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“GUERRA SANTA EM PAÍS CRISTÃO”: A CRUZADA


ALBIGENSE*

Era o dia 22 de julho de 1209, ou, como os escritores medievais preferiam dizer
seguindo o costume do tempo, o dia da festa de Santa Maria Madalena. Um grandioso
contingente de cavaleiros armados, vindos do Norte da atual França, da atual Bélgica, da
atual Alemanha e da Inglaterra cercou a cidade de Béziers. Falava-se de vinte mil
cavaleiros equipados e mais de duzentos mil guerreiros a pé. Exagero evidente quando se
sabe que, naquele tempo, as guerras não envolviam mais de cinco mil combatentes.
Exagero compreensível quando se tratava de relatar um evento destinado a glorificar as
coisas da fé! O objetivo das tropas não deixava qualquer margem de dúvida: derrotar os
hereges que pululavam nas cidades e fortalezas situadas no Viscondado de Béziers e
Carcassonne e no condado de Toulouse.
Entre os que tomaram a cruz de Cristo para lutar em seu nome estavam importantes
feudatários do rei Filipe Augusto, como Eudes III, duque da Borganha, Hervé IV, conde de
Nevers e Gaucher de Chantillon, conde de Saint Pol. Havia também representantes da elite
eclesiástica do tempo: o arcebispo de Sens e o arcebispo de Bourdeaux, os bispos de Autun,
de Clermont e de Nevers, os bispos de Cahors e de Agen. Depois, alinhavam-se os grandes
barões e destacados cavaleiros, entre os quais Guilherme de Roches (senescal de Anjou), o
conde de Bar-sur-Seine, Gaucher de Joigny, Guichard de Beaujeau; ou senhores feudais
menos poderosos, como o conde Simão de Montfort, o conde Gui de Auvergne, o
visconde de Turenne, Bertrand de Cardaillac e o senhor de Gourdon. O exército compunha-
se ainda de vassalos dos senhores eclesiásticos e laicos assinalados, de mercenários e
guerreiros a pé. Todos eram liderados pelo legado papal de Inocêncio III chamado Arnaldo
Amauri.
A exigência dos “cavaleiros de Cristo” era uma só: que os moradores de Béziers - a
primeira cidade a ser atacada - entregassem os hereges que ali encontravam guarida. O
bispo local serviu de intermediário entre os recém-chegados e os habitantes, uma vez que o
senhor feudal da localidade, Raimundo Rogério Trencavel, abandonara a localidade e

*
Conferência apresentada no Seminário Guerra Santa e Cristandade na Idade Média, promovido pelo GT de
Estudos Medievais, em 10/08/2000.
2

buscara refúgio na vizinha Carcassonne. O sacerdote aconselhou os governantes municipais


a render-se diante das evidências e evitar os ferimentos das espadas de aço cortante. Mas a
resposta contrariou as expectativas. Declararam que não expulsariam os supostos hereges e
preferiam resistir: não entregariam nada aos cruzados que pudesse acarretar qualquer
mudança no governo da comunidade.
A ação dos sitiantes foi rápida, eficaz e fulminante. Atacadas pelos mercenários que
acompanhavam a expedição, e depois pelos próprios cavaleiros cruzados, as muralhas de
Béziers não ofereceram proteção por muito tempo. Aos gritos de “ao assalto” e “às armas”,
a comunidade foi ocupada. Abandonando suas posições de defesa, os sitiados deixaram as
torres e muros, refugiando-se com mulheres e crianças no interior da igreja catedral de
Madalena. Fora do recinto os fossos e paliçadas eram transpostos, casas e estabelecimentos
eram pilhados e incendiados, toda a população encontrada era passada ao fio da espada. Em
pouco tempo, nem mesmo o templo sagrado ofereceu proteção aos refugiados. Como diz
um dos testemunhos contemporâneos:

“Nada pôde salvá-los, nem cruz, nem altar, nem crucifixo.


Os mercenários mataram clérigos, mulheres e crianças; ninguém escapou.
Se Deus quiser, receberá suas almas no Paraíso!
Não creio ter havido tal massacre desde o tempo dos sarracenos.”1

Do relato até aqui apresentado, chama de imediato a atenção o fato de que os


testemunhos oculares tenham registrado em pormenor as circunstâncias da investida sobre a
primeira comunidade importante da Occitânia. Com efeito, o episódio conhecido como
“massacre de Béziers” ocupa lugar de destaque nos eventos da Cruzada Albigense seja
devido às suas consequências imediatas – o princípio da derrota dos senhores feudais do
Languedoc, uma vez que a mesma foi abandonada pelo seu senhor pouco antes do sítio –
seja devido à carnificina promovida pelos sitiantes. Os testemunhos contemporâneos não
deixaram de expressar sua perplexidade e, ao mesmo tempo, seu júbilo em face da derrota
iminente dos “inimigos da Cristandade”.

1
La Chanson de la Croisade Albigeoise (Les Classiques de l’Histoire de France au Moyen Age). Éditée et
traduite du provençal par Eugene MARTIN-CHABOT. Paris: Ancienne Honoré Champion, 1931. Tome I,
Estrofe 21, versos 15-18. Doravante, o documento será mencionado em citação simplesmente como Canso,
seguindo-se a indicação do tomo, estrofe e versos em referência.
3

A comparação dos sitiados de Béziers com os sarracenos, quer dizer, os adeptos da


fé islâmica, não parece aleatória. Tal qual a Cruzada contra os infiéis, que há pouco mais de
um século resultara na conquista da cidade de Jerusalém, a guerra ora iniciada também era
vista como “Santa”. Tal qual os muçulmanos e judeus que viviam em Jerusalém por
ocasião de sua conquista em 1099, passados ao fio de espada de modo que seu sangue
espalhava-se pelas ruas, casas e templos2, também aqui o recinto sagrado não garantiu
salvaguarda aos hereges e seus protetores. Nas palavras do cronista Pierre des Vaux de
Cernay, o fato de que a investida tivesse acontecido no dia da festa de Maria Madalena
constituiu suprema justiça da Providência. Segundo este, os hereges de Béziers
costumavam dizer que Madalena teria sido a “concubina de Cristo”. Deste modo, foi
justamente no interior da igreja a ela dedicada que os “cães injuriosos” foram presos e
massacrados, durante a festa daquela a quem tinham insultado3!
Quanto ao teor da afirmação segundo a qual “se Deus quiser, receberá suas almas
no Paraíso”, parece fazer alusão a uma anedota transmitida de boca em boca durante a
Cruzada Albigense, depois recolhida pelo escritor cistercience Cesário de Heisterbach em
sua coletânea de contos exemplares denominada Dialogus Miraculorum. Antes da invasão
de Béziers, um dos guerreiros teria perguntado ao legado papal Arnaldo Amauri sobre
como, durante o ataque, distinguir quem era herege e quem não era, tendo recebido a
seguinte resposta: “Matem todos, Deus escolherá os seus!”.
A frase calou fundo na memória dos participantes da guerra, tornou-se uma espécie
de emblema da intolerância reinante na Idade Média. Ao final do século XIX o historiador
católico Philippe Tamizey de Laroque dedicou-lhe um artigo no qual, valendo-se da
erudição, procurou desacreditar o testemunho de Cesário de Heisterbach4. Tendo a frase
sido ou não proferida pelo legado papal, é sabido que tal idéia moveu as ações dos cruzados

