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Protagonismo e vitimização na trajetória de mulheres

TEMAS LIVRES FREE THEMES


envolvidas na rede do tráfico de drogas no Rio de Janeiro

Agency and victimization in the trajectory of women


involved in drug trafficking in Rio de Janeiro

Mariana Barcinski 1

Abstract The goal of the present article is to discuss Resumo O presente artigo tem o objetivo de proble-
the traditional victimization of women who get in- matizar a tradicional vitimização de mulheres que
volved in criminal activities, focusing on agency and se envolvem com atividades criminosas, chamando
personal initiative as the main motivators. Through a atenção para o protagonismo e a iniciativa pessoal
the discursive analysis of qualitative interviews with como motivadores para trajetórias criminosas femi-
five women with a history in drug trafficking in Rio ninas. A partir da análise discursiva de entrevistas
de Janeiro we sought to capture the dilemmas that qualitativas com cinco mulheres com uma história
characterize the ways in which these women justify passada de envolvimento na rede do tráfico de drogas
their participation in a traditional male activity. At no Rio de Janeiro, a intenção é captar os dilemas que
a micro level, the analysis focuses on the rhetoric caracterizam a forma como estas mulheres justifi-
efficacy of the different positions assumed by the par- cam a sua inserção numa atividade criminosa pri-
ticipants1. At a macro level, the analysis investigates mordialmente masculina. Ao nível micro, a análise
how the participants appropriate different discours- tratará da eficácia retórica dos diversos posiciona-
es about womanhood in order to give sense to their mentos assumidos pelas participantes1. De forma
personal histories2. The results show that the partic- complementar, investigará de que forma as entrevis-
ipants oscillate between appealing to external causes tadas se apropriam de discursos hegemônicos acerca
for justifying their choice (such as the lack of options da feminilidade para dar sentido às suas estórias pes-
characterizing the trajectory of marginalized popu- soais2. Os resultados demonstram que as participan-
lations and the personal involvement with criminal tes ora apelam para os motivos externos que justifi-
partners) and assuming responsibility for having been cam suas escolhas (como a falta de opção que marca
involved in drug trafficking. In this case, they often a trajetória de populações marginalizadas como os
mention the power and respect they used to experi- favelados ou o envolvimento com parceiros crimi-
ence as traffickers as the main motivator for their nosos), ora assumem total responsabilidade por te-
criminal trajectory. rem se envolvido com o tráfico de drogas. Neste últi-
Key words Agency, Gender, Criminality, Discourse mo caso, é comum que citem o poder e o respeito que
1
Centro Latino-Americano
de Estudos Violência e
experimentavam como traficantes como o principal
Saúde Jorge Careli, Escola motivador para suas escolhas.
Nacional de Saúde Pública. Palavras-chave Protagonismo, Gênero, Crimina-
Fiocruz. Av. Brasil 4.036/
700, Manguinhos.
lidade, Discurso
21040-361 Rio de Janeiro
RJ. barcinski@fiocruz.br
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Introdução sabido, por exemplo, que quando uma mulher


transgride a lei, ela o faz em circunstâncias absolu-
Apesar da criminalidade feminina, especialmente a tamente diferentes daquelas em que os homens tor-
participação de mulheres no tráfico de drogas, ter nam-se foras da lei. Há diferenças substanciais
aumentado nos últimos quinze anos no Brasil3, tal entre a criminalidade feminina e a masculina, dife-
cenário ainda não justifica um proporcional inte- renças estas que clamam por uma interpretação
resse acadêmico pelo tema. No campo da crimi- mais acurada6. Investigar essas diferenças parece
nologia em geral, poucos esforços têm sido feitos ser o primeiro passo para reconhecer o papel de-
no sentido de entender o contexto particular no sempenhado por questões de gênero, principal-
qual mulheres decidem participar de atividades mente na prescrição de comportamentos masculi-
criminosas tradicionalmente masculinas e as espe- nos e femininos (incluindo os comportamentos
cificidades desta participação. Gilfus4, por exem- criminosos) na sociedade.
plo, aponta para a falta de estudos baseados numa Ao teorizar acerca das especificidades dos cri-
apreciação direta das percepções, experiências e mes femininos, autores apontam para o caráter
motivações exclusivamente femininas. Em vez de relacional destes crimes7. De acordo com essa pers-
procurar entender os motivos da enorme dispari- pectiva, as mulheres criminosas enfatizam seus
dade no número de crimes cometidos por homens papéis de cuidadoras e seu envolvimento é usual-
e mulheres, esse autor acredita que as teorias deve- mente caracterizado como protetor das suas rela-
riam se debruçar sobre a experiência de mulheres ções afetivas (românticas) e familiares.
