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Contextos Clínicos, 5(1):52-61, janeiro-junho 2012

© 2012 by Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2012.51.06

Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como


estratégia de saída da invisibilidade social feminina

Women in drug trafficking: Criminality as a strategy to


overcome female social invisibility

Mariana Barcinski
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga, 6681,
Partenon, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil.
mariana.barcinski@pucrs.br

Resumo. Através da análise discursiva sistêmica (Falmagne, 2004) de entre-


vistas com duas mulheres com histórias passadas de envolvimento na rede do
tráfico em favelas do Rio de Janeiro, o presente artigo tem como objetivo en-
tender a forma como a entrada em uma atividade criminosa primordialmente
masculina representou para as participantes a possibilidade de se diferenciar de
outras mulheres ao seu redor, construindo suas identidades como “mulheres
especiais” em suas comunidades. Como membros de um grupo socialmente
marginalizado (de mulheres, pobres e, em sua maioria, negras), a participação
no tráfico de drogas conferira a essas mulheres um poder e um status reconhe-
cidos como propriedade dos homens. A análise evidencia que o poder como
traficante fora exercido quase que exclusivamente sobre outras mulheres. A dis-
tância de “mulheres comuns” e a simultânea aproximação ao mundo masculino
representado pelo tráfico de drogas, retiraram (mesmo que temporariamente)
as participantes da invisibilidade social que caracteriza a vida de mulheres em
periferias urbanas.

Palavras-chave: criminalidade feminina, invisibilidade, gênero.

Abstract. From the systemic discursive analysis (Falmagne, 2004) of interviews


with two women with a past history of involvement in drug trafficking in slums
in Rio de Janeiro, the present work has the goal of understanding the ways in
which joining a traditional male criminal activity had represented to partici-
pants the possibility to differentiate themselves from women around them. As
members of a socially marginalized group (of poor and usually black women),
participating in drug trafficking had given these women a power that is often
recognized as male property. Analyses show that the power as drug trafficker
had been almost always exerted over other women. The distance from “com-
mon women” and the consequent approximation to the male world represented
by drug trafficking had moved these women away (even if temporarily) from
the social invisibility that characterizes women’s lives in urban peripheries.

Key words: female criminality, invisibility, gender.


Mariana Barcinski

Introdução tidades primordialmente em oposição a ou-


tras mulheres ao seu redor. As referências ao
O ingresso de jovens de camadas mais po- poder e ao status adquiridos como traficantes
bres brasileiras na rede do tráfico de drogas ganham significado especial quando tratadas
como estratégia de fuga da invisibilidade sob uma perspectiva de gênero, se entender-
social e da falta do sentimento de pertença mos a violência e a transgressão como prerro-
que marcam suas vidas tem sido discutido gativas masculinas.
na literatura (Cruz Neto et al., 2001; Pereira, O objetivo deste trabalho, portanto, é com-
2009). Excluídos de um sistema social que preender como mulheres traficantes definem a
não reconhece sua existência no cotidiano, sua participação na rede do tráfico de drogas e
como consumidores ou em suas necessida- de que forma a descrição dessa participação –
des básicas de proteção, educação e traba- desde a motivação para a entrada até os papéis
lho, esses jovens optariam por atividades desempenhados na atividade – está permeada
criminosas para se tornarem visíveis. Cau- pela tentativa de saída da invisibilidade que
sar medo nas pessoas, através da associa- marca determinado grupo socialmente mar-
ção com facções criminosas e da ostentação ginalizado, especialmente as mulheres que
de armas ou tornar-se parte das estatísticas o compõem. Suas identidades são, portanto,
acerca da violência urbana são formas de ad- construídas primordialmente através da tenta-
quirir visibilidade, mesmo que carregada de tiva de adquirir uma visibilidade tradicional-
conotações e sentimentos negativos. mente reservada aos homens.
Nesse sentido, a rede do tráfico de drogas Antes da análise dos dados faz-se neces-
representa, para muitos jovens, diante de suas sário discutir a forma como a criminalidade
dificuldades relacionais, sociais e econômicas, feminina vem sendo teorizada na literatura.
umas das poucas possibilidades de inserção e O engajamento de mulheres em atividades cri-
de um sentimento (ainda que ilusório) de per- minosas, notadamente no tráfico de drogas, é
tencimento a um grupo. A inserção na ativi- descrito de maneira geral como subordinado à
dade propiciaria aos jovens o alcance do que participação dos homens nessas mesmas ativi-
Sales (2007) descreve como uma “visibilidade dades. Sem ignorar o fato de que parecem ser,
perversa”, estabelecida através da violência e de fato, os homens os maiores motivadores
da prática infracional. Violentado pela socieda- para a entrada das mulheres na rede do tráfico
de que o exclui, o jovem violenta aqueles que de drogas (Zaluar, 1993), a ênfase quase que
o condenam a tal invisibilidade, reforçando o exclusiva na criminalidade feminina como de-
estigma de “pobre e criminoso” a ele atrelado. corrente de suas relações afetivas retira o pro-
O sentimento temporário de pertencimento, tagonismo e reforça a invisibilidade feminina
portanto, reforça o estigma social que justifica na prática de crimes violentos e atividades ilí-
a exclusão e a invisibilidade a que são destina- citas. Ao ignorar as especificidades dos crimes
dos os jovens de certas camadas sociais. cometidos por mulheres, a própria literatura
Quando tratamos da participação feminina atesta ou reforça a invisibilidade feminina no
no tráfico de drogas, a questão da invisibilida- que se refere aos fenômenos sociais da violên-
de como motivadora de comportamentos cri- cia e da transgressão.
minosos ganha contornos peculiares. Como o
tráfico é, indiscutivelmente, reconhecido como Mulher e criminalidade
uma atividade masculina, participar dele dá A literatura em criminologia aponta para
às mulheres traficantes a possibilidade de se o papel central dos homens – especialmente
distinguir de outras mulheres. Elas se tornam os parceiros afetivos – na iniciação de mulhe-
visíveis (diferentes de outras) ao desempenha- res em atividades criminosas (Steffensmeier
rem tarefas reconhecidas como masculinas. A e Allan, 1996; Zaluar, 1993). Dessa forma, a
saída da invisibilidade, no caso das mulheres análise da criminalidade feminina está inti-
envolvidas no tráfico, se dá principalmente mamente relacionada à criminalidade mas-
pela diferenciação, pela afirmação de um po- culina. Além disso, as particularidades do
der antes exclusivo dos homens e pelo reco- envolvimento feminino em tais atividades fi-
nhecimento externo desse poder. cam obscurecidas por dados estatísticos que
Os dados analisados no presente artigo re- atestam para uma relevância periférica dos
fletirão as especificidades da participação fe- crimes cometidos pelas mulheres. Tais crimes
minina no tráfico de drogas e a forma como teriam, portanto, uma gravidade e uma conse-
as mulheres traficantes constroem suas iden- quência social reduzidas, quando comparados

