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Identificação de um movimento “contracultura” no século XXI

Tiago André M. Pereira*

Resumo
Este trabalho apresenta um estudo antropológico sobre práticas e representações de um
determinado movimento sócio-cultural e do indivíduo que o define. Através da análise de
livros, conteúdos audiovisuais e documentos científicos, procura identificar um movimento
“contracultura”. Investigando a simbologia e ideologia deste recente fenómeno cultural torna-
se necessário recorrer a memórias coletivas e individuais para enquadrar o ponto atual de uma
subcultura que se ramifica nas novas tribos urbanas da idade contemporânea.

Palavras-chave: práticas; sócio-cultural; ideologia; tribos urbanas; contracultura;

Abstract
This work presents an anthropological study on practices and representations of a certain
socio-cultural movement and the individual that defines it. Through the analysis of books,
audiovisual contents and scientific documents, it seeks to identify a "counterculture"
movement. Investigating the symbology and ideology of this recent cultural phenomenon it is
necessary to resort to collective and individual memories to better understand the current
stage of a subculture that branches out in the new urban tribes of the contemporary age.

Key-words: practices; socio-cultural; ideology; urban tribes; counterculture;

Introdução
“A dúvida é o principio da sabedoria” Aristóteles 1

Fazendo referência a James Clifford, a antropologia sócio-cultural foi sempre uma


disciplina fluída e relativamente aberta. Ao manter uma forte conexão com a sociologia, a
história e a literatura, surge um problema de identidade.
A cultura ao ser percebida como essência que se revela num processo de constante
evolução e transformação, remete para as ciências indutivas, não exatas.

1 Frase atribuída a Aristóteles (384 - 322 A.C). Um filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o
Grande. Internet. Disponível em http://www.citador.pt/frases/a-duvida-e-o-principio-da-sabedoria-
aristoteles-1189 (consultado em 06/02/2017)
* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD
Desta forma, o estudo antropológico deve ser progressivo e acompanhar o objeto no seu
contexto espaço-temporal e social.
A grande referência metodológica da antropologia é a abordagem etnográfica.
Designando a etnografia como conjunto de princípios epistemológicos que orientam o
processo de pesquisa empírica, compreende-se que a observação participante, o trabalho de
campo e a pesquisa documental sejam as etapas de um estudo antropológico.
As práticas e representações culturais estão na base da história da cultura. Tendo a
noção que a antropologia cultural se revê na história e na sociologia da cultura torna-se
necessário compreender as práticas e representações sócio-culturais das sociedades, em
determinado período histórico, para se observar de perto os valores que formam a identidade
do movimento - “contracultura”.
A identidade cultural de certos grupos que se criaram nos meados do século XX, na
Idade Contemporânea, período do pós-modernismo, apresenta simbologia e ideologia própria.
Compreende-se então que a identidade é percetível e associada a um conjunto de práticas e
representações, símbolos e ideologias.
A memória é também um fator muito importante na renovação e polarização da
identidade cultural. Construir a realidade social significa adaptar o espaço onde o indivíduo
ou o grupo é integrado. Essa renovação e construção do espaço sócio-cultural, surge da
memória ou do conjunto de memórias que se atualizam.
Assmann, egiptólogo e teórico da cultura alemão, num capítulo denominado
Communicative and Cultural Memory, falou sobre os valores da memória e da sua
importância para a comunicação cultural.
Memory enables us to live in groups and communities, and living in groups and
communities enables us to build a memory (...) Cultural memory deals with the connection
between time, identity and memory in their three dimensions of the personal, the social and
the cultural. (Assmann 2008: 109-118)

Os estudos sobre a memória são fundamentais para compreender o impacto da


polarização cultural do indivíduo e da sociedade, porque se a memória está na base da
consciência humana, então o estudo sobre a memória identifica a raiz da identidade cultural.
Halbwachs afirma no seu livro On collective memory:
“When a group is integrated into part of the space, it transforms that space in its own
image, but at the same time it bends and adapts to the material things that resist it”, so that
“the place bears the stamp of the group, and vice versa” (Halbwachs 1992: 186-195)

* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD


As memórias surgem associadas a lugares, objetos, materiais, ações, sentimentos, entre
outros, mas elas podem destruir-se e a nossa “construção”, no seu todo, perde-se. Essas
memórias vivem num tempo emprestado, ameaçado por possíveis alterações. Por isso muito
vulneráveis.
Por outro lado, temos lugares de memória, que geralmente se expressam de forma
simbólica. Desse modo, os lugares são desconectados desses materiais que os caracterizam e
são associados às crenças do grupo. São versões de memória mais simplificada mas mais
robusta, como por exemplo o “Boom Festival”. Um local associado a um evento de memória
que um grupo inteiro quer manter. Adota duas formas: a real e o simbólico.
While the places continue to live and evolve, often to the point where all trace of the past
event has disappeared, for those who maintain the memory of that event, the place remains
forever set in their idea of it, which is directly related to their present interest in the event.
This is a source of tension – central to the sociological issue of the relationship between
memory and places – between “on the one hand a material reality, figure, monument or
place in space, and, on the other, a symbol, in other words the spiritual meaning... linked to
and superimposed on the reality” (Brian APUD Truc 2012: 149)

