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GRUPOS E AGLOMERAÇÕES INDÍGENAS NO BRASIL MERIDIONAL:

MATRIMÔNIO E COMPADRIO DE GUARANIS MISSIONEIROS


EM DOIS CONTEXTOS DISTINTOS
(REGIÃO DAS MISSÕES E FRONTEIRA DO RIO PARDO, 1814-1824)1
Max Roberto Pereira Ribeiro2
Leandro Goya Fontella3

Introdução

Neste estudo, propõe-se comparar as formas de aglomeração e de conformação de grupos


entre os indígenas em duas realidades sociopolíticas e geográficas distintas no Brasil Meridional
(dentro e fora do território da região das Missões). As localidades analisadas são a Freguesia de São
Francisco de Borja e a Capela de Santa Maria, as quais se caracterizaram por possuírem em suas
bases demográficas um expressivo número de índios guaranis missioneiros. A primeira corresponde
à antiga missão guarani de São Francisco de Borja, uma das sete missões orientais do rio Uruguai,
território anexado aos domínios luso-brasileiros em 1801. A segunda, localizada na Fronteira do
Rio Pardo, foi fundada a partir de um acampamento de militares portugueses em 1797, que tinha a
missão de demarcar os limites territoriais com as possessões espanholas na América meridional,
estabelecidos no tratado de Santo Ildefonso (1777).
Desde meados do século XVIII, segundo Elisa Garcia (2007), os luso-brasileiros passaram a
desenvolver uma política expansionista em direção às Missões Jesuíticas, estabelecidas nos
domínios espanhóis. Para Garcia, a expansão luso-brasileira se deu através da atração das
populações nativas por meio de ações de bom tratamento que tinha por finalidade incorporá-las e
assimilá-las à sociedade colonial portuguesa. Na avaliação dos lusitanos, eram estes novos súditos
que garantiriam a posse definitiva daquelas terras para o Império luso. Em contrapartida, o Império
espanhol seria afetado com a perda de territórios e, principalmente, de uma quantidade significativa
de vassalos.
O colonialismo luso-brasileiro sob a região missioneira imputou, ao longo do tempo, uma
nova conjuntura sócio-política aos índios. Gradualmente, os colonos foram se apropriando das

1
Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio
de 2015. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/
2
Mestre em História (UFRGS). Doutorando PPGH/UNISINOS. Bolsista CAPES/PROSUP. E-mail:
maxrpribeiro@gmail.com
3
Mestre em História (UFRGS). Doutorando PPGHIS/UFRJ. Bolsista CAPES. E-mail: leandro-goya@hotmail.com

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terras e demais bens missioneiros, sobretudo o gado. No decorrer da primeira metade do século
XIX, foram sendo implantadas grandes estâncias, médias e pequenas propriedades de produção de
gado vacum e muar. A matriz produtiva de tal espaço, onde antes havia desenvolvido o sistema de
produção comunitária missioneira foi paulatinamente reproduzindo as características da estrutura
econômica privada e escravista da sociedade luso-brasileira (FONTELLA, 2013).
Mesmo frente àquela nova conjuntura, os guaranis ainda conseguiram manter boa parte da
sua estrutura social tradicional em funcionamento como o cabildo, a produção comunitária de
gêneros como a erva-mate e o algodão, a religião e as milícias. Isto ocorreu até pelo menos 1828,
quando o general Frutuoso Rivera, liderou uma grande marcha composta por cerca de seis mil
guaranis das Missões à Bela União (PADRON-FAVRE, 2009). O propósito de Rivera era de
povoar a futura República Oriental do Uruguai que naquele momento se tornou país independente
do Império do Brasil.
Em Santa Maria, ao contrário, a população guarani emigrada àquela região era oriunda das
estâncias missioneiras, fato que os levou a se instalarem naquelas paragens como peões agregados
de estancieiros, junto com suas famílias (RIBEIRO, 2013). Além disso, em Santa Maria existiu uma
aldeia composta por índios missioneiros. Não há maiores informações sobre o aldeamento. Sabe-se
apenas que havia a chefia política de um cacique. Contudo, pouca informação sobre o sistema de
sucessão no aldeamento e sua organização social.
Mesmo contando com algumas imprecisões iguais a esta, o que se tentará demonstrar neste
artigo diz respeito à capacidade dos guaranis missioneiros de se organizarem em grupos, formando
aglomerados de índios, mesmo num contexto de dispersão e avanço da colonização luso-brasileira
sobre o espaço das Missões Orientais e dos hispano-crioulos sobre os povos ocidentais. Para tal
demonstração, foram usados dados obtidos dos registros batismais das localidades já referidas, em
especial, destacamos a observância nos padrões de escolha do compadrio e do matrimônio entre os
guaranis missioneiros.