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Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina

aos crimes perpetrados por homens (Souza, investigação tem como objetivo reconhecer o
2005). De uma maneira geral, as teorizações papel desempenhado por questões de gênero,
acerca dos comportamentos criminosos têm principalmente na prescrição de comporta-
sido baseadas nas experiências de homens, mentos masculinos e femininos (incluindo os
sem reflexões sobre se as teorias, os conceitos e comportamentos criminosos) na sociedade.
os resultados encontrados devem ser tratados Ao teorizar acerca das especificidades dos
sob uma perspectiva das diferenças de gênero crimes femininos, autores apontam para o
(Daly e Chesney-Lind, 1988). seu caráter relacional (Musumeci e Ilgenfritz,
Gilfus (1992) aponta para a falta de estudos 2002; Martins, 2009). Neste sentido, as mu-
em criminologia baseados numa apreciação lheres criminosas enfatizam seus papéis de
direta das percepções, experiências e motiva- cuidadoras e seu envolvimento é justificado
ções exclusivamente femininas. Ao invés de através da proteção das suas relações afetivas
procurar entender os motivos da disparida- (românticas) e familiares. O papel dos parcei-
de entre o número de crimes cometidos por ros é novamente enfatizado, porém através
homens e mulheres, a autora acredita que as de uma perspectiva que inclui a iniciativa
teorias deveriam se ocupar das experiências feminina na manutenção de suas relações.
de mulheres “reais” que decidem entrar para Ainda que motivadas principalmente pelo
o crime, contribuindo assim para um retrato desejo de proteger aqueles ao seu redor, esse
mais fiel da criminalidade feminina. entendimento acerca da criminalidade femi-
A partir de uma perspectiva de gênero nina pressupõe algum nível, mesmo dentro
podemos compreender que, para além da re- de limites rígidos, de exercício do desejo e da
duzida relevância social atribuída à crimina- atividade pessoal das mulheres.
lidade feminina, a ausência de estudos sobre Autores apontam ainda para o papel de-
mulheres envolvidas em atividades crimino- sempenhado pela discriminação social e pela
sas se deve também ao fato de a violência, a pobreza no delineamento de crimes femini-
agressividade e a transgressão não estarem nos (Chesney-Lind, 1989; Gilfus, 1992). Em
previstas nos discursos acerca do feminino. As um contexto caracterizado por relações pa-
explicações tradicionais para a diferença entre triarcais de poder, a vitimização, a margina-
as taxas de criminalidade feminina e masculi- lização e a invisibilidade criam um cenário
na baseiam-se na imagem da mulher como na- propício à criminalidade feminina. Portanto,
turalmente dócil, passiva e menos suscetível à a partir da perspectiva do lugar ocupado so-
prática de comportamentos violentos (Walker, cialmente pelas mulheres, o entendimento da
2003). Sob essa mesma perspectiva, Goetting criminalidade feminina deve necessariamente
(1988) sugere que a falta de atenção aos crimes envolver um nível mais amplo de análise, que
femininos se deve, em grande parte, ao fato de inclua o papel exercido pelo controle e pela
as expectativas sociais sobre os papéis desem- opressão sobre as mulheres em diferentes es-
penhados pelas mulheres legitimarem a posi- peras, do espaço privado das relações familia-
ção das mesmas como vítimas, mas não como res ao espaço público da divisão do trabalho
perpetradoras de violência. (Heidensohn, 1993).
Além de as características associadas ao
feminino servirem teoricamente como ele- Mulheres no tráfico de drogas
mentos protetivos à prática criminosa, a so- Dados do Departamento Penitenciário Na-
cialização feminina, com sua ênfase no espaço cional (DEPEN) apontam para uma taxa de
privado como domínio privilegiado de atua- crescimento de cerca de 38% no encarceramen-
ção das mulheres, seria a origem da partici- to feminino no Brasil entre os anos de 2004 a
pação subalterna das mulheres em atividades 2008, taxa significativamente maior que a do
ilícitas e da característica não violenta dos cri- encarceramento masculino no mesmo perío-
mes femininos (Assis e Constantino, 2001). A do. Um dado adicional importante é que 40%
invisibilidade das mulheres nas teorias acerca das mulheres encarceradas entre esses anos
da criminalidade seria, então, justificada pelo foram sentenciadas pelo crime de tráfico de
caráter atípico dos crimes por elas cometidos. drogas (Centro pela Justiça e pelo Direito In-
Numa tentativa de preencher a lacuna dei- ternacional 2007).
xada pelos estudos em criminologia de uma Apesar do expressivo aumento da crimi-
forma geral, estudiosas feministas têm inves- nalidade feminina no Brasil, especialmente da
tigado as especificidades da criminalidade fe- participação de mulheres no tráfico de drogas,
minina (Goodstein, 2001; Barcinski, 2009). Essa esse cenário ainda não justifica um proporcio-

