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A ESTÉTICA DO FRIO

Vitor Ramil

JUNHO

Esperei a tarde toda por uma tempestade de vento vinda de Porto


Alegre. Anoiteceu. A chuva fina voltou a cair e a parar de cair sobre
Satolep. A umidade faz as tijoletas e os livros suarem; mofa os discos,
amolece e empena as capas dos livros. É junho. Vou até a janela; limpo
o vidro e olho para a rua. As pedras regulares do calçamento estão
acesas sob a luz dos postes, onde primeiro se vê a neblina densa que,
chegando devagar, descerá até o chão e transformará esta cidade
planejada numa cidade infinita. Nada nem ninguém acha Satolep à
noite nestas condições. A tempestade de vento não virá. Volto para a
escrivaninha e me sento. Fico olhando a foto de Edgar Allan Poe, mas
não posso vê-lo.

OUTRO JUNHO
Estou em outro junho. Estou no meu apartamento em Copacabana, Rio
de Janeiro, de calção e chinelos, assistindo ao Jornal Nacional na TV.
Assisto uma matéria sobre uma festa popular na Bahia. As imagens: um
trio elétrico sobre um caminhão arrastando milhares de pessoas
seminuas, pulando, suando, bebendo e cantando sob um céu furioso.
Não consigo me imaginar atrás daquele trio elétrico. Não consigo me
sentir próximo do espírito daquela festa, embora esteja igualmente
seminú e com calor e a notícia seja apresentada num tom de absoluta
normalidade, como se aquilo fizesse parte do meu dia-a-dia. Assisto a
seguir uma matéria sobre a chegada do frio no sul. Vejo o Rio Grande
do Sul. Vejo os campos cobertos pela geada na luz branca da manhã,
vejo crianças escrevendo com o dedo nos vidros dos carros, vejo
homens de pala andando de bicicleta, vejo águas congeladas, vejo gente
esfregando as mãos, gente de nariz vermelho, vejo a espectativa de
neve na serra, vejo o chimarrão fumegando. Seminu e com calor
reconheço imediatamente aquele universo como meu. Mas as imagens
são apresentadas num tom de anormalidade, de curiosidade, de quase
incredulidade, como se estivessem chegando de outro país -fala-se em
"clima europeu"-, o que faz com que eu me sinta estranhamente
isolado, mais do que fisicamente distante. Tenho a incômoda sensação
de estar no exílio e ver, ao mesmo tempo, o Rio Grande do Sul de
perto, por dentro e além das imagens. Percebo então o quanto me sinto
separado do Brasil.
Mais que isso, percebo o quanto o gaúcho se sente e o quanto realmente
está separado o Brasil. Constato que o obscuro sentimento que nutrimos
de não ser ou não querer ser brasileiros tem alcance muito maior que o
de mera curiosidade histórica ou de motivos de piadas entre nós. E não
preciso avançar até os casos isolados em que este é um assunto
ideológico. Só o fato de um sentimento estar assim latente no espírito
do gaúcho já é o suficiente para que se estabeleça separação e distância.
Acreditar não ser ou não querer ser brasileiro e ao mesmo tempo saber
que, mais do que fisicamente ligado ao Brasil, ele é irreversivelmente
brasileiro – porque no fundo sabe que esta separação é impossível –,
deixa o gaúcho num misto de frustração e impotência que o leva,
inevitavelmente, a ter que administrar um sentimento de inferioridade.
Uma simples manobra de compensação – uma manobra de
sobrevivência – basta para que este sentimento de inferioridade
transforme-se em sentimento de superioridade. E pronto. O gaúcho se
sente superior ao brasileiro. Separação e distância.
O afastamento – ou inconsciente ou ideológico – do Rio Grande do Sul,
torna-o o lugar do Brasil que mais facilmente pode ser definido em
duas ou três idéias redutoras, enquanto suas sutilezas de estilo parecem
insondáveis.
O gaúcho acaba tendo uma visão caricata de si próprio, a partir da visão
superficial que o Brasil tem dele e que ele, como brasileiro, compartilha
e assume. O deslocado gaúcho tende sempre a encarnar a personagem
"gaúcho" quando se comunica com o Brasil. Do outro lado, os
brasileiros tendem sempre a tratar o gaúcho como uma personagem.