Aglomerados, Compadrio e Matrimônio

Como já referido, o foco da análise será a observação dos padrões de escolha de padrinhos,
juntamente com os padrões de escolha do matrimônio. Tal abordagem possibilita a reconstituição de
aglomerados humanos, neste caso específico, daqueles constituídos pelos guaranis missioneiros. De

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acordo com Fredrick Barth (2000), convêm estabelecer uma agenda teórica que seja capaz de
garantir e respeitar a singularidade de cada sociedade. Barth compreende que a totalidade social é
fragmentada em diversos agregados humanos os quais se organizam de modos distintos. A
sociedade total, para Barth, é o resultado inesperado das múltiplas interações sociais desenvolvidas
internamente nos agregados, concomitantemente de um agregado com outro.
Desse modo, Barth concebe sua abordagem holística do mundo social, compreendendo-o
como sendo fragmentado em diversos agregados, interligados entre si, compondo a totalidade social
de modo complexo e dinâmico. Partindo desta premissa teórica, se pode usar o compadrio e o
matrimônio para, primeiramente, localizar tais agregados e, em seguida, tentar descrevê-los. Ainda
com base nos postulados de Barth, é necessário compreender os processos generativos dos
agregados humanos, conservando os singularismos presentes na formação de cada um deles.
Sendo assim, não é possível falar em um único tipo de sociedade, mas em sociedades no
plural. Conservar as singularidades e o pluralismo, porém, não significa abandonar a explicação
geral dos fenômenos históricos. Pelo contrário, significa estabelecer que o geral é composto por
diversas singularidades que se relacionam entre si. Isto pode ser observado na relação sincrônica e
diacrônica entre o macro e micro, (sociedades x indivíduos ou indivíduos x grupos sociais). É a
variação na escala de análise que mantêm a relação plena entre os fenômenos gerais e os fenômenos
específicos: aqueles identificáveis ao nível das estratégias pessoais, das contingências e das
projeções e expectativas em relação ao futuro, nem sempre executáveis.
Portanto, tentar reconfigurar os aglomerados consiste apenas num exercício inicial e, como
tantos outros, parcial e com sérios limites, sendo necessário o cruzamento de outras fontes e
incorporação de outras metodologias para verificar as variáveis elencadas anteriormente. Tal
perspectiva ganha importância teórica na análise das sociedades coloniais e, de igual forma, no
estudo das sociedades do século XIX, compostas por populações mistas. Podemos observar a partir
do estudo comparado entre as duas localidades referidas que, a composição demográfica mista, foi
uma característica marcadamente observada.
Guaranis missioneiros, africanos e crioulos, forros ou escravos, paulistas e portugueses, para
ficar com alguns exemplos, formavam a geografia humana de São Borja e Santa Maria. A
população missioneira se fazia presente não só nas paragens do Brasil Meridional, como também
em todos os países da região platina, os quais tiveram participação direta inclusive nos processos de

3
independência do Paraguai, Argentina e Uruguai (WILDE, 2009). Tais fatos, contudo, nos oferecem
imagens distorcidas a respeito do grau de integração entre índios e não índios.
Homogeneizar uma variada gama demográfica, por exemplo, nos retira a possibilidade de se
recuperar os diversos singularismos e, por conseguinte, impede que se compreendam outras
sociedades que existiram no passado, para além daquelas dos colonos portugueses. A seguir uma
representação gráfica que pode ajudar a ilustrar as singularidades.