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nal interesse acadêmico pelo tema. A partir de rem à mulher ideal e às expectativas a respeito
uma abordagem que ignora o protagonismo e dela. Nas palavras da autora: “A mulher ver-
a intencionalidade feminina, as mulheres trafi- dadeira do bandido é aquela que, junto com
cantes são vistas exclusivamente como vitimi- a mãe e as irmãs, o ajuda na hora do sufoco,
zadas por homens criminosos. Sua participa- quando está na prisão e precisa de dinhei-
ção na rede do tráfico é resultado da opressão, ro, advogado, roupas, comida e tudo mais”
do medo e da falta de opção que caracterizam (Zaluar, 1993, p. 181).
a vida de mulheres afetivamente envolvidas Apesar do sofrimento acarretado pela as-
com esses homens (Frinhani e Souza, 2005). sociação com um parceiro criminoso, incluin-
Os poucos relatos acerca de mulheres dire- do o seu potencial comportamento violento,
tamente envolvidas na rede do tráfico de dro- a mulher deve permanecer ao seu lado, aten-
gas são contados como anedotas; de certa for- dendo-o em suas necessidades, especialmente
ma, há um tom ficcional caracterizando suas na circunstância do encarceramento. Mesmo
histórias. Durante estudos em comunidades quando mantém relações afetivas e sexuais
populares no Rio de Janeiro, Zaluar (1993) cita com outras mulheres fora da prisão, o homem
apenas três mulheres envolvidas em ativida- encarcerado tem o direito de cobrar fidelida-
des criminosas. Por causa do caráter trans- de de sua parceira permanente (a “fiel”, como
gressor e não usual de suas atividades, essas é conhecida nas favelas do Rio de Janeiro) e
mulheres tornaram-se verdadeiras lendas nas de demandar sua presença, dinheiro e favores
favelas onde viviam. para tornar sua vida mais fácil na prisão. É
Apesar do crescente número de mulheres importante salientar como a identidade dessa
traficantes, atestado pela mídia e por incipien- mulher está construída – legitimando os dis-
tes iniciativas acadêmicas, a presença de valo- cursos hegemônicos acerca do feminino – em
res patriarcais no tráfico de drogas é evidente, torno da sua capacidade e dever de servir aos
em especial quando investigamos os papéis outros, atendendo constantemente às neces-
desenvolvidos usualmente pelas mulheres na sidades daqueles ao seu redor (Miller, 1986;
atividade. Como afirma Zaluar (1993), o trá- Gilligan, 1982).
fico, como atividade organizada, reproduz o A “mulher de bandido” é outro persona-
sistema hierárquico de gênero da sociedade gem na dinâmica do tráfico de drogas que
mais ampla. Apesar do caráter subversivo, a atesta para o caráter conservador e patriarcal
ideologia tradicional de gênero é curiosamen- da atividade. Ela se envolve no tráfico de dro-
te refletida nas dinâmicas internas da rede do gas – voluntariamente ou não – como resul-
tráfico de drogas. tado de seu relacionamento afetivo com um
Mais de 50% das mulheres entrevistadas “bandido”. Assim como a “fiel”, a mulher de
nos estudos de Zaluar, por exemplo, descre- bandido é submetida às leis informais e aos
vem seus papéis no tráfico como subordina- acordos tácitos que orientam a relação entre as
dos ou secundários, apesar de essa conotação pessoas (especialmente entre homens e mulhe-
crítica não ser necessariamente verbalizada res) na rede do tráfico de drogas.
de maneira explícita pelas mesmas. De forma Portanto, a inserção e a participação de mu-
similar, Barcinski (2008), a partir de pesquisa lheres no tráfico de drogas são, de formas di-
realizada com ex-traficantes de cinco favelas versas, influenciadas pela relação estabelecida
cariocas, atesta que a maior parte das mulhe- com homens na atividade. Ao lado de dificul-
res entrevistadas trabalhou como “vapor”, a dades financeiras e da falta de oportunidades
pessoa que vende drogas nas bocas-de-fumo1 em um mercado lícito de trabalho, o envolvi-
das comunidades, função considerada de pou- mento emocional com homens (amantes, ma-
co prestígio na hierarquia do tráfico. Além ridos, namorados, filhos e pais) é mencionado
das mulheres, crianças costumam ocupar essa como um dos maiores motivadores para o de-
mesmo posição, fato que corrobora a não valo- senvolvimento de atividades ilegais por parte
rização dessa função. das mulheres (Gay, 2005; Gilfus, 1992).
Zaluar argumenta que a presença de valo- Provavelmente pelo atestado papel dos
res tradicionais e hegemônicos fica clara, ain- homens na iniciação criminosa de mulheres,
da, quando identificamos as formas como os há ainda pouco interesse acadêmico acerca da
homens criminosos em seus estudos se refe- criminalidade feminina e das especificidades