“reais” que decidem entrar para o mundo do cri- O presente artigo visa problematizar a tradici-
me, contribuindo assim para um retrato mais fiel onal vitimização de mulheres envolvidas em ativi-
da criminalidade feminina. dades criminais, posicionando-as como agentes em
Provavelmente por causa da óbvia influência suas escolhas. Obviamente, não se trata de uma
masculina na iniciação de mulheres no crime, a parti- tentativa de minimizar o impacto da subordina-
cipação feminina continua a ser pensada e teoriza- ção e opressão femininas como fundamentais para
da principalmente através do envolvimento destas entender o processo através do qual mulheres tor-
mulheres com seus parceiros. De acordo com essa nam-se criminosas. Trata-se, entretanto, de colo-
perspectiva, o protagonismo e a intencionalidade car estas mulheres no centro do processo decisó-
feminina são ignorados e as mulheres que se envol- rio, enfatizando sua intencionalidade, criatividade
vem em atividades criminosas são vistas exclusiva- e a força das suas trajetórias pessoais. Portanto,
mente como vitimizadas por homens criminosos. além dos elementos contextuais e interpessoais
Sua participação absolutamente involuntária é re- comumente reportados por mulheres que se en-
sultado da opressão, do medo e da falta de opção volvem com o crime, esse estudo visa lançar luz
que supostamente caracterizam a vida de mulheres sobre o protagonismo feminino e sua importân-
afetivamente envolvidas com estes homens. cia no processo de criminalização de mulheres.
As explicações tradicionais para a diferença nas Mais especificamente, o artigo tem como obje-
taxas de criminalidade feminina e masculina ba- tivo captar os dilemas envolvidos na forma como
seiam-se na imagem da mulher como naturalmente mulheres justificam a sua participação em ativida-
dócil, passiva e menos suscetível à prática de com- des ilícitas, ora apelando para fatores externos e
portamentos violentos. Os crimes femininos são estruturais, ora assumindo total responsabilidade
então justificados pela desumanização da crimi- pelas suas escolhas. Posicionando-se simultanea-
nosa. Sustentando uma representação da mulher mente como vítimas de um sistema social injusto
como essencialmente gentil, estes discursos suge- ou de parceiros criminosos violentos e como agen-
rem a natureza diabólica de mulheres criminosas. tes conscientemente engajados em suas escolhas, as
Uma vez que a violência e a agressão não fazem mulheres aqui entrevistadas evidenciam os dilemas
parte da “natureza feminina”, mulheres que se en- e as contradições que marcam suas identidades.
gajam em crimes são consideradas “loucas” e ne- O fato do tráfico de drogas ser reconhecido
cessitando de intervenção legal ou psicológica. De- como uma atividade masculina faz da análise da
finir a mulher transgressora como louca ou como trajetória destas mulheres uma empreitada parti-
vítima de violência enfatiza a irracionalidade e a cularmente complexa. Pelo caráter não usual de
falta de protagonismo feminina5. suas experiências, espera-se que o processo de cons-
Numa tentativa de preencher a lacuna deixada trução de identidade destas mulheres seja marca-
pelos estudos em criminologia de uma forma ge- do por uma negociação constante entre diferentes
ral, algumas estudiosas feministas têm investiga- discursos acerca do feminino2. Portanto, pela pró-
do as especificidades da criminalidade feminina. É pria natureza da atividade em que estas mulheres
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tomam parte, não surpreende que suas identida- mente, todas as participantes estão empregadas
des sejam marcadas por tensões e contradições, em atividades legais ou desempregadas.
usualmente refletidas na apropriação de discursos Originalmente, todas as entrevistas seriam reali-
dissonantes acerca das suas condições. zadas na sede da referida ONG, localizada em uma
das maiores favelas do Rio de Janeiro. No entanto,
algumas participantes recusaram-se a ir ao meu
Método encontro. É sabido que as facções criminosas que
controlam o tráfico de drogas na cidade estabele-
Participantes cem rígidas barreiras entre diferentes favelas. Desta
forma, o fluxo de pessoas comuns, mesmo aquelas
As participantes deste estudo são cinco mulhe- não envolvidas na atividade (como é o caso das
res com uma história passada de envolvimento participantes atualmente), é determinado pelas li-
com o tráfico de drogas em favelas do Rio de Ja- nhas imaginárias estabelecidas pelas facções. Mora-
neiro. No esboço original do estudo, a idéia era dores têm total conhecimento destas limitações e
entrevistar mulheres atualmente envolvidas na ati- evitam transitar por favelas dominadas por fac-
vidade. No entanto, logo no início do trabalho de ções rivais (diferentes daquelas que controlam o
campo, tornou-se óbvia a inviabilidade deste pro- tráfico na sua própria favela). Por este motivo, para
jeto. Os riscos para ambas as partes envolvidas entrevistar três participantes, eu precisei ir ao encon-
(entrevistadas e entrevistadora) eram muitos al- tro delas nas favelas em que elas moravam. As de-
tos, especialmente levando-se em consideração que mais entrevistas foram realizadas na sede da ONG.
o estudo previa a condução de entrevistas longas, Como os dados aqui analisados são parte da
abertas e em profundidade e que tais entrevistas minha tese de doutorado defendida em 2006 no
deveriam ser gravadas em áudio para a análise dis- departamento de Psicologia da Clark University,
cursiva proposta. Diante do medo de ambos seus nos Estados Unidos, o estudo foi submetido e apro-
parceiros criminosos e da polícia, as participantes vado pelo comitê de ética da referida universidade.
certamente se recusariam a falar sobre as suas tra- Os nomes das participantes, bem como qualquer
jetórias no tráfico de drogas. informação que pudesse identificá-las, foram alte-
A escolha por um número reduzido de partici- rados por motivos de segurança e privacidade. As
pantes deveu-se em parte pela óbvia dificuldade de participantes foram informadas do caráter volun-
recrutar mulheres nesta situação particular e, mais tário da sua participação e tiveram total liberdade
uma vez, pela metodologia adotada no estudo. para interromper as entrevistas (ou a sua grava-
Para a análise discursiva qualitativa proposta, pa- ção) caso não se sentissem à vontade com os te-
receu-me apropriado trabalhar com poucas par- mas discutidos.
