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UE 8 - A hermenêutica filosófica

Apresentação

O Direito sem atividade interpretativa seria algo completamente vazio e vão, pois todos os
dispositivos legais sequer poderiam ser considerados um ordenamento jurídico propriamente dito,
não passando de um conjunto de sinais sem o menor sentido. Além disso, dado que um dispositivo
legal qualquer suscita uma multiplicidade de interpretações possíveis, faz-se necessário encontrar
critérios e métodos para se estabelecer, dentre elas, quais são boas e quais não são. Como você
verá, é justamente nesse contexto que entra em cena a questão da hermenêutica.

Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai refletir a questão da hermenêutica e da interpretação


dos dispositivos legais. Aprenderá algo sobre a hermenêutica filosófica de Gadamer, bem como
sobre qual é a sua influência para a o Direito.

Bons estudos.

Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

• Identificar em Hans-Georg Gadamer o expoente da hermenêutica filosófica.

• Explicar o que foi o círculo hermenêutico e o que é hermenêutica filosófica.

• Diferenciar hermenêutica de interpretação e apresentar a influência de ambas no Direito.


Desafio

Você e sua mãe estão conversando sobre a importância da atividade interpretativa para a própria
compreensão da realidade. Quanto a isso, você ressalta que se ela não fosse capaz de interpretar as
coisas, sequer poderia pensar sobre elas. Ao ouvir isso, sua mãe pergunta se existe algum modo de
distinguir boas e más interpretações. Você diz que isso é uma questão de hermenêutica.

Diante desse contexto, você deverá explicar para sua mãe a diferença entre hermenêutica e
interpretação.
Infográfico

No infográfico a seguir, você vai entender, em linhas gerais, em que consiste a hermenêutica
filosófica. Além disso, você vai conhecer quem foi Hans-Georg Gadamer e como ele pode
contribuir com os conceitos aqui abordados.
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Conteúdo do Livro

É importante destacar que uma das questões mais importantes no contexto da hermenêutica
jurídica diz respeito à relação entre a interpretação e a aplicação do Direito. Tendo isso em mente,
enquanto a interpretação visa elucidar a norma jurídica que abstratamente pode ser extraída de
um determinado texto legal qualquer, a aplicação visa justamente adequar a norma ao caso
concreto.

No capítulo Hermenêutica filosófica, da obra Filosofia Geral e Jurídica, você vai estudar sobre
a hermenêutica jurídica e sobre a importância da interpretação para a explicitação do sentido dos
dispositivos legais editados pelo legislador.

Boa Leitura.
FILOSOFIA GERAL E
JURÍDICA

Cássio Vinícius Steiner de Sousa


Hermenêutica filosófica
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Identificar em Hans-Georg Gadamer o expoente da hermenêutica


filosófica.
„„ Explicar o que foi o círculo hermenêutico e o que é hermenêutica
filosófica.
„„ Diferenciar hermenêutica de interpretação e apresentar a influência
de ambas no Direito.

Introdução
Sem atividade interpretativa, o Direito seria completamente vazio e vão,
pois todos os dispositivos legais sequer poderiam ser considerados um
ordenamento jurídico propriamente dito, não passando de um conjunto
de sinais sem o menor sentido. Além disso, dado que um dispositivo
legal qualquer suscita uma multiplicidade de interpretações possíveis, é
necessário encontrar critérios e métodos para se estabelecer quais são
boas e quais não são. Como você verá, é justamente nesse contexto que
entra em cena a questão da hermenêutica.
Neste capítulo, você vai refletir sobre a questão da hermenêutica e da
interpretação dos dispositivos legais. Aprenderá sobre a hermenêutica
filosófica de Gadamer, bem como sobre a sua influência para o Direito.

