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A saga de um professor brasileiro


em busca de uma viajante
misteriosa dos anos 70
Vinícius Lemos
De Cuiabá para a BBC News Brasil

5 outubro 2018

A viajante em Salvador; imagens da década de 70 mostram


mulher passeando sozinha pela América Latina e América do
Norte, entre outros

O encantamento por conhecer outros países e


culturas distintas estão evidentes nas fotografias
da viajante. As imagens foram feitas na década de
70, período em que não era comum que brasileiras
viajassem de modo independente. 40 anos depois,
os registros, que outrora marcaram a vida daquela
mulher, se tornaram um mistério compartilhado nas
redes sociais.

Há dois anos, as imagens da viajante foram


descobertas pelo professor de língua portuguesa
Marcelo Nogal, de 42 anos. Assim como a mulher, ele é
apaixonado por fotografias e viagens - já conheceu 80
países. Um fato causou surpresa em Nogal: a
desconhecida visitou, quatro décadas atrás, diversas
regiões que ele próprio conheceu nos últimos 12 anos.

O professor, que mora em São Paulo, confessa ter se


surpreendido com algumas semelhanças entre suas
viagens e as da desconhecida, que aparenta cerca de
30 anos na época.

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"Nós fomos a locais idênticos. Isso me deixou muito


surpreso, principalmente porque era uma mulher
independente viajando pelo mundo em plena década
de 70", relata, por telefone, à BBC News Brasil.

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a irmã

Em algumas fotos, a desconhecida aparece, décadas


antes, exatamente nos mesmos lugares onde o
professor esteve. A situação acontece em imagens
como uma em que ela está um mirante de Olinda, em
Pernambuco, e outra na área central de Manhattan, nos
Estados Unidos.

"Por mais que sejam locais turísticos, foi uma


coincidência muito grande o fato de ela ter cruzado a
minha vida", afirma.

"É uma coisa de destino, não sei explicar. Esse material


poderia parar nas mãos de outra pessoa, que talvez
não desse a menor importância. Mas é muita
coincidência ser encontrado por mim, que tenho tanto
em comum com ela", afirma Nogal.

Ele se diz cético sobre questões espirituais, mas


confessa que o caso da viajante mexeu com suas
crenças.

Nova York e seus visitantes em imagens com intervalo de


quatro décadas: a da mulher, por volta de 1976, e a de
Marcelo, em 2016

O professor encontrou, ao todo, mais de 200 fotografias


da mulher. Nas imagens, ela conheceu oito países,
além de ter ido a cidades brasileiras. Entre os destinos
que aparecem nas fotos, a viajante acompanhou as
Olímpiadas de 1976, no Canadá, visitou Machu Picchu,
no Peru, e viajou à Argentina.

Para descobrir quem era a desconhecida, Nogal


digitalizou as fotografias e divulgou o caso nas redes
sociais há pouco mais de um mês. Por meio de
publicações, em grupo de Facebook e em seu perfil,
relatou sua ligação com a viajante e pediu informações
sobre ela.

Nas redes, ele não obteve respostas. Nogal somente


descobriu quem era a viajante no último sábado (29).

Um projetor antigo e o início de um quebra-


cabeça
As fotografias da viajante misteriosa chegaram ao
professor por meio do cunhado dele. Há quatro anos, o
parente comprou um velho projetor de slides em uma
loja de itens antigos e, meses depois, presenteou Nogal
com o objeto.

"O meu cunhado percebeu que aquilo não teria


utilidade nenhuma para ele e me deu, porque pensou
que seria mais útil para mim, por eu ser professor",
comenta.

Junto com o projetor, o cunhado entregou uma caixa de


slides, que veio com o aparelho. Por dois anos, os itens
ficaram guardados em um armário do professor.

"O objeto não funcionava, então, deixei de lado. Dois


anos depois, comprei uma lâmpada específica para
ele."

O aparelho funcionou. Nogal reproduziu os slides que


estavam em uma caixa, armazenada em seu guarda-
roupa, e viu as fotografias da viajante.

"Aquelas imagens me deixaram impressionado, porque


mesmo sendo antigas, elas tinham muito a ver comigo.
Fiquei admirado com a história daquela mulher, mesmo
sem conhecê-la", conta.

Ele começou a pesquisar sobre as pistas que havia nas


imagens, para tentar decifrar o mistério da
desconhecida.

"Todo indício que eu via, pesquisava. Por exemplo, vi


um carro e fui procurar o ano de fabricação dele.
Também tinha uma foto em que aparecia um filme,
então fui buscar o ano de exibição dele. Assim fui
montando esse quebra-cabeça", relata.

A área no entorno do estádio Hernando Siles, em La Paz, na


Bolívia, foi visitada pela viajante por volta de 1975 e pelo
professor em 2010

Depois de meses de busca por informações, Nogal


chegou à conclusão de que as fotos foram tiradas entre
os anos de 1970 e 1976. Mas o professor não
conseguiu descobrir a identidade da viajante. Ele
chegou a buscar informações na loja onde o projetor foi
comprado, mas não obteve êxito. "Eles não sabiam de
nada por lá, até porque fazia anos que tinham vendido
o aparelho."