Figura “1”: Padrão de Escolha para Padrinho e Madrinha em São Borja (1816-1822)

Fonte: ADU, Livro de Batismo de 1816 – 1822. Diagrama organizado com auxilio do software UCINET/NETDRAW.
Siglas: PF – padrinho forro; PE – padrinho escravo; ME – madrinha escrava; PB – padrinho branco; MB – madrinha
branca; MI – madrinha indígena; PI – padrinho indígena; MF – madrinha forra.

Os pontos representam os batizandos. Os que estão em vermelho representam os batizandos


brancos, os em amarelo os indígenas, os em azul forte os escravos e os em azul fraco os mestiços.
Todos os pontos estão unidos por setas que convergem às figuras em forma de retângulo, onde se vê
a concentração de todas as setas. Estas figuras para onde convergem as setas representam a escolha
do padrinho e da madrinha (PB. MB, PI, MI, PE, ME, PF e MF). O diagrama, por sua vez,
representa os padrões de escolha para padrinho e madrinha na localidade de São Borja.
Os pontos coloridos já nos mostram que os índios (em amarelo) foram, provavelmente,
maioria demográfica em São Borja, visto sua representatividade maior na pia batismal, durante o

4
período analisado. O universo dos batizados ocorridos em São Borja, entre 1816-1821, acumulou-se
ao número de 876 (100%) cerimônias, distribuídas da seguinte forma: batizados de índios, 627
(74%); batizados de brancos – 143 (16%); batizados de escravos – 42 (4%); batizados de mestiços –
49 (6%). Durante o período em destaque (1816-1821), não houve nenhum batizado de criança forra.
Dos 627 rebentos indígenas, 432 (70%) deles tiveram madrinhas guaranis e 185 (30%)
madrinhas brancas. A escolha para padrinho foi de 334 (54%) guaranis, 283 (46%) homens brancos.
Houve apenas uma escolha para padrinho escravo e uma para padrinho forro. Pelo diagrama acima
e pelos percentuais apresentados, nota-se que, entre os índios, a escolha de padrinho e madrinha se
deu em sua ampla maioria dentro do próprio universo indígena.
Entre os batizandos brancos houve o mesmo padrão de escolha. Os brancos (pontos
vermelhos) optaram em sua esmagadora maioria por padrinhos também brancos. Nos 143 batizados
de crianças brancas, em todos eles a madrinha e o padrinho eram de condição social branca. A
preferência dos escravos mesclou-se entre padrinhos brancos, maior parte das escolhas, escravos e
poucos índios. Os mestiços, por seu turno, em 49 registros, 30 deles apresenta madrinha indígena e
apenas 17 brancas, 38 padrinhos brancos e 11 índios.
Nos batizados da Capela de Santa Maria, realizados entre 1814-1822, também se verificou o
mesmo padrão de escolhas para padrinho e madrinha entre os índios. Vejamos a figura abaixo.

Figura “2”: Padrão de Escolha para Padrinho e Madrinha em Santa Maria (1814-1822)

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Fonte: (ACSM. Livro I de Batismos de Santa Maria, 1814-1822.) Gráfico organizado com auxilio do software
UCINET/NETDRAW. Siglas: PF – padrinho forro; PE – padrinho escravo; ME – madrinha escrava; PB – padrinho
branco; MB – madrinha branca; MI – madrinha indígena; PI – padrinho indígena; MF – madrinha forra.