Interpretação e hermenêutica
Embora seja muito comum considerar que nos distinguimos dos demais seres
em virtude da racionalidade, não seria nenhum exagero se tal distinção fosse
posta em função da nossa aptidão para interpretar as coisas. De modo geral,
interpretar é a atividade de atribuir sentido a alguma coisa: textos, sons,
imagens, estrelas, leis, etc. Tendo isso em mente, não é difícil compreender
que a atividade interpretativa é constitutiva da humanidade, pois, se não
2 Hermenêutica filosófica

fôssemos capazes de atribuir sentido às coisas, a própria atividade de pensar


restaria perigosamente comprometida, sendo vazia e vã.
Tendo isso como pano de fundo, é importante perceber que a própria ativi-
dade interpretativa tem como pressuposto a ideia de que as coisas possuem um
sentido que demanda interpretação. Nesse contexto, não é como se o homem
visse, por exemplo, um conjunto de palavras sem sentido e procurasse dar um
sentido qualquer para elas, mas que tal conjunto de palavras esconde certa
mensagem que, por sua vez, deve ser decodificada por meio da interpretação.
Em função disso, a ideia de que a interpretação atribui sentido para as coisas
deve ser entendida, sobretudo, como um extrair ou um desvendar o próprio
sentido daquilo que é interpretado. Isto é, algo que está implícito ou oculto e
que só se revela pelo processo interpretativo.
Dada tal caracterização geral da interpretação, torna-se possível inferir que
o objetivo da interpretação é justamente compreender o sentido de algo. Isto
é, a finalidade do processo de interpretação de alguma coisa é compreender
essa coisa. Dito isso, não é difícil inferir que, na medida em que possui uma
finalidade, é perfeitamente possível que a interpretação erre ou acerte o seu
alvo. Nesse contexto, uma boa interpretação é aquela que é capaz de explicitar
o sentido efetivo de algo, ao passo que uma má interpretação é aquela que
não consegue fazer isso de forma perspicaz. Assim, perguntamo-nos: como
garantir que a interpretação efetivamente capture o sentido imanente das coisas?
É justamente no contexto de tal questão que a ideia de hermenêutica entra
em cena. A palavra hermenêutica, cuja origem etimológica remonta à palavra
grega hermeneuein, denota a arte ou o método de interpretar ou traduzir. Quanto
a isso, é interessante que você saiba que a raiz da palavra está intimamente
ligada aos mitos gregos, em especial à figura do deus Hermes.

Segundo a mitologia grega, Hermes, filho de Zeus com a ninfa Maia, é, entre outras
coisas, considerado o mensageiro dos deuses olimpianos. Um dos modos de com-
preender tal atribuição passa pela ideia de que os deuses e os homens não falavam
a mesma língua. Nesse contexto, a tarefa de Hermes era traduzir ou interpretar as
mensagens que os deuses pretendiam comunicar aos homens, de modo que eles
pudessem entendê-las. Com base nisso, torna-se possível concluir que, na sua origem, a
palavra hermenêutica está, sobretudo, ligada à atividade de tornar algo compreensível.
Agora, se esse é o caso, como devemos compreender a ligação entre a hermenêutica
e a interpretação? Seriam uma e a mesma coisa ou coisas distintas?
Hermenêutica filosófica 3

Como você deve estar imaginando, interpretação e hermenêutica não


são termos sinônimos. Enquanto a interpretação tem por finalidade buscar o
sentido das coisas, na sua acepção tradicional, a hermenêutica visa elucidar
os métodos e os procedimentos utilizados para que a atividade interpretativa
possa atingir, com sucesso, a sua finalidade precípua. Nesse contexto, torna-se
possível compreender que, na base da diferença entre ambas, está a ideia de
que, quando interpretamos algo, estamos seguindo, ainda que implicitamente,
certo conjunto de princípios hermenêuticos que regem e governam a própria
atividade interpretativa. Com efeito, não é exagero afirmar que a interpretação
é uma aplicação da hermenêutica (MAXIMILIANO, 1997, p. 17).
Uma das questões mais importantes no contexto da hermenêutica diz
respeito à relação entre a interpretação e a aplicação de algo. Com o obje-
tivo de elucidar a questão, e já encaminhando o debate para aquilo que nos
importa, o caminho mais natural é apresentá-la no seu contexto jurídico.
Nesse sentido, a questão da relação entre a interpretação e a aplicação gira
em torno da norma jurídica. Tendo isso em mente, enquanto a interpreta-
ção visa elucidar qual norma jurídica, abstratamente, pode ser extraída de
determinado texto legal, a aplicação visa, justamente, adequar a norma ao
caso concreto. Para tornar mais claro o ponto, é necessário dar um passo
para trás e distinguir o texto legal da norma jurídica.
Embora seja comum pensar que o texto legal, assim como definido
pelo legislador, é, em si mesmo, a norma jurídica, se analisarmos mais
profundamente a questão, veremos que tudo que o legislador faz é fornecer
um texto que serve de fonte para a norma jurídica. Em outras palavras,
rigorosamente falando, o legislador não produz normas, apenas textos
legais. Para que o texto legal possa ser tomado como uma norma jurídica,
ele deve ser decifrado por meio de um processo interpretativo que deter-
minará o seu alcance e o seu sentido. Assim, o próprio caráter normativo
do texto legal é explicitado apenas no contexto da sua interpretação. Disso,
resulta a ideia segundo a qual o papel do intérprete não é especificamente
interpretar normas jurídicas, pois elas surgem justamente como o resultado
ou o produto de um processo interpretativo.
Tendo estabelecido que a função precípua da interpretação, no contexto
do Direito, é a decodificação da mensagem ou da norma jurídica contida no
texto legal, torna-se possível voltar com mais propriedade à questão da relação
entre a interpretação e a sua aplicação. Quanto a isso, com base no que foi
dito anteriormente, a interpretação estaria mais ligada à elucidação do sentido
da norma em abstrato, ao passo que a aplicação estaria ligada à fixação do
sentido da norma para o caso concreto.
4 Hermenêutica filosófica