ticipantes. Além disso, a minha intenção era anali-
sar a fundo o processo de construção de identida- Entrevistas
de destas mulheres, buscando nas suas histórias
pessoais e familiares, bem como em seus contex- A parte inicial das entrevistas tinha como obje-
tos sociais e econômicos, parte da sua motivação tivo explorar alguns aspectos da vida atual das par-
para ingressarem no tráfico de drogas. Portanto, ticipantes, como a sua situação de trabalho, a es-
na tentativa de conhecer estas mulheres mais a fun- trutura familiar e suas relações afetivas e românti-
do, a escolha por um número pequeno de partici- cas. O motivo para começar as entrevistas inda-
pantes foi a mais apropriada. gando acerca das suas experiências presentes foi
As participantes foram recrutadas por uma evitar a resistência das entrevistadas. Em uma en-
ONG que desenvolve trabalhos voltados para a trevista piloto realizada seis meses antes da coleta
provisão de alternativas educacionais e profissio- dos dados, uma das participantes havia expressa-
nais para jovens envolvidos na rede do tráfico de do o desinteresse e o cansaço de falar sobre o seu
drogas em comunidades cariocas. Todas as entre- passado como traficante. Ao falar das suas vidas
vistadas atuaram diretamente na estrutura do trá- presentes, suas histórias como traficantes emergi-
fico, seja vendendo e embalando drogas ou trans- am espontaneamente como parte das suas traje-
portando drogas e armamentos entre diferentes tórias de vida. Surpreendentemente, suas histórias
favelas. Dentre elas, há uma mulher que trabalhou no tráfico de drogas constituíram a maior parte
como “gerente” de uma boca de fumo. Como esse das entrevistas, juntamente com os seus planos
é um papel comumente desempenhado por ho- para o futuro fora da atividade.
mens, essa entrevistada em particular mostra-se Esta primeira parte das entrevistas teve tam-
orgulhosa por ter ocupado essa posição. Atual- bém como objetivo investigar as especificidades do
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posicionamento social das participantes, enfatizan- mulheres mostram-se empenhadas em construir


do suas percepções acerca das suas realidades es- as suas identidades como vítimas. Desta forma, sua
truturais e contextos culturais. De acordo com a participação no tráfico de drogas fora o resultado
perspectiva adotada no estudo, esse é um passo de uma falta de opção (dado o contexto social e
fundamental para contextualizar o discurso e as econômico em que vivem), em vez de uma atitude
trajetórias de cada participante. intencionalmente motivada. Como mulher, eu pos-
A partir daí, as entrevistas foram conduzidas sivelmente me orgulharia do protagonismo e da
na tentativa de investigar a maneira como as par- intencionalidade enfatizada pelas participantes. Por
ticipantes construíam as suas identidades como outro lado, como representante oficial da referida
criminosas. As perguntas foram então elaboradas instituição, eu provavelmente desaprovaria a deli-
para que elas falassem sobre a sua efetiva partici- berada inserção delas numa atividade ilícita como
pação no tráfico de drogas, sobre os papéis que o tráfico de drogas.
desempenharam na atividade, sobre as diferenças Como mencionado acima, o discurso das par-
entre homens e mulheres traficantes no que diz ticipantes é marcado pelo dilema de posicionarem-
respeito a estes papéis e sobre as razões pessoais se, ao mesmo tempo, como agentes em suas deci-
para ingressarem numa atividade tradicionalmen- sões e como vítimas de um sistema (social, econô-
te masculina. mico e de gênero) que não lhes deixa outra oportu-
A direção e o fluxo das entrevistas foram quase nidade senão o caminho da criminalidade. Não é o
que exclusivamente determinados pelas contribui- objetivo da presente análise investigar os “reais”
ções espontâneas das participantes. Freqüentemen- motivos por trás do discurso ambíguo das partici-
te, elas introduziam temas que não constavam do pantes, mas justamente apontar para a natureza
protocolo original de entrevista. O caráter flexível dilemática das suas identidades. Além de reconhe-
das entrevistas provou ser bastante produtivo, cer a tensão presente em seus depoimentos, a aná-
contribuindo para uma menor resistência por parte lise se ocupará da investigação dos possíveis signifi-
das entrevistadas. cados destas contradições. Em outras palavras, a
questão é examinar o impacto destes diferentes
posicionamentos (como vítimas ou como agentes)
Análise na construção da identidade das entrevistadas.
