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INSTITUTO BRASILEIRO DE ENSINO, DESENVOLVIMENTO E PESQUISA

MESTRADO ACADÊMICO EM CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE

RESENHA CRÍTICA
Verdade e Método

Timóteo Bezerra da Silva


Hermenêutica Filosófica e Jurídica: Compreendendo as Transformações no Direito
RA: 2314056

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método Vol. I. Petrópolis: Editora Vozes, pp. 459-556.

A velha tradição da hermenêutica, a qual Gadamer se refere em seu livro Verdade e


Método parte de um pressuposto de compreensão do mundo a partir do “ser”, seguindo a
tradição heideggeriana. O dasein em Heidegger, fortemente ligado a questão do “ser”, em
Gadamer vai tomar outra dimensão que estará ligado aos fenômenos históricos, culturais,
sociais, artísticas, sobretudo quando falamos nos estudo do Direito. Hans Georg Gadamer
vai sedimentar o que chamamos hoje de uma hermenêutica jurídica aplicada.
Quando falamos em hermenêutica jurídica, existem algumas chaves do castelo que
Gadamer fornece para, assim, adentrar nos muros da fortaleza hermenêutica.
Se tinha algo que incomodava Gadamer era o problema da aplicação hermenêutica.
Em J.J. Rambach nós vemos que o problema da hermenêutica se dividia em subtilitas
explicandi, subtilitas intelligendi e subtilitas applicandi, ou seja, nós compreendemos,
interpretamos para posteriormente aplicar, e assim se estabelece o processo hermenêutico.
Porém, Gadamer vem criticando essa fenomenologia hermenêutica, é a primeira
quebra paradigmática de uma tradição cartesiana. O fato de nós interpretarmos algo
(subtilitas intelligendi) significa que estamos compreendendo (subtilitas explicandi). A
interpretação não é um processo isolado, posterior à compreensão, Gadamer vai dizer que
aquele que compreender necessariamente interpreta, assim, a interpretação é a
manifestação clara de alguém que compreendeu algo.
Um texto sozinho, isolado não tem relevância, peso significativo, ou poder de
transformação, dizendo de outra forma, mesmo que se compreenda e interprete um texto
somente terá valor em sua aplicação prática. O texto quando diz algo, não diz para ficar nos
campo da subtilitas explicandi e intteligendi, diz para um determinado propósito prático. É o
chamado phronesis ou sabedoria prática, e esta aplicação prática é tão fundamental quanto
compreender e interpretar. Esta é a santíssima trindade da hermenêutica.
E nesse ponto chegamos a um problema interessante da hermenêutica
gadameriana: o problema do intérprete e como se deve interpretar. Falemos primeiro de
como se interpreta. Gadamer vai dizer que a ideia de interpretação seguia a seguinte lógica:
a hermenêutica nada mais era que um instrumento utilizado pelo intérprete para adaptar o
sentido do texto a um caso concreto. Recorrendo a Luhmann, a hermenêutica era o
instrumento usado para estabilizar as expectativas normativas da sociedade.
Todavia, Gadamer questiona essa cosmovisão dizendo que essa forma que enxergar
a hermenêutica é insuficiente para operacionalizar a dinâmica da vida e nesse ponto,
concordo com Gadamer. O Direito não caminha ao compasso dos tempos pela própria
ontologia do Direito. Não é próprio do Direito está à frente dos fatos, na verdade, os fatos
estão à frente do Direito, razão pela qual há a hermenêutica jurídica, para que o Direito diga
algo em relação aos fatos da vida e que tem relevância para o Direito e a convivência.
Com isso, o interprete não pode, de maneira satisfatória, interpretar um texto com
viés histórico, seguindo a finalidade estrita do criador do texto, ou para falar como Gadamer,
o interlocutor do texto. A forma como o intérprete deve olhar o texto, segundo Gadamer, é
se valendo do problema apresentado, dentro de seu contexto, para finalmente analisar o
sentido que o texto tem diante daquele problema.
Há um razão para eu ter dito acima que a santíssima trindade da hermenêutica é
compreender, interpretar e aplicar. O intérprete jamais pode retirar um desses requisitos sob
pena do seu trabalho restar prejudicado, ou pior, correr-se o risco de cometer terríveis
injustiças com aplicações simbólicas perfumadas de eruditismo jurídico, mas que nada mais
são do que águas agitadas pelo intérprete para parecerem profundas, para citar Nietzsche.
Portanto, ao interpretar algo, o intérprete deve olhar o problema, para então analisar o
sentido do texto.
Vejamos, por exemplo, o que fez Jesus quando os intérpretes da lei o trazem uma
mulher surpreendida em adultério. Na narrativa de João, capítulo 8, os doutores da lei