Agora, se esse é o caso, perceba que, sem uma interpretação que seja capaz
de transformar o texto legal em uma norma jurídica propriamente dita, a própria
questão da aplicação da norma ao caso concreto restaria, em alguma medida,
comprometida, pois, se não temos alguma compreensão da norma em abstrato,
sequer somos capazes de saber se ela é ou não aplicável ao caso concreto.
Nesse caso, parece natural considerar que existe uma espécie de primazia
da interpretação sobre a aplicação. Porém, na prática, isso estaria correto?
Embora, por muito tempo, a visão acerca da hermenêutica tenha sido que
ela tem total prioridade sobre a aplicação, contemporaneamente, tal concepção
passou a ser bastante questionada. Nesse contexto, valendo-se de tal questio-
namento, é possível apresentar pelo menos dois modos de conceber a própria
natureza da hermenêutica, bem como a sua função. De um lado, temos aquilo
que podemos chamar de hermenêutica moderna, ou clássica, e, de outro lado,
aquilo que podemos chamar de hermenêutica contemporânea.

Hermenêutica clássica: na base da hermenêutica clássica, cuja origem


remonta ao período moderno, temos a ideia segundo a qual a interpretação
e a aplicação são duas etapas radicalmente distintas. Além disso, há também
o compromisso com a ideia de que a interpretação antecede a aplicação. Ou
seja, há um compromisso com o primado da interpretação sobre a aplicação.
Nesse contexto, conforme apresentamos anteriormente, torna-se possível
compreender que, em um primeiro momento, devemos extrair qual é o
sentido de algo, para que, em um segundo momento, possamos aplicar tal
sentido aos casos concretos.
Segundo a compreensão clássica, a hermenêutica deve ser compreen-
dida, sobretudo, como uma metodologia, com uma série de procedimentos
controlados e previsíveis, que garante objetivamente que o sentido abstrato
será aplicado para o caso concreto. Nesse contexto, torna-se possível inferir
que o grande problema da hermenêutica clássica pode ser traduzido como
um problema de subsumir situações ou fatos concretos às normas jurídicas.

Hermenêutica contemporânea: na base da hermenêutica contemporâ-


nea, cujos principais representantes são Martin Heidegger e Hans-Georg
Gadamer, está a ideia de que não existe efetivamente uma prioridade da
interpretação sobre a aplicação. Nesse contexto, embora persista a ideia de
que a interpretação e a aplicação não são atividades idênticas, abandona-
-se a concepção de que aquela antecede esta. Segundo tal concepção da
Hermenêutica filosófica 5

hermenêutica, também chamada de hermenêutica filosófica, interpretação


e aplicação de algo são atividades que se complementam e que constituem
conjuntamente certo processo de compreensão do que quer que seja. Em
função disso, entre outras coisas, como veremos a seguir, surge com força
a ideia de uma espécie de círculo hermenêutico da compreensão.

