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Cruzada Albigense
Cruzada Albigense
Era o dia 22 de julho de 1209, ou, como os escritores medievais preferiam dizer
seguindo o costume do tempo, o dia da festa de Santa Maria Madalena. Um grandioso
contingente de cavaleiros armados, vindos do Norte da atual França, da atual Bélgica, da
atual Alemanha e da Inglaterra cercou a cidade de Béziers. Falava-se de vinte mil
cavaleiros equipados e mais de duzentos mil guerreiros a pé. Exagero evidente quando se
sabe que, naquele tempo, as guerras não envolviam mais de cinco mil combatentes.
Exagero compreensível quando se tratava de relatar um evento destinado a glorificar as
coisas da fé! O objetivo das tropas não deixava qualquer margem de dúvida: derrotar os
hereges que pululavam nas cidades e fortalezas situadas no Viscondado de Béziers e
Carcassonne e no condado de Toulouse.
Entre os que tomaram a cruz de Cristo para lutar em seu nome estavam importantes
feudatários do rei Filipe Augusto, como Eudes III, duque da Borganha, Hervé IV, conde de
Nevers e Gaucher de Chantillon, conde de Saint Pol. Havia também representantes da elite
eclesiástica do tempo: o arcebispo de Sens e o arcebispo de Bourdeaux, os bispos de Autun,
de Clermont e de Nevers, os bispos de Cahors e de Agen. Depois, alinhavam-se os grandes
barões e destacados cavaleiros, entre os quais Guilherme de Roches (senescal de Anjou), o
conde de Bar-sur-Seine, Gaucher de Joigny, Guichard de Beaujeau; ou senhores feudais
menos poderosos, como o conde Simão de Montfort, o conde Gui de Auvergne, o
visconde de Turenne, Bertrand de Cardaillac e o senhor de Gourdon. O exército compunha-
se ainda de vassalos dos senhores eclesiásticos e laicos assinalados, de mercenários e
guerreiros a pé. Todos eram liderados pelo legado papal de Inocêncio III chamado Arnaldo
Amauri.
A exigência dos “cavaleiros de Cristo” era uma só: que os moradores de Béziers - a
primeira cidade a ser atacada - entregassem os hereges que ali encontravam guarida. O
bispo local serviu de intermediário entre os recém-chegados e os habitantes, uma vez que o
senhor feudal da localidade, Raimundo Rogério Trencavel, abandonara a localidade e
*
Conferência apresentada no Seminário Guerra Santa e Cristandade na Idade Média, promovido pelo GT de
Estudos Medievais, em 10/08/2000.
2
1
La Chanson de la Croisade Albigeoise (Les Classiques de l’Histoire de France au Moyen Age). Éditée et
traduite du provençal par Eugene MARTIN-CHABOT. Paris: Ancienne Honoré Champion, 1931. Tome I,
Estrofe 21, versos 15-18. Doravante, o documento será mencionado em citação simplesmente como Canso,
seguindo-se a indicação do tomo, estrofe e versos em referência.
3
2
Para a descrição da tomada de Jerusalém, cf. Histoire anonyme de la première croisade. Éditée et traduite
par Louis BREHIER. Paris: Ancienne Honoré Champion, 1924., p. 202.
3
PIERRRE DES VAUX DE CERNAY. Histoire Albigeoise. Traduction par Pascal Guebin et Henri
Maisonneuve. Paris: Librairie J. Vrin, 1951, cap. 92, p. 42. Empregamos também a edição original da
crônica de Petri monachi coenobii Valium Cernaii Historia Albigensium et sacri belli in eos anno 1209
suscepti Duce et Principe Simone de Monteforti. Ed. DUCHESNE. In: J. P. MIGNE. Patrologia Latina,
tomus CCXIII, pp. 543-712. Doravante, o documento será mencionado em citação de acordo com as
iniciais do autor: PVC.
4
Ph. Tamizey de LAROQUE, “Un épisode de la Guerre des Albigeois”. Revue des Questions Historiques,
tome 1, 1866, pp168-190. Contra a argumentação de Laroque, veja-se o trabalho de Jacques BERLIOZ,
“Exemplum et histoire: Césaire de Heisterbach et la Croisade Albigeoise”. Bibliothèque de l’École des
Chartes, tome 147, 1989, pp. 49-86.
4
que marcharam para lutar na Occitânia: as populações de todas as cidades fortificadas que
não se rendessem seriam massacradas. Da mesma maneira, tal idéia não esteve ausente das
motivações espirituais dos clérigos a quem foi confiada a tarefa de registrar os eventos
daquilo que, em nome da Igreja, ficou conhecido como “empresa da paz e da fé” (negotium
pacis et fidei).
Com efeito, pouco antes do episódio de Béziers o papa Inocêncio III apelava ao rei
da França, depois aos príncipes e prelados para socorrer a Cristandade por meio das armas.