No nível macro, serão analisados os discursos
Através da análise discursiva das entrevistas quali- mais freqüentemente apropriados pelas entrevis-
tativas conduzidas com estas cinco mulheres, o tadas na construção das suas estórias. Neste nível,
presente artigo investiga a forma como elas justifi- identidades são consideradas também como o re-
cam a sua entrada e permanência no tráfico de sultado da apropriação e resistência a discursos
drogas, uma atividade primordialmente masculi- hegemônicos. Teorizando acerca do poder consti-
na, oscilando na construção de diferentes e con- tutivo de discursos culturais, Wetherell8 aponta
traditórias justificativas. para o fato de que sujeitos são construídos por
De acordo com uma perspectiva que considera discursos que se sedimentam na forma de linhas
as identidades como construídas no curso de inte- habituais de argumentação. Portanto, é através da
rações sociais1, a presente análise examina as estra- apropriação e reprodução de discursos culturais
tégias retóricas adotadas por estas mulheres na que as identidades são construídas.
construção de suas trajetórias criminosas. Neste No caso específico das entrevistadas, a análise
nível micro, o papel da audiência é fundamental, evidenciará como elas reproduzem diversos dis-
visto que os interlocutores estão continuamente se cursos que posicionam as favelas e os favelados à
posicionando uns em relação aos outros. Por esta margem da sociedade. Tal apropriação reflete, si-
razão, a minha posição como co-construtora das multaneamente, a decisão de posicionarem-se
suas identidades é constantemente problematiza- como vítimas de um sistema desigual e injusto e
da. Diferentes aspectos da minha própria identida- um claro conhecimento das diferenças estruturais
de são enfatizados nas construções discursivas das que separam ricos e pobres, negros e brancos, ho-
participantes. Por exemplo, apelando para a nossa mens e mulheres. Desta forma, a apropriação e
suposta compartilhada experiência como mulhe- reprodução de tais discursos servem a diferentes
res, as participantes freqüentemente posicionam- propósitos no processo de construção da subjeti-
se como agentes em suas decisões. Por outro lado, vidade das participantes.
reconhecendo-me como uma representante de uma Conforme descrito acima, portanto, a presen-
organização que lida com a prevenção e o combate te análise terá um caráter sistêmico, focando-se
ao trabalho de jovens no tráfico de drogas, essas simultaneamente nos níveis micro e macro em que
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a construção de identidades se dá. Os dilemas (e “más companhias”) que sua família está pensan-
seus significados) entre agência e passividade na do em deixar a favela e mudar-se para o interior
construção das trajetórias criminosas destas mu- do estado.
lheres serão analisados em função de sua eficácia As contradições expressas no discurso de Sel-
retórica e da apropriação de discursos hegemôni- ma são comumente refletidas quando as partici-
cos diversos. pantes discorrem sobre a trajetória criminosa de
outras pessoas na favela. As dificuldades econô-
micas e a vulnerabilidade pessoal que podem de-
Agência e passividade nos dados terminar a entrada de alguém no tráfico são mais
facilmente reconhecidas quando elas teorizam acer-
A análise de trechos das entrevistas com as par- ca das motivações alheias. De certa forma, a viti-
ticipantes tem como principal objetivo ilustrar o ca- mização e a passividade são mais facilmente assu-
ráter dilemático do discurso e das identidades das midas quando elas não dizem respeito às suas pró-
mulheres entrevistadas. Focando-se nas contradi- prias escolhas.
ções expressas pelas participantes, podemos consta- Flávia tem vinte e um anos e seu envolvimento
tar como a vitimização e o protagonismo são simul- passado no tráfico é justificado pela sua depen-
taneamente apropriados pelas participantes no pro- dência de drogas. No trecho a seguir, ela justifica a
cesso de construção de suas identidades criminosas. participação de uma amiga e de outras mulheres
De uma forma geral, quando questionadas na atividade: esse é o trabalho dela. Então elas se
acerca das suas trajetórias no tráfico de drogas, as mantêm dali. Se não tiver, não tem. E muitas das
participantes posicionam-se como ativamente en- vezes você vê que elas passam necessidade.
volvidas em suas decisões de entrar e sair da ativi- A fala acima sugere não somente que o tráfico
dade. Quando as minhas perguntas sugerem uma de drogas deve ser considerado simplesmente
suposta passividade ou vitimização – como, por como uma alternativa econômica viável no con-
exemplo, quando eu aponto para as dificuldades texto das favelas, mas também que mulheres in-
econômicas e o preconceito como motivadores ao gressam na atividade por falta de melhores op-
crime –, essas mulheres mostram-se particular- ções. Desta forma, o tráfico de drogas representa
mente empenhadas em assumir a responsabilida- muitas vezes a única opção de sustento para elas.
de pelas suas escolhas. A princípio, Flávia parece particularmente in-
Selma tem trinta e três anos e trabalha há quin- clinada a desculpar mulheres que se envolvem com
ze como faxineira em casas de família. Ela repre- o tráfico de drogas por causa de questões familia-
senta um caso especial dentre as participantes, por- res, como a necessidade de sustentar pais e filhos.
que foi envolvida no tráfico de drogas em uma Como evidência, ela empaticamente testemunha o
época (final dos anos oitenta) em que a participa- sacrifício de sua amiga para sustentar os quatro
ção feminina era ainda mais incomum do que é filhos. Em outros momentos, no entanto, Flávia
hoje. É desta forma que Selma fala da motivação aponta para a busca de poder e status como maio-
para a sua entrada na atividade: a amizade não me res motivadores da criminalidade feminina. Nes-
levou a lugar nenhum, eu fui porque eu quis, fui tes casos, ela sugere que os motivos destas mulhe-
com as minhas pernas, fui porque eu quis. res são de alguma forma menos legítimos dos que
A fala acima é construída como uma reação a os daquelas que se tornam traficantes para susten-
minha sugestão sobre a influência de amigos e fa- tar suas famílias. No trecho a seguir, ela questiona
mília na trajetória criminosa das pessoas em geral. o argumento da “falta de opção” como principal
Após ter me contado que seu pai havia trabalhado motivador para a trajetória criminosa das pessoas
no tráfico de drogas no passado, eu naturalmente (não a sua própria), apontando para os motivos
questiono Selma sobre a influência deste fato na “menos legítimos” citados acima. Mais uma vez, o
sua própria história. Apropriando-se de um dis- argumento da falta de opção fora sugerido por
curso comum entre as entrevistadas, ela assume a mim: oportunidade tem, mas quer se sentir o herói.