Entre 1814-1822, ocorreram 1232 batizados, sendo 536 (43%) de batizandos brancos, 426
(35%) de índios e 270 (22%) de escravos. Não há nenhum batizando classificado como mestiço a
exemplo do que ocorreu em São Borja. Em Santa Maria, os brancos foram mais representativos na
pia batismal. Em compensação, os escravos foram em maior número em comparação com São
Borja, tanto em percentuais quanto em números absolutos. Peculiaridades a parte, há várias
similitudes no padrão geral de escolha para padrinho e madrinha em São Borja e Santa Maria.
A escolha para madrinha entre os guaranis foi majoritariamente por mulheres indígenas,
chegando a 70% do total. As mulheres brancas foram requisitadas em 28% dos batizados e as
escravas apenas 2%. Entre os padrinhos, 54% eram guaranis, 45% homens brancos e 1% eram
escravos. Nos dois desenhos se pode notar que houve a formação de escolhas fechadas, tanto entre
os índios, como também no caso dos brancos e dos escravos. Basta observar a formação de
aglomerados em torno dos núcleos PB, MB, PI, MI, PE e ME. Outra parte dos índios mesclou sua
escolha entre uma madrinha guarani e um padrinho branco o que é perceptível no emaranhado
formado entre os núcleos MI e PB nos dois diagramas.
Em Santa Maria, os escravos também mesclaram sua escolha da mesma forma que os índios,
mas no geral preferiram madrinhas e padrinhos brancos. Contudo, houve acumulo de escolhas nos
núcleos ME e PE, formando um aglomerado de escolhas entre escravos. Embora se observe uma
considerável mistura na escolha para padrinho e madrinha nas duas localidades, o que mais chama
atenção é a convergência das escolhas. Na comparação entre guaranis e brancos, nas duas
localidades, nota-se que os núcleos PB e MB concentram 100% dos batizados de crianças brancas.
No entanto, o mesmo não ocorre entre os escravos, os mestiços e os índios. Os núcleos PI,
MI, por exemplo, não concentram a totalidade dos índios. O mesmo se nota nos núcleos PE e ME
os quais não concentram a totalidade dos escravos. O que se pode deduzir deste padrão é que a
população branca vivia socialmente mais fechada aos índios e aos escravos no quesito compadrio.
Em sua maioria, foram os homens de cor branca os responsáveis em manter elos de compadrio dos
brancos com índios e escravos. Em contrapartida, se pode usar o mesmo modelo de pensamento
para o caso dos índios.

6
A formação de aglomerado, em torno dos padrinhos e madrinhas indígenas, pode significar
que uma parte considerável dos guaranis vivia de forma mais fechada, preferindo outros índios para
batizar seus filhos. De modo geral, o que se pode notar é que se uma parte dos índios, brancos e
escravos se misturava socialmente, havia outra parte deles que não. A imagem de uma sociedade
contínua e homogênea parece não fazer muito sentido no caso das duas localidades estudadas. Os
padrões de matrimônio entre os guaranis reforçam esta mesma argumentação.
Tanto em São Borja, quanto em Santa Maria, o comportamento marital dos guaranis
percorreu um sentido muito similar ao evidenciar em análise serial que os casamentos ocorriam em
maior parte entre índios de uma mesma missão (Povo). Este indicativo é elucidado pela observação
do número total de filhos legítimos nas duas localidades.4 Em Santa Maria, entre 1814-1822,
ocorreram 192 batizados de crianças guaranis legítimas. Deste total, 134 (70%) eram filhos de
genitores naturais de um mesmo Povo missioneiro.

Gráfico “1”: Naturalidade dos Genitores (Santa Maria, 1814-1822)


Povo dos Apóstolos
Povo de São Xavier
Povo de São Nicolau
Povo de São Miguel
Povo de São Luiz
Povo de São Lourenço
Povo de São Jose
Povo de São João
Povo de São Gabriel
Povo de São Borja
Povo de Santo Ângelo
Povo de Loreto
Povo de Japeu
Povo da Conceição
0 5 10 15 20 25 30 35

Fonte: ACSM. Livro I de Batismos de Santa Maria, 1814-1822.

Acima, nota-se no gráfico que ocorreu migração de genitores casados para Santa Maria. Em
sua maior parte, naturais das Missões Orientais. As migrações ocorriam muito provavelmente em
grupos familiares com parentesco estendido (pais, mães, filhos, avós, padrinhos, entre outros). Em

4
Filho legítimo foi uma expressão utilizada pelos padres para se referir às crianças geradas por genitores unidos pelo
sacramento matrimônio.

