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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i2.

25780

Comunicação e Silêncio na Experiência Política


Espinosana
[Communication and Silence in the Spinozist Political Experience]

Daniel Santos da Silva*

Resumo: Um problema fundamental ético e político, a comunicação


encerra menos a preocupação com a verdade como mero objeto do
que com os afetos como exercício de vida e explicitação prática da
experiência que ensina. Aqui, alguns elementos são elencados para
caracterizar a difícil relação do filósofo – da filosofia, da reflexão, do
pensamento crítico – com a violência (anti)política que se expressa,
em muitas ocasiões, no verbo "idiota" – porém, às vezes, efetivo – e na
proliferação do ódio, do medo e da exclusão.
Palavras-chave: Comunicação, silêncio, afetos, política

Abstract: A fundamental ethical and political problem, communica-


tion has less concern with truth as a mere object than with affections
as the exercise of life and the practical explanation of the experience
that teaches. Here, some elements are listed to characterize the
philosopher’s - philosophy, reflection, critical thinking - difficult
relationship with the (anti)political violence that is often expressed
in the verb "idiot" - but sometimes effective - and in the proliferation
of hatred, fear, and exclusion.
Keywords: Communication, silence, affections, politics

A cautela era, reconhecidamente, de como a paixão do medo des-


a marca de Espinosa. A palavra figura nossas potências, amortece
caute figurava no anel de sinete as veias de comunicação essenci-
com o qual selava suas correspon- ais à própria existência da vida
dências ao se comunicar com ami- coletiva. Ora, como distinguir a
gos, em muitas das quais eram prudência presente no emblema
ressaltados alguns dos perigos que Caute para a comunicação do pen-
atingem a quem pensa livremente; samento livre, sem a confundir
por outro lado, também outras com a paixão de medo que a des-
tantas cartas e escritos de Espi- figura? Afinal, segundo Espinosa,
nosa nos permitem tomar essa fi- uma é a potência de viver e resistir
losofia por uma exposição clara pela esperança de vida; outra é a

* Professor da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Doutor em Filosofia pela Universidade de São
Paulo. E-mail: danidani_ss@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3841-2516.

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potência (ou impotência) na confi- vezes a serviço de barrar a ambi-


guração de meios e fins para ape- ção de quem se imagina melhor
nas existir com o medo da morte: e vive como melhor frente à po-
tência da multidão. De qualquer
maneira, ao propormos a questão
a multidão livre conduz- sobre comunicação e o silêncio na
se mais pela esperança política, raramente a prudência,
que pelo medo, ao passo a deliberação ou a cautela foram
que uma multidão subju- reduzidas na filosofia à paixão do
gada conduz-se mais pelo medo. Há linhas que podem ser
medo que pela esperança: bem demarcadas entre as duas
aquela procura cultivar posturas: na cautela, um certo co-
a vida, esta procura so- nhecimento das coisas do mundo
mente que evitar a morte; tende a orientar os passos a se-
aquela, sublinho, procura rem dados se temos em vista um
viver para si, esta é obri- fim; o medo, em geral, apenas des-
gada a ser do vencedor, e nuda nossa impotência e ignorân-
daí dizermos esta é serva cia, por isso não nos surpreende
e aquela é livre. (...) E que, inclusive, quem se guia por
embora entre o estado que tal paixão se ponha a vociferar e a
é criado pela multidão li- fingir destemor quando instâncias
vre e aquele que é adqui- determinadas garantem proteção
rido por direito de guerra, ou anonimato. O medo pode fa-
se atendermos generica- zer calar, mas pode igualmente fa-
mente ao direito de cada zer gritar alucinadamente. A cau-
um, não haja nenhuma tela, por sua vez, também pode
diferença essencial, con- nos fazer calar, mas nunca com-
tudo, quer o fim, como já pletamente como mostraremos a
mostramos, quer os meios seguir, e o grito que pode acompa-
com os quais cada um de- nhar a cautela é de outra natureza
les se deve conservar têm que a do medo - uma espécie de
enormes diferenças (ESPI- conhecimento que acompanha a
NOSA, 2009, p. 45) cautela faz do grito algo expres-
sivo de quem se comunica; a cau-
Porém, ainda que o medo indi- tela esconde o que pode ser escon-
que servidão, ele é paixão inso- dido (não há desejo de martírio),
lúvel e encarnada em muitos dos mas expõe o que pode e deve ser
movimentos afetivos que realiza- vivido.
mos entre outras pessoas, muitas São sentidos de urgência dis-