O sumo-pontífice valeu-se da legislação em vigor e transferiu a idéia de luta armada,
inicialmente restrita ao combate contra os muçulmanos, para os dissidentes internos. Aos
que prestassem o voto de cruzado estariam garantidas as mesmas vantagens oferecidas aos
cavaleiros cristãos que rumavam ao Oriente: obteriam a remissão plena dos pecados por
meio da concessão da “indulgência de Cruzada”; o “estatuto de cruzado”, mediante o qual
todos os seus bens e suas famílias permaneceriam sob proteção apostólica durante a
realização do voto; receberiam auxílio financeiro para a expedição e suspensão temporária
de suas dívidas nas terras de origem; e, o que é mais importante, teriam o direito de posse
sobre eventuais bens confiscados aos “hereges”5.
Ao decretar uma cruzada contra os hereges e seus defensores situados no condado
de Toulouse Inocêncio III arrogou para si, valendo-se da autoridade de sumo-pontífice, o
privilégio de mobilizar exércitos seculares destinados a coibir movimentos de dissidência
religiosa dentro de territórios cristãos. Pouco antes, ele próprio autorizou o deslocamento de
tropas para auxiliar a guerra contra populações pagãs no Báltico (Cruzada da Livônia).
Depois dele, outros papas valeram-se do mesmo expediente no combate contra inimigos da
Igreja. Em 1232 o papa Gregório IX decretou uma cruzada contra os Stedinger,
camponeses da região da Frísia e da Saxônia, em conflito com o Arcebispo de Bremen, no
Sacro Império Romano Germânico. No princípio do século XIV, foi a vez do papa
Clemente V organizar um movimento de cruzada contra os adeptos da heresia dos Pseudo-
apóstolos, liderados por Dolcino de Novara, na Itália. Um século mais tarde, em 1431, um
5
Raymond FOREVILLE, “Inocent III et la Croisade des Albigeois”. In: Paix de Dieu et Guerre Sainte en
Languedoc au XIII siècle (Cahiers de Fanjeaux nº4). Toulouse: Édouard Privat, 1969, pp. 184-192.
5
O CATARISMO
O grupo contra o qual a cruzada foi decretada aparece nos documentos do século
XIII nomeados de albigenses. Trata-se de um desses equívocos difíceis de serem
abandonados, mas há muito qualquer medievalista tem ciência de que o rótulo “albigense”
(albigeois) decorre de uma generalização enganosa comum no século XIII. A expressão,
como se sabe, associa os dissidentes com as populações da cidade de Albi, embora as idéias
heréticas tenham circulado em todo o Sul da atual França - o Languedoc ou Occitânia.
Além disso, sob o termo comum de “albigenses” os contemporâneos reuniram
indevidamente adeptos de movimentos heréticos muito distintos entre si. Os atuais
heresiólogos souberam distinguir naquele rótulo pelo menos duas grandes correntes de
6
A respeito desses eventos, ver Robert-Hermann TENBROCK, Historia de Alemania. Panderborn: Ferdinand
Schoning/Munchen: Max Hueber, 1968, pp. 77-78; Nachmann FALBEL, Heresias medievais. São Paulo:
Perspectiva, 1977, pp. 23-24, 70-71; Michel MOLLAT, Ongles bleus, Jacques et Ciompi: les révolutions
populaires en Europe aux XIV et XV siècles. Paris: Calmann Levy, 1970, p. 268.
7
José Dalmo F. de MATTOS, O conceito cristão de Guerra Justa. São Paulo: Editora “Revista dos
Tribunais”, 1964, esp. pp. 77-80; Robert REGOUT, La doctrine de la Guerre Juste de Saint Augustin à
nos jours d’après les théologiens et les canonistes catholiques. Paris: Éditions A. Pedonne, 1935, pp. 61-
79.
6
dissidência teológica às premissas da Igreja diferentes entre si. Com efeito, na Idade Média
o termo em questão designava tanto os adeptos da heresia valdense, disseminada a partir do
século XII na França e na Itália, e os adeptos do catarismo, doutrina dualista muito mais
antiga e complexa. Talvez por isso outros nomes mais específicos, como patarinos,
publicanos, maniqueus e principalmente catharos tenham também sido aplicados a esses
últimos.
Por outro lado, o equívoco indica de imediato a dimensão do problema no qual o
catarismo se insere. Entre os séculos XI e XIII frutificaram no seio da Europa muitas
heresias. Aos olhos dos representantes da Igreja, todas se assemelhavam porque se
distanciavam de sua orientação doutrinal. Na realidade, porém, a emergência de
movimentos heréticos no período sugere a existência de problemas os mais variados no seio
da Cristandade, e, sobretudo, o desejo dos leigos em participar mais de perto das formas de
religiosidade cristãs. Por outro lado, não se pode negar que a proliferação de movimentos
dessa natureza estivesse relacionada à insatisfação dos leigos com a Igreja, até porque, em
sua maior parte, os seguidores das heresias criticavam os padres e a hierarquia católica
pelo seu distanciamento das promessas do cristianismo primitivo e propunham o retorno às
práticas do tempo dos mártires e apóstolos8.