7
alguns batizados é possível de se ver a naturalidade dos padrinhos, coisa que não ocorreu com tanta
frequência, pois isso dependia especialmente do capricho dos clérigos (RIBEIRO, 2013).
Em São Borja, entre os 380 batizados de crianças legítimas, nada menos do que 375 (99%)
delas possuíam genitores naturais da mesma missão. Em apenas cinco casos os genitores eram de
naturalidade diferente.
Gráfico “2”: Naturalidade dos Genitores (São Borja, 1816-1821)
Povo dos Martires
Povo de São Xavier
Povo de São Miguel
Povo de São Lourenço
Povo de São João Batista
Povo de São Borja
Povo de Santo Ângelo
Povo de Santa Ana
Povo de Corpus
Povo da Cruz
Curuçuquatim
0 50 100 150 200 250
Fonte: ADU, Livro de Batismo de 1816 – 1822

Nota-se pelo gráfico “2” que, os matrimônios endógenos se concentraram na própria missão
de São Borja, embora tenha havido migração àquela localidade de diferentes povos missioneiros.
Dos 375 batizados de crianças legítimas, ministrados naquela povoação, 192 (51%) possuíam os
pais naturais do próprio Povo de São Borja. Tanto em Santa Maria, quanto em São Borja, o padrão
endógeno no matrimônio parece ser característico das escolhas dos guaranis. Padrões como estes
também foram observados para outros períodos da história missioneira.
Robert Jackson (2004) ao analisar algumas séries dos censos missionais do Povo de Corpus
Christi, de 1759, notou o mesmo padrão endógeno de matrimônio e compadrio entre os guaranis.
Num trabalho conjunto entre Farinatti & Ribeiro (2010), também se observou o mesmo fenômeno
entre os guaranis batizados em Alegrete, entre 1812-1817. Guillermo Wilde (2009) chamou atenção
ao fato de que as Missões eram representadas na historiografia platina como uma unidade continua
e homogênea. Ao contrário, Wilde demonstra que a história missioneira foi composta por diversas
singularidades as quais formaram um quadro histórico muito mais complexo do que se acreditava.
No caso específico do período analisado neste artigo, as singularidades da organização
social guarani não desapareceram. Ao falar em singularidades históricas, não significa, contudo,

8
admitir descontinuidades frequentes ou interrupção drástica do modo de vida indígena. Ao
contrário, mostra que em contextos espaço/tempo singulares os guaranis foram capazes de se
organizar em agregados tendo como referência um tipo de unidade ou identidade de Povo.
Tanto num contexto mais hostil a sobrevivência do modo de vida guarani, como aquele que
se apresentou na migração à Capela de Santa Maria, quanto na própria redução de São Borja, a
preferência reiterada dos índios em escolher naturais do mesmo Povo para o matrimônio, bem como
padrinhos e madrinhas para batizar seus filhos, proporciona a observação de padrões regulares na
ação indígena. Estes padrões sugerem um funcionamento social, em partes, mais restrito aos não
índios, embora possamos admitir que no campo das relações sociais mais gerais, a interação sócio-
cultural tenha sido muito mais dinâmica.
Podemos notar tal fato entre os batizandos classificados como filhos de pai incógnito,
expressão genérica empregada pelos padres para assentar os batizados das crianças sem pai
declarado. Isso também poderia se dar através da escolha consciente dos padres para ocultar o nome
do genitor devido à possibilidade de algum escândalo ou devido aos genitores não serem unidos
pelo matrimônio, o que comprometeria a credibilidade do trabalho evangelizador do padre perante a
Igreja. Seja como for, usaremos, no entanto, a expressão acadêmica mais recorrente que é a de filho
ilegítimo, pois se trata de crianças concebidas por meio de outro tipo de união fora do matrimônio.
Em Santa Maria, os batizados de crianças ilegítimas se acumularam ao número de 219. Em
São Borja, 220. Isso corresponderia a uma porcentagem de 53% de filhos ilegítimos em Santa
Maria e de 36% em São Borja. Trata-se de diferenças substanciais. É certo que em Santa Maria, os
índios foram contando com maiores dificuldades na reprodução biológica endógena, o que
acarretou no intercurso sexual entre mulheres indígenas e homens luso-brasileiros.
Em São Borja, porém, a sociedade indígena, embora decadente, conseguia de várias formas,
se constituir com alguma autonomia e a reprodução biológica endógena pode ter contribuído com a
relativa longevidade da sociedade missioneira nas primeiras décadas do século XIX. Por tal razão, o
percentual de ilegitimidade é menor na comparação com Santa Maria. Contudo, os números de
ilegitimidade podem ocultar uma realidade muito mais complexa em respeito aos intercursos
sexuais mistos nas duas localidades.
August de Saint-Hilaire em passagem por São Borja em 1821, deixou um interessante
registro sobre as mulheres guaranis:

9
As casadas seguem os maridos por toda parte, no entanto, são pouco fiéis. Os maridos, por
seu lado, vêem com a maior indiferença suas mulheres se entregarem a estranhos e,
frequentemente, eles mesmos as prostituem. Quando uma índia concebe um filho de um
branco, o marido lhe dá sempre preferência sobre seus próprios filhos.5

Este excerto, retirado das memórias de Saint-Hilaire, nos coloca a par sobre o
funcionamento do sistema marital dos índios guaranis. Para além dos princípios de alteridade do
viajante francês, podemos notar como os índios incorporavam os mestiços ao mundo indígena.
Neste aspecto, ressalta-se o protagonismo da mulher guarani na pedagogia que tornou possível a
reprodução social missioneira. Nota-se, mais uma vez que, se haviam interações sociais múltiplas,
como por exemplo, os intercursos sexuais entre e índios e não índios, elas não resultaram no fim
imediato no modo de vida indígena.
Saint-Hilaire, provavelmente observou um agregado indígena composto por crianças
mestiças geradas por mulheres guaranis e homens luso-brasileiros educados por pais indígenas. É
bem provável que o padre de São Borja tenha assentado aquelas crianças como filhos de pai
incógnito. Também é possível que este tipo de situação tenha ocorrido em Santa Maria. Assim, o
que se pode deduzir é que os filhos de pai incógnito podem ter sido mestiços que tiveram o nome
dos pais ocultado no batismo. Contudo, embora biologicamente mestiços, podem ter sido criados
como índios guaranis.
A organização social indígena em agregados pode ter tido como base a mulher guarani,
responsável pela pedagogia social capaz de reproduzir o modo de vida indígena, o que
possivelmente tinha status de grupo étnico, conforme as definições de Fredrik Barth (2000). Ou
seja, a reprodução biológica, a reprodução social, a categorização guarani, usada pelos colonos para
classificar as populações missioneiras, a referência a um território comum, o Povo missioneiro: tudo
isso parecem ser indícios da constituição de grupos étnicos organizados em agregados de índios.
Se a mulher possuía possivelmente papel pedagógico importante na reprodução social
indígena, podemos notar que os homens destacavam-se politicamente na sociedade missioneira.

Figura “3”: Agregado de José Patrício Ibamimbi (São Borja, 1816-1822)

5
SAINT-HILAIRE, August de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002. p.342.

10
Fonte: ADU, Livro de Batismo de 1816 – 1822. Gráfico organizado com auxilio do software UCINET/NETDRAW.

A figura acima evidencia as relações estabelecidas por um casal guarani que notabilizou-se
por ter sido bastante requisitado para apadrinhar crianças, sobretudo entre os guaranis. José Patrício
Ibamimbi e Bernardina Perobi da Conceição eram guaranis naturais do Povo de São Borja. Em
torno deles reuniram-se 22 sujeitos, dos quais 19 eram guaranis (indicados na figura com
triângulos), sendo que 16 destes formavam oito casais. Por outro lado, quando o dito casal teve um
filho, preferiu estabelecer os laços de compadrio com um casal de luso-brasileiros. Embora a figura
nos apresente um retrato de um curto período de tempo de cerca de meia década, podemos ensaiar
algumas reflexões sobre estes enredos sociais.
Comecemos nosso exame apresentando um pouco melhor a José Patrício Ibamimbi e a
Fabiano Pires de Almeida. Destacado chefe militar e político da região das Missões na primeira
metade do século XIX, o capitão6 Fabiano Pires de Almeida participou das campanhas contra
Artigas e Andresito Artigas, ocorridos entre meados da década de 1810 e princípios dos anos 1820
(GAY, [1863] 1942). O referido capitão recebeu sesmarias na região7 onde provavelmente chegou

6
A julgar pelas informações dos assentos de batismos, Fabiano Pires de Almeida tornou-se capitão somente após
meados de 1819, já que em 30 de junho de 1830 o vigário José Paim Coelho de Souza registra-o como tenente ao se
tornar padrinho de Francisca, filha de Jose Machado de Almeida e Eufrasia Quitéria de Carvalho (ADU, Livro de
Batismo de 1816 – 1822, folha 28f).
7
SILVEIRA, H. J. V. da. As Missões Orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Companhia União de Seguros
Gerais, [1909] 1979, p. 250.