2
Para a descrição da tomada de Jerusalém, cf. Histoire anonyme de la première croisade. Éditée et traduite
par Louis BREHIER. Paris: Ancienne Honoré Champion, 1924., p. 202.
3
PIERRRE DES VAUX DE CERNAY. Histoire Albigeoise. Traduction par Pascal Guebin et Henri
Maisonneuve. Paris: Librairie J. Vrin, 1951, cap. 92, p. 42. Empregamos também a edição original da
crônica de Petri monachi coenobii Valium Cernaii Historia Albigensium et sacri belli in eos anno 1209
suscepti Duce et Principe Simone de Monteforti. Ed. DUCHESNE. In: J. P. MIGNE. Patrologia Latina,
tomus CCXIII, pp. 543-712. Doravante, o documento será mencionado em citação de acordo com as
iniciais do autor: PVC.
4
Ph. Tamizey de LAROQUE, “Un épisode de la Guerre des Albigeois”. Revue des Questions Historiques,
tome 1, 1866, pp168-190. Contra a argumentação de Laroque, veja-se o trabalho de Jacques BERLIOZ,
“Exemplum et histoire: Césaire de Heisterbach et la Croisade Albigeoise”. Bibliothèque de l’École des
Chartes, tome 147, 1989, pp. 49-86.
4

que marcharam para lutar na Occitânia: as populações de todas as cidades fortificadas que
não se rendessem seriam massacradas. Da mesma maneira, tal idéia não esteve ausente das
motivações espirituais dos clérigos a quem foi confiada a tarefa de registrar os eventos
daquilo que, em nome da Igreja, ficou conhecido como “empresa da paz e da fé” (negotium
pacis et fidei).
Com efeito, pouco antes do episódio de Béziers o papa Inocêncio III apelava ao rei
da França, depois aos príncipes e prelados para socorrer a Cristandade por meio das armas.
O sumo-pontífice valeu-se da legislação em vigor e transferiu a idéia de luta armada,
inicialmente restrita ao combate contra os muçulmanos, para os dissidentes internos. Aos
que prestassem o voto de cruzado estariam garantidas as mesmas vantagens oferecidas aos
cavaleiros cristãos que rumavam ao Oriente: obteriam a remissão plena dos pecados por
meio da concessão da “indulgência de Cruzada”; o “estatuto de cruzado”, mediante o qual
todos os seus bens e suas famílias permaneceriam sob proteção apostólica durante a
realização do voto; receberiam auxílio financeiro para a expedição e suspensão temporária
de suas dívidas nas terras de origem; e, o que é mais importante, teriam o direito de posse
sobre eventuais bens confiscados aos “hereges”5.
Ao decretar uma cruzada contra os hereges e seus defensores situados no condado
de Toulouse Inocêncio III arrogou para si, valendo-se da autoridade de sumo-pontífice, o
privilégio de mobilizar exércitos seculares destinados a coibir movimentos de dissidência
religiosa dentro de territórios cristãos. Pouco antes, ele próprio autorizou o deslocamento de
tropas para auxiliar a guerra contra populações pagãs no Báltico (Cruzada da Livônia).
Depois dele, outros papas valeram-se do mesmo expediente no combate contra inimigos da
Igreja. Em 1232 o papa Gregório IX decretou uma cruzada contra os Stedinger,
camponeses da região da Frísia e da Saxônia, em conflito com o Arcebispo de Bremen, no
Sacro Império Romano Germânico. No princípio do século XIV, foi a vez do papa
Clemente V organizar um movimento de cruzada contra os adeptos da heresia dos Pseudo-
apóstolos, liderados por Dolcino de Novara, na Itália. Um século mais tarde, em 1431, um

5
Raymond FOREVILLE, “Inocent III et la Croisade des Albigeois”. In: Paix de Dieu et Guerre Sainte en
Languedoc au XIII siècle (Cahiers de Fanjeaux nº4). Toulouse: Édouard Privat, 1969, pp. 184-192.
5

movimento de cruzada prestou apoio ao imperador Segismundo na luta armada contra os


adeptos de João Huss na antiga Boêmia, atual República Tcheca6.
A iniciativa de Inocêncio III, todavia, tinha fundamento na legislação cristã em
vigor. Estava respaldada na idéia de “guerra justa”, desenvolvida desde o princípio da Idade
Média por respeitáveis pensadores como Santo Agostinho e Isidoro de Sevilha, e por
escritores versados em Direito Canônico. Com efeito, no mais importante documento desta
natureza, o Decretum de Graciano, consta que “combater os maus é um ato de justiça
vindicativa”, quer dizer, um ato louvável. Quando autorizada com o fim de estabelecer a
paz e aniquilar os injustos, apesar de violenta a guerra era considerada em si mesma
instrumento de caridade, de justiça, harmonia e ordem. O combate, afinal, visava o
extermínio do corpo físico mas pretendia “salvar almas”. Para os canonistas, entre os quais
Huggucio de Pisa, os hereges enfileiravam-se entre os “inimigos de Deus” (inimicus Dei),
ficando sujeitos a esse tipo de represália. Aí está a explicação para aquilo que Henri Pissard
denominou “Guerra Santa em país cristão”7.