Numa visão geral, digamos a partir do centro do País, qualquer povo
em qualquer região tem sempre suas peculiaridades transformadas em
clichês, mas aparece antes de tudo como brasileiro. O gaúcho parece ter
antes de tudo seus clichês, depois ser brasileiro. O Brasil o vê lá longe,
isolado, e só pode enxergar o que nele é gritante, só as diferenças que
saltam aos olhos. E o gaúcho faz que sim.
Assistindo ao Jornal Nacional me dei conta de que acima dos clichês
comumente usados para nos definir, acima de toda e qualquer idéia
redutora – que representam sempre pequenos recortes, fragmentos da
nossa realidade –; que acima também das nossas sutilezas de estilo,
estava a diferença fundamental entre o Sul e o resto do Brasil – como
símbolo não redutor, primeiro e inquestionável, abrangendo todos os
outros –: o frio. Vi que o Rio Grande do Sul simbolizava o frio no
Brasil – a chegada do frio no Sul, mesmo com aquele ar "acredite se
quiser", está anualmente na pauta da mídia nacional. E me dei conta de
que o frio simbolizava o Rio Grande do Sul. Passei a ver o frio como
metáfora amplamente definidora do gaúcho.
Esta idéia foi-se enchendo de sentido na medida em que, morando no
Rio de Janeiro e viajando constantemente pelo Brasil, passei a sentir o
clima tropical – a regularidade de um clima de mudanças tão discretas
entre as estações; o calor; a presença constante e vital do sol, do mar e
dos rios – como um grande pano de fundo onde se repetiam certas
características que pareciam unificar o modo de ser dos brasileiros em
sua diversidade. Deparei-me em muitos lugares – e lugares distantes
entre si – com um mundo de valores, de hábitos, de gostos e anseios
compartilhados que para mim não tinham a mesma significação. Mais
objetivamente, vivenciei a expansividade, o excesso, o emocional, o
gosto pelas ruas, pela diversão, pela alegria, pelo culto ao corpo, pela
dança, pelo ritmo, pelo colorido, pela espontaneidade, pelo caos, pelo
múltiplo, pelo variado, pelo eclético, etc. Vivenciei tudo isso e muito
mais, sempre sob aquele amarelo forte, aquele quase tom laranja da luz
do dia. Foi quando comecei a entender melhor o esforço dos
românticos, a atitude dos modernistas, a postura dos tropicalistas. E foi
quando não entendi e não aceitei a nossa distância "fria". Eu confirmara
que a riqueza cultural do Brasil residia na sua diversidade e, claro, o
Rio Grande do Sul já tinha nisso a sua contribuição. E depois, ao
encontrar para cada característica comum dos "brasileiros" uma
contrapartida na minha maneira de ser, nos meus hábitos de "homem
que veio do frio", me perguntei como era possível que se visse nisso
um sinal de incompatibilidade e não o sinal de que uma estreita
colaboração entre os dois "estilos" abriria uma perspectiva humana e
criativa infinitamente rica de possibilidades.
Até quando essa dieta de brasilidade que nós gaúchos nos impomos?
Aonde isso nos levará? E até quando essa dieta gaúcha que impomos ao
Brasil, reduzindo-nos numa estreita e auto-indulgente visão caricata de
nós mesmos e do nosso mundo? Por que uma comunicação natural e
direta com o resto do país deve ser tão complicada e escassa? Por que
não soar "normal" se somos brasileiros, se estamos fisicamente ligados
ao Brasil, se fazemos parte da cultura nacional? Será que estamos
fadados a que toda e qualquer expressão nossa soe sempre "folclórica"?
Não iremos jamais compartilhar, contribuir regularmente, acrescentar
de forma natural e efetiva com o país?
Penso nas queixas que ouvi de gente do Acre e do Mato Grosso a
respeito do "gaúcho" que costuma chegar, esgotar a terra e sumir –
enquanto mantém belas fazendas no Rio Grande do Sul. Penso nas
cobranças dos gaúchos a Elis Regina e na expressão "vendidos", que
tantas vezes ouvi ser usada em referência aos artistas que optaram por
viver e trabalhar no centro do País – para qualquer brasileiro, vencer no
centro do País é motivo de orgulho. Penso que ouvi em Porto Alegre
alguém dizer que Lupicínio Rodrigues não era um compositor gaúcho,
que ele fazia música brasileira – o fato de ser negro já parecia separá-lo
um pouco da cor local.