1. Manifestação existencial do movimento “contracultura” no século XX


O existencialismo particularmente popularizado pelas obras de Sartre pode ter sido o
marco inicial do movimento contracultura, ainda na década de 1940. Partindo em defesa da
liberdade e revelando o pessimismo pós-guerra, principalmente, este movimento questionava
diretamente os valores centrais da época instituídos na cultura ocidental. Aproveitando a
boleia do crescimento dos meios de comunicação, estas ideologias ganham uma dimensão
exponencial e aproximam a geração mais jovem de forma global, promovendo uma
integração cultural e humana. Este movimento desenvolveu-se na Europa e EUA, onde as
pessoas procuravam valores novos.
A dinâmica dos movimentos culturais não é comparável aos dias de hoje e dessa forma,
só na década de 1960, é que o movimento contracultura2 se afirmava em pleno. No
florescimento da utilização dos meios de comunicação em massa, os jovens transmitiram as
suas ideologias que revelavam transformações da consciência, dos valores e do
comportamento (Pereira 1992: 20). Este movimento cultural revelou ideologias alternativas
que aos olhos das sociedades mais conservadoras eram tidas como marginais e antissociais.

2 O termo "contracultura" pode-se referir ao conjunto de movimentos de rebelião da juventude [...] que
marcaram os anos 60: o movimento “hippie”, a música “rock”, uma certa movimentação nas universidades,
viagens de mochila, drogas e assim por diante, utilizando novos meios de comunicação em massa.
* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD
Em 1964, Richard Hoggart, cria The Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS)
como centro de investigação na Universidade de Birmingham. O centro marcou posição
mundial ao promover a observação de fenómenos culturais baseados em subculturas, cultura
popular e meios de comunicação social [mídia].
É neste centro que teóricos vastamente reconhecidos dentro do espólio cultural, como
Stuart Hall, se posicionam de forma a deixar a sua contribuição para estudos futuros.
A sua aproximação aos estudos culturais sobre fenómenos relativamente recentes tem
permitido uma melhor compreensão sobre as sociedades e o indivíduo atual.
No raciocínio seguinte percebe-se porque é que a definição de cultura é complexa e
apresenta uma manifestação dinâmica, aberta em permanente (re) configuração.
“Um movimento de “contra-cultura” não produz uma cultura alternativa frente à cultura
que denuncia”. (Cuche, 1999)
Quase vinte anos depois da publicação da obra de Cuche, observa-se que “contra-
culturas” apresentam, efectivamente culturas alternativas. “Uma contra-cultura nunca é, em
última analise, mais que uma subcultura”. (Cuche, 1999)
Mais a frente, apresenta-se o objecto de estudo deste trabalho - o fenómeno cultural do
novo milénio, os “Festivais Transformacionais” - subculturas atuais, que são movimentos
alternativos aos festivais de música convencionais, os quais servem uma sociedade de massas.

A renovação, re-configuração do indivíduo e da sociedade, leva a um despertar cultural,


artístico e comportamental da chamada “beat generation” que formou entre outros, o
movimento “hippie”.
A busca de outros espaços, formas e canais de expressão do indivíduo e das novas
sociedades, estão na génese de um movimento “hippie”, movimento esse que se manifesta
contra poderes políticos, subversivos, opressivos e hipócritas.
Os géneros musicais criados na explosão do existencialismo3 e que se manifestaram
globalmente através da corrente atual do pós-modernismo, derivaram em vários sub-géneros
devido, essencialmente, ao “boom demográfico” e devido à evolução progressiva da
tecnologia, na segunda metade do século XX.

3 O existencialismo pressupõe que a vida seja uma jornada de aquisição gradual de conhecimento sobre a
essência do ser, por esta razão ela seria mais importante que a substância humana. Seus seguidores não crêem,
assim, que o homem tenha sido criado com um propósito determinado, mas sim que ele se construa à medida que
percorre sua caminhada existencial. Portanto, não é possível alcançar o porquê de tudo que ocorre na esfera em
que vivemos, pois não se pode racionalizar o mundo como nós o percebemos. Santana, L. Ana, Arquivado em:
Filosofia, Movimentos Literários. Internet. Disponível em http://www.infoescola.com/filosofia/existencialismo/.
(consultado em 12/02/2017)
* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD
Seguindo o objetivo inicial deste trabalho, a identificação do movimento cultural que se
afirmou no mundo inteiro no inicio do século XXI, torna-se mais clara ao consultar
documentos audiovisuais e escritos disponíveis na “world wide web”.
A subcultura originaria no final da década de 1960, em Goa, India, criou várias
ramificações que, hoje, se demarcam pela sua originalidade, conceito, arte, valores, símbolos
e ideologias.
A “cultura psicadélica” [psyculture] é o resultado de uma comunhão do movimento
“hippie” global [mais impacto no ocidente], a cultura espiritual da India e, a liberdade de
expressão, criação e multiculturalidade de vários artistas de outros géneros musicais (jazz,
rock, techno, house) que levavam as suas influências, tecnologias e conhecimentos e os
trabalhavam e desenvolviam nas longas festas de Goa, originando um novo estilo musical.
Em 1963, nos EUA, foi criado e comercializado em paralelo pela “R.A. Moog Co.” e
pela “Buchla”, o que viria a influenciar por completo as práticas e representações culturais do
indivíduo e da sociedade a nível global - o “sintetizador modular”.4 Este aparelho, está na
origem da criação da “electronic dance music” (EDM). Um sinal, se quisermos, de que as
máquinas estariam no controlo das novas gerações.
Desde o início dos anos 80 até aos dias de hoje, a cultura, no seu sentido aberto em
permanente (re) - configuração e dinâmico da palavra, derivou em inúmeras ramificações de
subculturas, muitas delas, de carácter musical.
É, também, nesta época que o Mundo Ocidental vive a época dourada da democracia5
[liberdade de expressão], dando espaço para que novas subculturas trazidas para a Europa, no
final do século XX, se ramificassem.
Nos 30 anos do pós-guerra, ocorreu a “era dourada” da democracia, a proliferação e
florescimento da democracia ideal. Hoje, o poder e a política revelam um dos divórcios
mais marcantes da sociedade atual. O estado é o que governa o poder de um país. A
democracia está em decadência. As pessoas questionam-se sobre o valor da democracia.
Porquê? Porque um estado sem poder tem cada vez menos para oferecer aos seus cidadãos.
(Bauman, 2011)