O CATARISMO

O grupo contra o qual a cruzada foi decretada aparece nos documentos do século
XIII nomeados de albigenses. Trata-se de um desses equívocos difíceis de serem
abandonados, mas há muito qualquer medievalista tem ciência de que o rótulo “albigense”
(albigeois) decorre de uma generalização enganosa comum no século XIII. A expressão,
como se sabe, associa os dissidentes com as populações da cidade de Albi, embora as idéias
heréticas tenham circulado em todo o Sul da atual França - o Languedoc ou Occitânia.
Além disso, sob o termo comum de “albigenses” os contemporâneos reuniram
indevidamente adeptos de movimentos heréticos muito distintos entre si. Os atuais
heresiólogos souberam distinguir naquele rótulo pelo menos duas grandes correntes de

6
A respeito desses eventos, ver Robert-Hermann TENBROCK, Historia de Alemania. Panderborn: Ferdinand
Schoning/Munchen: Max Hueber, 1968, pp. 77-78; Nachmann FALBEL, Heresias medievais. São Paulo:
Perspectiva, 1977, pp. 23-24, 70-71; Michel MOLLAT, Ongles bleus, Jacques et Ciompi: les révolutions
populaires en Europe aux XIV et XV siècles. Paris: Calmann Levy, 1970, p. 268.
7
José Dalmo F. de MATTOS, O conceito cristão de Guerra Justa. São Paulo: Editora “Revista dos
Tribunais”, 1964, esp. pp. 77-80; Robert REGOUT, La doctrine de la Guerre Juste de Saint Augustin à
nos jours d’après les théologiens et les canonistes catholiques. Paris: Éditions A. Pedonne, 1935, pp. 61-
79.
6

dissidência teológica às premissas da Igreja diferentes entre si. Com efeito, na Idade Média
o termo em questão designava tanto os adeptos da heresia valdense, disseminada a partir do
século XII na França e na Itália, e os adeptos do catarismo, doutrina dualista muito mais
antiga e complexa. Talvez por isso outros nomes mais específicos, como patarinos,
publicanos, maniqueus e principalmente catharos tenham também sido aplicados a esses
últimos.
Por outro lado, o equívoco indica de imediato a dimensão do problema no qual o
catarismo se insere. Entre os séculos XI e XIII frutificaram no seio da Europa muitas
heresias. Aos olhos dos representantes da Igreja, todas se assemelhavam porque se
distanciavam de sua orientação doutrinal. Na realidade, porém, a emergência de
movimentos heréticos no período sugere a existência de problemas os mais variados no seio
da Cristandade, e, sobretudo, o desejo dos leigos em participar mais de perto das formas de
religiosidade cristãs. Por outro lado, não se pode negar que a proliferação de movimentos
dessa natureza estivesse relacionada à insatisfação dos leigos com a Igreja, até porque, em
sua maior parte, os seguidores das heresias criticavam os padres e a hierarquia católica
pelo seu distanciamento das promessas do cristianismo primitivo e propunham o retorno às
práticas do tempo dos mártires e apóstolos8.
O catarismo destaca-se entre aqueles movimentos de dissidência tanto por sua
abrangência quanto pela sua duração em solo cristão. Sua origem costuma ser associada
com os desdobramentos de uma corrente religiosa de cunho dualista existente nas fronteiras
do Império Bizantino desde pelo menos o século X, denominada “bogomilismo”. No
ocidente, os seguidores do catarismo espalharam-se pelas terras do Sacro Império romano
Germânico, na região de Flandres, na Inglaterra e na Itália. Mas foi no Sul do reino da
França que sua adoção viria a exercer maior impacto na sociedade. Por volta de 1149 havia
um bispo cátaro no Norte da França e, anos mais tarde, outros se estabeleceram na cidade
de Albi, no Sul da França, e na Lombardia. No ano de 1167 o bispo cátaro Nicetas partiu de
Bizâncio para visitar a Itália e o Languedoc. Teria organizado um verdadeiro concílio
cátaro na localidade de Saint Félix de Caraman com o objetivo de organizar o culto. Nos
anos seguintes, outras pessoas foram reconhecidas como bispos na Itália e na Occitânia, de
modo que, ao final do século, haviam 11 bispados no total: um no Norte da França, quatro

8
Nachmann FALBEL. Op, cit., pp. 26-28..
7

no Sul (Albi, Toulouse, Carcassonne e Val d’Aran) e seis na Itália (Concorezzo,


Desenzano, Bagnolo, Vicenza, Florença e Spoleto). Na realidade, estava surgindo uma
igreja paralela dentro da Cristandade!
São essas as razões pelas quais antigos pesquisadores, entre os quais Jean Guiraud,
ou estudiosos recentes, como Jean Duvernoy, tenham sustentado a idéia de que o catarismo
foi algo mais que uma heresia. Teria sido, na verdade, uma religião dotada de doutrina,
organização e princípios próprios - em alguns casos radicalmente diferentes da Igreja
católica. Se, de fato, a palavra grega hairesis significa “escolher”, herege é o que “escolhe”
para si alternativas distintas daquelas estabelecidas e declaradas pela instituição religiosa
oficial, mas mantendo-se dentro dos princípios gerais que a definem. No caso dos cátaros,
pelo contrário, o que esteve em causa eram os próprios fundamentos da religião cristã uma
vez que seus adeptos professavam doutrinas de explicação da existência fundadas em
princípios dualistas9.
O que define de imediato a cosmogonia cátara é a crença na coexistência eterna de
dois princípios iguais em poder e eficácia opostos e tendo cada um seu papel no equilíbrio
do universo: o primeiro é o princípio do bem, que se confunde com Deus; o segundo, o
princípio do mal, que se confunde com Satã. Ao primeiro princípio correspondia pureza
espiritual e perfeição, enquanto ao segundo estavam relacionados os defeitos, imperfeições
e a corrupção. Por isso é que os ministros dessa crença eram designados pelo termo de
origem grega catharos, que significa simplesmente “puros”. Seu intento era aproximar-se
tanto quanto possível do bem absoluto, quer dizer, de Deus. Sua doutrina procurava
oferecer respostas a um problema comum a todas as religiões ocidentais, qual seja, o
problema do mal. Tais respostas passavam pelo esforço de encontrar soluções que
pudessem conciliar as noções do finito e do infinito, do absoluto e do transitório, do bem e
do mal.
Na cosmogonia cátara, o universo teria sido criado e se desenvolveria a partir da
conjugação de duas forças opostas. Aquela do Deus bom teria sido a responsável pela
criação de um mundo invisível e espiritual, enquanto a outra, do Deus mal, teria criado a
natureza sensível. Como poderia o Deus bom em essência ter sido o criador do mundo
terreno, onde existia o mal? Enquanto o cristianismo e o judaísmo explicavam a existência
8

