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PARA O PLANETÁRIO

Se, como fez uma vez Hillel com a doutrina judaica, se tivesse de
enunciar a doutrina dos antigos em toda concisão, em pé sobre
uma perna, a sentença teria de dizer: "A Terra pertencerá
unicamente àqueles que vivem das forças do cosmos". Nada
distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a
uma experiência cósmica que este último mal conhece. O
naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia, no
começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe
certamente não eram movidos unicamente por motivos
científicos. Mas, no entanto, há no acentuar exclusivo de uma
vinculação ótica com o universo, ao qual a astronomia muito em
breve conduziu, um signo precursor daquilo que tinha de vir. O
trato antigo com o cosmos cumpria-se de outro modo: na
embriaguez. É embriaguez, decerto, a experiência na qual nos
asseguramos unicamente do mais próximo e do mais distante, e
nunca de um sem o outro. Isso quer dizer, porém, que somente na
comunidade o homem pode comunicar em embriaguez com o
cosmos. É o ameaçador descaminho dos modernos considerar
essa experiência como irrelevante, como descartável, e deixá-la
por conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites
estreladas. Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo
de vencimento, e então povos e gerações lhe escapam tão pouco
como se patenteou da maneira mais terrível na última guerra, que
foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as potências
cósmicas. Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas
ao campo aberto, correntes de alta freqüência atravessaram a
paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e
profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte
cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte
feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala
planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez
do lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a
técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em
um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os
imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém, confiaria
em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças
pelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação,
antes de tudo, a indispensável ordenação da relação entre as
gerações e, portanto, se se quer falar de dominação, a dominação
das relações entre as gerações, e não das crianças? E assim
também a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da
relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie
estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a
humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se
na técnica como physis na qual seu contato com o cosmos se
forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias.
Basta lembrar a experiência de velocidades, por força das quais a
humanidade prepara-se agora para viagens a perder de vista no
interior do tempo, para ali deparar com ritmos pelos quais os
doentes, como anteriormente em altas montanhas ou em mares do
Sul, se fortalecerão. Os Luna Parks são uma pré-forma de
sanatórios. O calafrio da genuína experiência cósmica não está
ligado àquele minúsculo fragmento de natureza que estamos
habituados a denominar "Natureza". Nas noites de aniquilamento
da última guerra, sacudiu a estrutura dos membros da humanidade
um sentimento que era semelhante à felicidade do epilético. E as
revoltas que se seguiram eram o primeiro ensaio de colocar o
novo corpo em seu poder. A potência do proletariado é o escalão
de medida de seu processo de cura. Se a disciplina deste não o
penetra até a medula, nenhum raciocínio pacifista o salvará. O
vivente só sobrepuja a vertigem do aniquilamento na embriaguez
da procriação.
Walter Benjamin

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