1
Bocas-de-fumo são pontos reconhecidos de venda de drogas nas favelas.

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Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina

da inserção e da participação de mulheres em por estudos de caso baseia-se primordialmen-


atividades criminosas. Apesar do crescente te pela possibilidade desse delineamento em
aumento da participação feminina no tráfico acessar a profundidade e a complexidade dos
de drogas no Brasil, por exemplo, as mulheres casos estudados (Stake, 2003).
traficantes permanecem invisíveis, tendo suas As participantes entrevistadas têm longas
particularidades apagadas em função do pa- histórias de participação na rede do tráfico de
pel primordial desempenhando pelos homens drogas em uma das maiores favelas do Rio de
em suas “trajetórias criminosas”. Janeiro. As duas expressam grande orgulho
O objetivo do presente artigo é, através da das suas trajetórias criminosas, especialmente
experiência de mulheres diretamente envol- quando enfatizam o caráter não usual delas.
vidas no tráfico de drogas em favelas do Rio Ambas estavam, na ocasião das entrevistas,
de Janeiro, entender de que forma elas cons- afastadas do tráfico de drogas, se identifican-
troem as suas identidades a partir da vivência do, portanto, como “ex-traficantes”.
de invisibilidade que marca suas vidas. Invisí-
veis socialmente pela sua posição econômica, Participantes2
de classe e de cor, elas constroem suas iden- Denise tem 30 anos de idade, é negra e tem
tidades criminosas como forma resistência a uma história de participação de 15 anos na
sua posição marginalizada e, principalmente, rede do tráfico de drogas. Ela tem três filhas
contra a própria invisibilidade das mulheres e é casada com um homem que se encontrava
no tráfico de drogas. A investigação propos- encarcerado por essa mesma atividade crimi-
ta focará nas maneiras particulares como as nosa. Somado ao já não usual caráter da sua
mulheres traficantes se apropriam e resistem história como traficante, Denise representa um
a discursos hegemônicos acerca do feminino, caso excepcional dentro da própria atividade,
na tentativa de se aproximarem dos homens e uma vez que ocupou um cargo particularmen-
do poder usualmente associado a eles, através te prestigioso como traficante. Ela foi “geren-
do exercício da força e da dominação daqueles te” de uma boca-de-fumo em sua comunidade,
ao seu redor. responsável por todos os produtos ali vendi-
Algumas questões que norteiam a análi- dos e por todos os empregados trabalhando
se dos dados coletados são: de que forma a no local. Esse é um cargo tradicionalmente
participação no tráfico de drogas concede às ocupado por homens e Denise orgulha-se de
entrevistadas uma forma de visibilidade não ter sido das poucas mulheres a adquirir tama-
associada usualmente às mulheres? Quais as nho status na rede do tráfico de drogas. Seu
estratégias discursivas adotadas pelas entre- discurso evidencia, em diversos momentos, a
vistadas para se distanciarem das outras mu- consciência que Denise tem da não tipicidade
lheres ao seu redor, especialmente através da de sua trajetória.
menção à participação no tráfico de drogas? O Vanessa tem 26 anos, é mulata e trabalhou
foco da análise, portanto, será no processo de na rede do tráfico de drogas por 8 anos. Ao
construção de uma certa visibilidade femini- descrever sua atuação como traficante, ela
na, adquirida através do desempenho da in- acentua sua distância em relação a outras mu-
corporação de atividades e comportamentos lheres traficantes, principalmente por não ter
masculinos. se envolvido na atividade a partir de relações
afetivas com “bandidos” e por jamais ter temi-
Método do tomar parte em ações arriscadas no exer-
cício da função de traficante, tais como entrar
O presente trabalho baseia-se em estudos em confronto armado com a polícia ou com
de casos delineados a partir de entrevistas em facções criminosas rivais.
profundidade. Tais estudos têm como objetivo
descrever a trajetória de vida de duas mulhe- Entrevistas
res envolvidas no tráfico de drogas em fave- As entrevistas abertas e em profundida-
las cariocas, especialmente no que se refere à de aconteceram na sede de uma organização
construção de suas identidades através da afir- não-governamental (ONG) na qual as duas
mação do poder e de status tradicionalmente participantes trabalhavam à época da coleta
associado aos homens criminosos. A escolha de dados. A organização funciona na favela