do mal recorrendo à idéia do diabo e do pecado, os gnósticos dualistas acreditavam que


esse mundo teria sido criado pelo princípio do mal, quer dizer, Satã. Deste modo, haveriam
por toda a eternidade dois mundos em presença: aquele do Deus bom, constituído por uma
infinidade de seres puramente espirituais (anjos) criados por ele e participantes de sua
natureza; e o mundo sensível, terrestre, material, em que reinava o Mal. O homem, todavia,
seria uma criação do Deus bom, o que lhe permitia a possibilidade de alcançar a esfera
espiritual pela via da purificação10.
Os cátaros praticavam rigorosa abstinência, negavam qualquer contato mais
constante com os bens materiais e optavam pela pobreza absoluta. Tinham regras estritas no
comer, praticavam jejuns diários e jamais comiam carne. Também não praticavam o sexo,
pois tinham horror à procriação. No período final do catarismo, alguns ministros chegaram
a realizar uma espécie de suicídio ritual, chamado endura: deixavam de comer
voluntariamente, até o enfraquecimento total, ou então bebiam veneno ou cortavam as
próprias veias11. Era uma forma de apressar o contato com o reino Celeste!
Em suas pregações, condenavam as coisas do mundo. Para eles, a Igreja católica
seria a representante maior de Satanás. Todas as tradições aureoladas pela instituição, pela
mesma razão, eram criticadas. Todas as formas de ligação formal entre homens e mulheres
eram condenadas, inclusive o casamento e a procriação. Toda e qualquer forma de
autoridade era colocada em dúvida, pois só ao Deus bom estava reservado o exercício do
julgamento. Suas principais invectivas eram contra a pena de morte, contra toda e qualquer
forma de guerra, toda e qualquer forma de juramento12. Em outras palavras, sua doutrina
era abertamente contrária ao próprio modus vivendi da sociedade na qual estiveram
inseridos. De onde a pergunta: seria possível colocar em prática tais doutrinas?
Na realidade, haviam distinções importantes no seio dos adeptos do catarismo.
Dado ao ascetismo extremo, apenas alguns escolhidos podiam ser considerados os “eleitos”
para o encontro com o Deus bom. Com efeito, a profissão das idéias era realizada apenas
pelo grupo de ministros cátaros, conhecidos pelo nome de “perfeitos”. Os demais, ouvintes

9
Marie-Humble VICAIRE, “Le catharisme: une religion”. In: Historiographie du catharisme (Cahiers de
Fanjeaux nº 14). Toulouse: Édouard Privat, 1979, pp. 385-388.
10
Jean DUVERNOY, Le catharisme: la religion des cathares. Toulouse: Édouard Privat, 1976, pp. 184-198.
11
J. M. VIDAL, “Les derniers ministres de l’albigéisme en Languedoc: leurs doctrines”. Revue des
Questions Historiques, tome LXXIX, 1906, pp. 102-105.
12
René NELLI, Os cátaros. Lisboa: Edições 70, 1980, pp. 22-39.
9

ou simpatizantes, participavam na qualidade de “crentes”. Os ministros eram isolados dos


demais por uma elaborada cerimônia de iniciação, o consolamentum. Aos crentes, essa
cerimônia ocorria apenas por ocasião da extrema-unção porque esperava-se que, depois da
realização do ritual as portas para o outro mundo começavam a ser abertas. Afora essa
cerimônia, os cátaros tinham apenas dois sacramentos, a penitência e a quebra do pão -
espécie de comunhão -, e realizavam uma só oração, o Pater, variante do “padre nosso”
católico13.
Os preceitos, a moral e a doutrina referiam-se a muitos poucos, não dizendo respeito
à maior parte da sociedade em que os ministros cátaros conviviam. Dessa forma, não era no
que os “perfeitos” diziam, nem mesmo no que faziam, que o elo heterodoxia-sociedade
meridional deve ser buscado. Nem o espiritualismo ardente e extremo ou o voto de pobreza
absoluta da vida apostólica e evangélica condiziam com as práticas cotidianas ou mesmo
com as aspirações dos grupos aos quais o catarismo esteve associado no decurso da sua
existência. Herbert Grundmann tinha razão ao dizer que as causas responsáveis pela
aproximação dos indivíduos a uma heresia nem sempre são aquelas que deram origem a
ela. Para ele, os cátaros exerceram verdadeira atração sobre certos segmentos da sociedade
occitana muito mais por sua oposição encarniçada à hierarquia eclesiástica e à doutrina
católica do que por sua estranha doutrina dualista ou sua moral extremamente rigorosa14.
Malgrado o aparente paradoxo, a disseminação, manutenção e sobrevivência do albigeísmo
na Occitânia se deveu ao compromisso existente entre os seus ministros e os integrantes de
um grupo social específico: a nobreza.
Com efeito, no transcurso da segunda metade do século XII as idéias heréticas
foram espalhadas nas terras do visconde de Béziers e Carcassonne, estendendo-se pelo
Carcassés e a região da Montanha Negra, ambos transformados em cabeça-de-ponte para a
disseminação do catarismo. A presença de hereges em Toulouse também era significativa,
apesar de desconhecermos qual o grau de penetração nas localidades vizinhas. O certo é
que haviam simpatizantes do catarismo entre as famílias ricas que controlavam a capital do
condado pois em 1177 uma missão de cisterciences condenou e mandou prender um dos

13
Jean GUIRAUD, Histoire de l’Inquisition au Moyen Age. Paris: Éditions Auguste Picard, 1935. Tome I,
pp. 79-97.
14
Herbert GRUNDMANN, “Hérésies savants et hérésies populaires au Moyen Age”. In: Jacques LE GOFF
(Org), Hérésies et sociétés dans l’Europe pré-industrielle, p. 212.
10