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tintos, mesmo assim não dicotô- caída e víciosa, as paixões serão


micos, pois somos habitados por ali compreendidas como proprie-
afetos múltiplos e a coerência que dades humanas, tal com o plano
deles podemos trazer conosco é e a reta são propriedades das fi-
sempre esforço (conatus). A prática guras geométricas. As paixões
espinosana da filosofia funda-se entretecem as relações dos seres
no desejo (conatus-cupiditas) tam- humanos como prevalentemente
bém de comunicar-se, e a coerên- ambiciosos, invejosos e ávidos de
cia de nossos esforços está mais na distinção, ao mesmo tempo em
necessidade de fazer fluir experi- que pelas mesmas propriedades
ências vitais do que em produzir da natureza humana compreen-
discursos sem contradições. Nesse demos também a solidariedade, a
sentido, o mais determinante são generosidade, a fortaleza.
os afetos comuns, que nos asseme- Os afetos mais ativos que decor-
lham e nos diferenciam em nossas rem de nossa natureza são, con-
experiências vitais e se expressam cretamente, exercício vivo de rela-
a nossas próprias vistas. A expe- ções que carregam consigo o pen-
riência de comunicar-se, então, é samento reflexivo; são igualmente
por demais complexa e não reside produções efetivas de laços entre
apenas em disseminar ideias ade- o indivíduo e o que o cerca, mais
quadas (em uma sorte de vanguar- firmes que a parceria efêmera com
dismo filosófico), tampouco em as coisas e pessoas fundada na ri-
simplesmente informar (um certo queza, no prazer ou na glória, ou
tipo de razão instrumental discur- em outras paixões dessa estirpe,
siva). Em vez disso, o ponto co- para lembrar o proêmio Tratado
mum de que partimos para com- da emenda do intelecto (Espinosa,
preender as experiências políticas 2015b). Ao fim, não é a “ideia
são as paixões, os afetos comuns, da verdade” que determina nos-
como medo e esperança tal como sas ações, pois mesmo no campo
se apresentam na prática, aqui re- da compreensão racional, a po-
tomada para relembrar o lema es- tência intelectual que somos é to-
pinosano do Tratado político: a rei- mada como expressão de afetos. A
vindicação por uma filosofia po- verdade portanto não opera como
lítica que compreenda as paixões negação das paixões e nem uma
de modo realista e não utópico, e ideia verdadeira é capaz de refrear
que portanto não seja apenas sa- as paixões, afinal, é a força de um
ber teórico discursivo distante da afeto contrário e mais forte (seja
prática. Sem serem condenadas ele racional ou irracional, ade-
pela imagem de uma natureza de- quado ou inadequado) que pode

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suprimir, por exemplo, o medo1 . o anonimato do Tratado


Esse contexto nos aproxima de Teológico-Político não é
ideias fundamentais da ética es- prova de repulsiva cobar-
pinosana e poderá nos oferecer o dia; pelo que sabemos,
real sentido afetivo do que o filó- ou antes ignoramos, da
sofo entende por cautela. índole de Espinosa, pen-
Certo dia, encontrei um texto samos antes que é teste-
de Joaquim de Carvalho sobre o munho da humanitas seu
anonimato de Espinosa na publi- modestia, virtude que a
cação do Tratado Teológico-político Ética admiravelmente de-
que traduz o que aqui defendemos fine (CARVALHO, 2019).
a propósito de sua cautela:

O anonimato recobre a prudên-


Espinosa não nascera com cia e, não menos, a urgência de
alma de mártir. Ele ti- intervir filosoficamente na expe-
nha que dizer aos con- riência comum política que, por
temporâneos e aos vin- sua vez, intervinha diretamente
douros; preocupava-o o em sua vida, a ponto de quase ser
destino da mensagem, e morto quando esfaqueado por um
não a fama de a haver “inimigo” amedrontado pelo livre
proferido. Se declarasse pensar. No caso, a pobre expe-
o nome, abriam-se-lhe as riência política do medo das li-
portas do cárcere, e à infâ- vres ideias não se identifica pron-
mia da pessoa sucederiam tamente às atitudes violentas de
a reclusão e a ignorância quem teme o livre comunicar-se
do seu pensamento. Onde – ao contrário, podemos afirmar
está o filósofo que não an- que a violência é a fronteira para
teponha a discussão das lá da qual a experiência política
ideias ao renome da pes- "torna a ser" experiência de guerra
soa, ao viver o perviver, (não de conflito, nos moldes a que
e para resguardar o des- estamos acostumados contempo-
tino das suas meditações raneamente, pois aqui retomamos
não recate o ser físico, se a partir de Maquiavel e Espinosa
isso for propício? Não; a reflexão sobre direito de guerra).

1 Remeto à quarta parte da Ética, Proposição I (Espinosa, 2015a, p. 383): “Nada que uma ideia falsa tem de
positivo é suprimido pela presença do verdadeiro, enquanto verdadeiro”; e a Proposição VII (Espinosa, 2015a, p.
389): “Um afeto não pode ser coibido nem suprimido a não ser por um afeto contrário e mais forte que o afeto a
ser coibido.”

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Espinosa seguia as trilhas de um tência, nesse caso, da imagem do


mundo político, em seu tempo, político2 : pérfido, sempre a pre-
que insinuava constantemente o parar armadilhas, e sua extrapo-
terror como força capaz de manter lação justamente segue na mesma
unida a república, de fazer passar esteira daquilo que poderia produ-
a disseminação da violência por zir o reverso, alguma forma de es-
força integradora e restauradora clarecimento na multiplicação dos
de potência política. meios de comunicação.
Assim, a cautela provoca silên- O falar e o calar, sentimos mui-
cios estratégicos e pode ocultar tas vezes, constituem uma expe-
um nome enquanto expõe algo riência ética tanto quanto polí-
profundamente político, e deve tica. Espinosa escreve no escólio
saber discernir, na experiência po- da segunda proposição da terceira
lítica, o que esta experiência re- parte da Ética: "as coisas humanas
vela de violento, de antipolítico, dar-se-iam muito mais felizmente
de desejo de exclusão e destrui- se nos homens estivesse igual-
ção. A maior dificuldade surge mente o poder (potestate) tanto de
exatamente quando a comunica- falar quanto de calar. Ora, a expe-
ção ela mesma e suas condições riência ensina mais que suficien-
de efetividade são deturpadas até temente que os homens nada têm
que a violência que perpassa cer- menos em seu poder do que a lín-
tas ações seja vista como ato polí- gua, e que nada podem menos do
tico – como as que se substanciam que moderar seus apetites" (Espi-
na negação da alteridade, das di- nosa, 2015, p. 245). Se a política
ferenças –, e que as possibilidades existe em função da dificuldade
de comunhão sejam tão bloquea- intrínseca à existência humana de
das às nossas vistas cansadas do moderar os apetites, existe, tam-
cotidiano que o que diz respeito, bém, como esfera de moderação da
de fato, à cidade, passa a ser ne- fala - e o moderar também nos en-
gligenciado ou mesmo excomun- via ao governar, ao criar medidas
gado como pérfido e prejudicial – (impor a justeza). Nesse sentido,
podemos reconhecer bem a persis- o campo político põe-se também

2 Cf. Tratado Político (ESPINOSA, 2009, pp. 6-7): “Os políticos, pelo contrário, crê-se que em vez de cuidarem
dos interesses dos homens lhes armam ciladas e, mais do que sábios, são considerados habilidosos. A experiência,
na verdade, ensinou-lhes que, enquanto houver homens, haverá vícios. Daí que, ao procurarem precaver-se da
malícia humana, por meio daquelas artes que uma experiência de longa data ensina e que os homens, conduzidos
mais pelo medo que pela razão, costumam usar, pareçam adversários da religião, principalmente dos teólogos, os
quais creem que os poderes soberanos devem tratar dos assuntos públicos segundo as mesmas regras da piedade
que tem um homem particular. É no entanto inquestionável que os políticos escreveram sobre as coisas políticas de
maneira muito mais feliz que os filósofos. Dado, com efeito, que tiveram a experiência por mestra, não ensinaram
nada que se afastasse da prática.”