responsabilidade integral pela sua decisão de en- Quer ter aquilo ali, tipo levantar um troféu, né? Quer
trar para o tráfico de drogas, veementemente ne- ser o mais forte.
gando qualquer influência externa. Embora reconheça as dificuldades econômicas
No entanto, ao teorizar acerca da trajetória de que levam populações menos privilegiadas a in-
outras pessoas, Selma reconhece a possível influ- gressarem no crime, quando explicitamente ques-
ência do meio circundante. Por exemplo, ela conta tionada, Flávia aponta para a intencionalidade e o
que é por medo de que seu irmão adolescente se protagonismo das pessoas. Ironicamente, Flávia é
envolva com o tráfico de drogas (em virtude das das participantes mais atentas e mais conscientes
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acerca do impacto da discriminação e do precon- Durante toda a entrevista, Vanessa enfatiza o


ceito sobre as populações marginalizadas. Seu dis- fato de que seu envolvimento fora sempre motiva-
curso, em geral, é marcado por uma consistente do pelo desejo de se sentir especial e de ser reco-
análise crítica da situação econômica e social que nhecida como tal. Para ilustrar o prazer que sentia
faz dos favelados um grupo à margem da socieda- ao ser reconhecida como uma mulher diferente,
de (e por isso mesmo mais suscetível a se envolver ela conta as diversas vezes em que fora armada de
com o crime). Como evidência da sua postura crí- fuzil aos bailes da comunidade. Segundo Vanessa,
tica, no trecho a seguir, Flávia responde se há mais as mulheres no baile cochichavam sobre ela, inve-
negros do que brancos trabalhando para o tráfico jando o poder de uma mulher carregando armas
de drogas: tem, tem mais preto. Por que? Porque já como um homem. Além do poder e respeito, ela
é discriminado na rua, não tem mais nada a perder, ainda cita a “adrenalina” e o risco envolvidos nas
pô, que se foda, vou formar no morro, vou ser solda- tarefas que desempenhava como traficante. Ao
do no morro. contrário de outras mulheres, ela não tinha medo
No trecho acima, além de evidenciar a sua pers- de acompanhar os “meninos” em todas as missões
pectiva crítica acerca da situação social dos favela- arriscadas que marcam o dia-a-dia de um trafi-
dos negros, Flávia reproduz o discurso de que cer- cante. Ela carregava armas, fugia da polícia e en-
tos indivíduos envolvem-se com o crime por falta trava em combates diretos com facções crimino-
de opções (argumento que ela veementemente sas rivais.
combate em outros trechos de sua entrevista). Portanto, sua motivação para ingressar e per-
Como reação à discriminação e à falta de esperan- manecer no tráfico fora sempre interna; o que
ça, jovens negros encontram no tráfico de drogas movia Vanessa era o desejo de se sentir “como um
uma saída para a invisibilidade e a falta de pers- dos meninos”. Não há nos seus relatos a menção a
pectiva que marcam as suas vidas. nenhum envolvimento afetivo com homens crimi-
Da mesma forma que Selma, a passividade e a nosos ou nenhuma história familiar que justifi-
vitimização são mais facilmente reconhecidas no casse o seu envolvimento. Ao contrário, Vanessa
outro; Flávia em momento algum demonstra a faz questão de negar o envolvimento afetivo com
mesma atitude crítica a respeito do seu próprio en- traficantes; em suas palavras: eu nunca fui mulher
volvimento no tráfico de drogas. Em outras pala- de nenhum bandido. O meu envolvimento sempre
vras, a sua participação no tráfico não fora motivada foi direto ali no trabalho com eles [homens trafi-
por dificuldades econômicas ou pela influência de cantes], entendeu?. Ao distanciar-se de outras mu-
parceiros criminosos, como é o caso de muitas lheres cuja participação no tráfico é inteiramente
mulheres que ela descreve. Em diversos trechos da justificada pelo envolvimento com homens crimi-
entrevista, Flávia esforça-se para estabelecer uma nosos, Vanessa enfatiza o seu poder de decisão acer-
distância entre ela e outras pessoas da favela, espe- ca da sua própria vida no crime. Assim como Flá-
cialmente outras “meninas”. Retoricamente, essa via, ela jamais fora diretamente influenciada por
distância é construída através do constante alinha- namorados ou maridos.
mento comigo. Diferente de outras “meninas da É intrigante, no entanto, que a identidade de
comunidade”, por exemplo, Flávia é capaz de man- Vanessa esteja tão fortemente associada ao reco-
ter uma conversa com alguém “educado como eu” nhecimento e à admiração dos “meninos” trafi-
(é assim que ela se refere a mim). Portanto, é enfati- cantes. Em outras palavras, seu poder como trafi-
zando as nossas supostas características comuns cante é conferido pelos homens que a reconhecem
que Flávia distancia-se das mulheres por ela percebi- como uma mulher diferente das outras. De certa
das ora como vítimas oprimidas, ora como oportu- forma, portanto, parece haver uma motivação ex-
nistas em busca de status social dentro das favelas. terna ao menos para a prolongada permanência
Vanessa tem vinte e seis anos e trabalhou du- de Vanessa no tráfico de drogas.
