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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
TEORIAS DA HISTÓRIA – TURMA B
TRABALHO FINAL – 2019/02
AFONSO CORRÊA CAVAGNOLI SOARES – 302623

O contexto presenciado no Brasil de ascensão das direitas radicais, do


neoliberalismo sendo apresentado como contestação dos avanços sociais vivenciados nas
últimas décadas, da subordinação política e cultural à centralidade do sistema capitalista
global, provoca dilemas e questionamentos no ramo da disciplina História, quanto ao seu
lugar, seu papel. É importante ressaltar a relevância das narrativas históricas na
constituição das identidades e dos posicionamentos políticos, de tal forma que se observa
atualmente uma disputa, de cunho narrativo e epistêmico, quanto aos fatos da história
brasileira e sua interpretação. O conhecimento produzido a partir das universidades e do
mundo acadêmico, de um modo geral, é contestado pelas forças políticas representantes
da direita e do pensamento reacionário; trabalhos como Guia Politicamente Incorreto e
Brasil Paralelo são exemplos da tentativa de reconstrução da narrativa, moldada a partir
das necessidades e interesses dos grupos em questão. De uma forma breve, sem tratar de
muitas nuances e particularidades, esse é o contexto em que se situa a História, enquanto
disciplina, no Brasil, e por conta disso surge a necessidade não apenas de se responder
aos ataques, mas também, como proposto neste trabalho, afirmar visões teóricas que
possam representar uma narrativa que dialogue com a realidade da população brasileira,
com as necessidades educativas, culturais, voltada à afirmação de grupos subalternizados,
invisibilizados e oprimidos, de forma a dialogar, resistir e propor, no contexto do
autoritarismo, neoliberalismo e pós-colonialismo.

Em primeiro lugar, para se compreender a ideia do papel da História, é relevante


a categoria de regime de historicidade, em particular no que tange à historicidade do
presente. Relacionando-se o tempo da história com o tempo da memória, é possível
historicizar o tempo presente, compreendê-lo na sua temporalidade, e em certa medida
romper com o distanciamento entre o tempo presente e o passado, dada a relevância social
e política, que pode ser vista, da memória histórica no tempo presente (MUDROVICIC,
2013). Nesse contexto de presentismo se situa a necessidade de uma narrativa histórica
que se comprometa com o papel de relevância social, pensando seu papel educativo,
levando em conta a realidade marcada pela desigualdade social, racial, econômica, de
gênero, assim como

“é necessário avançar ainda mais no desenvolvimento de pesquisa e formas de


comunicação que possibilitem um diálogo dinâmico entre presente, passado e
futuro, envolvendo os alunos e abrangendo temas como os cataclismas ambientais
e mudanças climáticas, a comunicação e sociabilidade digital, a engenharia
genética e outros avanços tecnológicos de ponta; bem como ampliar a reflexão
sobre os condicionantes ideológicos do nosso próprio olhar, aprofundando temas
como o eurocentrismo e o etnocentrismo, o preconceito, gênero, etnocídios e
história, dentre tantos outros” (NICODEMO et al, 2017).

O histórico de lutas sociais no Brasil possibilitou avanços importantes no que


tange à História, como por exemplo a Lei 10.639, que, ao tornar obrigatório o ensino de
história da África e Afro-Brasileiros, possibilitou transformações tanto nas perspectivas
de ensino como na pesquisa, ao desenvolver uma demanda pelo assunto em questão. A
existência da educação enquanto não planejada levando em conta a diversidade étnico-
racial das escolas é apontada como um dos fatores pelos quais os níveis de evasão escolar
de pessoas negras foi, historicamente, muito elevado em comparação ao de pessoas
brancas, dado que não se encontrava no ambiente e nos conteúdos escolares uma temática
que dialogasse com a sua realidade, a sua cultura e identidade, de forma a excluir esses
grupos do processo educacional (PEREIRA, 2008). Essa é uma das questões a partir da
qual pode-se pensar o lugar da disciplina de História no Brasil, de forma a desenvolver a
identificação, e o relacionamento com diferentes visões da história, uma educação que de
fato condiz com a realidade de diferentes grupos.