2
Os nomes das participantes são fictícios.

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em que Denise e Vanessa moravam e seu ob- (Falmagne, 2004), que considerou os micro e
jetivo é o desenvolvimento de ações culturais macro elementos envolvidos no processo de
e educacionais em espaços populares, princi- construção da identidade das duas entrevista-
palmente como estratégia de enfrentamento das no presente estudo. Em nível macro, foram
ao grande atrativo representado pelo tráfico analisados os discursos mais frequentemente
de drogas aos jovens nesses espaços. As duas apropriados pelas entrevistadas na construção
participantes ingressarem na ONG após terem de suas trajetórias. Nesse nível, as identidades
abandonado o tráfico de drogas e auxiliam a são consideradas como o resultado da apro-
equipe da organização com as atividades re- priação e da resistência a discursos hegemôni-
alizadas com jovens ainda na rede do tráfico. cos. Teorizando acerca do poder constitutivo
Suas histórias passadas como traficantes e o de discursos culturais, Wetherell (1998) apon-
acesso privilegiado a pessoas ainda trabalhan- ta para o fato de que sujeitos são construídos
do na atividade fazem de Denise e Vanessa por discursos que se sedimentam na forma de
colaboradoras fundamentais nos trabalhos da linhas habituais de argumentação, ou “reper-
referida ONG. tórios interpretativos”.
Foram realizadas duas entrevistas em pro- De fundamental relevância para o entendi-
fundidade com cada uma das participantes. mento da construção das identidades das par-
Esse tipo de entrevista forneceu o tipo de ticipantes é a investigação da forma como elas
dados necessários para a análise discursiva se apropriam de discursos acerca do feminino
proposta neste trabalho. O caráter aberto das e do masculino, especialmente na delimitação
entrevistas encorajou a produção de relatos recorrente da diferenciação com outras mulhe-
mais espontâneos por parte das participantes, res ao seu redor. Em outras palavras, o discur-
uma vez que o processo não foi constrangido so das entrevistadas reflete, de maneiras di-
por uma estrutura pré-estabelecida de per- versas, a forma como as participantes exercem
guntas fixas (Fontana e Frey, 1994). As duas o poder primordialmente sobre outras mulhe-
participantes foram escolhidas por represen- res, legitimando tal poder como propriedade
tarem casos peculiares, uma vez que partici- masculina. Ao se afirmarem como traficantes,
param por longo período de tempo da rede Denise e Vanessa se aproximam dos homens
do tráfico de drogas e assumiram cargos de (e de todos os benefícios que lhes são exclusi-
prestígio na atividade. vos) e se distanciam de mulheres desprovidas
Cada entrevista – cujo foco foi a história de desse poder.
vida das participantes – durou cerca de duas Ao nível micro, o entendimento do discur-
horas. O objetivo era entender, a partir da pers- so das participantes deve se dar a partir da
pectiva das entrevistadas, quais os elementos análise das especificidades de suas histórias
familiares, culturais, sociais e econômicos que familiares, sociais e econômicas. É em nível
influenciaram a decisão dessas mulheres de micro – através da adoção de estratégias retóri-
ingressar na rede do tráfico de drogas. Por- cas específicas – que observamos a resistência
tanto, perguntas sobre a constituição e a dinâ- e a transformação de discursos hegemônicos.
mica familiar, sobre a vida afetiva e amorosa, Acerca da relevância do indivíduo e de seus
sobre a trajetória educacional e profissional recursos pessoais na constituição de subjetivi-
compuseram as entrevistas. O envolvimento dades, Chodorow (1995) afirma que devemos
no tráfico de drogas, com uma descrição deta- considerar a forma como discursos culturais
lhada dos papéis por elas desempenhados na são individualmente “animados” por pesso-
atividade, surgiu naturalmente no depoimen- as concretas, a partir das suas histórias, dos
to das entrevistadas. Seja porque elas sabiam seus medos e desejos. Dessa forma, conteúdos
do interesse da entrevistadora pelas suas his- sociais e culturais são dotados de individuali-
tórias como traficantes, seja porque tais histó- dade e singularidade a partir das experiências
rias, de fato, estão no centro do processo de pessoais daqueles que deles se apropriam de
construção de suas identidades, a “trajetória tais conteúdos.
criminosa” foi descrita por ambas sem que o Portanto, a análise sistêmica aqui proposta
tema tivesse que ser explicitamente introduzi- assume que as identidades são simultaneamen-
do nas entrevistas. te constituídas por discursos culturais hegemô-
nicos e estratégias individuais de apropriação
Análise dos dados e resistência a esses discursos. Os trechos de
Os dados coletados foram analisados a discurso analisados no presente trabalho evi-
partir de uma perspectiva discursiva sistêmica denciarão, portanto, as linhas habituais de