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como produtor de sentido de falas nos ânimos como é man-


e pode ser encarado como condi- dar na línguas, não have-
ção de muitas expressões comuns, ria nenhum governo que
mas, inversamente, pode ser ter- não estivesse em segu-
reno de violência àquilo que se rança ou que recorresse à
constitui comunitariamente. violência, uma vez que to-
A violência pode estar no calar, dos os súditos viveriam de
aquela a que mais atentamos, nor- acordo com o desígnio dos
malmente; pode estar também, governantes e só em fun-
contudo, no fazer falar, no induzir ção das suas prescrições é
à expressão falada, forma menos que ajuizariam do que era
costumeira, aparentemente, mas bom ou mau, verdadeiro
das mais recorrentes em nossos ou falso, justo e iníquo.
dias. O transtorno dessa forma (ESPINOSA, 2008, p. 300)
de indução à tagarelice é legível
na escrita de Espinosa, seja por- O tom quase matemático não sur-
que admite que, apesar de não ser preende, pelo menos a quem não
tão fácil submeter ânimos como espera juízo moral dessa filoso-
se submetem línguas, os ânimos fia política: o que temos, no con-
estão de certa forma sob os pode- texto dessa citação, é uma sorte de
res soberanos e se submetem aos alerta a quem pretende dominar –
meios capazes de levar a maioria e como isso apenas é possível se
a amar e odiar o que querem tais a potência de muitos dá suporte
poderes – mais, a gritar de ódio ou a tamanha ambição, a consequên-
de amor com a medida, a "mode- cia mais necessária que daí segue
ração" requerida para suas finali- é a violência, sempre à sombra
dades (ESPINOSA, 2008, p. 252); de pensamentos e práticas irredu-
seja, enfim, porque prognostica, tíveis em sua persistência ético-
nessa menor dificuldade em do- política. A liberdade de fala, es-
minar as línguas que os ânimos, tudo e ensino diferencia-se do cul-
a necessária violência em que re- tivo da fala violentamente antipo-
cai toda forma de poder que se lítica como a resistência de quem
exerce sobre nossa liberdade de deseja a liberdade diferencia-se do
raciocinar e de ajuizar. Em rela- desejo de abandonar a potência
ção a isso, lembremos as primei- própria. Nessa configuração em
ras linhas do último capítulo do que a fala antipolítica exerce o do-
Tratado Teológico-Político: mínio político, são os indivíduos
mais notáveis pelo conhecimento
Se fosse tão fácil mandar e pelo exercício da comunicação,
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pelo envolvimento livre e afetivo dominação formatam a política,


com as partes mais violentadas da é impregnada de arrebatamento
cidade que serão os primeiros per- em crenças e em desprezos que
seguidos nos confrontos – ainda surgem, como escreve Espinosa,
que verbais – que se instalam em sob a autoridade e a orientação de
meio à “comunidade”3 . quem domina – "o que a experi-
O “mandar nos ânimos e nas ência abundantemente confirma"
línguas” em nome da segurança (ESPINOSA, 2008, p.252).
a que busca o exercício violento E porque são muitos os indi-
de poder, no Tratado Teológico- víduos orientados pela liberdade
político, não se identifica, pois, ilusória e arrebanhados pela am-
com a definição de segurança do bição de domínio de poucos, ou
Tratado político4 , entendida como a imagem da política se apro-
uma virtude da cidade correspon- xima da dinâmica de um sindi-
dente à virtude privada que, jus- cato de ladrões, ou ela é reformu-
tamente, preserva a liberdade e a lada. Ora, isso que implica ou-
fortaleza do ânimo. Neste caso, a tra armadura para o que se consi-
individual liberdade de ânimo (ou dera a experiência política, outra
fortaleza) se realiza na mesma me- medida (moderação) para o que
dida em que sinaliza a concreção se tem vulgarmente por ação po-
dos direitos naturais dos indiví- lítica e, na mesma corrente, por
duos em atividade comum, como ação pública. Se o pouco poder
vemos muito bem articulado no que temos sobre nossas línguas
segundo Tratado. Paralelamente, pode ser deixado a quem deseja
a ilusória "liberdade" de expres- dominar; se, além disso, para do-
sar em fala o ódio – ou de per- minar é preciso atacar os ânimos
seguir odiosamente a fala livre –, dos indivíduos, um meio eficaz
nessa configuração em que com- para isso seria exatamente, em
plexos imaginários (efetivos) de primeiro lugar, dar à voz submissa