Penso que os gaúchos devem se aproximar do Brasil. Se acham que são
diferentes, tanto melhor! Penso que devem ambicionar – guardadas as
proporções – contribuir tão fartamente para a cultura nacional quanto os
nordestinos. Não quero dizer com isso que devam trocar a gaita pelo
cavaquinho ou pelo berimbau – nem misturá-los acreditando que
apenas o fato de estarem juntos já signifique uma fusão ou uma nova
linguagem –; não acho que devam adotar o coco gelado no inverno, às
margens do Guaíba. Acho, pelo contrário, que a aproximação dos
gaúchos com o Brasil se dará no dia em que aproximarem-se de si
próprios; no dia em que, refinando a sua linguagem, fizerem valer a
completude da sua sensibilidade, deixando para trás um fragmento,
uma curiosidade, ou como coisa imprestável, a caricatura redutora sob a
qual se acomodaram.
Jorge Luis Borges disse que ao escrever não necessitava "tentar" ser
argentino, porque já era. Se "tentasse" soaria artificial. Perfeito. O
"tentar" ser é caricatura. Não "tentar" ser gaúcho, nem "tentar" ser
brasileiro.
Quando falo em caricatura não estou falando em tradição. Porque a
tradição não é jamais um engano. A tradição não deve ser um peso a ser
suportado, nem um amontoado de fórmulas estanques a serem
repetidas. O artista, para criar algo de valor, para realizar algo que faça
sentido dentro do "fazer artístico", deve não apenas acompanhar
criticamente a trajetória da sua própria sensibilidade, mas também
dirigir seu olho crítico para o contexto em que está inserido e o que o
precedeu – o que o levou à sua forma de expressão. Para estar viva, a
tradição deve estar justificada na expressão contemporânea – e ela
estará justificada mesmo que o novo represente uma ruptura. A
expressão contemporânea, por sua vez, para justificar sua existência,
deve ser eficaz o suficiente para promover um avanço na trajetória da
tradição de que está imbuída, deve ser ela mesma tradição, tradição em
movimento, tradição futura.
E penso logo: qual é a minha tradição? A tradição brasileira é minha? É
natural que eu atue com ela e a partir dela? Mas tenho diferenças que me
distanciam da "comunhão tropical"? Tenho mais forte a tradição de um "país
frio", a tradição de um "país deslocado" do Brasil, ao mesmo tempo tão
próximo do Uruguai e da Argentina? É natural que eu atue com e a partir
dessa tradição "fria"? Sim! Devo fazer valer este sentimento de "dupla
personalidade", devo querer o máximo desta "dupla cidadania", fazer dela
fonte de criação e não fonte de diluição da minha capacidade criadora.
Pensando o "frio" como metáfora amplamente definidora do gaúcho, acho que
uma concepção "fria" tem muito o que fazer com uma concepção "quente".
Estou pensando em uma "Estética do frio".
A ESTÉTICA DO FRIO
Quando daquela "incômoda sensação de estar no exílio", constatei que
a música urbana do Rio Grande do Sul era, além de desconectada do
Brasil, absolutamente indefinida, o que me pareceu inadmissível para
um lugar com uma sensibilidade tão peculiar e uma produção tão
grande. Olhei, evidentemente, para mim mesmo – este território que
conheço com mais exatidão – e vi que, morando no centro do País há
tanto tempo, aquela indefinição me acompanhava. A indefinição
aparecia da seguinte forma: as coisas estavam lado a lado, visíveis,
formando um corpo eclético. Não havia uma linguagem que imprimisse
unidade a elas. Havia de um lado o dado regional, de outro o brasileiro,
de outro o mundial, resultando num ecletismo completamente ineficaz e
batido. Mais que isso. Em cada um desses dados havia indefinição,
faltava rigor formal. Vi o ecletismo como herança cansada do
tropicalismo, sua degeneração como estilo, como postura, em uma
ausência do estilo, em um hábito. O que em outro tempo fora a reação
natural a um mundo que tendia a se perpetuar em formas estanques,
fazia agora – num mundo plural, onde as portas estavam todas abertas –
menos sentido que uma linguagem que pusesse unidade na diversidade.
