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O vento corria soprando baixinho, cauteloso, quase como se temesse assustá-la.

Ela
estava sentada no balanço, as mãos frouxamente segurando as correntes de aço, os pés
mal tocando o chão. Balançava-se vagarosamente, sem realmente importar-se com o
que fazia. O olhar voltado para baixo não se fixava nas folhas secas que rolavam pelo
chão de outono, nem na terra batida e seca dos muitos meses sem chuva, muito menos
na grama rala e amarela que crescia fracamente, arrastando-se. Seu olhar fixava-se em
algo que não se pode ver. Encarava fixamente o passado. Olhava nos olhos de si
mesma. E por isso estava tão quieta e tão imóvel. Temia que qualquer movimento mais
brusco pudesse assustar-se e fazer com que fugisse de si mesma, e que seu passado
esmaecesse em meio às brumas de suas lembranças. Agia calmamente, descobrindo-se e
investigando-se aos poucos, com medo do que poderia encontrar, embora,
inevitavelmente, soubesse o que a esperava e qual seria o desfecho da história. Não,
olhava o passado com o olhar de quem busca entender uma difícil história, ou um
complexo problema matemático. Tinha o olhar atento de quem procura entender as
pessoas, a vida, a si. O vento balançou seus cabelos, tão levemente que o mais atento
dos observadores não teria percebido, mas estava tão imersa em si que qualquer mínima
distração ou movimento lhe era perceptível. Por um segundo levantou os olhos e
encarou o presente. Viu o quintal amarelado pelo sol fraco de outono, as folhas secas
levadas pelo vento, a grama rala e sem vida, o fundo da casa branca e com a pintura
descascando em alguns pontos. Nada de anormal, nada de inesperado. Voltou os olhos
para baixo e para si. A verdade é que havia se apaixonado pela primeira vez. Nunca
antes havia gostado de ninguém, não por falta de escolha, mas por falta de querer.
Quem olhasse para ela veria uma garota de beleza normal, que as vezes tinha um brilho,
uma faísca de vida, uma centelha de graça, que a dotava de uma beleza estonteante.
Tinha consciência disso, e gostava que fosse assim, sentia-se diferente, especial.
Aqueles que a conheciam, rapidamente a colocavam em um lugar dentro de seus
corações, mas ela por mais que se esforçasse não conseguia fazer o mesmo. Não é que
não gostava deles, gostava, mas do mesmo modo que se gosta de um irmão, tinha-lhes o
apresso de amigos queridos. Não entendia como algumas amigas gostavam tão
facilmente, apaixonavam-se tão facilmente, e como para ela era um martírio e um
sacrifício gostar minimamente de quem quer que fosse. Não era questão de beleza, ou
inteligência, ou afinidade, ou todas juntas, ou aos pares. Já havia encontrado garotos,
homens de todas as formas. E apesar de sua feição levemente angelical e de seus
pensamentos por hora românticos e castos, divertia-se muitos com os homens e garotos
errados que encontrava em sua vida. Não tinha o que mais ansiava, mas mesmo assim,
era feliz. Até ele. Encantara-se a primeira vista, como ocorrera com tantos outros. Mas
diferente dos outros, o encanto não passou. Perdurou e mais, cresceu. A convivência, a
afinidade que tanto os aproximava, fazia com que o encanto apenas crescesse. Sua
inteligência afiada e seu charme natural eram para ela ainda mais irresistíveis que o
doce preferido a uma criança. Tudo o que queria era estar com ele o tempo todo, e
quando estava com ele, tudo o que queria era sentir o calor do corpo dele e o gosto de
sua boca. Ouvir seus pensamentos inteligentes e seu conhecimento amplo. Não era
inexperiente. Sabia disso. Mas perto dele e de toda a sua vivencia, sentia-se uma
garotinha de 13 anos a espera do primeiro beijo. Já havia estado com homens mais
velhos, mais inteligentes, mais charmosos. Mas algo nele a atraia como nenhum outro
havia feito. E isso a maravilhava. E isso a horrorizava. E se... ele não gostar de mim ...
me achar infantil ... muito nova ... muito burra ... muito inexperiente ... feia ... gorda ...
irritante ... sarcástica ... irônica ... inteligente ... esperta... bonita. Tudo era motivo para
medo e reprovação, suas qualidades e defeitos, eram repentinamente defeitos horríveis e
irreparáveis. De naturalmente confiante e alegre, passara a ser insegura e desconfiada.