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Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina

argumentação e as transgressões ou os contra- Vanessa equaciona medo e respeito repe-


discursos construídos a partir da singularida- tidas vezes em seu discurso. Tal como descri-
de das duas participantes entrevistadas. to pela literatura, a invisibilidade social de
determinados grupos é temporariamente re-
Resultados mediada através da capacidade desses gru-
pos de causar medo em outros. Vanessa fala
Nesta seção, os dados serão analisados a com orgulho do temor que causava àqueles
partir da perspectiva sistêmica descrita acima. ao seu redor:
Serão reproduzidos e interpretados trechos de
discursos em que Denise e Vanessa discorrem Todo mundo que me batia antigamente não olha-
va nem pra minha cara. Passava por mim assim
sobre as suas trajetórias criminosas, utilizan-
de cabeça baixa. Sabe, tu vê quando as pessoas
do tal acontecimento (e suas especificidades) sente medo de você, tá com medo de você. Então
como estratégia para a saída da invisibilidade aquilo foi me fortalecendo cada vez mais. Ai fi-
feminina. Os trechos selecionados refletem as cava, ‘tá vendo, isso é o respeito’.
tentativas das participantes de estabelecerem
a distância entre elas e outras mulheres ao seu Após discorrer sobre as atividades exerci-
redor. Como dito anteriormente, é através des- das como “gerente” em uma boca-de-fumo na
sa diferenciação que as duas se tornam – ainda favela, Denise relata os sentimentos atrelados a
que temporariamente – visíveis como mulhe- ser reconhecida como bandida. Uma vez mais
res em suas favelas. o poder como traficante parece ser exercido de
forma relativa, especialmente subjugando ou-
Ser reconhecida como bandida tras mulheres:
Nos trechos a seguir, Denise e Vanessa se
referem ao poder adquirido ao serem reco- Me sentia superior. Todas tinham que ser sub-
nhecidas como mulheres traficantes por pes- missas a mim [...] era ótimo ter o controle de
soas de suas comunidades, especialmente por tudo. Assim, eu nunca nasci pra ser liderada, eu
tenho isso em mim. Eu sempre nasci pra ser líder.
outras mulheres. Ao ser perguntada sobre as
vantagens experimentadas através da parti-
Embora Denise aponte para uma suposta
cipação na rede do tráfico de drogas – o que
essência para a liderança (não usual nos dis-
talvez justificasse a longa história de perma-
cursos acerca do feminino), é fundamental
nência das entrevistadas na atividade – Vanes-
notarmos que o poder de gerente era exercido
sa responde:
primordialmente sobre as mulheres sob seu
Eu também gostava do respeito, tudo. Pô, eu che-
comando. Mesmo que responsável por todos
gava, era legal assim eu ir no baile aí, caramba, o trabalhando em seu ponto de venda – homens
baile cheião, um montão de vagabunda andando e e mulheres – Denise inclui apenas as mulheres
eu lá no meio. Caraca, todo mundo parava pra ol- no grupo das pessoas submissas a ela (“todas
har (risos da entrevistadora). Caraca, aí só ouvia tinham que ser submissas a mim”). O poder como
cochichando: “caraca, olha aquela garota. traficante parece ser exercido dentro dos limi-
tes sociais que estabelecem a força e comando
Ser respeitada e temida é central nos de- como prerrogativas masculinas. Segundo es-
poimentos de Vanessa. No trecho acima ela ses discursos, a mulher percebe a possibilida-
estabelece a distância em relação a outras me- de do exercício da força somente sobre aqueles
ninas/mulheres, fazendo uso de um termo pe- considerados mais vulneráveis (crianças e mu-
jorativo para se referir a elas (vagabundas). As lheres), no que Saffioti (1989) descreve como a
outras mulheres invejavam a posição de Va- “síndrome do pequeno poder”.
nessa como traficante, especialmente quando As duas participantes, para enfatizarem a
ela ostentava o poder que sua função lhe con- sua visibilidade como traficantes, subjugam
feria. A surpresa e a inveja de outras meninas e submetem outras mulheres ao seu poder.
se deviam especificamente ao fato de Vanessa Através do conceito de opressão internalizada,
chegar aos bailes portando um fuzil. Em sua Yamato (1995) nos fala do processo através
demonstração pública de poder, é acerca da do qual grupos socialmente marginalizados
reação das mulheres que Vanessa discorre; é reagem à opressão sofrida oprimindo pessoas
como se o reconhecimento do seu status por ou grupos percebidos como mais vulneráveis.
outras mulheres tivesse, para a participante, Nesse sentido, diminuir outras mulheres po-
um valor especial. tencialmente remove Denise e Vanessa da po-