11
na segunda metade da década de 1810, uma vez que casou-se com Francisca Quitéria de Carvalho
na Capela de Santa Maria da Boca do Monte.8 Após a criação da Vila de São Borja e a instalação da
Câmara de Vereadores, Fabiano iniciou suas atividades em1834, ele foi um dos componentes da
primeira vereança. Por sua vez, sabemos que José Patrício Ibamimbi chegou a ser tenente das
milícias guaranis, era um guarani letrado que chegou a ser escrivão do Juiz de Paz da Vila de São
Borja.9
Entendemos que o cenário social decorrente da relação de compadrio entabulada entre estes
dois atores sociais revela que José Patrício Ibamimbi erigiu-se como um mediador entre
determinada parcela da população guarani com certa parte da população luso-brasileira. A
cronologia dos registros de batismos nos mostra que antes de procurar o capitão Fabiano Pires de
Almeida para batizar sua filha Fabiana (provavelmente uma homenagem ao próprio padrinho), José
Patrício adquiriu grande popularidade junto a uma fração dos guaranis missioneiros, em especial
com aqueles naturais do próprio Povo de São Borja.10 Dos 12 batizados em que foi padrinho, só um
ocorreu após ter convidado o capitão Fabiano Pires de Almeida para ser seu compadre.
Parece-nos que, da parte de José Patrício, a possibilidade de estabelecer um laço de
compadrio com o Capitão Fabiano Pires de Almeida passou pela influência que construiu ao longo
do tempo junto à significativa quantidade de guaranis. Era essa legitimidade social que José Patrício
e outros líderes indígenas possuíam com os guaranis que fazia com que potentados locais, como o
dito capitão, se interessassem em tecer laços com determinados sujeitos guaranis. Ao entabular uma
relação de reciprocidade com o guarani José Patrício, o capitão Fabiano Pires de Almeida
estabelecia, mesmo que indiretamente, uma aliança com os demais sujeitos que estavam na órbita
de influência daquele líder indígena. Obviamente que o compadrio é apenas um indício desse
universo relacional, e que a efetivação destas relações de reciprocidade dependia de outras
circunstâncias como a proteção, distribuição de benefícios, a lealdade guerreira e política, entre
outros.
Além disso, há muito ainda a se questionar sobre os contornos assumidos por esse tipo de
relação. Quais atributos que faziam com que um guarani se tornasse um mediador? Que tipo de

8
ACSM, Livro Casamentos 1, folha 12.
9
Ver FONTELLA, Leandro Goya. Sobre às Ruinas dos Sete Povos: estrutura produtiva, escravidão e distintos modos
de trabalho no espaço oriental missioneiro (Vila de São Borja, Rio Grande de São Pedro, c. 1828 – c.1860). 2013. 282f.
Dissertação de Mestrado – UFRGS, Porto Alegre. [subcapítulo 3.6, mais especificamente a partir da página 252].
10
Oito das 12 mães e 5 dos 10 pais eram naturais do Povo de São Borja. Portanto, dos 22 compadres de José Patrício,
13 eram nascidos no mesmo povo que ele.

12
racionalidade era empregada na construção dos agregados entre os guaranis? A mesma questão
pode ser feita em relação aos luso-brasileiros? Quais códigos culturais guaranis tinham que ser
dominados pelos luso-brasileiros para facilitar a aproximação destes com os indígenas? Estas são
perguntas que estão na pauta de nossa investigação e que exigem mais pesquisa para que possamos
chegar a respostas que não simplifiquem um processo histórico significativamente complexo.