cônsules tolosanos de nome Pedro Maurand15. Mesmo não dispondo de cifras precisas, tudo
indica que a pregação cátara obtinha bastante sucesso em todo o Languedoc.
Devemos às exaustivas pesquisas realizadas no ínicio do século por Jean Guiraud as
primeiras informações sistematizadas a respeito do comprometimento da nobreza
meridional com o catarismo. Guiraud notou uma “aliança ofensiva e defensiva” entre
ambos contra a hierarquia católica, seja no apoio material, seja na participação direta dos
nobres em cultos desenvolvidos nas partes “infectadas” pela heresia nas proximidades de
Toulouse, Castelnaudary, Montgiscard, Fanjeaux, Lavaur, Motier, Carcassonne, Mirepoix,
Don, Castelverdun, Carcassés, Cabaret e Laure. Em sua opinião, apesar do catarismo ter se
revestido de um caráter exclusivamente espiritual para muitos “perfeitos” ou “crentes”
nobres, a maioria deles tinha interesses pessoais nessas ligações, isto é, a rapina dos bens do
clero. Os hereges, insuflavam a nobreza com seus discursos, alimentando o
anticlericalismo. Como conseqüência, os bens eclesiásticos eram pilhados, os feudos
clericais acabavam sendo canalizados para a dependência laica com a subseqüente cobrança
de impostos e acumulação de rendas; além disso, os nobres recusavam a repassar certos
tributos devido à Igreja, como o dízimo.
Dois outros estudiosos levaram adiante as pesquisas de Guiraud, ampliando-as.
Charles Bru valeu-se dos dados deixados por ele para reconhecer as conseqüências e as
implicações da relação entre a nobreza Languedociana e o catarismo, tendo aí encontrado o
principal fator para o enraizamento profundo dos movimentos heterodoxos na região16.
Segundo Elié Griffe, os motivos do compromisso entre nobres e hereges devem ser
buscados na Reforma Gregoriana e na impermeabilização dos bens da Igreja à influência
dos laicos. A heresia infiltrou-se entre a pequena aristocracia dos castelos, dificultando a
sua identificação e extermínio.
A presença da heresia entre a nobreza castrense pode ser constatada desde 1145 nas
regiões de Verfeil e Saint-Pol, próximas de Toulouse. Subseqüentemente, o
anticlericalismo da nobreza do Lauragais, Laurac, Castelnaudary, Fanjeaux encontrava no
catarismo uma das suas formas de expressão. As conseqüências foram catastróficas.

15
John Hines MUNDY, “Noblesse et hérésie. Une famille cathare: les Maurand”. Annales ESC, 29-5, 1974,
pp. 1218-1220.
16
Charles P. BRU, “Elements pour une interprétation sociologique du catharisme occitan”. In: René NELLI
(Org). Spiritualité de l’hérésie: le catharisme. Paris/Toulouse: PUF/Éd. Privat, 1953, pp. 31-33.
11

Resultou na invasão e destruição de igrejas e locais sagrados, na insubordinação dos


vassalos em relação ao conde de Toulouse. Ao final do século XII, uma situação geral de
insegurança compunha o cenário desolador do Languedoc17.
No quadro da crise que opunha os dois grupos dirigentes da sociedade occitana o
catarismo acabou servindo de suporte para o anticlericalismo leigo. Vendo-se
empobrecidos pelas constantes partilhas testamentárias e vedado o seu acesso aos direitos e
ao patrimônio eclesiástico, os componentes da pequena nobreza não hesitavam em
reconhecer nos cátaros os “verdadeiros cristãos”, e em ver na Igreja rica, doutrinadora,
dominadora, a representante do mal18. Retirando-lhe a riqueza, não estariam forçando-a a
voltar a uma pobreza evangélica? É por isso que, ao que tudo indica, a heresia significava
perigo duplo para a Igreja: por um lado, perigo para a unidade espiritual da Cristandade
meridional; por outro, em virtude de sua infiltração entre a nobreza, ela colocava em risco a
propriedade eclesiástica, atingindo a instituição em sua base material.
O envolvimento dos nobres explica também as dificuldades do braço secular na luta
contra os dissidentes. Diversos autores dedicados ao estudo da implantação do catarismo na
Occitânia sublinharam com veemência o sucesso da heresia em virtude da ausência de
repressão por parte das autoridades seculares. Julien Havet, por exemplo, ao examinar a
relação entre a heresia e o braço secular na Idade Média percebeu que na região em questão
diversos concílios condenaram os hereges, mas as medidas repressivas não foram tomadas
por causa da tolerância ou da negligência dos príncipes19. A questão, hoje sabemos,
ultrapassava os limites da tolerância ou negligência. Tratava-se, na verdade, de uma
impotência das autoridades, a começar pelos condes de Toulouse.
Desde o III Concílio de Latrão, em 1179, a heresia aparecia como um perigo
iminente contra o qual era necessária a mais pronta repressão. Ao lado dos hereges, os
mercenários eram considerados inimigos em potencial da Cristandade, tornando-se urgente
a definitiva exterminação de ambos. De fato, a atuação dos mercenários infligia problemas
terríveis para toda a população, em particular para os clérigos, que se viam entregues aos

17
Elié GRIFFE, Les débuts de l’aventure cathare en Languedoc. Paris: Letouzey et Ané, 1969, pp. 84-87.
18
Paul LABAL, Op. Cit., p. 144; Cf. ainda Etienne DELARUELLE, “Devotion populaire et hérésié au
Moyen Age”. In: Jacques LE GOFF (Org), Hérésies et sociétés dans l’Europe pré-industrielle, p. 153.
19
Julien HAVET, “L’hérésie et le bras seculier au Moyen Age jusqu’au treizième siècle. IV – Région du
Midi”. Bibliothèque de l’École des Chartes, XLI, 1880, pp. 580-583.
12

ataques e a toda a sorte de atrocidades20. Com o pontificado de Inocêncio III, ocorrido entre
1198 e 1216, a Igreja começou a pôr em prática medidas efetivas com o objetivo de
eliminar de vez as heresias. Inocêncio passou “da palavra aos atos” e essa mudança de
atitude veio a ter conseqüências profundas não somente para o conde de Toulouse, mas
para toda a Occitânia. No final do século XII a execução do negotium pacis et fidei foi
entregue aos monges cistercienses. Por meio da predicação junto ao povo e da pressão
sobre os condes, os monges procuraram eliminar aos poucos os “inimigos” alojados no
corpo da Cristandade21.
A ampla aceitação do catarismo nas terras do Languedoc era descrita em tom
bastante sombrio nos escritos dos sacerdotes da Igreja romana. A heresia aparece nesses
textos como um “câncer”, como um “tumor” no corpo da Cristandade. O monge trovador
Guilherme de Tudela inicia a composição de sua Chanson de la Croisade Albigeoise
afirmando que a “maldita” heresia dominava todo o território nas proximidades de Albi, de
Lauragais, de Bourdeaux e Béziers, onde pululavam “crentes”22. O cronista Pierre des Vaux
de Cernay mostrava-se mais enfático: “esses crentes se entregavam livremente ao roubo e à
usura, aos homicídios e aos prazeres da carne, ao perjúrio e a outras perversidades.
Pecavam com tal segurança e com tal frenesi porque acreditavam ter a salvação garantida
sem necessidade de confissão ou penitência, bastando-lhes recitar o “pater noster” e
receber de seus mestres a imposição das mãos”23. Aos homens de Deus, não restava
qualquer dúvida. Essa “gente desgarrada” deveria experimentar o “gládio” do Senhor!

