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Mariana Barcinski
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga, 6681,
Partenon, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil.
mariana.barcinski@pucrs.br
aos crimes perpetrados por homens (Souza, investigação tem como objetivo reconhecer o
2005). De uma maneira geral, as teorizações papel desempenhado por questões de gênero,
acerca dos comportamentos criminosos têm principalmente na prescrição de comporta-
sido baseadas nas experiências de homens, mentos masculinos e femininos (incluindo os
sem reflexões sobre se as teorias, os conceitos e comportamentos criminosos) na sociedade.
os resultados encontrados devem ser tratados Ao teorizar acerca das especificidades dos
sob uma perspectiva das diferenças de gênero crimes femininos, autores apontam para o
(Daly e Chesney-Lind, 1988). seu caráter relacional (Musumeci e Ilgenfritz,
Gilfus (1992) aponta para a falta de estudos 2002; Martins, 2009). Neste sentido, as mu-
em criminologia baseados numa apreciação lheres criminosas enfatizam seus papéis de
direta das percepções, experiências e motiva- cuidadoras e seu envolvimento é justificado
ções exclusivamente femininas. Ao invés de através da proteção das suas relações afetivas
procurar entender os motivos da disparida- (românticas) e familiares. O papel dos parcei-
de entre o número de crimes cometidos por ros é novamente enfatizado, porém através
homens e mulheres, a autora acredita que as de uma perspectiva que inclui a iniciativa
teorias deveriam se ocupar das experiências feminina na manutenção de suas relações.
de mulheres “reais” que decidem entrar para Ainda que motivadas principalmente pelo
o crime, contribuindo assim para um retrato desejo de proteger aqueles ao seu redor, esse
mais fiel da criminalidade feminina. entendimento acerca da criminalidade femi-
A partir de uma perspectiva de gênero nina pressupõe algum nível, mesmo dentro
podemos compreender que, para além da re- de limites rígidos, de exercício do desejo e da
duzida relevância social atribuída à crimina- atividade pessoal das mulheres.
lidade feminina, a ausência de estudos sobre Autores apontam ainda para o papel de-
mulheres envolvidas em atividades crimino- sempenhado pela discriminação social e pela
sas se deve também ao fato de a violência, a pobreza no delineamento de crimes femini-
agressividade e a transgressão não estarem nos (Chesney-Lind, 1989; Gilfus, 1992). Em
previstas nos discursos acerca do feminino. As um contexto caracterizado por relações pa-
explicações tradicionais para a diferença entre triarcais de poder, a vitimização, a margina-
as taxas de criminalidade feminina e masculi- lização e a invisibilidade criam um cenário
na baseiam-se na imagem da mulher como na- propício à criminalidade feminina. Portanto,
turalmente dócil, passiva e menos suscetível à a partir da perspectiva do lugar ocupado so-
prática de comportamentos violentos (Walker, cialmente pelas mulheres, o entendimento da
2003). Sob essa mesma perspectiva, Goetting criminalidade feminina deve necessariamente
(1988) sugere que a falta de atenção aos crimes envolver um nível mais amplo de análise, que
femininos se deve, em grande parte, ao fato de inclua o papel exercido pelo controle e pela
as expectativas sociais sobre os papéis desem- opressão sobre as mulheres em diferentes es-
penhados pelas mulheres legitimarem a posi- peras, do espaço privado das relações familia-
ção das mesmas como vítimas, mas não como res ao espaço público da divisão do trabalho
perpetradoras de violência. (Heidensohn, 1993).
Além de as características associadas ao
feminino servirem teoricamente como ele- Mulheres no tráfico de drogas
mentos protetivos à prática criminosa, a so- Dados do Departamento Penitenciário Na-
cialização feminina, com sua ênfase no espaço cional (DEPEN) apontam para uma taxa de
privado como domínio privilegiado de atua- crescimento de cerca de 38% no encarceramen-
ção das mulheres, seria a origem da partici- to feminino no Brasil entre os anos de 2004 a
pação subalterna das mulheres em atividades 2008, taxa significativamente maior que a do
ilícitas e da característica não violenta dos cri- encarceramento masculino no mesmo perío-
mes femininos (Assis e Constantino, 2001). A do. Um dado adicional importante é que 40%
invisibilidade das mulheres nas teorias acerca das mulheres encarceradas entre esses anos
da criminalidade seria, então, justificada pelo foram sentenciadas pelo crime de tráfico de
caráter atípico dos crimes por elas cometidos. drogas (Centro pela Justiça e pelo Direito In-
Numa tentativa de preencher a lacuna dei- ternacional 2007).