Considerações Finais

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que os resultados apresentados neste texto, são decorrentes
de duas pesquisas em andamento as quais se desenvolvem de forma independente, ligadas a
Programas de Pós Graduação em nível de doutorado. No entanto, pela temática comum às duas
pesquisas – populações indígenas guaranis, Missões e colonização luso-brasileira – há algum tempo
se desenvolve trabalho conjunto e neste artigo se apresentam alguns resultados iniciais desta
promissora parceria. Os dados apresentados aqui se referem a comparações a cerca do compadrio e
do matrimônio indígena em duas localidades distintas, mas que, no entanto, apresentam
semelhanças quanto a regularidades observáveis.
Embora os dados usados sejam de um curto espaço de tempo, a comparação interna e
externa às Missões nos ajuda a encontrar padrões na ação indígena. Mesmo não contando com
séries de batizados maiores para cada localidade, até o momento, cremos que a comparação entre
duas povoações distintas pode ser útil, embora isso possa comprometer o entendimento sobre a
evolução diacronia destes padrões. Todavia, encarando estes dados como resultado parcial de um
estudo conjunto, ainda em andamento, se pode inferir algumas considerações a respeito da
metodologia empregada e de seus resultados.
Analisamos uma pequena série de batizados de duas localidades compostas
demograficamente por populações mistas: índios guaranis, negros, mestiços e luso-brasileiros. Ao
centrar foco de análise na escolha para padrinho e madrinha destas populações, nota-se com
regularidade nas duas localidades que, tanto índios, quanto luso-brasileiros preferiram
respectivamente, em maior grau, outros índios e outros luso-brasileiros para apadrinhar seus filhos,
bem como parceiros conjugais. Isso nos proporciona a visualização de uma sociedade culturalmente
fragmentada e descontínua.

13
Pelos registros batismais, se pode notar pelas escolhas individuais, ações generalizáveis
como a formação de aglomerados sociais entre os guaranis, o que levou a certo fechamento de parte
da população indígena em relação aos não índios. Tal isolamento, latente nas escolhas fechadas
para padrinhos e cônjuges, pode ter contribuído diretamente com a reprodução biológica dos
guaranis de forma endógena. Mesmo nos intercursos sexuais entre índios e não índios, os quais
geraram mestiços, é possível que boa parte deles tenha se educado dentro do mundo indígena, o que
possivelmente ajudou no processo de reprodução social do modo de vida guarani.
Os índios, por seu turno, organizavam-se em agregados singulares nos quais as mulheres
provavelmente assumiam papel primordial na reprodução social missioneira guarani, assegurando
os nascimentos de novos índios e os educando, o que garantia o funcionamento interno dos
aglomerados. Os homens, a exemplo de José Patrício Ibamimbi, cumpriam papel político central
frente aos índios e também frente aos luso-brasileiros, garantindo assim certa abertura da sociedade
indígena em relação à luso-brasileira.
Ou seja, embora admitindo relações sociais mais gerais entre índios e não índios, como:
mestiçagem, relações de trabalho, dependências e reciprocidades, podemos propor como hipótese,
que havia outras operações no interior da sociedade indígena capazes de garantir a longevidade
histórica dos índios guaranis. Tais fatores foram capazes de garantir a manutenção social daqueles
índios enquanto grupo étnico, organizados em múltiplos aglomerados organizados internamente
pelas mulheres indígenas e externamente pelos homens, sendo alguns deles caciques e mediadores.
Contudo, acreditamos que a evolução deste estudo possa dar maiores soluções teóricas a esta
hipótese.

Fontes
Arquivo da Cúria de Santa Maria (ACSM). Livro I de Batismos de Santa Maria, 1814-1822.
Arquivo da Cúria de Santa Maria (ACSM). Livro I de Casamentos de Santa Maria, 1814-1845.
Arquivo da Diocese de Uruguaiana (ADU), Livro de Batismos de 1816-1822.
Arquivo da Diocese de Uruguaiana (ADU), Livro de Batismos 1-B de 1829-1837.
Cópia da declaração da venda da Estância de São Vicente pertencentes ao povo de São Miguel, feita
em dezembro de 1828. Fundo Justiça, Maço 43, Juízo de Paz, 1830, São Borja, Arquivo Histórico
do Rio Grande do Sul (AHRS).

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Referências

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