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A Importância do laicização do Estado como forma de proteção aos direitos

sexuais1

Autores2: André Ribeiro, Camila Martins

1 Introdução

O homem é um animal transcendente, desde tempos imemoriáveis este busca


entender e dar sentido ao mundo e a tudo ao seu redor, na falta de explicações suficientes, e
como uma forma de “ir além” desta própria vida, este mesmo homem criou a religião, com o
intuito de se conectar a uma força maior. Porém, os homens são diferentes entre si, e como tal,
encontraram formas diferentes de se sentir conectados, cada qual com suas próprias formas de
culto e expressão. Em um Estado Democrático de Direito este fato social da diversidade
religiosa é positivado e a liberdade de culto em todas suas formas e expressões é garantida.
Este trabalho tem por objetivo analisar e tentar entender como se dá esta dialética entre direito
e religião em um Estado dito laico, questionando a própria possibilidade de haver tal laicidade
e buscando compreender como a religião e os valores morais de uma dada sociedade, em
específico a brasileira, podem, de forma legítima, participar da construção do direito.
De acordo com Sarmento (2007), a maioria das democracias ocidentais adota o
principio da laicidade estatal, sendo que este principio opera de duas formas distintas:

Por um lado, ela salvaguarda as diversas confissões religiosas do risco de


intervenções abusivas do Estado nas suas questões internas, concernentes a aspectos
como os valores e doutrinas professados, a forma de cultuá-los, a sua organização
institucional, os seus processos de tomada de decisões, a forma e o critério de
seleção dos seus sacerdotes e membros, etc. Sob esta perspectiva, a laicidade opõe-
se ao regalismo, que se caracteriza quando há algum tipo de subordinação das
confissões religiosas ao Estado no que tange a questões de natureza não-secular.
Mas, do outro lado, a laicidade também protege o Estado de influências indevidas
provenientes da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder
secular e democrático, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer
confissão religiosa, inclusive a majoritária. (SARMENTO, 2007)

O Estado laico não é um Estado ateu nem mantém postura refratária em relação à
religiosidade, mesmo porque o ateísmo em sua cosmovisão pode ser considerado uma

Paper desenvolvido como requisito parcial para aprovação na disciplina de Antropologia


1

Alunos do primeiro período vespertino do curso de Direito da UNDB


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religião. A laicidade não tem por objetivo negar quaisquer tipos de culto ou fé, a postura
neutra do Estado tem objetivo completamente diverso a este: o de proteção de todas as formas
de religião.“A laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes
concepções religiosas presentes na sociedade” sendo vedado a este “tomar partido em
questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer crença”.
(SARMENTO, 2007)

Como a questão é importante, vale a pena entendê-la em detalhe. A rigor, Estados


não podem ter ou deixar de ter fé: a fé é uma característica de pessoas. Instituições
ou Estados podem, quando muito, promover uma ou outra fé, ou a falta dela.
Entendendo que Estados laicos são sempre neutros com relação às matérias
religiosas, uma vez que se há preferidos, há preteridos, então a laicidade implica que
o Estado não promova nenhuma posição com relação à religião: nem o ateísmo, nem
qualquer credo religioso. Nesse sentido, o Estado laico não é ateu, mas também não
tem fé – ou seja, não promove a fé. Afinal de contas, a fé ou falta dela é uma questão
de foro íntimo e deve ser completamente voluntária, e não objeto de política pública.
(SOTTOMAIOR, 2009)

A importância de um Estado que não apenas respeite a fé dos seus cidadãos, mas
que também não professe uma fé própria, se dá pela coerção que aqueles que não professem a
crença “oficial” indiretamente sofreriam. Segundo Jónatas Machado, quando o Estado
concede uma posição de vantagem a instituições, ou utiliza símbolos ou ritos de uma religião,
ou fé, especifica, tal atitude é suscetível de ser interpretada pelos não aderentes como uma
forma de pressão para que estes se “conformem” (tomem a forma) com a religião favorecida.
Tal atitude, por parte do Estado seria “uma mensagem de desvalorização das restantes
crenças. Por outras palavras, ela é inerentemente coerciva” (SOTTOMAIOR, 2009). Portanto
feriria a própria liberdade individual, um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