Na década de 80, surge a expansão da EDM, com várias derivações e espalha-se pelo
mundo inteiro durante a década seguinte. Neste contexto, a proliferação das “drogas
psicadélicas” é inevitável.

4O sintetizador modular foi o principal aparelho eletrónico na transformação dos géneros musicais do século
XX, com notável impacto no inicio do século XXI. Internet. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/
Modular_synthesizer. (consultado em 12/02/2017)
5 Diálogos com Zygmunt Bauman (1925 - 2017) Sociólogo e filósofo polaco. Professor emérito de grande
influência e destaque internacional. Transcrição de parte da entrevista. Youtube. 2011. Internet. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=fd87rwJ_P90. (consultado em 02/12/2016)
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É discutível, se o consumo de substâncias psico-activas expandem a consciência ou não.
A verdade é que no mesmo intervalo histórico de todos estes acontecimentos a evolução
tecnológica foi alucinante.
Só por curiosidade, os dois senhores “computadores” Bill Gates e Steve Jobs, admitiram
ter tomado LSD na sua juventude.6
Atualmente surgem novas informações e teorias sobre o efeito do LSD. Algumas
plataformas noticiosas dão conta de executivos na Califórnia, tomarem micro-doses de LSD
de forma a se tornarem mais criativos e produtivos.7

O culto deste novo género musical “Goa Trance”, caracteriza-se por uma corrente
alternativa, no final da década de 1980, quando “hippies”, viajantes, praticantes espirituais e
inúmeras pessoas de todo mundo ligadas a manifestações de movimento
“contracultura” [subcultura] se encontravam nas praias de Goa, “Anjuna Beach”, para a
realização de festas e eventos ligados ao “Goa Trance”, espiritual e libertino.8
Na década de 90, Goa era conhecida mundialmente pelo nascimento de um novo
movimento cultural, caracterizado pelo seu estilo musical “Goa Trance” [hoje conhecido por
“trance psicadélico” ou “psytrance”]. Um pouco por todo o mundo, desde 1993, várias
editoras do novo estilo musical começam a implementar esta subcultura nos seus países de
origem (Reino Unido, Australia, Japão, Alemanha), em festas ao estilo de Goa. 9
O resultado foi progressivo e polémico. As festas que se faziam em discotecas e
armazéns eram canceladas pela policia devido ao excesso de drogas que circulavam no
evento. Surge a necessidade de se criar as festas ao ar livre, em praias e florestas escondidas e
divulgadas boca a boca. É nesta renovação de espaço que se desencadeiam novas ideologias e
o “trance psicadélico” [psytrance] se afirma por completo.

6 Gonzalez, R. Artigo sobre visionários famosos que experimentaram drogas. Internet. Disponível em http://
io9.gizmodo.com/5876304/10-scientific-and-technological-visionaries-who-experimented-with-drugs.
(consultado em 20/01/2017)
7 Friedman, N., Orwig J., Kakoyiannis A., (2017). Artigo sobre microdosing on LSD. Internet. Disponível em
http://www.businessinsider.com/silicon-valley-chris-kilham-medicine-hunter-microdosing-lsd-acid-microdose-
productive-2017-1. (consultado em 13/02/2017)
8Vídeo de uma festa de Goa Trance, gravado em Goa, India. Anjuna Beach, 1992. Youtube. Internet. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=HqjMGYHoewQ. (consultado em 10/11/2016)
9 Informação sobre o estilo de música - Goa trance. Internet. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/
Goa_trance. (consultado em 12/02/2017)
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A tecnologia demarcou um patamar histórico na evolução das civilizações com a
passagem do analógico ao digital. Mas, o facto histórico mais relevante do século passado é o
despertar eletrónico.
A simbiose do eletrónico com o digital está na base de conceitos tão revolucionários
como a Inteligência Artificial, a grande meta da segunda década do século XXI.
O que o documentário “Electronic Awakening” 10 [Andrew Johner, 2011] evidencia é o
re-desenhar da civilização. Através da música eletrónica e dos movimentos culturais
despertados por esse fenómeno, originados pelo impacto físico e psicológico que a batida tem,
essencialmente, na mente e, manifestando-se no corpo, provavelmente irão re-definir
conceitos de religião, ideologias, políticas e normas das civilizações atuais.