xada pelos estudos em criminologia de uma Apesar do expressivo aumento da crimi-
forma geral, estudiosas feministas têm inves- nalidade feminina no Brasil, especialmente da
tigado as especificidades da criminalidade fe- participação de mulheres no tráfico de drogas,
minina (Goodstein, 2001; Barcinski, 2009). Essa esse cenário ainda não justifica um proporcio-
nal interesse acadêmico pelo tema. A partir de rem à mulher ideal e às expectativas a respeito
uma abordagem que ignora o protagonismo e dela. Nas palavras da autora: “A mulher ver-
a intencionalidade feminina, as mulheres trafi- dadeira do bandido é aquela que, junto com
cantes são vistas exclusivamente como vitimi- a mãe e as irmãs, o ajuda na hora do sufoco,
zadas por homens criminosos. Sua participa- quando está na prisão e precisa de dinhei-
ção na rede do tráfico é resultado da opressão, ro, advogado, roupas, comida e tudo mais”
do medo e da falta de opção que caracterizam (Zaluar, 1993, p. 181).
a vida de mulheres afetivamente envolvidas Apesar do sofrimento acarretado pela as-
com esses homens (Frinhani e Souza, 2005). sociação com um parceiro criminoso, incluin-
Os poucos relatos acerca de mulheres dire- do o seu potencial comportamento violento,
tamente envolvidas na rede do tráfico de dro- a mulher deve permanecer ao seu lado, aten-
gas são contados como anedotas; de certa for- dendo-o em suas necessidades, especialmente
ma, há um tom ficcional caracterizando suas na circunstância do encarceramento. Mesmo
histórias. Durante estudos em comunidades quando mantém relações afetivas e sexuais
populares no Rio de Janeiro, Zaluar (1993) cita com outras mulheres fora da prisão, o homem
apenas três mulheres envolvidas em ativida- encarcerado tem o direito de cobrar fidelida-
des criminosas. Por causa do caráter trans- de de sua parceira permanente (a “fiel”, como
gressor e não usual de suas atividades, essas é conhecida nas favelas do Rio de Janeiro) e
mulheres tornaram-se verdadeiras lendas nas de demandar sua presença, dinheiro e favores
favelas onde viviam. para tornar sua vida mais fácil na prisão. É
Apesar do crescente número de mulheres importante salientar como a identidade dessa
traficantes, atestado pela mídia e por incipien- mulher está construída – legitimando os dis-
tes iniciativas acadêmicas, a presença de valo- cursos hegemônicos acerca do feminino – em
res patriarcais no tráfico de drogas é evidente, torno da sua capacidade e dever de servir aos
em especial quando investigamos os papéis outros, atendendo constantemente às neces-
desenvolvidos usualmente pelas mulheres na sidades daqueles ao seu redor (Miller, 1986;
atividade. Como afirma Zaluar (1993), o trá- Gilligan, 1982).
fico, como atividade organizada, reproduz o A “mulher de bandido” é outro persona-
sistema hierárquico de gênero da sociedade gem na dinâmica do tráfico de drogas que
mais ampla. Apesar do caráter subversivo, a atesta para o caráter conservador e patriarcal
ideologia tradicional de gênero é curiosamen- da atividade. Ela se envolve no tráfico de dro-
te refletida nas dinâmicas internas da rede do gas – voluntariamente ou não – como resul-
tráfico de drogas. tado de seu relacionamento afetivo com um
Mais de 50% das mulheres entrevistadas “bandido”. Assim como a “fiel”, a mulher de
nos estudos de Zaluar, por exemplo, descre- bandido é submetida às leis informais e aos
vem seus papéis no tráfico como subordina- acordos tácitos que orientam a relação entre as
dos ou secundários, apesar de essa conotação pessoas (especialmente entre homens e mulhe-
crítica não ser necessariamente verbalizada res) na rede do tráfico de drogas.