3 No Tratado Teológico-político (ESPINOSA, 2008, p. 307): “Quanto mais não valeria conter a ira e o furor
do vulgo, em vez de promulgar leis inúteis que só podem ser violadas por aqueles que prezam as virtudes e as
artes, leis que reduzem o Estado a uma situação tal que é incapaz de defender os homens livres! Que coisa pior
pode imaginar-se para um Estado que serem mandados para o exílio como indesejáveis homens honestos, só por-
que pensam de maneira diferente e não sabem dissimular? (...) os que sabem que são honestos não têm, como os
criminosos, medo de morrer nem imploram clemência; na medida em que não os angustia o remorso de nenhum
feito vergonhoso recusam-se a considerar castigo o morrer por uma causa justa e têm por uma glória dar a vida
pela liberdade. Que exemplo poderá então ter ficado da morte de pessoas assim, cujo ideal é incompreendido pelos
fracos e moralmente impotentes, odiado pelos revoltosos e amado pelos homens de bem? Ninguém, certamente, aí
colhe exemplo algum, a não ser para os imitar ou, pelo menos, admirar.”
4 No Tratado Político (ESPINOSA, 2009, p. 9): “Nem importa, para a segurança do estado (imperium), com que
ânimo os homens são induzidos a administrar corretamente as coisas, contanto que as coisas sejam corretamente
administradas. A liberdade de ânimo, ou fortaleza, é com efeito uma virtude privada, ao passo que a segurança é a
virtude do estado”.

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todo incentivo à fala (entendida mente questiona a permanência


aqui como falsa liberdade de co- da vida como simples sobrevida6 .
municação), e, em segundo lugar, Talvez, então, possamos pers-
inversamente, à verdadeira liber- pectivar como resistência a ne-
dade de juízo e de ânimo dar ares gação a aderir à fala orientada, e
de subversão, de amotinamento, o quem sabe até possamos ver nisso
qual é fundado, em realidade, na o silêncio como constituição, em
comunicação do que é verdadeira- alguns momentos, de verdadeira
mente útil ao comum. aliança comunicativa. Em certas
Nessa configuração, em ambos configurações, há resistência ativa
os casos, o medo é o afeto mais co- no silêncio, assim como há igual-
mum, ainda assim traços diversos mente cautela no pronunciar-se
denunciam a natural diferença en- ou no anunciar-se; inevitavel-
tre os locais em que habita; se pen- mente, existe o vazio das falas
samos em termos maquiavelianos, submissas e fundadas na negação
notamos que o desejo de domí- e no medo da liberdade comum.
nio é inseparável do medo a tudo, Para que uma asserção como essa
medo da verdade – como desejo faça sentido, hoje, não liguemos
de ser enganado5 –, eis uma das à ideia de dominação apenas go-
razões de não poder durar, e Es- vernantes políticos, já que meios
pinosa relembra Sêneca para afir- e instrumentos de subjugação do
mar que o despotismo tem neces- ânimo muito se complexificaram e
sariamente vida curta (Espinosa, refinaram-se. A eficácia atual so-
2008, p. 86). Por outro lado, o de- bre os ânimos já é capaz de fazer
sejo de não ser dominado – e tam- parecer bobagem falar – critica-
bém o desejo que persiste em não mente, não como frase pronta de
ser governado por semelhantes – mercadoria – em desejo de liber-
enlaça o medo inevitável pela pró- dade.
pria sobrevivência, mas especial- Portanto, a violência política