Gadamer e a hermenêutica filosófica


Hans-Georg Gadamer (1900 d.C.–2002 d.C.) foi um filósofo da tradição con-
tinental cuja principal obra foi Verdade e método. Em tal obra, ele aborda com
detalhes aquilo que ficou conhecido como hermenêutica filosófica. Entre as
suas principais contribuições, é possível citar as suas ideias sobre a verdade,
sobre o que significa compreender algo, bem como a introdução da questão
da linguagem no contexto da hermenêutica. As suas ideias influenciaram
enormemente diversos campos para além da filosofia, como o Direito, a lite-
ratura, a psicologia e a arte.

Figura 1. Hans-Georg Gadamer.


Fonte: Gadamer (2015).

Na primeira parte de Verdade e método, Gadamer (2002) reflete com


bastante originalidade sobre a questão da natureza da verdade. Quanto a isso,
a primeira coisa que é importante destacar é que ele entendia que o conceito
6 Hermenêutica filosófica

de verdade fora, por assim dizer, empobrecido com o passar das gerações,
sobretudo no período moderno. Segundo ele, com o desenvolvimento das
ciências e do método científico, a noção de verdade acabou sendo cada vez
mais identificada com aquilo que a ciência reconhece como tal. Contra tal
posição, Gadamer (2002) defendeu que a verdade é um conceito que possui
uma multiplicidade de significados, não devendo ser identificada tão somente
com as verdades obtidas por meio das ciências.
Quanto a isso, é importante destacar que o filósofo não era especifica-
mente contra as ciências, tampouco desacreditava das verdades obtidas por
meio do método científico. Porém, como sugerido anteriormente, isso não
esgotaria por completo o campo da verdade. Nesse contexto, a sua ideia é
que verdade e verdade científica não são considerados termos sinônimos.
No entanto, se verdade não é um termo que pode ser redutível à sua acepção
científica, então como devemos compreendê-la?
Partindo de uma apurada análise dos grandes filósofos antigos, e contra
o reducionismo científico, Gadamer (2002) defendeu uma concepção mais
contextual e holista do conceito de verdade. Em linhas gerais, o conceito de
verdade é estabelecido em função da própria compreensão que certa comu-
nidade ou sociedade tem a respeito do termo. Quanto a isso, é importante
que você não confunda tal posição com a ideia de que não existem verdades
ou de que as verdades são puramente subjetivas. Ao contrário, além de
assumir que a noção de verdade é constitutiva de nossa própria existência,
Gadamer (2002) também não vê problemas com a ideia de verdades objetivas.
Porém, o próprio sistema no qual essas verdades estão inseridas é objeto de
convenção social. É justo em função disso que é possível falar em verdades
éticas, jurídicas, artísticas, técnicas, práticas, etc.
Para compreender melhor o ponto, é necessário tecer um breve comen-
tário sobre a compreensão gadameriana acerca da linguagem. Para ele,
diferentemente da visão herdada da tradição moderna, a linguagem não
consiste em um mero veículo utilizado para que possamos formular nossos
pensamentos, mas ela é, acima de tudo, o modo como a própria realidade
é compreendida e estruturada. Isto é, segundo ele, não é que a linguagem
seja utilizada meramente para expressar aquilo que experienciamos na
realidade, mas principalmente para que possamos compreender a nossa
própria existência enquanto seres. Ou seja, a nossa própria experiência das
coisas é moldada pela linguagem.
Hermenêutica filosófica 7

Se, do dia para a noite, você fosse parar em uma comunidade indígena da Amazônia que
nunca teve contato com a língua portuguesa nem com os nossos hábitos e costumes,
para compreendê-los, você teria que descobrir como eles usam as palavras, mas não
em um sentido trivial, como saber qual palavra eles usam para denotar árvore, chuva ou
fogo. Por si só, isso não faria com que você pudesse verdadeiramente compreendê-los.
Para compreendê-los de fato, você deveria entender os seus hábitos, bem como os
sentidos que estão vinculados às palavras. Nesse contexto, não bastaria saber que a
palavra fogo significa X, mas também que, quando eles a utilizam, estão invocando
certo deus Y, ou que isso faz parte de certo ritual Z, que possui um significado muito
profundo na sua cultura.

Tendo isso em mente, temos tudo que precisamos para introduzir a noção
de hermenêutica jurídica assim como concebida por Gadamer. Na introdução
da sua obra, ele afirma:

O fenômeno da compreensão e de maneira correta de se interpretar o que se


entendeu não é apenas, e em especial, um problema da doutrina dos métodos
aplicados nas ciências do espírito. Sempre houve também, desde os tempos
mais antigos, uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não
era tão acentuadamente científico e teórico, mas, muito mais, assinalado
pelo comportamento prático correspondente e a serviço do juiz ou do clérigo
instruído (GADAMER, 2002, p. 31).