2 Um breve histórico do Estado Laico

Neste primeiro momento, os conceitos basilares do trabalho serão apresentados


sem lapidações, em estado bruto, e no decorrer do projeto serão lapidados de modo a tentar
esclarecer (dentro das devidas limitações) que no decorrer da historia, a relação entre religião
e Estado sofreu modificações significativas.
O laicismo aparece com mais clareza enquanto corrente filosófica no final do
século XIX e inicio do século XX, após uma época marcada pela junção de Estado e Religião
na política. As bases do laicismo são nutridas por ideais de liberdade de consciência do
cidadão e de um Estado democrático com uma postura de neutralidade em relação a correntes
religiosas, idéias que são dotadas de concepções iluministas.
No século XVII, o teocentrismo passa por uma fase de decadência, são
questionados os dogmas absolutos pré-estabelecidos que apregoassem a união entre Estado e
religião. É nesse contexto que, através de uma nova perspectiva política, surge o laicismo.
Nasce a idéia de estado totalmente livre de imposições religiosas, porem, sem deixar de
acolher todas as formas de culto.
No que discerne ao Brasil, a Igreja sempre foi presença marcante. Uma
demonstração clara é o fato de que a primeira solenidade oficial realizada em solo brasileiro
(que nesta época era a Terra de Santa Cruz) foi uma missa. A religião Católica Apostólica
Romana era a oficial do Império. As outras religiões eram “permitidas” desde que seus cultos
fossem domésticos ou particulares, sem forma exterior de templo. Um exemplo dessa forte
ligação é que a constituição de 1824 só permitia a elegibilidade para o congresso aquelas
pessoas que professassem o catolicismo.
A república vem a ser um marco quanto à laicidade brasileira. Como explica
Emerson Giumbelli:

É quando se adota de modo assumido o princípio da separação entre Estado e


igrejas. Em termos mais concretos: rompe-se com o arranjo que oficializava e
mantinha a Igreja Católica; o ensino é declarado leigo, os registros civis deixam de
ser eclesiásticos, o casamento torna-se civil,os cemitérios são secularizados; ao
mesmo tempo, incorporam-se os princípios da liberdade religiosa e da igualdade dos
grupos confessionais, o que daria legitimidade ao pluralismo espiritual.
(GIUMBELLI, 2004)

A constituição atual apresenta o seguinte preâmbulo:

‘Nós, representantes do povo brasileiro,reunidos em assembléia nacional


constituinte para instituir um estado democrático,destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais,a liberdade,a segurança,o bem estar,o
desenvolvimento,a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna,pluralista e sem preconceito,fundada na harmonia social e comprometida,na
ordem interna e internacional, com a solução pacifica das
controvérsias,promulgamos ,sob a proteção de deus,a seguinte CONSTITUIÇAO
DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”
Há grande divergência quanto à interpretação da atual constituição no que
discerne a laicidade do Estado brasileiro. Para Ferreira “o preâmbulo é uma parte introdutória
que reflete ordinariamente o posicionamento ideológico e doutrinário do poder constituinte”
(FERREIRA, 1989). De acordo com essa corrente doutrinária o texto do preâmbulo
constitucional trata-se de mera peça introdutória. Já para João Barbalho:

“O preâmbulo enuncia por quem, em virtude de que autoridade e para que fim foi
estabelecida tal constituição. Não é uma peça inútil ou mero ornato na constituição
dela:mas simples palavras que constituem,resumem e proclamam p pensamento
primordial e os intuitos dos que o arquitetam”

(BARBALHO, 1924 apud FERREIRA, 1989)

Com essas palavras, o autor deixa claro que de acordo com suas concepções, o
texto do preâmbulo tem força coativa. Apesar da evocação do Noé de Deus no preâmbulo, o
art. VI da carta magna garante a liberdade de crença.