rante oito anos no tráfico de drogas. A sua entrada É desta forma que Vanessa descreve sua efetiva
e longa permanência na atividade são justificadas atuação como traficante: andava armada, dava tiro,
pelo poder e respeito que ela costumava experi- trocava tiro. Tudo com eles [os homens] e eu fazia
mentar na favela. Segundo ela, ser reconhecida ali, entendeu? Não ficava ali igual a elas [outras
como uma “mulher diferente” (mais poderosa e mulheres], só sentada vendendo [drogas]. Era como
destemida do que as outras mulheres da favela) se eu fosse um soldado mesmo, entendeu, do tráfico.
compensava todos os riscos envolvidos na ativi- Vanessa, como Selma e Flávia, posiciona-se
dade: eu achava diferente uma mulher - a gente como protagonista da sua história. Motivada pelo
praticamente não via nenhuma mulher no tráfico. desejo de se sentir uma mulher diferente das ou-
Aí os garotos também já gostava. tras (com mais poder, status e reconhecimento ex-
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terno), ela assume total responsabilidade pelas suas poder e o fato dela apontar as suas motivações
escolhas. No entanto, também como as outras internas como principal motivador da sua trajetó-
entrevistadas, Vanessa reconhece os fatores exter- ria criminosa. No entanto, como é o caso de Va-
nos que podem determinar a escolha de outras nessa, seu poder também está diretamente associ-
pessoas pela vida do crime. No trecho abaixo, ela ado ao fato dos homens na atividade reconhece-
faz menção ao preconceito usualmente sofrido por rem Denise como uma mulher especial.
jovens que se envolvem na atividade: o tráfico eu Em ambos os casos em que o poder e respeito
acho que é o único emprego assim mesmo que não foram explicitamente citados como motivadores
tem nada de raça, entendeu? Nem raça, nem estudo, para o ingresso no tráfico de drogas, as entrevista-
nem nada. Entrou, trabalhou. das sugerem que o poder é, em geral, uma propri-
No trecho acima, Vanessa aponta para a natu- edade masculina. Vanessa e Denise são diferentes
reza democrática do tráfico de drogas. Aliás, ela justamente porque tiveram a coragem e a audácia
explicitamente defende esse argumento. Em suas de se embrenharem por um terreno primordial-
opinião, as pessoas entram para a atividade simul- mente masculino. É neste sentido que o poder de
taneamente por falta de opção e pelo fato do tráfi- Vanessa é ainda mais ampliado quando reconhe-
co supostamente empregar pessoas de qualquer cido pelos homens. Ela gostava de ser reconhecida
raça, classe e nível escolar. Para sustentar o seu pelos “meninos” como uma mulher corajosa, pron-
argumento, Vanessa relata o caso de um amigo ta a entrar com eles em combates e missões perigo-
negro que, após ser humilhado durante uma en- sas. Por sua vez, Denise tinha o desejo de ser respei-
trevista de trabalho, decide entrar para o tráfico de tada como os homens criminosos com os quais
drogas. Mais uma vez, o argumento da “falta de ela costumava se envolver romanticamente.
opção” parece ser apropriado para justificar a es- Os casos acima discutidos ilustram a tentativa
colha de outras pessoas, não a das entrevistadas. das participantes de posicionarem-se como agen-
Suas próprias histórias são usualmente marcadas tes, negando qualquer influência externa nas suas
pelo protagonismo e pela intencionalidade na to- próprias escolhas. De uma forma geral, elas posi-
mada de decisões. cionam-se como imunes aos fatores externos que
Outra participante, Denise, também aponta usualmente são apresentados como motivadores
explicitamente para o poder e o respeito como de carreiras criminosas, tais como a privação eco-
motivadores para a sua entrada no tráfico de dro- nômica, a desestruturação familiar e a rede social
gas. Acostumada a namorar “bandidos”, ela sem- em que o sujeito encontra-se inserido. Aproprian-
pre desejou experimentar o poder que em geral é do-se de discursos que enfatizam o livre arbítrio e
somente experimentado pelos homens: eu queria a importância das escolhas pessoais, essas mulhe-
também ter poder, queria ter as pessoas ao meu re- res posicionam-se como protagonistas de suas his-
dor, me bajulando o tempo todo, sabe? tórias e recusam qualquer justificativa que as rele-
Denise representa um caso especial dentre as gue à posição de vítimas passivas de uma realidade
participantes, por ter ocupado um cargo de eleva- mais ampla.