Levando isso em consideração, o próximo passo é perceber que, diferen-


temente da visão clássica, segundo o filósofo, a hermenêutica não deve ser
entendida como um método ou um procedimento instrumentalizado e orien-
tador da atividade interpretativa das ciências, mas, sobretudo, diz respeito à
questão da própria possibilidade da compreensão. Nesse contexto, mais do
que um método a serviço do intérprete, a hermenêutica é vista como uma
condição da própria experiência existencial do intérprete.
Com o objetivo de elucidar tal concepção, é necessário apresentar o en-
tendimento do autor acerca do famoso círculo hermenêutico. Embora o nome
possa sugerir algo muito profundo e elaborado, a ideia é relativamente simples.
Resumidamente, quando pretendemos traduzir um texto de uma língua antiga,
8 Hermenêutica filosófica

entender um romance ou uma pintura renascentista, geralmente estamos


buscando pelo seu sentido. Porém, a despeito do que a concepção clássica
da hermenêutica sugere, a visão da hermenêutica filosófica gadameriana
aponta para a ideia de que há uma correlação indissociável entre a aplicação,
a intepretação e a compreensão.
O primeiro passo para compreender o que isso significa passa pela ideia de
que o sentido das coisas é holista. Em outras palavras, para que se compreenda
o sentido de algo não basta fazer uma análise das suas partes constituintes,
pois o todo é considerado mais do que a mera soma das suas partes.

Um modo de ilustrar o ponto vem, por exemplo, do contraste entre a noção de peso
e gosto. Se você está carregando uma mochila que pesa 1 kg e adiciona dentro um
livro que pesa 1 kg, você estará carregando 2 kg. Nesse contexto, a ideia de peso não é
considerada holista, pois o todo pode ser completamente resolvido em função das suas
partes constituintes, sendo considerado uma composição atomista. No caso da ideia
de gosto, suponhamos que você goste de feijão e também de sorvete de chocolate.
Agora, se alguém oferecer para você um prato com feijão e sorvete, é muito provável
que diga que perdeu o apetite. Em função disso, a noção de gosto é identificada com
o holismo, pois o prato é considerado mais do que os ingredientes que o compõem.

Tendo essa ilustração como pano de fundo, o próximo passo é compreender


que, segundo o pensamento de Gadamer, o sentido das coisas é holista de modo
ainda mais radical, pois, em tal visão, não existe propriamente sentido fora de
um contexto mais amplo. Isto é, as partes de um todo não possuem sentido
algum a despeito do todo em que estão inseridas. Imagine, por exemplo, as
palavras da nossa língua. Com base no holismo, elas não podem ser com-
preendidas fora do contexto das sentenças em que elas podem ser inseridas.
Além disso, as próprias sentenças que podem ser formuladas na nossa língua
não podem ser apropriadamente compreendidas fora do contexto da língua.
Estabelecida a relação entre o sentido e o holismo, torna-se possível apresentar
a definição de círculo hermenêutico como um processo de interpretação que se
movimenta sistematicamente de baixo para cima e de cima para baixo, isto é, que
busca compreender o sentido das partes com base no todo e busca compreender o
sentido do todo com base nas partes. Tal processo é entendido como um círculo,
pois, cada vez que passamos do todo para a parte e da parte para o todo, aumen-
tamos nossa compreensão geral tanto sobre o todo quanto sobre as suas partes.
Hermenêutica filosófica 9

Enquanto você está lendo essa sentença, começa com a sua preconcepção do que
as palavras significam e do que elas podem estar querendo significar na sentença.
Porém, depois que você termina a frase, você volta nas palavras que a compuseram
e avalia se a interpretação que estava atribuindo às palavras estava apropriada. Se
você tiver se equivocado acerca da intepretação do significado de alguma palavra,
revisará a sentença. Caso contrário, você seguirá com a leitura da próxima frase. Além
disso, o mesmo processo se repete no contexto de um parágrafo, um texto, uma
bibliografia inteira.