3 Laicidade e direitos humanos

Democracia e cidadania são princípios fundamentais de diversos movimentos


sociais contemporâneos. A partir deste fundamento, uma vasta gama de reivindicações tem
surgido, reivindicações estas que abrangem os mais diversos aspectos da vida individual e
coletiva. A partir desta dinâmica percebe-se a importância de uma “compreensão, cada vez
mais difundida, das múltiplas dimensões requeridas para a construção de uma sociedade
democrática”, sociedade esta repleta de demandas por inclusão econômica, politica, cultural e
social. “Essas dimensões também marcam uma ampliação do conceito de cidadania, uma vez
que este, tradicionalmente, associava-se somente ao status jurídico adquirido em virtude da
pertinência nacional”. Esta dinâmica é refletida na ideia internacional de direitos humanos.
“Mais e mais o ser humano é visto como sujeito de direitos que vão muito além do mero
pertencer a uma nacionalidade”. (RIOS, 2006)
Dentre os muitos aspectos desta dinâmica acima mencionada, a sexualidade
mostra-se como um dos temas mais controversos e de progresso mais lento. A despeito das
reivindicações cada vez mais articuladas e aparentes dos movimentos gays, lésbicos e
feministas, a participação destes grupos sociais na sociedade, de forma igualitária ainda está
longe de ser uma realidade. “Apesar da aprovação, aqui e ali, de legislação protetiva de certos
direitos, ainda falta muito para a sua efetivação e sua expansão em domínios importantes”.
(RIOS, 2006)

Apesar dos avanços obtidos, razões de ordem teórica e de ordem prática


recomendam avançar mais. Para tanto, é preciso desenvolver um “direito
democrático da sexualidade”, vale dizer, um exame, na perspectiva dos direitos
humanos e dos direitos constitucionais fundamentais, das diversas normas jurídicas
cujo âmbito de proteção atenta para as diversas manifestações da sexualidade
humana. (RIOS, 2006)

Um dos grandes obstáculos à efetivação, ou até mesmo à positivação, destes


direitos sexuais é o argumento moralista (este usualmente de fundo religioso), ou seja, o
argumento de que “Tais direitos, simplesmente, não seriam direitos, pois contrários à moral;
seriam, antes disso, deturpações valorativas.” Percebe-se, no entanto, que este argumento é
inerentemente contrário à própria ideia de Estado democrático, pois, como diz John Stuart
Mill:

A única moralidade que a democracia pode acolher é a moralidade crítica, em que


os argumentos do gosto, da tradição, do nojo e do sentimento de repulsa da maioria
não podem ser finais, sob pena das ameaças do integrismo, do fundamentalismo das
tradições, do autoritarismo vindo daqueles que se considerem iluminados. (RIOS
apud MILL, 2006)

Um direito democrático da sexualidade necessariamente refuta discursos cujo


fundamento são ideologias religiosas. A bem da verdade a positivação de direitos sexuais
encontra-se no cerne da celeuma entre direitos humanos e a necessidade de um Estado laico.
Tendo sua origem a partir dos ideais republicanos, do estado liberal e do Estado democrático
de direito, “os direitos sexuais podem constituir-se como espaços onde sociedade civil e
Estado mantêm-se autônomos diante das instituições religiosas, preservando o pluralismo e o
respeito à diversidade.” (RIOS, 2006)
Considerações finais

A partir do exposto neste trabalho percebe-se que existe uma ligação intima entre
a consolidação de um Estado laico e a real efetivação dos direitos humanos, especificamente
no que tange aos direitos sexuais. Um Estado, que se diz democrático, deve propiciar a seus
cidadãos a liberdade tanto para expressar qualquer credo e/ou ideologia como para escolher os
caminhos que suas vidas privadas tomarão (tais escolhas, obviamente, não podem ferir os
próprios princípios democráticos que as permitem reais, não seria lógico que assim
procedessem).
A democracia baseia-se sim na vontade da maioria, no entanto um principio da
democracia é a proteção das minorias, a possibilidade de que a voz destas também possa ser
ouvida, portanto o argumento de “moldar” o Estado de acordo com os valores e religião das
maiorias é inerentemente antidemocrático, e tem a mesma raiz de outros movimentos que até
hoje envergonham toda a raça humana (o nazismo é um exemplo extremante forte e
historicamente recente).
A proteção aos direitos humanos, às direitos individuais, da fé, crença e,
principalmente, do direito a escolha devem pautar todo e qualquer direito que busque se
legitimar democraticamente.

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