5 Cf. essa bela passagem de MARILENA CHAUI, em Política em Espinosa, p. 279: “O soberbo, no orgulho
desmedido, considera que tudo lhe é permitido; o abjeto, na humilhação desmedida, considera que nada lhe é
permitido. O primeiro se torna dominador insolente; o outro, servo adulador, invejoso e ressentido. Ambos, sub-
missos às suas paixões, são fonte de novas servidões, pois o soberbo julga-se livre porque domina e despreza os
outros, enquanto o abjeto adulador imagina-se dependente dos favores do soberbo que, por definição, nunca hão
de vir. Assim, o segundo movimento do texto do Político (VII, 27) inicia-se quando, transferido o topos liviano
da plebe para o vulgar, passamos daquele que se deixa enganar por inexperiência e ignorância àquele que deseja
ser enganado por orgulho e ambição ou por auto-abjeção. Por isso, servidão e liberdade não andam juntas, pois o
soberbo é servo de suas paixões que o fazem servo de seus aduladores e estes, servos de suas paixões que os fazem
servos do dominador.”
6 Cf. Tratado Político (ESPINOSA, 2009. p. 45): “Quando, por conseguinte, dizemos que o melhor estado é
aquele onde os homens passam a vida em concórdia, entendo a vida humana, a qual não se define só pela cir-
culação do sangue e outras coisas que são comuns a todos os animais, mas se define acima de tudo pela razão,
verdadeira virtude e vida da mente.”

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não existe porque há ânimos in- Suponho, pois, que a cautela e a


submissos – simplesmente exis- potência que ela envolve mais que
tem potências singulares e ativi- nunca passam por resistir a certas
dades comuns, e a violência acom- falas, a calar o nome de si em oca-
panha o desejo de dominar, o qual siões determinadas, a comunicar
em geral tem braços curtos e voz até no silêncio, mas repudia maxi-
rouca, pois, para homenagear La mamente o medo, mesmo que dele
Boétie, precisa invariavelmente de não se livre completamente, mui-
muitos braços e vozes estridentes tas vezes. Por outro lado, supo-
para agir, e a arena política é um nho que a comunicação constitu-
palco bem iluminado para isso. É tiva da experiência política, múl-
nessa linha que, do ódio, do des- tipla, obviamente, é hostil à pro-
prezo e de tudo mais surgido do liferação do ódio e da exclusão,
desejo de dominar de poucos, Es- e que toda resistência ou ação li-
pinosa afirma: vre, quando política, é conflito di-
reto com quem usurpa o direito
E, se bem que esses senti- do indivíduo dando-lhe voz – que,
mentos não surjam direta- quando útil, é conquistada, não
mente por ordem do sobe- dada – e orientando de mil modos
rano, muitas vezes, como sua fala, que assim será constan-
a experiência abundante- temente uma fala contra, generali-
mente confirma, eles sur- zante; nem por isso todas e todos
gem, no entanto, por força que assim falam aderem de fato
de sua autoridade e sob ao ódio, ao desprezo, é de se no-
sua orientação... daí que tar que violências são exercidas so-
possamos conceber, sem bre indivíduos quando na cidade os
violentar minimamente a instrumentos mais eficazes de comu-
inteligência, homens que nicação são antipolíticos, e a polí-
não acreditem, odeiem, tica passa a alimentar a ilusão de
desprezem ou sejam arre- que a voz publicizada é já voz polí-
batados por qualquer ou- tica, ocultando que a experiência que
tro sentimento a não ser aí se constitui é primordialmente de
em virtude do direito do negação, de subserviência – de circo,
Estado (ESPINOSA, 2008, por que não?
p.252).

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Referências

CARVALHO, J. de. "Espinosa e a publicação do Tratado teológico-político".


Artigo eletrônico. [Acessado em 03 de junho de 2019]
CHAUI, M. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
ESPINOSA, B. de. Tratado político. Trad. de Diogo Pires Aurélio. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
_____________. Ética. Trad. do Grupo de Estudos Espinosanos. São
Paulo: Edusp, 2015a.
_____________. Tratado teológico-político. Trad. Diogo Pires Aurélio.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_____________. Tratado da emenda do intelecto. Trad. de Cristiano No-
vaes de Rezende. Campinas: Editora da Unicamp, 2015b.
LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária. Trad. Laymert
Garcia dos Santos. São Paulo : Brasiliense, 1999.

Recebido: 04/07/2019
Aprovado: 09/11/2019
Publicado: 17/11/2019

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