Com a falta de informações, ele foi criando hipóteses


para as imagens da viajante. Naquelas que considera
as mais antigas, ela está ao lado de um homem e um
casal de idosos, em cidades históricas de Minas Gerais
e em Brasília. "Imaginei que pudesse ser um irmão ou
namorado dela, junto com os pais ou sogros", diz.

Nas fotos dos destinos seguintes, ela está ao lado de


outras mulheres, possivelmente amigas ou parentes. O
homem e o casal de idosos não aparecem mais. "Ela
poderia ter se separado ou, caso seja irmão, ela
apenas decidiu fazer viagens mais independentes."

Por dois anos, Nogal conviveu com a dúvida sobre a


desconhecida. Há um mês, decidiu apelar para as
redes sociais e fez publicações sobre a viajante.
"Algumas pessoas chegaram a me ajudar, procurando
por informações em lugares que aparecem em algumas
fotos, mas nada adiantou", comenta.

Mesmo com as dificuldades, o professor não desistiu.


"Desde que encontrei essas imagens, percebi que elas
foram recordações importantes para essa mulher. Por
isso, pensei que seria fundamental entregar as fotos
para algum parente dela ou para a própria", diz.

Percurso na América Latina

A mulher desconhecida em Recife; ela viajava sozinha


quando isso era pouco comum entre elas

Nas imagens encontradas por Nogal, um dos destinos


da viajante é Salvador (BA). Acompanhada de uma
amiga, ela posa em pontos turísticos, como o Elevador
Lacerda e praias da região. A viagem seguinte é para
Pernambuco, onde aparenta estar sozinha. As
fotografias mostram a viajante na praia e em um centro
espírita, no Recife. Em outras imagens, ela está em
Olinda, onde visitou o mirante.

Entre 1974 ou 1975, segundo as pesquisas feitas pelo


professor, ela viaja para a Argentina, acompanhada da
mesma mulher que a acompanhou em Salvador. Um
dos locais turísticos que visita é o Caminito, uma rua
tradicional do país, famosa por sua característica
cultural. Nogal também visitou o lugar, em 2007, e tirou
fotos semelhantes às da desconhecida.

Em 1976, ela viaja para Nova York, nos Estados


Unidos, onde visita pontos turísticos. Alguns deles,
semelhantes aos que Nogal conheceu em 2016. Em
uma das fotografias, a viajante posa em uma região de
Manhattan em que as torres gêmeas aparecem ao
fundo. Há dois anos, o professor também fez pose no
mesmo local, mas desta vez sem os prédios
imponentes, destruídos no ataque de 11 de setembro
de 2001.

Possivelmente depois dos EUA, ainda em 76, a mulher


vai para Montreal, no Canadá, onde acontecem os
Jogos Olímpicos. Nas fotos, a desconhecida
acompanha a abertura da competição esportiva. Este
foi o único país que Nogal nunca visitou. Nas imagens
seguintes, ela aparece no México, onde conhece a
Ciudad de México e Acapulco.

Os destinos seguintes são na América do Sul,


acompanhada de uma amiga que não aparece nas
fotos anteriores. Um dos países que ela visita é a
Bolívia. Na região, a viajante posa em frente ao estádio
Hernando Siles, em La Paz. Em 2010, o professor
também esteve no mesmo local, onde também fez
fotos.

Em outras fotografias, a desconhecida visita o Peru,


onde conhece lugares nos quais Nogal também
passou, décadas depois. Em comum, foram ao parque
arqueológico Sacsayhuaman e à região de Machu
Picchu, áreas construídas pelos incas.

A viajante e o professor tiraram fotos semelhantes em um


mirante de Olinda: ela, por volta de 72, e ele, em 2014

O professor Mário Beni, membro do Conselho Nacional


de Turismo (CNT), ressalta que as brasileiras não
tinham o hábito de viajar sozinhas ou com amigas
durante a década de 70.

"Isso não era muito comum na época, por uma questão


cultural. Não diria que era algo raro, porque havia
brasileiras que faziam isso, porém eram situações bem
mais incomuns. Mas na Europa, por exemplo, as
mulheres já faziam inúmeras viagens sozinhas",
explica.

Entre as imagens encontradas nos slides, há ainda


algumas poucas fotos da viajante em Quito, no
Equador, e em Cartagena e Bogotá, na Colômbia. "Não
sei ao certo a ordem das viagens na América do Sul,
nem mesmo se elas representam o fim das viagens
dela. Os slides fotográficos se encerram nessa época,
então, não consigo imaginar o que aconteceu depois",
comentou Nogal, em entrevista concedida antes de
descobrir sobre a viajante.