de maneira explícita pelas mesmas. De forma Portanto, a inserção e a participação de mu-
similar, Barcinski (2008), a partir de pesquisa lheres no tráfico de drogas são, de formas di-
realizada com ex-traficantes de cinco favelas versas, influenciadas pela relação estabelecida
cariocas, atesta que a maior parte das mulhe- com homens na atividade. Ao lado de dificul-
res entrevistadas trabalhou como “vapor”, a dades financeiras e da falta de oportunidades
pessoa que vende drogas nas bocas-de-fumo1 em um mercado lícito de trabalho, o envolvi-
das comunidades, função considerada de pou- mento emocional com homens (amantes, ma-
co prestígio na hierarquia do tráfico. Além ridos, namorados, filhos e pais) é mencionado
das mulheres, crianças costumam ocupar essa como um dos maiores motivadores para o de-
mesmo posição, fato que corrobora a não valo- senvolvimento de atividades ilegais por parte
rização dessa função. das mulheres (Gay, 2005; Gilfus, 1992).
Zaluar argumenta que a presença de valo- Provavelmente pelo atestado papel dos
res tradicionais e hegemônicos fica clara, ain- homens na iniciação criminosa de mulheres,
da, quando identificamos as formas como os há ainda pouco interesse acadêmico acerca da
homens criminosos em seus estudos se refe- criminalidade feminina e das especificidades
1
Bocas-de-fumo são pontos reconhecidos de venda de drogas nas favelas.
2
Os nomes das participantes são fictícios.
em que Denise e Vanessa moravam e seu ob- (Falmagne, 2004), que considerou os micro e
jetivo é o desenvolvimento de ações culturais macro elementos envolvidos no processo de
e educacionais em espaços populares, princi- construção da identidade das duas entrevista-
palmente como estratégia de enfrentamento das no presente estudo. Em nível macro, foram
ao grande atrativo representado pelo tráfico analisados os discursos mais frequentemente
de drogas aos jovens nesses espaços. As duas apropriados pelas entrevistadas na construção
participantes ingressarem na ONG após terem de suas trajetórias. Nesse nível, as identidades
abandonado o tráfico de drogas e auxiliam a são consideradas como o resultado da apro-
equipe da organização com as atividades re- priação e da resistência a discursos hegemôni-
alizadas com jovens ainda na rede do tráfico. cos. Teorizando acerca do poder constitutivo
Suas histórias passadas como traficantes e o de discursos culturais, Wetherell (1998) apon-
acesso privilegiado a pessoas ainda trabalhan- ta para o fato de que sujeitos são construídos
do na atividade fazem de Denise e Vanessa por discursos que se sedimentam na forma de
colaboradoras fundamentais nos trabalhos da linhas habituais de argumentação, ou “reper-
referida ONG. tórios interpretativos”.
Foram realizadas duas entrevistas em pro- De fundamental relevância para o entendi-
fundidade com cada uma das participantes. mento da construção das identidades das par-
Esse tipo de entrevista forneceu o tipo de ticipantes é a investigação da forma como elas
dados necessários para a análise discursiva se apropriam de discursos acerca do feminino
proposta neste trabalho. O caráter aberto das e do masculino, especialmente na delimitação
entrevistas encorajou a produção de relatos recorrente da diferenciação com outras mulhe-
mais espontâneos por parte das participantes, res ao seu redor. Em outras palavras, o discur-
uma vez que o processo não foi constrangido so das entrevistadas reflete, de maneiras di-
por uma estrutura pré-estabelecida de per- versas, a forma como as participantes exercem
guntas fixas (Fontana e Frey, 1994). As duas o poder primordialmente sobre outras mulhe-
participantes foram escolhidas por represen- res, legitimando tal poder como propriedade
tarem casos peculiares, uma vez que partici- masculina. Ao se afirmarem como traficantes,
param por longo período de tempo da rede Denise e Vanessa se aproximam dos homens
do tráfico de drogas e assumiram cargos de (e de todos os benefícios que lhes são exclusi-
prestígio na atividade. vos) e se distanciam de mulheres desprovidas
Cada entrevista – cujo foco foi a história de desse poder.
vida das participantes – durou cerca de duas Ao nível micro, o entendimento do discur-
horas. O objetivo era entender, a partir da pers- so das participantes deve se dar a partir da
pectiva das entrevistadas, quais os elementos análise das especificidades de suas histórias
familiares, culturais, sociais e econômicos que familiares, sociais e econômicas. É em nível
influenciaram a decisão dessas mulheres de micro – através da adoção de estratégias retóri-
ingressar na rede do tráfico de drogas. Por- cas específicas – que observamos a resistência
tanto, perguntas sobre a constituição e a dinâ- e a transformação de discursos hegemônicos.