E me veio a imagem invernal de um gaúcho solitário tomando seu
chimarrão, a olhar a imensidão fria do pampa sob o céu cristalino da
manhã. Uma imagem de pura definição! Uma expressiva composição
de poucos elementos: a figura imóvel e bem delineada do gaúcho, o céu
claro, o verde regular e a linha reta do pampa no horizonte. E me
vieram palavras como rigor, precisão, concisão, sutileza. Uma cena
regional, quase remota! Curiosa associação. Eu estava vislumbrando
naquele pampa a música que eu queria: linguagem altamente definida
abrindo um espaço onde a inteligência e a sensibilidade encontrassem
um campo radicalmente aberto e irresistível para se expandir. Eu estava
vislumbrando uma concepção naquele universo "frio". Uma concepção
"fria". Talvez o tempo estivesse me fazendo transformar sentimentos
em idéias.
Era urgente ir atrás daquela concepção "fria". Era urgente definir a
linguagem. Era urgente, portanto, que eu me debruçasse sobre "meu
modo de fazer"; era urgente privilegiar o processo, adquirir confiança
nele. Era preciso ganhar um sentido prático. Era dominar a linguagem
para poder transcendê-la e chegar à poesia. Porque chegar à poesia é
chegar em nossa essência – é não "tentar" ser. Era preciso ter controle
sobre o que era passível de ser controlado, para que toda a dimensão
incontrolável – a "inspiração", a dimensão secreta e obscura –, toda a
dimensão que está além da técnica não fosse desperdiçada. O domínio
da técnica é libertador, serve ao que não pode ser dominado. Era
preciso refinar a linguagem. E era urgente, antes, uma faxina.
Tomei distância das práticas externas a mim, dos procedimentos
institucionalizados, do ecletismo da média, daquilo que se faz meio sem
saber por quê. Anotei as coisas ruins em que eu reincidia, as coisas
boas que eu deixava de explorar. Joguei fora tudo o que me pareceu
normal ou médio. Desci a lupa sobre os extremos: o grotesco e o sutil, o
rítmico e o imóvel, o literário e o coloquial, etc. Forcei os limites.
Estive na ausência da melodia, no minimalismo harmônico. Saí de
letras gigantes, cheguei em letras de duas linhas. Compus músicas de
dez minutos e músicas de alguns segundos. Partido em dois, em mim
mesmo exercitei os extremos. Separei-me em dois personagens para
dividir palco e repertório. Compus para cada um segundo suas
necessidades expressivas. Proibi palavras, notas, acordes. Arrumei
dificuldades para me obrigar a ir atrás de soluções. Saí da canção para
voltar a ela e estar por dentro.
No fim da faxina uma constatação: eu não experimentara a forma da
milonga. Não encontrara sentido nisso. Pelo contrário, minha maneira
de tratá-la cada vez mais era sutilizar as suas características atrás de
uma pureza que seria sua única forma possível. Por quê? Porque a
milonga era feita da mesma matéria de que era feita a imagem do
gaúcho e do pampa. O sentido que eu vislumbrara na imagem era o
sentido de pureza que eu via na milonga. Ou seja: havia uma
correspondência direta entre a forma ideal da milonga e as idéias que
norteavam a minha busca daquela concepção "fria". E eu podia ir direto
à sua essência, sem rodeios. Era simples lidar com ela e o resultado era
eficaz. Meu rigor – que eu enxergara na imagem – se acomodava
imediatamente à sua forma rigorosa. Em suma, nada do que ela exigia
era estranho à concepção "fria". Isso significava que uma concepção
"fria" se resumiria à forma da milonga? Não. Significava de que
maneira haveria sentido e funcionalidade na concepção "fria". A
milonga "funcionava". E se "funcionava" era porque tudo nela –
melodia, ritmo, letra, etc. – estava sob controle. Nada pode não ser
concebido ou concebido com displicência numa milonga sem que ela
perca a sua força, sem que não haja eficácia no seu resultado final. Uma
milonga deve ter sua própria concepção. Esta pista me levou de volta à
imagem do gaúcho e do pampa. A concepção "fria" que nela eu
vislumbrara só seria eficaz se a expressividade que eu captava na cena
como um todo eu fosse capaz de captar nos seus detalhes – nos traços
do rosto do gaúcho, por exemplo, na luminosidade do seu olho, na
profundidade do seu pensamento, na dispersão da sua memória. Era
desta forma que a concepção "fria" se afirmara na forma da milonga, a
milonga que, da mesma forma que a imagem, se opunha a tudo o que
era múltiplo, excessivo. A milonga em tom menor, reflexiva, densa,
profunda e melancólica. Rigorosa em sua cadência, seu ponteio, seu
fraseado; sutil em seu movimento melódico sinuoso, oriental. E não por
isso cerebral: milonga intuitiva, emocional. Se abarcasse uma grande
cena, um grande desenrolar temático, seria sempre contida, nunca
excessiva. Milonga concebida.