Nesse contexto se situa a necessidade da descolonização do pensamento, partindo


das ideias de decolonialidade, criticando o eurocentrismo determinante dos currículos
universitários, referenciais teóricos das pesquisas e trabalhos historiográficos, e dos
materiais pedagógicos encontrados nas escolas. Apesar das tentativas empreendidas na
descolonização dos saberes e culturas apresentados, muitas vezes com resultados
importantes, a colonialidade, galgada na branquitude, patricarcado e voltada ao ocidente,
acaba por desconsiderar e desvalorizar as epistemologias, sistemas e instituições de
matriz não europeia. Essa colonialidade se impõe inclusive sobre estudos voltados aos
povos de origem não ocidental: africanos, indígenas, quilombolas, afro-brasileiros, por
meio dos paradigmas da modernidade e das epistemologias europeias, de forma
eurocêntrica, legitimando violências e dominações.

A proposta de Bas’Ilele Malomalo, pesquisador congolês, por exemplo, a respeito


da História da África, a qual o autor identifica como Estudos Africana, traz uma
contribuição importante a respeito da forma pela qual podem ser repensados os
referenciais teóricos na pesquisa da história da África. Malomalo procura no pensamento
africano, em tradições de pensamento como o Ubuntu, meios para o estudo e a abordagem
historiográfica que rompam com o paradigma moderno/colonial/eurocêntrico, já que se
trata de uma matriz desenvolvida a partir do pensamento africano. Não somente para a
história da África, mas tais referenciais podem ser também utilizados levando em conta a
historiografia afro-brasileira, assim como constituir um exemplo importante no
desenvolvimento de outras epistemologias não eurocêntricas.

Os saberes populares, as epistemologias de matriz africana e indígena, e diferentes


formas de pensamento podem servir de base fundamental para a constituição de uma
História, enquanto disciplina, que se afirme a partir das múltiplas vertentes da sociedade
brasileira. A história compreendida a partir desse aspecto pode desenvolver narrativas
que dialoguem com a multiplicidade de saberes situados na sociedade, a partir de uma
lógica inclusiva do conhecimento, que não exclua setores da população. É uma visão que
se opõe aos revisionismos convenientes à agenda neoliberal e reacionária que procura se
impor na disputa epistêmica presente, afirmando e valorizando os conhecimentos, as
histórias e narrativas que historicamente foram submetidos à invisibilidade e ao estigma,
a fim de procurar, de alguma forma, contrapor a crescente tomada de espaço pelo
autoritarismo.

Referências
CASTRO-GOMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramon. Prólogo. Giro decolonial, teoría crítica
y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramon (org.).
El Giro Decolonial: reflexiones para una diversidade epistémica más allá del capitalismo global.
Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales
Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 9-24.
MALOMALO, Bas’Ilele. “ESTUDOS AFRICANA OU NOVOS ESTUDOS AFRICANOS: Um
campo em processo de consolidação desde a diáspora africana no Brasil”. Capoeira – Revista de
Humanidades e Letras. Vol 3, Número 2. 2017.
MUDROVCIC, Maria Inés. Regímenes de historicidad y regímenes historiográficos: del pasado
histórico al pasado presente. In: Historiografias, vol. 5, enero-junio, 2013.
PEREIRA, Luena. “O ensino e a pesquisa sobre África no Brasil e a Lei 10.639”. In: VVAA. Los
estúdios afroamericanos y africanos en la America Latina: herencia, presencia y visiones del
outro. Cordoba; Buenos Aires: CLACSO, 2008.
SOUZA, Francisco Gouveia de; GAIO, Gessica Guimarães & NICODEMO, Thiago Lima. Uma
lágrima sobre a cicatriz: o desmonte da universidade pública como desafio à reflexão histórica
(#UERJresiste). In: Revista Maracanan, vol. 17, 2017, p. 71- 87.

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