Para finalizar, é importante deixar claro que, embora, a rigor, o processo


possa se estender infinitamente, você eventualmente para no momento em
que se sentir satisfeito com a sua intepretação. Além disso, mesmo que o
processo em si possa ser sofisticado e elaborado, isso é algo que fazemos com
regularidade e de modo quase que instantâneo.

Hermenêutica jurídica
Como você já deve suspeitar, a hermenêutica jurídica é a disciplina que tem por
objetivo refletir sobre a questão da interpretação no contexto jurídico. Nesse
espectro, ela estabelece as bases e os métodos por meio dos quais os textos
legais podem se transformar em normas jurídicas, bem como trata da questão
da aplicação delas ao caso concreto. Quanto a isso, Carlos Maximiliano afirma
que “a hermenêutica jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos
processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do
Direito” (MAXIMILIANO, 1997, p. 17).
Como dito na primeira seção, um texto legal que não passou pelo crivo
da interpretação, rigorosamente falando, sequer pode ser considerado uma
norma jurídica, pois depende da explicitação do seu sentido e alcance via um
procedimento de interpretação. Em primeiro lugar, é importante que você
perceba que isso não significa que o texto legal não possa vir a ser considerado
literalmente uma norma jurídica. Porém, se esse for o caso, isso só significará
que um tal dispositivo legal recebeu uma interpretação literal. Nesse caso,
haverá uma coincidência entre o texto legal e a norma jurídica propriamente
dita. Seguindo essa linha, Eduardo Bittar e Guilherme Almeida, em Curso
de filosofia do Direito, afirmam que:
10 Hermenêutica filosófica

[...] a interpretação é construtiva para o Direito. Não cabe ao legislador, mas


ao sujeito-da-interpretação, ou ao usuário da linguagem jurídica de modo
geral, atribuir sentidos a textos normativos. Se o usuário for a um só tempo
intérprete e aplicador, então a aplicação, a decisão, se forjará de acordo com
uma interpretação sustentada em provas racionais. Com esse tipo de atitude
ante a discussão da interpretação, não se está a atribuir ao texto-em-si um
sentido único; está-se, em verdade, a atribuir ao usuário o poder de “dizer” o
sentido jurídico ( juris-dictio) (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 673).

Tendo isso em mente, em segundo lugar, é fundamental que você perceba


que isso também não significa que há um completo esvaziamento da atividade
legislativa, tampouco que a intepretação é uma atividade completamente
arbitrária e independente dos desígnios legislativos. É justamente para evitar
arbitrariedades na atividade interpretativa que um dos critérios para que uma
interpretação seja considerada boa é que ela seja capaz de capturar o espírito
ou a vontade do legislador, seja ela qual for. Isto é, parte do processo de
interpretação se presta justamente a desvendar o sentido do texto legal tendo
como referência, ou como um dos pontos de chegada, a intenção do legislador.
O próximo passo é compreender como a hermenêutica filosófica influen-
ciou a questão da interpretação do Direito. Quanto a isso, é fundamental que
você saiba que a hermenêutica filosófica teve grande impacto tanto na prática
da interpretação jurídica quanto na questão teórica sobre o que alguém está
fazendo ao interpretar o Direito. Com relação a esse último ponto, graças
aos avanços e desenvolvimentos de reflexões de filósofos como Gadamer,
tornou-se possível compreender que a atividade interpretativa, mais do que
um mero método para desvelar o sentido dos textos jurídicos, consiste em um
modo de compreender o próprio fazer jurídico.
Outra consideração importante no que tange à influência da hermenêutica
filosófica para o Direito vem da ideia de círculo hermenêutico. Em função
dela, tornou-se possível superar a ideia de que a interpretação e a aplicação
do Direito são atividades absolutamente distintas, bem como a ideia de que
a interpretação tem prioridade sobre a aplicação do Direito. Nesse contexto,
além do fato de que a interpretação e a aplicação são indispensáveis para a
compreensão do Direito, também temos a ideia de que o intérprete é alguém
que, ao executar tal atividade, possui uma série de preconcepções e ideologias
que não são facilmente abandonáveis. Assim, diferentemente do que pensavam
os modernos, a busca por uma boa interpretação dos textos legais depende
do próprio reconhecimento, por parte do intérprete, de que ele não é um ser
completamente isento, pois o modo como ele interpreta os textos legais é, em
alguma medida, dependente do que ele espera encontrar neles.
Hermenêutica filosófica 11

Você sabe quais são os métodos de interpretação dos textos legais?