Se eu fosse aquele gaúcho da imagem, absolutamente "definido", a
forma da milonga me saciaria. Com ela eu poderia apreender a
totalidade do meu universo "frio". Mas não se tratava disso. Eu não era
absolutamente "definido", e meu universo era "plural". O mundo que eu
queria apreender era múltiplo, excessivo. E para essa tarefa a forma
puramente "definida" da milonga não me bastaria. O que me bastaria?
Ter encontrado um sentido de pureza naquela paisagem "fria" e na
forma "fria" da milonga, indicava que aquele sentido de pureza já
existia em mim. Indicava que eu estava vinculado àquele universo
"frio", que eu tinha uma formação "fria" e – partindo do princípio de
que toda arte é uma leitura do mundo – que eu tinha uma leitura "fria"
do mundo. Eu queria unidade na diversidade? Pois ao tentar apreender
a pluralidade do mundo através desta leitura "fria" eu teria unidade na
diversidade. É que, para saciar o sentido de pureza que me movia, o
único resultado possível seria o que tivesse a expressividade que eu via
na paisagem "fria" e na forma "fria" da milonga. O mundo devia ser a
minha leitura do mundo, não o contrário. Essa convicção banal era a
única coisa que eu precisava para refinar a linguagem e chegar à sua
"alta definição". Em termos práticos: assim como a forma da milonga
não me bastava, também não era o caso de ficar transpondo
mecanicamente para as músicas as características definidoras do
universo "frio" – o frio favorece à introspecção Þ a música será
introspectiva; o pampa é imenso e regular Þ a música será longa e
repetitiva. Talvez só por curtição eu visse um determinismo nessas
analogias. Depois da faxina, depois de ter feito aquela devassa no meu
universo musical, e ter adquirido uma razoável consciência do que eu
parecia fazer melhor e com mais gosto – essa consciência não se
adquire muito facilmente –, era hora agora de voltar a este labirinto de
informações, à infinidade das minhas referências, às minhas mais
antagônicas obsessões e reestruturar tudo a partir da minha ótica "fria"
– transformar meu caos em meu cosmos "frio"; buscar o sentido de
pureza do "frio" em toda a parte – e fazer com que "funcionasse", fazer
com que todos os meus resultados fossem eficazes. Se todos os
elementos de uma música têm o poder de significar – melodia, arranjo,
ritmo, harmonia, execução, etc. –, era preciso ter controle absoluto
sobre cada um desses elementos. Se um deixasse de ser concebido, o
efeito de conjunto estaria diluído. A minha marca deveria estar em
todas as partes para estar no todo. Antes disso: o ato de compor já teria
em vista a concepção final. A música deveria ser sua própria
concepção. Concepção "fria".
O que uma boa audição resolveria:
– Música Popular Brasileira.
– Uma estética do rigor.
– Unidade na diversidade.
– O predomínio da canção. Música e letra. Longas canções lineares,
pequenas canções de segundos (não vinhetas) e as deliciosas formas
comuns tipo AABAB e variantes. Jamais encheção de lingüiça (repetir
a letra, solos ou falas gratuitas, etc.). Pequenas, grandes, com refrão,
sem refrão: todas as canções igualmente densas, exatas em sua duração.
Cada canção impõe sua concepção. Mas há uma concepção para todas
as canções.
– A melodia como um raciocínio minucioso e claro. Mas intuitiva.
Muita melodia. Cromatismo. A sinuosidade melódica da milonga
onipresente, mas sua melancolia aplacada pela leveza da canção
brasileira. A repetição. O círculo. Motivos amplos e lineares. Também
a eventual ausência da melocia,a tensão da fala: estranhezas preparadas.