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sição de tradicional submissão a que mulheres soldado). Apropriando-se de um discurso


(especialmente mulheres pobres, negras e mo- hegemônico que define o masculino como
radoras de favelas) são expostas. a oposição ao feminino (Torrão Filho, 2005),
ela constrói a sua identidade simultanea-
Ser uma mulher diferente mente por afastamento das atividades fe-
Nos trechos reproduzidos nesta seção, mininas e por aproximação do “mundo dos
as participantes se referem ao caráter pouco homens”, caracterizado pela expressão da
usual das atividades por elas desempenha- coragem e da força física.
das como traficantes. Com orgulho, Denise Ao ser questionada sobre a situação atual
e Vanessa falam do reconhecimento de sua da rede do tráfico de drogas, especialmente no
ousadia e coragem, especialmente pelos ho- que diz respeito à participação feminina, Deni-
mens traficantes. É se aliando aos homens, se constrói um relato que define a sua partici-
desempenhando funções masculinas e sendo pação na atividade como única, como um divi-
pelos eles reconhecidas como “mulheres dife- sor de águas no reconhecimento de mulheres
rentes” que as participantes destacam-se em traficantes. O trecho tem um tom de hipérbole,
meio a outras mulheres. Portanto, seu poder de intensa valorização da forma como ela atu-
não é somente garantido pelo exercício de ta- ara na rede do tráfico.
refas reconhecidas como masculinas – pelo
grau de violência que envolviam –, mas prin- Com a minha saída, com a minha recuada, fic-
cipalmente pela legitimação dos homens de aram poucas mulheres. Porque assim, eu além de
ser mulher envolvida com o tráfico, eu fazia mis-
tal poder. Além da inveja causada em outras
sões impossíveis. [...] Outras mulheres que ficar-
mulheres, a participação no tráfico de drogas am não faziam o que eu fazia. Foi por isso mesmo
é descrita como causadora de admiração por que o dono me concedeu essa oportunidade de me
parte dos homens. dar um preço na boca de fumo.
Quando perguntada sobre outras mulhe-
res na rede do tráfico de drogas, Vanessa dis- Uma vez mais, Denise se afasta de outras
corre sobre a particularidade da sua atuação mulheres ao enfatizar sua aproximação dos
na atividade: homens traficantes. Sua participação fora tão
relevante que o “dono” lhe concedera a opor-
Eu achava diferente uma mulher – a gente tunidade de trabalhar como gerente no ponto
praticamente não via nenhuma mulher no trá- de venda sob sua responsabilidade. “Dono”
fico. Aí os garotos também já gostava. [...] da
é o traficante que manda em todas as bocas-
forma que eu trabalhei no tráfico, eu só conheci
mais uma menina. de-fumo de uma favela; é ele quem designa
seus comparsas, os gerentes dos produtos nos
No trecho a seguir, ela explica o que dife- pontos de venda. E Denise, pela confiança ad-
renciava ela de outras mulheres envolvidas no quirida como traficante, recebeu do “dono” a
tráfico, usualmente desempenhando funções incumbência de gerenciar um dos pontos sob
consideradas de pouco prestígio, como a ven- seu comando. Assim como Denise, Vanessa
da de drogas nas bocas-de-fumo. também atribui a sua ascendência no tráfico de
drogas à confiança que inspirava nos “donos”
[onde] os garotos estavam, eu tava. Andava ar- do negócio. Portanto, a confiança garantira às
mado, dava tiro, trocava tiro. Tudo com eles e eu duas o distanciamento de outras mulheres tra-
fazia ali, entendeu? Sem- não ficava ali igual a ficantes (“que ficavam só vendendo drogas no
elas, só sentada vendendo. [...] como se eu fosse varejo”) e a visibilidade como boas traficantes.
um soldado mesmo, entendeu, do tráfico. Vanessa, nos trechos abaixo, reforça o poder
conquistado através do seu trabalho diferen-
Nas suas duas entrevistas, Vanessa enfa- ciado, marcado pelo desempenho de todas as
tiza a coragem e o destemor com que sempre atividades arriscadas nas quais os homens to-
assumiu as funções de traficantes. Como um mavam parte.
homem, “como um deles”, ela não limitava No trecho a seguir, Vanessa reproduz o di-
a sua atuação à venda de drogas. A identi- álogo do “dono” da boca-de-fumo com outras
ficação com os homens fica evidente acima, mulheres traficantes que se queixavam do po-
quando Vanessa simultaneamente se afasta der adquirido por ela:
das mulheres (“não ficava ali, igual a elas”)
e usa termos masculinos para se referir a sua Ela tá aqui porque ela merece. Você não tem
própria atuação (andava armado como um porque tu corre.