2. Psyculture: a identidade cultural de novas tribos do século XXI


Segundo a abordagem interaccionista da cultura a construção cultural remete para o que
nos está mais próximo seja fisicamente ou nas nossas escolhas e gostos, tais como a cultura
do grupo, a cultura local, a cultura que liga os indivíduos em interacção imediata uns com os
outros, e não a cultura global da colectividade alargada.
Aquilo a que se chama “cultura global” é o que resulta da relação dos grupos sociais
[hoje, prova maior das redes sociais] em contacto uns com os outros e, por conseguinte, da
relação que se estabelece entre as suas culturas próprias.
a cultura global situa-se, de certo modo, na intersecção das pretensas “subculturas” de um
mesmo conjunto social, que funcionam elas próprias como culturas de parte inteira, ou seja,
como sistemas de valores, de representações e de comportamentos que permitem a cada
grupo identificar-se, orientar-se e agir no espaço social ambiente. (Cuche, 1999)

O estudo das subculturas consiste no estudo do simbolismo associado às roupas, musica


e outras visíveis manifestações no indivíduo que é membro dessa subcultura e também na
maneira como estes símbolos são interpretados pelos membros da cultura dominante.
Ou seja, consiste em fortalecer e elaborar uma análise revelada numa observação dos
dois lados - o maior e o menor. “[...] members of a subculture often signal their membership
through a distinctive and symbolic use of style, which includes fashions, mannerisms and
argot”. (Hebdige, 2002)

10 trailer do documentário “Electronic Awakening”. Realizado em 2011 por A.C. Johner. Com participação de
antropólogos e académicos da ciência. Youtube. Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?
v=CTamMOmqTcQ. (consultado em 02/09/2016)
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Esta grande renovação cultural que aconteceu ao longo dos últimos sessenta anos
permitiu a autores, académicos e cientistas observarem novos fenómenos na sociedade e
regista-los nos seus estudos. Michel Maffesoli, começou a utilizar o termo “tribo urbana” no
final dos anos 80, para mais tarde falar em “neotribalismo”.
Seriam essencialmente "micro-grupos" que, forjados em meio à massificação das
relações sociais baseadas no individualismo e marcados pela "unissexualização" da aparência
física, dos usos do corpo e do vestuário, acabariam, mediante sua sociabilidade, por contestar
o próprio individualismo vigente no mundo contemporâneo. (Frehse, 2006)
Os “revivalismos tribais” apresentam, em pleno século XXI, uma nova expressão:
““tribo” torna-se metáfora de formas de integração social numa "urbanidade deficitária de
coesão social". (Frehse, 2006)
As “tribos urbanas”, “tribalismo” e “neotribalismo” derivam todas da observação sobre
o mesmo fenómeno. O conceito sociológico “neotribalismo” comunga com o movimento
contracultura, uma vez que os seus membros se têm focado em viver em sociedades tribais,
em oposição a sociedade de massas e este novo fenómeno vai naturalmente formar redes
sociais [de comunidade] que darão origem a novas “tribos”. “[...] as the culture and
institutions of modernism declined, societies would embrace nostalgia and look to the
organizational principles of the distant past for guidance, and that therefore the post-modern
era would be the era of neotribalism. (Maffesoli, 1996)
Tribalismo é um hábito necessariamente humano. Propriedade natural dos seres vivos,
nos termos de o “uno” se identificar com um grupo. O indivíduo ao anexar-se ao grupo cria
laços de proximidade, laços humanos, família. Não em termos de família de sangue, mas
laços familiares de comunhão espiritual.
Este hábito está na origem das comunidades e é o reviver das comunidades na era pós-
moderna que se tem manifestado em Festivais Transformacionais.
"The crowd," he points out, overwhelms the individual, yet the individual feels frightened
and lost without "the crowd". The mediocre, alienated individual needs a group to identify
with, to provide "peer approval". Yet, Kierkegaard insists, a collective identity is always
somehow false; in order to belong, to fit in, we must betray some part of ourselves, must
cease living our own lives and begin living "a kind of life" (Soccio, 2015: 401)

Na cultura de massas, observa-se o indivíduo dependente de “iluminados” para lhes


indicar o caminho para a “salvação” ou crescimento pessoal. Os que “escolhem” escapar à
manipulação do mundo virtual, das propagandas e dos sistemas políticos corruptos, percebem
que a vida tem um propósito e é na busca desse propósito que “irmãos e irmãs” criam laços
familiares ao longo do seu caminho na formação destas novas comunidades.
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Estes laços possibilitam proteção mútua e reconhecimento de “seres
espirituais” [kindred spirits], ou seja, duas pessoas que formam uma ligação especial ao
partilharem o mesmo laço que os uniu através de um tipo de experiência num elevado nível de
consciência.

Os principais pólos de produção simbólica e centros exportadores de bens culturais


(Europa e EUA) foram no caso da “psyculture”, os principais pólos de consumo de um
movimento contracultura que teve a sua origem na Ásia. No entanto, esta subcultura foi
fecundada, principalmente, por nativos americanos e europeus, em Goa, India.
Hoje, não existem pólos de consumo principais, porque os festivais de cultura
psicadélica realizam-se nos quatro cantos do planeta Terra. Os “novos movimentos sociais”
que emergiram durante os anos sessenta [o grande marco da modernidade tardia] produziram
re-configurações e renovações profundas no indivíduo e nas sociedades contemporâneas.