A CRUZADA ALBIGENSE

De resto, os desdobramentos da guerra são conhecidos. Depois do massacre dos


habitantes de Béziers, as hostes marcharam sobre as fortalezas e cidades vizinhas até sitiar
e conquistar a cidade de Carcassonne, em agosto de 1209. Raimundo Rogério Trencavel,
sobrinho de Raimundo VI e visconde de Béziers e Carcassone foi aprisionado e morreu

20
H. GÉRAUD, “Les routiers au douzième siècle”. Bibliothèque de l’École des Chartes, tome 3, 1841, pp.
125-147.
21
Marie-Humbert VICAIRE, “L’affaire de paix et de foi du Midi de la France”. In: Paix de Dieu et Guerre
Sainte en Languedoc au XIII siécle (Cahiers de Fanjeaux nº 4). Toulouse: Édouard Privat, 1969, pp. 102-
127.
22
Canso, I, estr. 2, vv. 5-9.
13

alguns meses depois na prisão. Todas as terras de sua família foram atribuídas a Simão de
Montfort, conde de Leicester. Daí em diante, este nobre da região de Ile de France assumiu
a liderança militar do movimento, assediando cidades e fortalezas dos domínios
anteriormente pertencentes à família Trencavel.
Enquanto isso, Raimundo VI tentava em vão obter sua reconciliação no concílio de
Saint Gilles, em 1210, e no concílio de Montpellier, em 1211. Naquele mesmo ano
Toulouse foi sitiada pela primeira vez. No seguinte, o conde pediu apoio ao rei de Aragão,
Pedro, o Católico, de quem era cunhado. Contando também com a ajuda de importantes
senhores feudais occitanos, entre os quais Bernardo de Comminges e sobretudo o conde
Raimundo Rogério de Foix, ele jogou todas as cartas numa grande ofensiva armada no
princípio de 1213. A grande coligação de cavaleiros dos dois lados dos Pirineus foi contudo
derrotada pelas tropas de Simão de Montfort na Batalha de Muret, ocorrida em setembro de
121324. Toulouse foi então forçada a abrir suas portas ao novo senhor. Dois anos mais
tarde, Inocêncio III reconheceu os direitos de Simão de Montfort em todo o Languedoc por
ocasião do IV concílio de Latrão25.
Em 1216 Raimundo VI e seu filho, o futuro Raimundo VII, encontravam-se
exilados na Espanha enquanto Simão de Montfort e sua equipe de cavaleiros procuravam
manter sob controle as terras conquistadas. Foi então que, primeiro na cidade de Beaucaire,
e depois em Toulouse, as populações rebelaram-se contra os cavaleiros nortistas, abrindo
suas portas aos príncipes espoliados. Desgastado por tantos anos de conflito intermitente,
sem apoio regular de novos contingentes de guerreiros, Simão de Montfort tentou quebrar a
resistência meridional. Entre 1217 e 1218 manteve o longo cerco da cidade de Toulouse,
vindo a morrer por ocasião dos combates em 25/06/1218. Seu lugar passou a ser ocupado
pelo filho, Amauri de Montfort, mas pouco a pouco os domínios anteriormente vencidos
voltaram às mãos dos antigos senhores. Em 1224, Montfort renunciou aos seus direitos,

23
PVC, cap. 13, p. 7.
24
Charles HIGOUNET. “Les relations franco-iberiques au Moyen Age”. In: Les relations franco-espagnoles
jusqu’au XVII siècle. Bulletin Philologique et Historique du Comité des Travaux Historiques et
Scientifiques. Paris: Bibliothèque Nationale, 1972, pp. 9-10.
25
Michel ROQUEBERT, L’Épopée cathare. Toulouse: Édouard Privat, 1977. Tome II – 1213-1216: Muret
ou la dépossession.
14

transferindo-os para Luís VIII, o rei da França. Era o fim da “Cruzada baronial” e o início
da “Cruzada real”26.
A atuação direta do rei na “questão albigense” aconteceu em 1226, e limitou-se ao
assédio e submissão da cidade de Avignon. A derrota daquela grande cidade, associada
com o prestígio da monarquia, levou a uma torrente de submissões. O monarca faleceu
naquele mesmo ano quando retornava a Paris, mas teve tempo de designar homens de sua
confiança para administrar as regiões que lhe pertenciam. A Cruzada Albigense terminou
oficialmente em 12/04/1229, quando os representantes da Igreja e de Luís IX (São Luís)
estabeleceram em Paris um tratado de paz com Raimundo VII. A partir da assinatura do
tratado, os direitos da realeza foram assegurados e a ingerência dos representantes da
monarquia na administração local aumentaram paulatinamente.
Pelo Tratado de Paris, a Raimundo VII ficavam garantidas as terras do condado de
Toulouse, do Agenais, do Rouerge e do Quercy, mas, em contrapartida, o mesmo
comprometeu-se a combater a heresia, contribuir para a fundação de uma Universidade e
prestar o apoio inicial aos tribunais de Inquisição instalados em todo o Languedoc. O antigo
viscondado de Béziers e Carcassonne, assim como toda a parte oriental da Occitânia
doravante pertenciam aos territórios capetíngios. A cláusula mais funesta era a que previa o
casamento de sua filha de nove anos, Joana, com o irmão mais novo do rei, Alfonso de
Poitiers. Caso não tivesse sucessores do sexo masculino, suas posses seriam herdadas pelo
casal e se esses, por sua vez, não deixassem descendentes, elas passariam diretamente para
a coroa. Foi o que efetivamente aconteceu: o último conde de Toulouse faleceu sem deixar
filhos varões, sendo sucedido por Joana e Alfonso; ambos vieram a falecer em 1270,
também sem deixar filhos. Pouco tempo depois, os representantes do rei Filipe, o Ousado,
tomavam posse oficial do que ainda lhes escapava do Languedoc27.
Nos últimos anos da tumultuada vida de Raimundo VII o derradeiro conde de
Toulouse passou por uma série de dificuldades mas manteve o empenho de recuperar o
prestígio de sua linhagem. Recorreu em vão ao papa Inocêncio IV e a São Luís na
esperança de reabilitar a memória do pai excomungado e enterrá-lo em solo consagrado.