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Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina

A coragem de Vanessa, de agir como os ho- rias algumas palavras acerca da saída dessas
mens, não “correndo” dos embates travados mulheres da atividade. Denise e Vanessa, à
com a polícia ou com grupos rivais, garante a época das entrevistas, não mais faziam parte
sua ascendência. Novamente, quem concede da atividade, identificando-se ambas como ex-
a Vanessa o poder exercido sobre outras mu- traficantes. As duas relatam terem abandona-
lheres é um homem. Nesse caso, não somente do o tráfico de drogas após terem sido vítimas
a identificação com tarefas e comportamentos de abordagens extremamente violentas por
masculinos concede o poder às participantes, parte da polícia. O medo pela sua integrida-
como são os homens que concretamente con- de e pela segurança de suas famílias é apon-
cedem o status diferenciado a certas mulheres tado pelas duas como o motivador da saída
traficantes. da atividade. Portanto, a distância professada
em relação a outras mulheres é definida pelas
Discussão duas participantes em retrospecto, fazendo re-
ferência à atividade passada como traficantes e
As análises e as discussões propostas no ao ainda reconhecimento das pessoas ao redor
presente artigo representam uma tentativa desse papel então desempenhado por elas.
de ampliação do entendimento acerca do fe- A saída da atividade representou para as
nômeno da criminalidade feminina, especial- duas participantes uma volta à esfera domésti-
mente do crescente aumento de mulheres no ca do lar, do cuidado com a casa, com os filhos
tráfico de drogas das grandes capitais brasi- e os pais. Numa clara renúncia ao “poder mas-
leiras. Desconstruindo a centralidade do fator culino” e à consequente visibilidade adquirida
econômico como determinante nas trajetórias como mulheres especiais, Denise e Vanessa re-
criminosas femininas, o foco das análises recai tomam atividades típicas do universo feminino.
sobre o papel do poder e do status adquirido O discurso das duas reflete, em vários momen-
pelas mulheres traficantes. tos, o dilema entre ser uma mulher recuperada,
Como anteriormente mencionado, tal pers- reformada, porém invisível na comunidade e
pectiva, informada pelos estudos de gênero, o desejo de reviver o prazer experimentado no
entende como fundamental para a compreen- passado como traficante, distanciando-se nova-
são da criminalidade feminina a consideração mente das mulheres ao seu redor.
do papel subordinado ocupado por mulheres
em uma sociedade patriarcal, em que o poder Referências
é reconhecido como propriedade do homem. É
nesse contexto que ocupar o lugar de homens ASSIS, S.G.; CONSTANTINO, P. 2001. Filhas do
em uma atividade reconhecida como masculi- Mundo: Infração Juvenil no Rio de Janeiro. Rio de
na como o tráfico de drogas concede à mulher Janeiro, Editora Fiocruz, 284 p.
a possibilidade de saída (transitória e relativa) BARCINSKI, M. 2008. Women in drug trafficking. Sa-
arbrücken, VDM Verlag Dr. Müller, 162 p.
da invisibilidade característica de suas trajetó-
BARCINSKI, M. 2009. Centralidade de gênero no
rias. Dessa afirmação não decorre, no entanto, processo de construção da identidade de mu-
a suposição de que as mulheres traficantes, por lheres envolvidas na rede do tráfico de drogas.
adentrarem em um espaço antes reservado aos Revista Ciência e Saúde Coletiva, 14(5):1843-1853.
homens, transgridam a hierarquia característi- http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232009000500026
ca do sistema social de gênero. Como descrito CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO IN-
pela literatura e ilustrado pelos presentes da- TERNACIONAL. 2007. Relatório sobre mulheres
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trabalho, o sistema de gênero patriarcal vigen- CHESNEY-LIND, M. 1989. Girls’ crimes and wom-
te na sociedade mais ampla. Portanto, ter sido an’s place: Towards a feminist model of female
traficante e, principalmente, ter o reconheci- delinquency. Crime and Delinquency, 35(1):5-29.
mento externo dessa participação concede às http://dx.doi.org/10.1177/0011128789035001002
mulheres entrevistadas poder e status, porém CHODOROW, N. 1995. Gender as a personal and
dentro dos limites socialmente legitimados ao cultural construction. Signs: Journal of Women in
Culture and Society, 20(3):216-244.
exercício do poder feminino.
http://dx.doi.org/10.1086/494999
Se o argumento central do presente trabalho CRUZ NETO, O.; MOREIRA, M.R.; SUCENA, L.F.
é que a entrada no tráfico de drogas conferira 2001. Nem soldados nem inocentes: Juventude e tráfi-
às participantes o poder e o status tradicional- co de drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Edi-
mente associados aos homens, faz-se necessá- tora Fiocruz, 200 p.

Contextos Clínicos, vol. 5, n. 1, janeiro-junho 2012 60


Mariana Barcinski

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