mica familiar, sobre a vida afetiva e amorosa, Acerca da relevância do indivíduo e de seus
sobre a trajetória educacional e profissional recursos pessoais na constituição de subjetivi-
compuseram as entrevistas. O envolvimento dades, Chodorow (1995) afirma que devemos
no tráfico de drogas, com uma descrição deta- considerar a forma como discursos culturais
lhada dos papéis por elas desempenhados na são individualmente “animados” por pesso-
atividade, surgiu naturalmente no depoimen- as concretas, a partir das suas histórias, dos
to das entrevistadas. Seja porque elas sabiam seus medos e desejos. Dessa forma, conteúdos
do interesse da entrevistadora pelas suas his- sociais e culturais são dotados de individuali-
tórias como traficantes, seja porque tais histó- dade e singularidade a partir das experiências
rias, de fato, estão no centro do processo de pessoais daqueles que deles se apropriam de
construção de suas identidades, a “trajetória tais conteúdos.
criminosa” foi descrita por ambas sem que o Portanto, a análise sistêmica aqui proposta
tema tivesse que ser explicitamente introduzi- assume que as identidades são simultaneamen-
do nas entrevistas. te constituídas por discursos culturais hegemô-
nicos e estratégias individuais de apropriação
Análise dos dados e resistência a esses discursos. Os trechos de
Os dados coletados foram analisados a discurso analisados no presente trabalho evi-
partir de uma perspectiva discursiva sistêmica denciarão, portanto, as linhas habituais de
A coragem de Vanessa, de agir como os ho- rias algumas palavras acerca da saída dessas
mens, não “correndo” dos embates travados mulheres da atividade. Denise e Vanessa, à
com a polícia ou com grupos rivais, garante a época das entrevistas, não mais faziam parte
sua ascendência. Novamente, quem concede da atividade, identificando-se ambas como ex-
a Vanessa o poder exercido sobre outras mu- traficantes. As duas relatam terem abandona-
lheres é um homem. Nesse caso, não somente do o tráfico de drogas após terem sido vítimas
a identificação com tarefas e comportamentos de abordagens extremamente violentas por
masculinos concede o poder às participantes, parte da polícia. O medo pela sua integrida-
como são os homens que concretamente con- de e pela segurança de suas famílias é apon-
cedem o status diferenciado a certas mulheres tado pelas duas como o motivador da saída
traficantes. da atividade. Portanto, a distância professada
em relação a outras mulheres é definida pelas
Discussão duas participantes em retrospecto, fazendo re-
ferência à atividade passada como traficantes e
As análises e as discussões propostas no ao ainda reconhecimento das pessoas ao redor
presente artigo representam uma tentativa desse papel então desempenhado por elas.
de ampliação do entendimento acerca do fe- A saída da atividade representou para as
nômeno da criminalidade feminina, especial- duas participantes uma volta à esfera domésti-
mente do crescente aumento de mulheres no ca do lar, do cuidado com a casa, com os filhos
tráfico de drogas das grandes capitais brasi- e os pais. Numa clara renúncia ao “poder mas-
leiras. Desconstruindo a centralidade do fator culino” e à consequente visibilidade adquirida
econômico como determinante nas trajetórias como mulheres especiais, Denise e Vanessa re-
criminosas femininas, o foco das análises recai tomam atividades típicas do universo feminino.
sobre o papel do poder e do status adquirido O discurso das duas reflete, em vários momen-
pelas mulheres traficantes. tos, o dilema entre ser uma mulher recuperada,
Como anteriormente mencionado, tal pers- reformada, porém invisível na comunidade e
pectiva, informada pelos estudos de gênero, o desejo de reviver o prazer experimentado no
entende como fundamental para a compreen- passado como traficante, distanciando-se nova-
são da criminalidade feminina a consideração mente das mulheres ao seu redor.
do papel subordinado ocupado por mulheres
em uma sociedade patriarcal, em que o poder Referências
é reconhecido como propriedade do homem. É
nesse contexto que ocupar o lugar de homens ASSIS, S.G.; CONSTANTINO, P. 2001. Filhas do
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