Partindo da noção que as sociedades atuais são sociedades de mudança constante, rápida
e permanente e as nações são, todas, híbridos culturais, torna-se percetível que existe uma
crise de identidade atual. “As nações” observou Homi Bhabha, “tais como as narrativas,
perdem as suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente os seus horizontes apenas
nos olhos da mente” (Bhabha 1990: 1).
Giddens na sua obra The Consequences of Modernity, afirma: “à medida em que áreas
diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação
social atingem virtualmente toda a superfície da terra” - e a natureza das instituições
modernas (Giddens 1990: 6). Seguindo o estudo de Hall, sobre a identidade cultural da pós-
modernidade, percebe-se que:
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em
declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui
visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte
de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos
centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável ao mundo social. (Hall 2006: 7)

O indivíduo e a sociedade atual revelam uma re-configuração e renovação constante ao


longo dos períodos históricos, pois somos o resultado do que fomos no passado. Para melhor
compreender a atual crise de identidade cultural, este trabalho aponta as três conceções da
identidade, muito simplificadas, fornecidas por Hall

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- sujeito do iluminismo [século XVIII]: um ser estável na sua unicidade e individualista;
- sujeito sociológico [século XIX e XX]: um ser de essência interior que é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades
que esses mundos oferecem. Um ser fragmentado, composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas;
- sujeito pós-moderno [século XX e XXI]: não tem uma identidade fixa, essencial ou
permanente. É formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente;
(Hall 2006: 10-13)

Vivendo numa atual crise de identidade cultural e de valores, num período de interregno
como defende Bauman 11
Estamos num período de interregno. Isto é, não somos uma coisa nem outra. Um período de
transição, onde as velhas formas e técnicas que trazemos do passado, não funcionam ou não
se adequam a este mundo novo, este mundo liquido. E portanto as novas formas, novas
técnicas estão ainda se implementando (são muito recentes) no nosso corpo, intelecto, não
permitindo uma visão a longo prazo do impacto dessas transformações. Existe uma
desordem na sociedade atual devido à renovação constante e exagerada da informação.
(Bauman, 2016)

é fundamental reformularmos o sistema de educação e as formas de vivermos em


comunidade, para ganharmos estabilidade e a segurança necessária à liberdade.
Most nations have long been a mix of cultures, and after years of struggle, the various
tribes and cultural groups which now make up modern democratic states have learned to
coexist, even to celebrate difference as a fact of life. But as the extent of intercultural
mixing and exchanges increase, we will face new challenges in learning to live together.
(Kalemis 2015: 6)

O “psytrance” é estilo musical relativamente novo com origem no Goa Trance, estilo
esse que foi criado nas últimas décadas do século passado, em Goa, Índia.
A “psyculture” é a sua manifestação cultural. O movimento desta subcultura apresenta
ideologias, valores, práticas e representações que se manifestam como uma corrente
contracultura do século XXI. O Boom Festival é a “casa” dos “psytrancers”.12
Este festival é, sem dúvida, o melhor exemplo para re-descobrir, ao longo dos anos, a
identidade cultural das tribos contemporâneas do século XXI, cujo estilo musical é o
“psytrance”.

11 A Fluidez do Mundo Líquido com Zygmunt Bauman. Transcrição de parte da entrevista. Youtube. 2016.
Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7P1MAZXFVG0. (consultado em 06/12/2016)
12Boom Festival oficial. Internet. Disponível em https://www.boomfestival.org/boom2016/home/. (consultado
em 09/02/2017)

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O Boom Festival realizado pela organização cultural e ambiental “Good Mood”, 13 teve
a sua primeira edição em 1997, na semana que precede a lua cheia de agosto e, a segunda
edição no ano seguinte. A partir de 98, realizou-se bienalmente, sempre na lua cheia de
agosto.
Na sua primeira edição o número de visitantes foi reduzido mas bastante significativo
dada a época. O “Goa Trance” estava a implementar-se em Portugal.
O objetivo desta primeira edição era apresentar, implementar e celebrar a ideologia, as
práticas, representações e a simbologia desta subcultura que surgiu na India, Goa - por acaso,
colónia portuguesa até 1961 - já se manifestara na Europa [Alemanha, Reino Unido] e era
agora celebrada em Portugal, país que viria a acolher a “casa”, a “mothership” do movimento
“psytrance”. 14
O caminho do Boom foi notório e em 2010 é reconhecido mundialmente com uma
identidade sólida. Numa palestra do programa “TED Talk”, canal do “youtube” que conta
hoje com mais de 6 milhões de subscritores, Jeet Leung, apresenta ao mundo online, o termo -
“festivais transformacionais”. Dentro dessa categoria, o Boom Festival, aparecia como um
dos poucos na Europa e os “habitantes” do festival foram designados por “psytrancers”. 15
Desde o inicio dos anos 2000, que o festival se mudou para a região de Idanha-a-Nova,
Portugal. E, atualmente, a propriedade onde se realiza o evento chama-se “Boom Land”, onde
famílias, amigos e conhecidos se reúnem de dois em dois anos, para celebrar a vida e a
identidade cultural dos “psytrancers”.
Até à presente data, o Boom Festival é uma cidade que só existe uma semana! Durante
sete dias podemos encontrar milhares de pessoas com passaportes de mais de 154
nacionalidades diferentes [edição 2016], reunidas, unidas, a descansar e a usufruir da vida que
lhes resta.
No final regressam às suas vidas, no mundo atual, aproveitando por deixar o mínimo
rasto possível [política - leave no trace], na natureza que nos acolheu tão bem.