Existem muitos métodos de interpretação dos textos legais. A propósito da questão
da sua natureza normativa, chamamos a sua atenção para sete deles.
Método gramatical: na base do método gramatical, está a busca pelo sentido literal
do texto legal. Isto é, tal método interpretativo leva em consideração as palavras que
foram empregadas pelo legislador para a composição do dispositivo normativo.
Tendo isso em mente, é importante saber que tal método de interpretação pode ser
considerado não apenas o mais simples, como também o mais utilizado, pois importa
no esclarecimento do significado das palavras.
Método lógico: com o método lógico, valemo-nos das próprias leis do dispositivo
normativo como um todo para elucidar o sentido de dispositivos específicos que fazem
parte dela. Isto é, objetiva-se interpretar um dispositivo qualquer à luz do contexto
do dispositivo legal em que está inserido. Nesse contexto, a interpretação leva em
consideração a questão da harmonia entre uma parte do texto legal e o texto legal
como um todo.
Método sistemático: o ponto de partida de tal método é a ideia de que o conjunto
de normas que compõe o ordenamento jurídico deve estar em harmonia. Nesse
contexto, embora seja similar ao método lógico, o campo de interpretação do método
sistemático é expandido, pois ele abarca o ordenamento jurídico como um todo. Isto
é, o sentido de um dispositivo legal particular é fixado em função da sua contribuição
para o ordenamento jurídico tomado na sua integralidade.
Método histórico: o método histórico prega que, para que possamos compreender
qual é o sentido corrente de um dispositivo legal qualquer, devemos buscar auxílio
no sentido que ela possuía no momento da sua edição. Isto é, para buscar o sentido
de um determinado dispositivo legal, procura-se analisar o contexto histórico que o
engendrou.
Método sociológico: a ideia por trás do método sociológico tem como norte a
questão da eficácia social do dispositivo normativo. Tendo sempre como objetivo
evitar que ela venha por acarretar injustiças sociais flagrantes.
Método teleológico: a ideia por trás do método de interpretação teleológico é
buscar a finalidade do texto legal, isto é, quais eram os objetivos ou as intenções que
o legislador visava ao editar tal e tal dispositivo legal.
Método axiológico: por fim, com o método axiológico, busca-se explicitar quais são
os valores que o legislador pretende concretizar com a edição de um certo dispositivo
normativo. Nesse contexto, é interessante notar que muitos teóricos consideram que
o método axiológico é um sinônimo do método teleológico.
12 Hermenêutica filosófica

BITTAR, E. C. B.; ALMEIDA, G. A. Curso de filosofia do Direito.11. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
GADAMER. Eric Gerlach, Berkeley, 2015. Disponível em: <https://ericgerlachdotcom.
files.wordpress.com/2015/06/gadamer.jpg>. Acesso em: 16 fev. 2018.
GADAMER, H. G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filo-
sófica. Petrópolis: Vozes, 2002.
MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicação do Direito. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1997.

Leituras recomendadas
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos Direitos humanos. 11. ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2017.
FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação.10.
ed. São Paulo: Atlas, 2018.
MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
MORRIS, C. (Org.). Os grandes filósofos do Direito: leituras escolhidas em Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
NADER, P. Filosofia do Direito. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 39. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
REALE, M. Introdução à filosofia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
REALE, M. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
VILLEY, M. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Dica do Professor

Neste vídeo, de forma resumida, você vai ver que existem muitos métodos de interpretação dos
textos legais. Quanto a isso, é comum encontrar, na literatura sobre o tema, uma classificação que
distingue os métodos de interpretação quanto à sua origem, à sua natureza, bem como quanto aos
seus efeitos. Deixando de lado a classificação com relação à origem, bem como aos efeitos, gostaria
de chamar a sua atenção para cinco modos comuns de interpretar as normas no que diz respeito
à sua natureza. Para saber mais sobre isso, convido-lhe a assistir a dica do professor.

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Exercícios

1) No que diz respeito à interpretação e à hermenêutica, é correto afirmar:

A) Interpretação e hermenêutica são sinônimos.

B) A hermenêutica tem por finalidade buscar o sentido das coisas.

C) A interpretação visa elucidar os métodos e os procedimentos utilizados para que a atividade


hermenêutica possa atingir com sucesso a sua finalidade precípua.