26
Monique ZERNER-CHARDAVOINE, La Croisade des Albigeois. Paris: Gallimard, 1979; Maria
Henriqueta FONSECA, “O catarismo e a Cruzada contra os Albigenses”. Revista de História (USP),
volume VIII nº 17-18, 1954, pp. 79-117.
27
Paul LABAL. Los cátaros: herejia y crisis social. Barcelona: Editorial Crítica, 1984.
15

Viúvo, esforçou-se por arranjar um casamento e ter afinal um filho que pudesse sucedê-lo.
As tratativas para o enlace com Beatriz, filha mais jovem do conde Raimundo Berengário
de Provença não deram resultados satisfatórios. O futuro sogro morreu em 1245 e a
pretendida foi entregue pelos tutores a Carlos de Anjou, outro irmão do rei!
Pretendia prestar voto de cruzado e seguir São Luís até o Oriente, mas foi acometido
pela doença. Morreu em 27 de setembro de 1249, com 52 anos de idade. Seu corpo foi
embalsamado e transportado por Albi, Gaillac e Rabastens através do rio Ródano, até
chegar em Toulouse, para ser sepultado no convento da Ordem de Fontevrault. O cronista
Guilherme de Puylaurens deixou-nos um vivo testemunho da emoção com a qual a
população despediu-se daquele que, durante tantos anos, sintetizara as aspirações da
nobreza languedociana:

“Foi um espetáculo digno de compaixão ver o povo ir em massa diante do cortejo


ou seguir os restos mortais gemendo e chorando a perda de seu senhor natural que partia
sem deixar sucessor em sua linhagem. Foi o meio pelo qual Nosso Senhor Jesus Cristo fez
ver a toda aquela terra que estava concretizando sua vingança contra o país em que
proliferava a heresia, retirando das pessoas seus governantes legítimos”28.

Sob o ponto de vista religioso, os desdobramentos da guerra e a derrota da nobreza


languedociana contra as hostes enviadas pelos papas, reis e senhores feudais do Norte do
reino implicou na exposição dos ministros heréticos e seus adeptos ou simpatizantes à
perseguição por parte das autoridades laicas e eclesiásticas. Paralelamente aos ataques
militares, integrantes das ordens monásticas (sobretudo os dominicanos) e do clero secular
tiveram a possibilidade de investigar, descobrir e punir os rebeldes da fé. Em 1229, o
mesmo da assinatura do Tratado de Paris e da capitulação da feudalidade meridional, uma
assembléia de clérigos reunida por ocasião do concílio de Toulouse lançou as bases para a
criação dos primeiros tribunais do Santo Ofício e para a criação da Universidade de
Toulouse.
As reações armadas promovidas pelas populações occitanas, por outro lado, foram
diminuindo em importância. À ampla resistência organizada por ocasião da Cruzada dos
Montfort sucederam rebeliões localizadas nos momentos iniciais da intervenção dos
16

capetos. Embora entre 1230 e 1240 diversos nobres meridionais despossuídos durante os
conflitos tenham atacado fortalezas e cidades, exigindo esforços permanentes dos oficiais
da coroa, eles foram esmagados um a um. A última grande rebelião, liderada por Raimundo
Trencavel na cidade de Carcassonne, foi duramente sufocada. Quatro anos depois, em
1244, um importante contingente de adeptos e simpatizantes do catarismo situado na
fortaleza de Montségur teve de se submeter após longo assédio e os “perfeitos” ali
encontrados arderam na fogueira29. Era o último episódio da “resistência cátara”.
A atuação eficiente dos inquisidores do século XIII, por sua vez, colocou os
ministros cátaros na defensiva. As inquirições, julgamentos e sentenças desarticularam a
malha de solidariedade na qual os heterodoxos se apoiavam. Por volta de 1240 o catarismo
sobrevivia na clandestinidade30. Muitos de seus participantes procuraram refúgio em outras
terras, na Catalunha e principalmente na Itália. Aqueles que permaneceram no Languedoc
foram aos poucos sendo identificados, presos, julgados e condenados à fogueira. Ao final
do século XIII, os derradeiros ministros cátaros atuantes escondiam-se nos confins do
condado de Foix, nas proximidades dos Pirineus31. Quando em 1309 o último ministro
cátaro, Pierre Autier, foi aprisionado e submetido aos inquisidores Bernard Gui e Geoffrey
d’Abblis, o catarismo chegou ao seu fim!

GUERRA SANTA OU GUERRA DE CONQUISTA?

Esperamos que essas breves menções tenham sido suficientes para situar o
problema em seu aspecto cronológico. Heresia e cruzada, como vimos, desencadearam
movimentos sociais de grande proporção, dando origem a um dos conflitos militares mais
violentos da Idade Média, a manifestações de intolerância religiosa até então

28
Chronica magistri Guillelmi de Podio Laurentii. Editée, traduite et anoté par Jean DUVERNOY. Paris:
Éditions du CNRS, 1976, capítulo XLVI, p. 186. Doravante, o documento será mencionado em citação de
acordo com as iniciais do autor: GP.
29
Zoé OLDENBOURG, Le bucher de Montségur. Paris: Gallimard, 1959.
30
Aspecto recentemente abordado por Linda Joenne Carvalho Granjense de Lima SARAIVA, “Laços de
sangue, laços de fé. Relações familiares e solidariedade no catarismo do século XIII”. Dissertação de
Mestrado no PPG em História – UnB, 1998.
31
Anette PALES-GOBILLIARD, “Le catharisme dans le comté de Foix des origenes au début du XIV
siècle”. Revue de l’Histoire des Religions, tome CLIX-2, 1976, pp. 192-196.
17

desconhecidas, e ao processo de incorporação e anexação política de parte substancial dos


