescentes d’A
Conceição, poema épico de Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo: Edusp, 1995), e o poema herói-
cômico O desertor, de Manuel Inácio da Silva Alvarenga (Campinas: Editora da Unicamp, 2003).
Ivan Teixeira, por fim, tomou a seu encargo uma cuidada edição crítica das Obras poéticas de
Basílio da Gama (São Paulo: Edusp, 1996). Assinale-se ainda que Francisco Topa deu à estampa em
Portugal sua rigorosa Edição crítica da obra de Gregório de Matos (Porto: Edição do Autor, 1999).
Iniciativa distinta, mas igualmente digna de nota, foi a de Plínio Martins Filho, que em
comemoração ao décimo aniversário da casa editorial de sua propriedade publicou uma bela edição
fac-similar de Música do Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira (Cotia: Ateliê, 2005; confira-se
no volume o excelente estudo de Ivan Teixeira sobre a obra do autor, A poesia aguda do engenhoso
fidalgo Manuel Botelho de Oliveira).
[36] Isto para só dizer o mínimo. Voltando porém às pesquisas sobre as letras da colônia, temos
exemplo da amplitude do terreno de investigação que se abre para o leitor devidamente provido dos
recursos da crítica textual. No artigo Ut pictura poesis: análise bibliográfico-textual de dois
membros da tradição de Gregório de Matos e Guerra (ver ob. cit. na nota n° 19), Marcello
MOREIRA observa que uma mesma obra se atualiza de maneira diferenciada, se ressemantiza
parcialmente em função das características do códice no qual se inscreve. Donde, segundo o autor,
uma via de análise “ainda inédita” no que respeita aos manuscritos da América Portuguesa: “Não
nos preocupamos [...] apenas com o exame do formato do artefato, de suas medidas e dos materiais
escriptórios de que é composto. O nosso propósito é compreender como um tipo específico de
artefato bibliográfico, o códice poético seiscentista e setecentista que se diz, comumente, transmitir
o corpus gregoriano, prescreve, como artefato, a partir de mecanismos bibliográficos e retóricos
nele presentes e que garantem sua coesão interna”, determinado tipo de leitura, determinadas
formas de apropriação da matéria discursiva ali estampada (cf. p. 88). Sem o tirocínio prévio da
recensio e dos demais protocolos da ecdótica, esse instigante estudo seria provavelmente
inconcebível.
[37] NEVES, Luiz Felipe Baeta. Vieira e a imaginação social jesuítica: Maranhão e Grão-Pará no
século XVII. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 26-27.
[38] Vieira e a imaginação social jesuítica deriva da tese de doutorado de Luiz Felipe Baêta Neves,
defendida no Programa Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ em
1984. Em 1997, portanto, data de edição do livro, tinha já perdido parte de sua atualidade o quadro
descrito pelo autor. Hoje ainda, contudo, essa perda não chegou a ponto de invalidar por completo o
atilado diagnóstico de Baêta Neves.
[39] NEVES, Luiz Felipe Baeta. Ob. cit., p. 51.
[40] Idem, ibidem, p. 67.
[41] Ver, entre outros, MELLO E SOUZA, Laura de. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; Inferno atlântico
- demonologia e colonização (séc. XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 1993; VAINFAS,
Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995; COSTIGAN, Lúcia Helena (org.). Diálogos da conversão. Campinas: Ed. da
Unicamp, 2005.
[42] A expressão é de Baeta Neves. Ver ob. cit., p. 76.
[43] Sobre o assunto, ver o esclarecedor estudo de HOLANDA, Sérgio Buarque de. S. I. In: Cobra
de vidro. São Paulo: Perspectiva, 1978.
[44] Sobre o assunto, ver MAGALDI, Sábato. O teatro como catequese. In Panorama do teatro
brasileiro; 4ª ed. São Paulo: Global, 1999; HESSEL, Lothar & READERS, Georges. O teatro
jesuítico. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1972; AZEVEDO FILHO,
Leodegário Amarante. O teatro de Anchieta. In Anchieta, a Idade Média e o barroco. Rio de
Janeiro: Gernasa, 1966; PONTES, Joel. Teatro de Anchieta. Rio de Janeiro: MEC/SNT: 1978;
PRADO, Décio de Almeida. O teatro jesuítico. In Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo:
Perspectiva, 1993; BOSI, Alfredo. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In Dialética da
colonização (ob. cit. na nota nº 2).
[45] AZEVEDO FILHO, Leodegário Amarante de. Cf. ob. cit. na nota anterior (p. 187).
[46] FRÈCHES, Claude-Henri. “Le Théâtre du Pe. Anchieta. Contenu et Structure”. Apud
AZEVEDO FILHO, L. A. de. Ob. cit., p. 187.
[47] CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de índios do Brasil: o século XVI. In: PIZARRO,
Ana (org.). Cf. ob. cit. na nota n° 3, p. 169.
[48] A autora cita a edição do Teatro de Anchieta organizada pelo Pe. A. CARDOSO (São Paulo:
Loyola, 1977, p. 244).
[49] HANSEN, João Adolfo. Anchieta: poesia em tupi e produção da alma. In ABDALA JR.,
Benjamin & CARA, Salete de Almeida. Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil. São
Paulo: Boitempo, 2006, p. 15, 17 e 18.
[50] Idem, ibidem, p. 15.
[51] CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify,
2002, p. 15.