Finalmente, a descoberta

As várias fotos de mulher em centro espírita no Recife foi


pista importante na busca de Marcelo Nogal

A BBC News Brasil conversou com Nogal pela primeira


vez em 25 de setembro. No período, ele seguia em
busca da mulher que aparece nas fotos. A reportagem,
inicialmente, teria o objetivo de retratar a busca dele
pela viajante desconhecida. Dias depois da entrevista,
o professor publicou uma mensagem em suas redes
sociais. "Descobri quem é a viajante", comemorou.

Ele relata que estava procurando por documentos em


seu guarda-roupa, no último dia 29, quando avistou, no
chão, um papel com o nome 'Elaine'.

"Eu fiquei curioso, porque não conheço nenhuma


mulher com esse nome. Mas depois de um tempo
refletindo, cheguei à conclusão de que o papel havia
caído da caixa de slides", conta.

Nogal pesquisou, no Google e em redes sociais, por


"Elaine + Espiritismo".

"Sabia que aquele nome poderia não ter relação com


ela, mas achei melhor procurar", explica.

Ele incluiu o espiritismo em razão das diversas fotos


nas quais a mulher está em um centro espírita em
Pernambuco. Na busca, encontrou Elaine Curti
Ramazzini. Depois de analisar as fotos atuais e as
antigas, concluiu: havia solucionado o mistério da
desconhecida.

Elaine Curti Ramazzini era considerada uma mulher à


frente de seu tempo. Psicóloga renomada - chegou a
palestrar em universidades dos Estados Unidos -, ela
também era escritora espírita, religião que seguiu da
adolescência até à morte. Desde a década de 60,
viajava pelo mundo com frequência, sozinha ou
acompanhada de amigas ou parentes. Nunca casou,
nem teve filhos. Segundo os familiares, viveu para
ajudar os outros.

'Foi uma descoberta que mexeu com a


gente'
Em uma publicação no Facebook, Nogal descobriu que
Elaine morrera em julho deste ano. No perfil dela,
observou que a mulher, mesmo idosa, continuou
viajando. O professor entrou em contato com o
sobrinho dela, o advogado Rodolpho Ramazzini, que
mora em São Paulo, e comunicou sobre as fotos de 40
anos atrás.

As fotos antigas emocionaram o advogado e outros


familiares dela.

"Foi uma descoberta que mexeu com a gente", diz.


Uma coincidência chamou a atenção de Rodolpho no
dia em que Nogal entrou em contato pela primeira vez.
"Era dia 29 de setembro, mesma data do aniversário
dela", emociona-se o sobrinho de Elaine.

O advogado esclarece que o homem e o casal de


idosos que acompanham Elaine, em viagens por Minas
Gerais e Brasília, são o irmão e os pais dela, todos já
falecidos.

Rodolpho acredita que a tia perdeu as fotografias


encontradas por Nogal durante uma mudança. "Ela se
mudou muitas vezes ao longo dos anos. Então, creio
que isso se perdeu em algum desses momentos. Não
acredito que ela tenha se desfeito, porque ela gostava
de ter os registros guardados."

Na Patagônia, foto tirada em uma de suas últimas viagens;


Elaine continuou viajando até o final da vida

Sonhos conquistados
As viagens eram uma das maiores paixões de Elaine,
que conheceu mais de 60 países.

"Ela veio de uma família pobre. Então, logo que passou


a estudar, ter suas conquistas e conseguir certa
condição financeira, começou a realizar o sonho de
viajar", relata o advogado.

Nas viagens mais recentes, a psicóloga costumava


levar os sobrinhos e a mãe para acompanhá-la. "A
minha avó morreu aos 94 anos. Meses antes, a minha
tia Elaine viajou com ela para um safári na África do
Sul", comenta Rodolpho.

"A minha tia era uma mulher incrível, tanto no campo


profissional, como no espiritual e pessoal. Ela sempre
foi uma independente. Nunca precisou de homem para
nada, porque sempre foi autossuficiente", orgulha-se.

A última viagem dela foi em janeiro, para os Estados


Unidos, de onde partiu para um cruzeiro para o Caribe.
Na época, ela estava em tratamento contra um câncer
de pulmão.

"Nem a doença fez com que ela parasse. Mesmo


fazendo sessões de quimioterapia antes da viagem, ela
não deixou de ir com a gente", relembra Rodolpho.
Meses depois, a doença avançou, atingiu o cérebro de
Elaine e ela faleceu em 12 de julho, aos 78 anos.

Na terça-feira, Nogal e Rodolpho se encontraram em


São Paulo. O professor levou as fotografias de Elaine
para o sobrinho dela.

"Vou fazer um painel e guardar em casa, junto com as


outras fotos que tenho dela", revela o advogado. Para o
professor, a entrega das imagens marcou o fim da sua
jornada em busca da viajante desconhecida.

"Agora, o meu objetivo foi concluído", comemora.

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