dizem: Mestre, essa mulher foi pega em adultério, e na lei, Moisés nos ordena apedrejar tais
mulheres. Então, Jesus se coloca em uma postura hermenêutica, ou seja, olha para o
problema apresentado para posteriormente fazer a interpretação aplicando a lei a partir do
caso concreto, em um movimento oposto dos mestres da lei.
Jesus se direciona aos mestres e diz “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o
primeiro a atirar pedra nela”. Os doutores da lei partiram de uma compreensão histórica da
lei, dogmática, o que por sua vez reverbera em injustiça, e esse é o problema quando o
intérprete busca fazer uma interpretação histórica desconsiderando o fato apresentado e
seu contexto. Jesus ensina que o ser humano não foi feita para a lei, mas a lei foi feita para
o ser humano, e que sua função cognitiva e normativa não podiam ser exercidas
desconexas de uma aplicação prática.
Contudo, isso não significa que devemos desprezar a tradição e a contribuição que
ela teve na construção ou pavimentação do caminho da história. Porém, a tradição não é
destino, não é um concreto imutável da história, ela está mais para uma massa de modelar,
que a depender do artífice construirá a sua obra conforme seu contexto.
Daí a importância do intérprete se abrir cognitivamente, como ensina Luhmann, para
compreender, interpretar e aplicar o Direito a partir de um fato que tenha relevância jurídica
para o seu tempo. Os escribas olhavam para a lei mosaica e a interpretavam conforme a
técnica ensinada pela tradição da hermenêutica judaica dos rabinos, porém, algo de
extraordinário ocorre com a hermenêutica judaica quando um nazareno aplica a lei, não a
partir do texto original, mas a partir dos fatos, e isso mudou toda perspectiva hermenêutica,
o dasein fora afetado e de um jeito positivo, mais leve e gracioso,
Somos seres datados, históricos, e a interpretação histórica do Direito somente faz
sentido se guardar relação prática (práxis) com a vida. Afinal, nada é estático nesse enorme
balé cósmico em que vivemos. Nós somos seres mundanos, e por estarmos jogados no
mundo, nada é fixo, tudo é contingencial, como ensina Luhmann. Logo, o intérprete que
despreza essa contingência mundana despreza o próprio valor do que é está na vida, logo a
sua interpretação se torna pobre em captar o real sentido do texto ante ao fato concreto.
Um gato jamais terá dilemas existenciais para sanar, nós jamais encontraremos um
gato angustiado, atormentado pelo peso de estar jogado no mundo. Não faz parte da
natureza do gato ter esse tipo de existência. Contudo, para o ser humano isso faz todo
sentido, isso significa viver, com todos os dilemas e angustias que permeiam a existência.
O gato jamais será capaz de se perceber através da linguagem porque a sua
existência sempre foi e sempre será igual, não existe um contexto em que na vida de um
gato ele teve que tomar decisões. O Professor Ernildo Stein vai dizer que não existe um ser
humano em estado neutro, todos nós somos produtos de uma construção histórica em que
fazemos a cada ponto da vida deliberações, empreendimentos, escolhas, erros e acertos.
Falemos um pouco do intérprete ou interpes, que era aquela pessoa na antiguidade
que examinava as entranhas do animal para prever o futuro. Assim o intérprete jamais
poderia exceder o seu objeto de apreciação sob pena de errar na atuação prevendo coisas
que jamais foram ditas ou que jamais estiveram nas “entranhas do animal”, dito de outra
forma, todo texto traz um sentido, seja uma lei, seja a bíblia sagrada. Parafraseando
Bertrand Russel, o problema não é a bíblia, mas sim as pessoas que a leiem. Logo, espera-
se que as decisões, interpretações e por conseguinte, a aplicação, não sejam produtos de
adulterações do sentido do texto que se moldam ao que Gadamer chamou de
autossoberania do intérprete.
Interpretar é sempre aplicar, já dissemos isso, porém, deve-se sempre observar o
sentido do texto, pois a ação de interpretar de forma nenhuma pode estar desvinculada do
sentido do texto. Melhor dizendo, o texto não diz somente o que eu quero que ele diga, isso
é autossoberania do intérprete. Nesse ponto, Gadamer vai nos dizer que nem o jurista nem
o teólogo tem liberdade frente ao texto. E aqui Gadamer pedagogicamente nos ensina que
não é possível aplicar o sentido do texto sem compreendê-lo. Esse foi o erro dos escribas
diante de Jesus, buscaram aplicar o texto da lei mosaica sem compreender o real sentido do
texto.
O texto sem fato é vazio, não faz sentido, e o sentido é dado pelo intérprete a partir