13 Good Mood oficial. Internet. Disponível em http://www.goodmood.org/booklet/#/0. (consultado em


09/02/2017)
14 Vídeo da 1ª edição do Boom Festival em 1997 [ver 5’30 - mensagem escrita na cartolina laranja]. Youtube.
Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=GF4Mrenea8Q. (consultado em 13/02/2017)
15 Jeet Kei Leung at TEDxVancouver. Palestra sobre Transformational festivals. 2010. Youtube. Internet.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Q8tDpQp6m0A. (consultado em 02/02/2017)
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O espaço principal do festival, Dance Temple, é um lugar especial onde vibrações,
frequências, forças e energias se interligam e formam a discutível “Teoria do Campo
Unificado”. 16 17
O festival mais internacional de Portugal e, provavelmente, um dos mais internacionais
do mundo, limitou a sua última edição (2016) a 33 mil pessoas. A venda dos bilhetes “online”
foi composta por períodos de três fases diferentes e devido a isso, o festival esgotou em 32
dias.
Na edição de 2014, foram mais de 40 mil os “boomers” presentes na “Boom Land”, mas
a organização decidiu reduzir o limite de pessoas para dessa forma, manter a qualidade,
conforto e ambiente familiar.
O lema do festival é qualidade para os “boomers” em vez de quantidade de pessoas de
maneira a gerar mais lucros, até porque a organização é sem fins lucrativos e dispensa
qualquer tipo de marca comercial para fazer parte do seu festival.
Pode dizer-se que a derivação do género musical desenvolvido há cerca de 30 anos
atrás, nas festas de Goa, é o fio condutor de um festival que vai muito além de um descalabro
boémio, sem medida e preconceito [como é apresentado, infelizmente, pelos mass media
nacionais].
Em 2004, a organização percebeu que podia tornar o festival único no mundo e dessa
forma desenvolveu e passou a apresentar uma mensagem forte e objetiva, para as novas
gerações. O projeto passou a dedicar-se à autossustentabilidade, de forma a não contaminar a
natureza e educar a consciência ecológica do indivíduo e das sociedades. 18
Boom is not only a festival, it is a state of mind. Inspired by the principles of Oneness,
Peace, Creativity, Sustainability, Transcendence, Alternative Culture, Active Participation,
Evolution and Love, it is a space where people from all over the world can converge to
experience an alternative reality. 19

16Vídeo do Dance Temple. Boom Festival 2016. Youtube. Internet. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=hdSebfH9G8I. (consultado em 20/10/2016)
17 Em física, uma "teoria do campo unificado" é um tipo de teoria de campo que permite que todas as forças
fundamentais entre partículas elementares sejam descritas em termos de um único campo. Não há ainda
nenhuma teoria do campo unificado aceite, e este assunto permanece como um campo aberto para pesquisa.
Teoria do Campo Unificado. Internet. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_do_campo_unificado.
(consultado em 13/02/2017)
18 Vídeo Boom Festival 2004. Youtube. Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?
v=qvaaBSCFeyk. (consultado em 14/02/2017)
19 Opinião sobre o Boom Festival, que reflete muito aproximadamente o conceito do festival. Autor
desconhecido. Internet. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Boom_Festival. (consultado em
12/02/2017)
* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD
Práticas desenvolvidas no festival desde 2004:
- desenvolvimento de casas de banho que não usam químicos;
- tratamento de águas do festival através de biotecnologias;
- utilização de energia solar e eólica;
- reciclagem;
- organização do espaço Boom segundo os princípios da “Permacultura”;
- fornecimento gratuito de kits de limpeza aos participantes (cinzeiros de bolso e sacos
de lixo);
- reflorestação e plantação de árvores, plantas e jardins;

O Boom Festival foi galardoado com o prémio de festival mais ecológico da Europa,
duas vezes consecutivas, em 2008 e 2010. Convidado e cumprimentado pela Organização das
Nações Unidas (ONU), em 2010, para manter a sua consciência ambiental através da sua
mensagem ecológica e de sustentabilidade. No entanto, todo o conceito do festival é como
uma evolução cósmica do ser humano, da consciência e do espírito em comunhão com a
natureza.
By 2010, psytrance music, style and textile fashions have become evident in scenes the
world over, with the music and culture translated among populations across Europe, in
Israel, North America, Australasia, South Africa, South America, Mexico, Japan, and
elsewhere. (Graham 2010)

Há, ainda, muito poucos estudos sobre o Boom, no sentido de entender e perceber o
impacto que o festival têm nas sociedades contemporâneas.
Sendo o Boom um dos festivais pioneiros no mundo da “psyculture” e do “psytrance”,
deve ser-lhe dada a devida atenção nos estudos das sociedades contemporâneas, das tribos
urbanas do século XXI, pois o “psytrance” revela-se como um movimento cosmopolita
emocional para a informação global do capitalismo.
[...] unlike the conventions of passage rites, the psytrance festival is reported to be a
sophisticated realm, evocative of the complexities of the counterculture to which it is
indebted. As a domain of excessive carnivalesque and conscious ritualising the festival
provides the performative staging ground for diverse sacrificial logics and concomitant
ideas of the sacred. If psytrance is transformative then this needs to be considered within
the context of a complex cultural movement. (Graham 2010)

Do ponto de vista político tornou-se um festival apartidário, onde não há grupos sociais
confinados aos valores hierarquizados da sociedade atual, porque todos pertencemos a uma
subcultura que se preocupa essencialmente com a comunhão do indivíduo com a natureza, a
comunidade nómada, o bem estar espiritual, os rituais de liminaridade e celebração da vida?

* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD


Será o Boom Festival e todos os festivais de “psytrance” a nível global uma
manifestação de liberdade de expressão, onde do ponto de vista histórico este movimento
contracultura se afirma num mundo cada vez mais ostracizado, fragmentado e mais
manipulado pela tecnologia da informação?
A comunhão de vários tipos de gerações de culturas diferentes marca uma realidade
difícil de negar. A evolução deste movimento, desta subcultura é evidente. Dizer que está fora
de moda, obsoleta, é absurdo porque o registo é exatamente contrário.
Unir esforços, estudos, de forma a compreender de que forma ela se manifesta. De que
forma se identifica o seu caracter científico?
Enquanto seres científicos e culturais, o que podemos nós aprender com os festivais
transformacionais?

3. “Psytrance”: práticas e representações de uma subcultura


Os “psytrancers” construíram ao longo dos tempos uma identidade cultural própria.
Essa identidade revela-se na parte material e imaterial. Ou seja, a simbologia e a ideologia
apesar de fragmentadas são próprias deste universo cultural, onde acima de tudo, todos são
seres humanos que partilham momentos de união e comunhão com o espírito e a natureza.
As rastas, as roupas largas de influência indiana e africana, roupas coloridas,
alargadores nas orelhas, tatuagens (traços, linhas, pontos - algo muito básico - ou figuras
geométricas, efeitos tridimensionais, tribais - mais complexos) a relembrar a identidade
cultural dos Maias, Aztecas e Maori, ou seja, tribos, civilizações ancestrais.
Festival culture illustrates a heterotopic, carnivalesque and synesthetic context in which
participants may upgrade or retrograde their selves through national “flavours”, sonic
“colours” and other available techniques of the self (e.g., drugs, dance, textile fashion,
piercings, hair styling, tattooing, alternative diets, etc.). Indeed this interest expressed by
Boom participants is consistent with a disposition towards difference within psytrance more
generally (Graham 2010)

Como podemos ver nos vários vídeos disponíveis no youtube, datados desde o inicio
dos anos 90 aos dias de hoje, a renovação e construção desta identidade cultural é notória.
Um artigo recente publicado por Gurik Zed, responsável pela expedição cientifica da
plataforma “Trancentral”, denominado como “estudo antropológico” dá conta de seis
identidades distintas na esfera global do movimento contracultura, na subcultura “psytrance”.
De forma cómica e satírica ele evidencia as diferentes práticas, representações e
simbologia que se vão manifestando no decorrer dos tempos, ao longo desta manifestação
cultural.

* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD


As diferentes identidades são:
- os traficantes de droga;
- os “novatos” no movimento que perdem o controlo com as drogas ingeridas e se
agarram, literalmente, às colunas do sistema de som;
- os rastas que estão associados com um certo prestigio na cena. Uma vez que as rastas
são a prática mais comum, entre os “psytrancers”. Geralmente conduzem furgões,
carrinhas antigas e caracterizadas com cores, auto-colantes. Andam quase sempre em
grupos. São, talvez, a maior sociedade nesta subcultura e promovem um certo
distanciamento dos ditos “normais” ou “limpos”;
- os “disco-jóquei” (djs) protótipos que já andam na cena há muito tempo, conhecem
vários artistas e não se misturam com as outras tribos, nem dançam porque se
consideram superiores;
- os “fanáticos” espirituais ligados ao ioga e meditação. Mais calmos devido as suas
práticas transcendentais, mais magros devido às suas dietas ricas em vegetais, vestem
roupas antigas e sem nenhuma combinação estética;
- os “estrangeiros” que fogem da monotonia das discotecas e experimentam as
ideologias deste movimento cultural. São facilmente reconhecidos porque carregam as
práticas e representações do “mundo normal” - roupas e adereços de moda, corpos
trabalhados no ginásio. Fazem esforços por serem inseridos na sociedade e vivem
entusiasmados com tudo o que os rodeia; 20

Apesar deste artigo apresentar uma análise satírica na identificação destes grupos que
co-existem dentro do movimento da “psyculture”, posso garantir que todos eles são reais, uma
vez que faço parte deste movimento desde o início dos anos 2000.
Surge, também, como um ponto de partida para o estudo antropológico destes grupos
em tempos futuros.
A problemática e polémica receção que esta subcultura teve nos momentos iniciais, anos
90, em que se difundia pela Europa, hoje, não se verifica. Os membros e toda a estrutura deste
movimento continuam a preferir os espaços abertos, em detrimento dos clubes e armazéns
urbanos. Até porque, a ideologia essencial do “psytrance” é a comunhão com a natureza.

20Zed, G., (2017). Anthropological guide to the Psychedelic Dancefloor. Trancentral TV. Internet. Disponível
em http://trancentral.tv/anthropological-guide-to-the-psychedelic-dancefloor/. (consultado a 14/02/2017)
* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD
Nos centros urbanos, estas “novas tribos” estão cada vez mais inseridas e difundidas na
sociedade. Já fazem parte da realidade há alguns anos e, portanto, a sua co-existência com
indivíduos de outra classe ou grupo social é muito mais homogeneizada que no passado. No
entanto, há dois fatores vitais a ter em conta no futuro que irão re-configurar e renovar todo
tipo de culturas: a Urbanização e a Educação.
Throughout human history, the majority of people lived in rural areas. But global forces are
also accelerating the process of urbanization. The year 2000 marks a divide from a
predominantly rural world to one where the majority of people now live in cities. Of the
more than 400 cities with over 1 million inhabitants, 28 are mega-cities with populations of
over 8 million, two-thirds of which are in developing countries. (Kalemis 2015: 7)