do prestígio na hierarquia do tráfico de drogas. No entanto, conforme evidenciado acima, as
Ela foi “gerente” de um ponto de vendas, respon- entrevistadas claramente reconhecem o impacto da
sável por todos os empregados e todas as drogas realidade social e econômica circundante na vida e
vendidas ali. Portanto, o poder efetivamente exer- nas escolhas individuais. Embora seja intrigante o
cido por ela está no centro da sua identidade como fato desse impacto não ser abertamente assumido
criminosa. Da mesma forma que Vanessa, no en- quando elas tratam de suas próprias trajetórias, o
tanto, esse poder não parece ter sido experienciado reconhecimento dos efeitos limitantes de elemen-
de forma absoluta. Denise sente-se poderosa prin- tos externos está certamente presente quando as
cipalmente em comparação com outras mulheres participantes avaliam as trajetórias criminosas
que desempenhavam funções menos importantes alheias. Tal fato torna ainda mais relevante o em-
do que ela. É assim que ela constrói essa compara- penho das participantes em retoricamente posici-
ção: me sentia, me sentia superior. Todas tinham onarem-se como agentes, minimizando os reco-
que ser submissas a mim. nhecidos efeitos da opressão e do preconceito em
Apesar de também supervisionar o trabalho suas próprias vidas.
de homens como gerente do ponto de venda, é Em contraste com os casos acima discutidos,
sobre as mulheres que Denise parece ter exercido o algumas participantes posicionam-se abertamen-
seu poder (ou, pelo menos, somente as mulheres te como vítimas. Reconhecendo as desigualdades
eram “submissas” a ela naquela época). O impor- sociais e as estruturas de poder que determinam as
tante no caso de Denise é a sua apreciação pelo escolhas feitas por populações marginalizadas, es-
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sas mulheres enfatizam a subordinação principal- que segundo ela decide deliberadamente se envol-
mente a homens criminosos como o motivador ver com criminosos, em busca do status e do reco-
das suas vidas no crime. Desta forma, a participa- nhecimento advindos desta posição. Sandra é uma
ção destas mulheres no tráfico de drogas, em vez vítima inocente. Como aqueles que encontram no
de motivada por uma escolha pessoal, é descrita tráfico de drogas a única opção econômica dispo-
como o resultado da influência de homens envol- nível, ela também não teve escolha senão servir de
vidos na atividade. Como “mulheres de bandido”, cúmplice nos crimes do seu marido e filho.
elas não tiveram outra opção senão servirem de Ao se referir às namoradas do seu filho (morto
cúmplices nos crimes cometidos por seus parcei- pela polícia durante um assalto, aos dezenove
ros. Se por um lado o caráter involuntário desta anos), Sandra deixa clara a distinção que faz entre
participação é amplamente descrito na literatura4,9, ela e àquelas mulheres que intencionalmente se
é interessante notar o uso retórico que as partici- envolvem com bandidos. É assim que ela se refere
pantes fazem desta posição. Como vítimas de uma às “viúvas” do seu filho: ele deixou nove putas, nove
situação para além do seu controle, estas mulheres viúvas, cinco grávidas.
não devem ser responsabilizadas pelo caminho que Sandra faz um julgamento bastante rígido das
seguiram no passado. Ao contrário do protago- mulheres que se envolvem com bandidos por es-
nismo, do desejo pessoal e da intencionalidade tão colha. Em sua opinião, seu filho tinha nove namo-
claramente professados, aqui as mulheres são des- radas simplesmente porque era bandido; nenhu-
critas como passivas diante do risco de estarem ma das namoradas teria se envolvido com ele caso
envolvidas com um parceiro criminoso. ele estivesse trabalhando em uma atividade regu-
Curiosamente, nos casos em que as mulheres lar. O termo que ela usa para se referir a estas
posicionam-se como vítimas, o protagonismo é mulheres (putas) evidencia o julgamento que San-
reconhecido como propriedade de outras mulhe- dra faz delas. Interessante notar que o termo diz
res que, voluntariamente, decidem se envolver com respeito ao comportamento sexual destas mulhe-
bandidos. Esse reconhecimento vem, em geral, res. Em contraste, Sandra em nenhum momento
acompanhado de um julgamento acerca do cará- problematiza o fato do seu filho ter tido nove na-
ter destas mulheres. Portanto, é legítimo e justifi- moradas; o possível comportamento promís-
cável o caso de mulheres que se envolvem com o cuo do seu filho não é alvo de seu julgamento.
tráfico de drogas em virtude de suas relações amo- Nos casos acima discutidos, as participantes
rosas, mas altamente condenável o caso daquelas posicionam-se ambas como protagonistas de his-
que decidem por conta própria ingressarem no tórias e vítimas de uma realidade social ou pessoal
crime. O protagonismo aqui é identificado como fora de seu controle. Na maioria dos casos, os dois
uma característica negativa, diretamente equacio- discursos aparentemente contraditórios são apro-
nada com o desejo ilegítimo e reprovável que cer- priados por uma mesma participante.
tas mulheres têm de se sentirem poderosas. O po- A insistência das participantes em posiciona-
der, mais uma vez, é identificado como uma pro- rem-se como agentes é, de alguma forma, sur-
priedade masculina. Nestes casos, no entanto, as preendente se pensarmos nos comportamentos
mulheres não devem almejar o poder, que deve ser criminosos sobre os quais elas assumem respon-
exclusivamente exercido por homens. sabilidade. Como a agressão e a violência explícita
Sandra tem quarenta e um anos e seu envolvi- não fazem parte dos discursos culturalmente as-
mento no tráfico, segundo ela, é resultado do seu sociados às mulheres, os relatos em que as partici-
relacionamento com o marido e o filho envolvidos pantes posicionam-se desta forma parecem cair
na atividade. Por causa destas relações, Sandra cos- sobre a rubrica de contra-discursos. Produzidos
tumava esconder drogas e armas em casa, além de às margens, como uma reação a discursos hege-
dirigir em assaltos planejados por seu marido. Dian- mônicos, os contra-discursos capturam a com-
te do seu óbvio envolvimento em atividades crimi- plexidade que caracteriza as experiências pessoais10.