D) A hermenêutica visa elucidar os métodos e os procedimentos utilizados para que a atividade


interpretativa possa atingir com sucesso a sua finalidade precípua.

E) A interpretação não pressupõe que as coisas possuam uma mensagem que deve ser
decodificada.

2) Uma das questões mais importantes no contexto da hermenêutica diz respeito à relação
entre a interpretação e a aplicação do Direito. A propósito disso, é correto afirmar:

A) A aplicação visa elucidar a norma jurídica que abstratamente pode ser extraída de um
determinado texto legal qualquer.

B) A interpretação visa adequar a norma ao caso concreto.

C) Na base da hermenêutica clássica, temos a ideia segundo a qual a interpretação e a aplicação


consistem em uma mesma etapa.

D) Segundo a hermenêutica clássica, há o compromisso com a ideia de que a interpretação


antecede a aplicação.

E) Segundo a hermenêutica clássica, há o compromisso com a ideia de que a aplicação antecede


a interpretação.

3) Hans-Georg Gadamer foi um filósofo da tradição continental, cuja principal obra foi Verdade
e método. A propósito das ideias contidas em tal obra, sobretudo no que diz respeito ao
conceito de verdade, é correto afirmar:

A) Gadamer defendeu que a verdade é um conceito unívoco.


B) Para Gadamer, o caminho para a verdade é, por excelência, a investigação científica dos
fenômenos.

C) Gadamer era terminantemente contra a ideia de que existem verdades científicas.

D) Segundo Gadamer, verdade e verdade científica não são considerados sinônimos.

E) Gadamer sugere que o conceito de verdade se esgota no conceito de verdade científica.

4) A propósito da concepção de Gadamer acerca da hermenêutica, bem como acerca de sua


ideia acerca do círculo hermenêutico, é correto afirmar:

A) O primeiro passo para compreender o que a filosofia de Gadamer passa pela ideia de que o
sentido das coisas é atomista.

B) Segundo a filosofia de Gadamer, as partes de um todo possuem sentido a despeito do todo


em que estão inseridas.

C) A propósito do círculo hermenêutico, é correto afirmar que trata-se da ideia de que o


processo interpretativo se movimenta sistematicamente de baixo para cima e de cima para
baixo.

D) A propósito do círculo hermenêutico, é correto afirmar que trata-se da ideia de que o


processo interpretativo se movimenta apenas de baixo para cima.

E) A propósito do círculo hermenêutico, é correto afirmar que trata-se da ideia de que o


processo interpretativo se movimenta apenas de cima para baixo.

5) A propósito dos métodos clássicos de interpretação dos dispositivos legais, é correto


afirmar:

A) O ponto do método lógico é a ideia de que o conjunto de normas que compõem o


ordenamento jurídico devem estar em harmonia.

B) Com o método sistemático, valemo-nos das próprias leis do dispositivo normativo como um
todo para elucidar o sentido de dispositivos específicos que fazem parte dela.

C) A ideia por trás do método de interpretação teleológico é buscar a finalidade do texto legal.

D) O método histórico prega que, para explicitar o sentido da norma, não devemos buscar auxílio
no momento histórico em que a norma foi editada.
E) Na base do método axiológico está a busca pelo sentido literal do texto legal.
Na prática

Para que você agregue mais conhecimentos ao seu processo de aprendizagem, veja a seguir como
um futuro profissional explica a uma colega sobre a questão da distinção entre a interpretação e
aplicação do Direito. Dessa forma, você não vai deixar de continuar refletindo sobre a filosofia de
Gadamer.
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Saiba mais

Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor:

Introdução à Hermenêutica Jurídica


Para saber mais sobre o que é hermenêutica, assista ao vídeo "Introdução à Hermenêutica Jurídica -
O que é Hermenêutica?"

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Hermenêutica Jurídica (Aula 01 - Hermenêutica e Interpretação)


Neste vídeo, você vai compreender melhor a distinção entre hermenêutica e interpretação, bem
como alguns dos principais métodos de interpretação das normas jurídicas.

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O papel da linguagem na hermenêutica filosófica de Gadamer:


a linguagem como condição de compreensão do problema da
hermenêutica moderna
Confira, no link a seguir, o artigo sobre o pensamento de Gadamer, sobretudo no que diz respeito à
noção de hermenêutica filosófica.

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