Atualmente, em Portugal verifica-se tanto a tendência acima explicada, como o inverso:


o regresso ou a re-localização de jovens e famílias em zonas ditas “rurais” [ainda] para se
dedicarem à agricultura, fugirem do caos e do dispendioso nível de vida das cidades. Só que
esta tendência é em muito menor escala do que a migração para as cidades.
Observando a tendência atual explicada acima, os desafios às sociedades serão
exigentes. Fenómenos como a migração de refugiados, desruralização e renovação de
políticas educacionais e integração cultural são evidências do mundo contemporâneo.
Even in well-established democracies, the will to learn to live together in a society with
increasing cultural, religious and racial diversity is not assured. At first, immigrant cultural
groups and the establishment tend to live out their separate lives, coexisting with limited
interaction or understanding of each other in a society which is multi-cultural only in the
demographic descriptive sense. Yet as nations become more multicultural, the intertwining
of cultures leads to specific types of programs and policy initiatives designed to respond to
and manage ethnic diversity.
Countries adopting a multicultural approach generally acknowledge the need for greater
knowledge and understanding of the major religions and other cultures and nations, their
languages, history and values, and they increasingly employ staff from diverse ethnic
backgrounds. (Kalemis 2015: 8)

Não existe sociedade na qual o sistema de educação não apresente o duplo aspeto: o do
ser ao mesmo tempo, uno e múltiplo.
A educação tem variado infinitamente, com o tempo e o meio. Nas cidades gregas e
latinas, a educação conduzia o indivíduo a subordinar-se cegamente à coletividade, a tornar-se
uma coisa da sociedade. Hoje, esforça-se em fazer dele personalidade autónoma. Vivemos
num período em que a educação precisa de ser re-estruturada, renovada e adaptar-se ao novo
mundo tecnológico digital. Os dois resultados mais evidentes na identidade do indivíduo deste
mundo novo é a fragmentação de personalidade e o renascimento de um nacionalismo
xenófobo e racista.
Desejando melhorar a sociedade, o indivíduo deseja melhorar a si próprio. Por sua vez, a
ação exercida pela sociedade, especialmente através da educação, não tem por objeto, ou
por efeito, comprimir o indivíduo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo, mas ao contrário
engrandecê-lo e torná-lo criatura verdadeira humana. Sem dúvida, o indivíduo não pode
engrandecer senão pelo próprio esforço. O poder do esforço constitui, precisamente, uma
das características essenciais do homem. (Durkheim 1995)
* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD
“Se queres prever o futuro, estuda o passado” (Confúcio) 21

Hoje, devido ao desenvolvimento tecnológico podemos assistir a documentários


recentes no “youtube” sobre a evolução da “psyculture”, do “psytrance”, do Boom.
Toda a gente pode aceder através da internet. Mas festivais como o Boom não se
compreendem por palavras, nem por imagens, mas sim por vivências, recolha de dados,
estudos no campo. Dessa forma, a antropologia e etnografia são fundamentais para identificar
a identidade cultural do movimento contracultura, das novas tribos do século XXI.
Se a educação romana tivesse tido o caráter de individualismo comparável ao nosso, a
cidade romana não se teria podido manter; a civilização latina não teria podido constituir, por
consequência, a civilização moderna, que dela deriva, em grande parte. (Durkheim 1995)
O ser humano tem muito mais a ganhar enquanto sociedade/comunidade unida do que
fragmentada e validando essa certeza, as ideologias do Boom Festival emitidas através do
“psytrance” são: “We are One”, “We are All”, “We are Love”. 22

Conclusão
A observação que este trabalho apresenta permite distinguir movimentos contracultura
em pleno século XXI. Apesar de ser um fenómeno cultural que se começou a manifestar na
ultima metade do século anterior, hoje, percebe-se que esta realidade é de elevado interesse
para sociólogos, antropólogos e historiadores culturais.
A tecnologia da informação, o sinal/sistema digital e o mundo virtual, têm provocado
alterações profundas no indivíduo e na forma como ele se insere nas sociedades, de um
mundo que se quer cada vez mais global. A queda de valores e laços humanos lavra numa
sociedade de massas fragmentada.
Este novo milénio abre com a emancipação de manifestações culturais nunca antes
registadas. Visões retro-futuristas produzidas por uma cultura psicadélica que alimenta
comunidades nómadas através da electronic dance music e permite ao indivíduo e ao grupo,
encontrar valores ancestrais de forma a alimentar um futuro de comunhão com o próximo e
com a Mãe Terra. O (epi)fenómeno de contracultura contemporânea identifica um retorno aos
valores do antepassado, de seres humanos cuja consciência, começa agora a despertar.

21 Frase atribuída a Confúcio (551 - 479 A.C) foi um pensador e filósofo chinês do Período das Primaveras e
Outonos. Internet. Disponível em http://www.citador.pt/frases/se-queres-prever-o-futuro-estuda-o-passado-
confucio-12302. (consultado em 15/02/2017)
22 “A Universal Message” - Documentário sobre o Boom Festival, edição de 2010. O produto do que o festival
se tornou ao longo de mais de uma década. Youtube. Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?
v=KSDwFsnFQns. (consultado em 14/02/2017)
* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD
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* Doutorando em Ciências da Cultura - UTAD

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