nosas, ela enfatiza a sua inocência diversas vezes no Conforme ilustrado pelos dados aqui analisa-
curso de suas entrevistas: [eu] não tinha paz, não dos, a decisão de entrar para o tráfico de drogas é
tinha paz, parecia que eu fiz um pacto com o capeta, justificada pelas participantes primordialmente de
mas eu não fiz. Eu não sabia, eu era inocente. duas formas: como motivada pela falta real ou
Ao contrário de outras mulheres que ela des- percebida de opções ou determinada por uma es-
creve, Sandra desconhecia as atividades crimino- colha deliberada. Ao adotar determinadas estraté-
sas do seu marido quando casou com ele, aos treze gias, é interessante notar a forma com que as en-
anos de idade. Por este motivo, ela não se conside- trevistadas reproduzem os discursos freqüente-
ra uma típica “mulher de bandido”, aquela mulher mente usados para descrever os favelados. Souza e
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Silva e Barbosa11 argumentam que a classe média, Em outras palavras, a pobreza e a percebida falta
por exemplo, percebe os favelados como potenci- de perspectivas não conduzem necessariamente
ais criminosos ou como vítimas passivas que pre- jovens à criminalidade. Além disso, posicionar as
cisam ser resgatados por iniciativas filantrópicas. mulheres criminosas como agentes abre a possibi-
Os autores apontam para o caráter discriminató- lidade de entendermos os diversos contextos em
rio destas duas imagens. Ao definirem os favela- que mulheres figuram como perpetradoras de vi-
dos como um problema social a ser tratado pelo olência, subvertendo teorias e discursos acerca das
Estado, essas representações justificam as constan- relações entre gênero e poder.
tes (e violentas) intervenções nas favelas. No entanto, um olhar macro nos ensina que o
entendimento do fenômeno do tráfico de drogas
não poder prescindir de uma análise das questões
A vitimização e o protagonismo possível mais amplas que limitam o protagonismo indivi-
dual. Como o tráfico de drogas como atividade
As contradições reconhecidas no discurso das par- organizada localiza-se principalmente nas favelas
ticipantes, que ora posicionam-se como agentes, do Rio de Janeiro, a análise não pode ignorar o
ora como vítimas inocentes, apontam para a com- contexto econômico que faz das favelas um terre-
plexidade do fenômeno da criminalidade femini- no fértil para a proliferação da atividade. Da mes-
na. Obviamente, não se trata de desvendar a ver- ma forma, o fato da atividade ser realizada pri-
dade por trás dos motivos professados por estas mordialmente por homens negros14 faz com que
mulheres, mas entender que protagonismo e viti- uma análise de raça e gênero seja imprescindível
mização estão simultaneamente presentes nas suas para a compreensão do fenômeno. Uma análise de
experiências. Mais do que simples estratégia retó- gênero parece ainda essencial se considerarmos os
rica adotada no processo de construção de suas papéis subordinados comumente desempenhados
identidades, vitimização e protagonismo parecem por mulheres no tráfico de drogas. Assim como as
ser de fato percebidos pelas participantes ao des- crianças, as mulheres costumam ser usadas para o
creverem as suas trajetórias. desempenho de tarefas consideradas menos pres-
Ao teorizar acerca das suas experiências, enten- tigiosas ou mais arriscadas.
demos a necessidade de perceber estas mulheres Portanto, o protagonismo é obviamente exerci-
como agentes em suas decisões, principalmente na do dentro dos limites impostos por uma realidade
tentativa de rever teorias deterministas acerca da social, econômica, cultural e familiar mais ampla. É
criminalidade feminina. De acordo com essas teo- também nesse sentido que devemos entender a
rias, os crimes femininos podem ser inteiramente ambigüidade presente no discurso das participan-
justificados pelo envolvimento de mulheres com tes. Por um lado, entendemos a insistência delas em
homens criminosos ou pela necessidade destas posicionarem-se como agentes, especialmente se
mulheres de proteger e sustentar suas famílias. Em levarmos em consideração a invisibilidade e vitimi-
contraste com o protagonismo tão insistentemen- zação que tradicionalmente marcam a trajetória dos
te clamado pelas entrevistadas, estas teorias fo- favelados15,16. Por outro lado, o protagonismo é
cam-se exclusivamente nos elementos externos que sempre experienciado dentro dos mesmos limites
determinam as escolhas femininas, principalmen- que determinam essa invisibilidade e marginaliza-
te quando tais escolhas subvertem as expectativas ção dos favelados. Desta forma, protagonismo e
acerca dos papéis femininos na sociedade. vitimização devem ser pensados como caminhos
De certa forma, reconhecer o protagonismo possíveis dentro da realidade das participantes, ca-
feminino é conceber que jovens pobres comparti- minhos que enfatizam a força de ambos suas his-
lhando contextos sociais e econômicos similares tórias pessoais e seu contexto circundante.
fazem diferentes escolhas em relação ao futuro12,13.
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Barcinski M

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Artigo apresentado em 06/05/2007


Aprovado em 16/10/2007

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