Esforçava-se ao Maximo para esconder seus medos, e na maior parte do tempo,
conseguia. Mas sozinha ou junto das melhores amigas, seus medos eram absurdamente
transparentes. E como um bebe sem a mãe, chorava e resmungava inconsolável seus
medos e temores. Não havia o que fazer na realidade. O relacionamento evoluiu para o
concreto, durante encontros noturnos às escondidas. Ninguém a não ser eles e suas
melhores amigas sabiam do que estava acontecendo. E o tórrido caso de amor platônico
terminou depois de algumas semanas. Ele partiu como se nada tivesse acontecido, ela
ficou perdida e solitária. Entregara-se de coração a um homem, entregara seu coração a
um homem. Entregara de primeira toda sua alma e paixão. E ficara sem nada, sem ser
lembranças. Ele não lhe prometera nada. Ele não lhe dissera nada. Ela escrevera o
dialogo de ambos em sua mente juvenil e apaixonada. Ela escrevera o dialogo errado. E
no final o felizes para sempre de outra. Porque pouco tempo depois de parar de se
encontrar com ela, ele estava com outra. E ao seu ver, essa outra não o merecia, não era
digna dele, não era. Ela e apenas ela, ou alguém melhor, poderia tê-lo. O tempo, amigo
sábio, ajudou-a a ver. O tempo de tê-lo, começou, durou e terminou. Com o passar dos
dias, seus pesar diminui, e suas angustias silenciaram-se. Talvez ele não gostasse dele,
talvez. Decidiu que não escreveria dialogo algum. Não tentaria entender gesto algum.
Ignoraria os chamados de seu coração solitário pelo calor, corpo e palavras dele.
Seguiria, em frente. E resoluta de sua decisão, seguiu em frente. Ignorou os clamores de
seu corpo e coração. Ignorou a revolta de seus sentimentos. Trancou-os fundo em uma
caixa de sua mente e seguiu seu caminho. Voltou a ter a confiança e alegria que lhe
eram naturais. Voltou a ser quem era, a garota que nunca se apaixona. Coração de
pedra, brincavam as amigas. E de repente, não mais que de repente, viu-se transformada
em tão coração de pedra quanto antes, e ainda mais. Muito embora seus sentimentos não
tivessem partido, estavam apenas adormecidos. Encontrou outros, que por hora ou outra
acalentavam seu coração e seus anseios. Nessas horas seus profundos sentimentos
reviravam-se no fundo da caixa, prontos para sair. Timidamente ela deixava-os respirar,
mas apenas respirar, sem deixar a caixa, sem deixar o escuro. Tinha medo, medo de que
acontecesse novamente, medo de não conseguir suportar. Então nunca vivia-os
plenamente, apenas pedaços. Mas agora não podia mais ignorá-los. Seus sentimentos
eram parte de si, a formavam tanto quanto todo o resto. Negá-los seria como negar parte
de si mesma, e machucasse o quanto machucasse, negar-se era algo que não podia
admitir. Sempre orgulhara-se de ser quem era e de ser como era. Por isso agora estava
ali, parada, tentando entender-se, tentando buscar motivos no passado. Ao mesmo
tempo que procurava acalentar as dores, que deveras sentia. A balança rangeu, e o vento
secou uma lagrima que escorria pelo rosto alvo. Não percebeu dessa vez, não moveu-se,
não assustou-se. A lagrima era apenas a conseqüência da falta de palavras, não podia ou
conseguia dizer tudo o que sentia, a lagrima era a expressão pura e sincera de seu
sentimento, finalmente acordado. O rangido da balança, era a expressão de sua dor.
Estava ali, alto o bastante para ser ouvido por um observador atento, baixo o bastante
para passar despercebido pelo mundo. No final, doía, não negaria, mas doía menos do
que pensava que doeria. E isso a aquecia por dentro. Sabia que conseguiria superar suas
dores e ressentimentos. Um esboço de sorriso sincero surgiu em seus lábios. O primeiro
em muito tempo.

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