territórios pertencentes ao atual Estado francês.
A historiografia francesa, na verdade, esforçou-se para detectar o sentido histórico
daquele prolongado estado de guerra. Teria sido um conflito de cunho político ou religioso?
Uma guerra de religião ou guerra de conquista? Para Edgard Boutaric, fôra uma guerra de
conquista: uma parte dos guerreiros do norte da França havia se precipitado sobre o Midi
para vingar a Igreja, atacando os hereges numa invasão sangrenta. Para Pierre Belperron,
representou uma guerra de secessão entre Languedoc e a Cristandade. Mais distanciado das
polêmicas entre franceses, o pesquisador alemão Arno Borst preferiu interpretá-la como
guerra de religião e guerra nacional. 32.
Na concepção da maioria dos historiadores, a heresia teria papel determinante no
desencadeamento da luta. Quase todos os trabalhos relativos à história da cruzada seguiram
um plano de exposição semelhante. Antes de descreverem o conflito armado, apresentaram
um quadro panorâmico da sociedade Languedociana. Achille Luchaire dedicou um terço de
sua obra aos problemas religiosos que antecederam os combates. Pierre Belperron reservou
oitenta páginas aos mesmos problemas e Jonathan Sumption, quarenta33. Essa grande
preocupação com a heresia desviou os intérpretes do sentido profundo da cruzada. Não que
o catarismo deva ser negligenciado, mas o papel por ele desempenhado precisa ser
repensado. A heresia teve seu papel na motivação ideológica tanto no desencadeamento da
luta quanto na sua alimentação por parte das lideranças ligadas ao papado. Mas, se
quisermos entender um pouco mais os motivos profundos da guerra, deveremos colocar em
pauta o problema das realidades sociais subjacentes à heresia.
Com efeito, não obstante a doutrina dos “perfeitos” ter sido contrária à guerra, a
todo e qualquer tipo de juramento, aos acordos e convenções terrestres, este ideário
aparentemente refratário ao mundo foi apropriado por elementos das camadas dirigentes
occitanas, quer dizer, a aristocracia dos castelos e certos grupos dirigentes das cidades, os
quais encontravam-se em conflito com os integrantes do alto escalão eclesiástico. A

32
Edgard BOUTARIC, “La Guerre des Albigeois et Alphonse de Poitiers”. Revue des Questions Historiques,
tome 2, 1867, p. 155; Pierre BELPERRON, La Croisade Contre les Albigeois et l’union du Languedoc à la
France. Paris: Librairie Plon, 1942, p. 447; Arno BORST, Les cathares. Paris: Payot, 1974, p. 102.
33
Achille LUCHAIRE. Inocent III. La Croisade des Albigeois. Paris: Hachette, 1906, pp. 1-113; Pierre
BELPERRON, Op.cit., pp. 61-140; Jonathan SUMPTION. The albigensian Crusade. London; Faber &
Faber, 1978, pp. 32-76.
18

dimensão social da “questão albigense” transparece na própria expressão pela qual os


homens da Igreja rotularam o conflito: “empresa da paz e da fé”. A articulação entre a
“paz” – a tranqüilidade social – e a “fé” – a tranqüilidade espiritual – seria restaurada
mediante o recurso das armas. Em outros termos, a resolução da dissenção religiosa
dependia da solução de um problema social.
A natureza do problema é, pois, bastante complexa. Acreditamos que a proliferação
do catarismo tenha ocorrido em parte por causa do distanciamento dos representantes da
Igreja para com suas “ovelhas” da Occitânia, mas seu enraizamento ocorreu na fase de
afirmação de grupos sociais emergentes na sociedade meridional. De fato, em meados do
século XII, momento a partir do qual o catarismo passou a ser encarado como uma espécie
de “tumor” no corpo da Cristandade, a pequena nobreza rural e uma aristocracia urbana
composta por cavaleiros e comerciantes ricos ganharam espaço no Languedoc e colocaram
em risco a autoridade dos grandes príncipes e do alto clero. Essas camadas sociais médias
das zonas rural e urbana foram ao mesmo tempo as maiores protetoras do catarismo e as
maiores detratoras do poder estabelecido. Solapavam direitos, apropriavam-se de bens,
negavam-se a restituir o dízimo clerical e ameaçavam a integridade da propriedade
eclesiástica. Neste contexto, o discurso dos ministros cátaros fornecia a justificativa
ideológica para o anticlericalismo laico.
Em contrapartida, a Cruzada Albigense consistiu numa ação de envergadura do
braço secular da Cristandade capaz de instaurar a “paz” valendo-se do gládio material para
garantir a restauração da “fé”. Em sua fase inicial, a luta apresentou as características de
uma guerra religiosa, parecendo tratar-se de uma ação armada dos defensores da Igreja
contra os protetores dos cátaros do viscondado de Béziers e Carcassonne, cujo principal
resultado foi a expropriação do próprio visconde Raimundo Rogério Trencavel. Nesse
primeiro momento, aberto em 1209, o conde Raimundo VI participou da ação dos
cavaleiros nortistas, ou então não se opôs aos cruzados. Mas na sucessão dos
acontecimentos, as conotações religiosas perderam força diante dos interesses materiais, de
maneira que, a partir de 1211, o conflito assumiu os contornos de uma guerra de conquista
contra toda a feudalidade meridional, inclusive o conde de Toulouse.
Os textos contemporâneos produzidos na Occitânia, especialmente a segunda parte
da Chanson de la Croisade Albigeoise explicitam muito bem essa mudança geral de
19

orientação. Na descrição dos fatos, os escritores não contrapõem católicos a cátaros, mas
“franceses” (frances) ou “estrangeiros” (gen estranha) a occitanos, chamados de “os
nossos” (nos). Simão de Montfort é designado de senhor legal, postiço (apostitz), e
Raimundo VI, como senhor legítimo da terra, da eretat, da lengatge. A resistência contra a
Cruzada encontrou bases de sustentação nessa legitimidade, como também em tudo o que
tal legitimidade representava, isto é, os costumes, a organização política, administrativa e
judiciária próprias, enfim, o modus vivendi específico dos que se mantinham sob o governo
dos príncipes prejudicados.
O reenquadramento dos integrantes da nobreza meridional à sociedade não
constituiu um retorno à sua situação anterior. A reintegração se deu dentro de condições
novas e radicalmente diferentes, mediante submissão à coroa. É nesse processo de
centripedação dos poderes sob a égide da monarquia feudal e sob a égide do papado que o
faiditismo se insere. Em linhas gerais, diríamos que é esse o seu lugar na história da
sociedade européia. Em que pese as especificidades históricas regionais, as particularidades
na constituição do feudalismo occitano e as implicações religiosas do catarismo, os fatos
aqui retratados enquadram-se no amplo processo de domesticação da nobreza no decurso
dos séculos XII e XIII.
...

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