– Harmonia aberta. Fluxo regular.Troca sutil de acordes. Também
acordes de sétima chamados pelo orientalismo melódico da milonga. A
harmonia nascendo e se desenvolvendo junto com a melodia, como um
só corpo (onde também estará a letra). Esse corpo é o centro. Mas sem
privilégio. O privilégio é para o todo. Talvez a harmonia tenha o papel
de amalgamar o todo, de fazer a ponte entre as partes. Mas não sempre.
O elemento atonal entrando naturalmente no fluxo, sem configurar um
choque.
– O ritmo brasileiro, negro, dançante, tratado com certa dureza (o rigor
do tango) e preciosismo planejados. O ritmo como um raciocínio
minucioso. Mas intuitivo. O ritmo saído de dentro da harmonia/melodia
ou o contrário. Buscando a estranheza: acentuações incomuns (coladas
no movimento harmônico/melódico ou em nuances da letra); timbres
percussivos incomuns (mas não muita variedade timbrística). O uso do
ritmo eletrônico se a intenção for a regularidade e a repetição. A
eletrônica vai muito bem com ritmos negros. Eletrônica +
complementação com instrumentos tocados por mão humana: se for
este o efeito procurado ou se só a eletrônica soar inexpressiva. O ritmo
trazendo leveza. Limpeza. Uma analogia? Montanhas e morros do Rio
colocados aqui e ali, criteriosamente, na vastidão lisa do pampa.
– Os músicos dentro da concepção. A concepção conta com as
peculiaridades dos músicos. O músico livre sozinho e livre com os
outros músicos. Conjunto. As bases tendendo à regularidade e à
repetição (individualmente e entre si). A "cobertura" trazendo a
variedade: sonoridades diversas e incomuns. O acústico. Tudo muito
"vivo". Não padronização. Não redundância. Sonoridade preparada,
não adotada. A ordem interna da letra e a ordem interna da harmonia e
a ordem interna do ritmo refletidas na ordem do arranjo. Minúcias.
Limpeza. Teclados eletrônicos só para sonoridades específicas. Solos
escritos. Solos que as músicas exigem. Quase tudo já se resolve na
estrutura da canção. Contenção. O violão executado dentro da
concepção, não aleatoriamente, violão com afinação preparada para
explorar a sonoridade das cordas soltas e os efeitos da harmonia aberta.
- As palavras saem da sugestão sonora da melodia. Os sons sem sentido
da melodia viram palavras. Antes da letra já estão ali os acentos, as
rimas, os tamanhos das palavras. As palavras virão dessa não-letra
intuitiva, desses grunhidos espontâneos. A letra, portanto, será
inseparável da melodia/harmonia. Um corpo só. Nada poderá ser tirado
sem que ela perca a sua força. Exatidão. O tamanho da melodia é o
tamanho da letra. Só que a melodia se repete e a letra não. A letra
começando no início da melodia e evoluindo sempre diferente (um
raciocínio minucioso) até o final. Repetição só no refrão. Mas não
sempre. Surgidas de sons ininteligíveis, as palavras irão impor o seu
sentido. E serão tratadas racionalmente como um poema. Talvez até
"funcionem" ao serem apenas lidas. Mas não são poemas. Pertencem à
poesia, mas são letras de música. Descrições minuciosas do cotidiano.
A ambigüidade das palavras e o mundo concreto. Não há mensagem.
Palavras abertas numa abertura tão vasta que quase nada pode passar
por elas. O respeito absoluto à prosódia. O humor trazendo a leveza.

JUNHO
Edgar Poe, the ancient raven et moi.* Penso no refrão de uma milonga
minha, onde sobrevôo a cidade de Porto Alegre: "Nunca mais, Nunca
mais." O "Nevermore, Nevermore" do pássaro de Poe. Nunca mais
havia pensado nisso. Boto na memória, desligo o computador e vou
outra vez até a janela. Limpo o vidro, olho para a rua. No fundo, isso
tudo é apenas o que meu olho inventa: Satolep. No tabuleiro rigoroso
dessas ruas e na arquitetura minuciosa desses prédios a vida
contemporânea explode em sua diversidade. Quando a noite chega, mil
outras vezes a explosão se espalha em coisas que a cidade sonha. E a
neblina desce e se instala. Estética do frio.

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