do fato concreto, já que interpretar é aplicar. Evidente que nem todo texto é claro quanto ao
seu sentido, por isso precisamos da figura do intérprete, que fará o exercício hermenêutico a
fim de encontrar o sentido do texto para o fato concreto, e o sentido jamais despreza a
relação humana. É isso que juristas e teólogos muitas vezes desprezam, o sentido do texto,
jurídico ou bíblico, não deve ser no sentido de escravizar o outro, não deve ser um relação
de poder, apesar de acreditar que muitas vezes o texto torna-se exatamente isso, um
instrumento de poder, que não constrói uma relação que faça sentido dentro da convivência
humana.
Luhmann vai dizer que ninguém está no centro do sistema, todos nós somos
observadores do outro. Gadamer de certa forma vai dizer que o sentido dado ao texto está
ligado diretamente ao horizonte hermenêutico de quem interpreta o texto, a depender do
horizonte o texto pode ter muitos sentidos.
E nesse ponto, alguns podem olhar com desconfiança e até temor de insegurança ao
permitir que o mesmo texto tenha múltiplos sentidos. Contudo, eu devo dizer que isso me
alegra e me enche de esperança porque compreender o mundo dessa forma é
precisamente entender o dasein, o qual falava Heidegger, é abraçar o que Luhmann tão
sabiamente chama de contingência, tudo poderia ser diferente do que é.
Eu termino esse texto fazendo duas reflexões práticas sobre a hermenêutica,
historicidade e sentido de textos. A primeira faz alusão à Reforma Protestante, que se
relaciona diretamente com a contingência luhmanniana e a sabedoria prática gadameriana.
A Igreja Católica poderia ter sido até hoje a única igreja universal, o Papa poderia
exercer seu poder político e religioso soberanamente em termos de dimensão e força como
era na idade média. Porém, estamos lançados no mundo, e nada é fixo, estável, imutável, e
um dia um monge da igreja católica leu um texto das sagradas escrituras que dizia que a
salvação era dada pela graça através da fé em Cristo Jesus, e que isso não era por mérito
humano, ou seja, a salvação não se dava através de obras.
Eu imagino que esse monge chamado Martinho Lutero já tenha lido aquele trecho da
bíblia várias vezes, portanto, não era uma novidade, porém, em um determinado momento
da história, em um determinado contexto social, em determinada contingência, aquele texto
do livro de Efésios, capítulo 2, teve outro sentido que mudou para sempre a história de
Lutero e do mundo, pelo menos até agora.
Note que Lutero, e isso vale ressaltar, não olhou para o texto e extraiu o sentido que
deu origem à Reforma Protestante, não, Lutero olha para os fatos, a corrupção na igreja, o
negócio da fé, a venda das indulgências, a riqueza e opulência da cúria romana e a pobreza
dos seus fieis, e então Lutero percebe que a hermenêutica estava equivocada. O sentido
que a Igreja Católica dava ao texto bíblico não era compatível com o contexto e realidade
fática vivida por Lutero naquele momento.
A segunda reflexão prática é um momento mais atual na história do Brasil quando o
Supremo Tribunal Federal faz uma interpretação e aplicação da Constituição Federal
reconhecendo a possibilidade de casais homoafetivos constituírem casamento e família em
decisão tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.
A despeito do texto constitucional ter se referido a união entre homem e mulher, a
relação do texto precisa encontrar sentido no mundo prático, e por sua vez a aplicação da
norma (práxis) precisa ser dada não pelas palavras do texto, mas pela realidade fática
relevante para o Direito, pois a pretexto de legalidade, o intérprete produzia verdadeira
injustiça nos moldes que fizeram os escribas, que olhavam para o texto desprezando a
realidade posta a sua frente.
Dessa forma, ao olhar para o texto e ignorar a realidade faz-se uma aplicação
equivocada, insuficiente que carece de sentido para estabilizar as expectativas sociais hoje,
o sentido não serve as constituinte originário, deve ter relação para o contexto atual.
Portanto, negar o reconhecimento ou até mesmo a existência de casais homoafetivos,
porque era isso que a interpretação do texto sem olhar para a realidade fazia, produzia uma
verdadeira injustiça ao aplicar o texto sem considerar o fato.
Os exemplos que poderíamos dar são muitos, mas penso que essas duas reflexões
ajudam a compreender as contribuições de Gadamer ao reformular a teoria de Heidegger
dando mais robustez teórica e prática para a hermenêutica jurídica.

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