O catarismo destaca-se entre aqueles movimentos de dissidência tanto por sua
abrangência quanto pela sua duração em solo cristão. Sua origem costuma ser associada
com os desdobramentos de uma corrente religiosa de cunho dualista existente nas fronteiras
do Império Bizantino desde pelo menos o século X, denominada “bogomilismo”. No
ocidente, os seguidores do catarismo espalharam-se pelas terras do Sacro Império romano
Germânico, na região de Flandres, na Inglaterra e na Itália. Mas foi no Sul do reino da
França que sua adoção viria a exercer maior impacto na sociedade. Por volta de 1149 havia
um bispo cátaro no Norte da França e, anos mais tarde, outros se estabeleceram na cidade
de Albi, no Sul da França, e na Lombardia. No ano de 1167 o bispo cátaro Nicetas partiu de
Bizâncio para visitar a Itália e o Languedoc. Teria organizado um verdadeiro concílio
cátaro na localidade de Saint Félix de Caraman com o objetivo de organizar o culto. Nos
anos seguintes, outras pessoas foram reconhecidas como bispos na Itália e na Occitânia, de
modo que, ao final do século, haviam 11 bispados no total: um no Norte da França, quatro
8
Nachmann FALBEL. Op, cit., pp. 26-28..
7
9
Marie-Humble VICAIRE, “Le catharisme: une religion”. In: Historiographie du catharisme (Cahiers de
Fanjeaux nº 14). Toulouse: Édouard Privat, 1979, pp. 385-388.
10
Jean DUVERNOY, Le catharisme: la religion des cathares. Toulouse: Édouard Privat, 1976, pp. 184-198.
11
J. M. VIDAL, “Les derniers ministres de l’albigéisme en Languedoc: leurs doctrines”. Revue des
Questions Historiques, tome LXXIX, 1906, pp. 102-105.
12
René NELLI, Os cátaros. Lisboa: Edições 70, 1980, pp. 22-39.
9
13
Jean GUIRAUD, Histoire de l’Inquisition au Moyen Age. Paris: Éditions Auguste Picard, 1935. Tome I,
pp. 79-97.
14
Herbert GRUNDMANN, “Hérésies savants et hérésies populaires au Moyen Age”. In: Jacques LE GOFF
(Org), Hérésies et sociétés dans l’Europe pré-industrielle, p. 212.
10
cônsules tolosanos de nome Pedro Maurand15. Mesmo não dispondo de cifras precisas, tudo
indica que a pregação cátara obtinha bastante sucesso em todo o Languedoc.
Devemos às exaustivas pesquisas realizadas no ínicio do século por Jean Guiraud as
primeiras informações sistematizadas a respeito do comprometimento da nobreza
meridional com o catarismo. Guiraud notou uma “aliança ofensiva e defensiva” entre
ambos contra a hierarquia católica, seja no apoio material, seja na participação direta dos
nobres em cultos desenvolvidos nas partes “infectadas” pela heresia nas proximidades de
Toulouse, Castelnaudary, Montgiscard, Fanjeaux, Lavaur, Motier, Carcassonne, Mirepoix,
Don, Castelverdun, Carcassés, Cabaret e Laure. Em sua opinião, apesar do catarismo ter se
revestido de um caráter exclusivamente espiritual para muitos “perfeitos” ou “crentes”
nobres, a maioria deles tinha interesses pessoais nessas ligações, isto é, a rapina dos bens do
clero. Os hereges, insuflavam a nobreza com seus discursos, alimentando o
anticlericalismo. Como conseqüência, os bens eclesiásticos eram pilhados, os feudos
clericais acabavam sendo canalizados para a dependência laica com a subseqüente cobrança
de impostos e acumulação de rendas; além disso, os nobres recusavam a repassar certos
tributos devido à Igreja, como o dízimo.
Dois outros estudiosos levaram adiante as pesquisas de Guiraud, ampliando-as.
Charles Bru valeu-se dos dados deixados por ele para reconhecer as conseqüências e as
implicações da relação entre a nobreza Languedociana e o catarismo, tendo aí encontrado o
principal fator para o enraizamento profundo dos movimentos heterodoxos na região16.
Segundo Elié Griffe, os motivos do compromisso entre nobres e hereges devem ser
buscados na Reforma Gregoriana e na impermeabilização dos bens da Igreja à influência
dos laicos. A heresia infiltrou-se entre a pequena aristocracia dos castelos, dificultando a
sua identificação e extermínio.
A presença da heresia entre a nobreza castrense pode ser constatada desde 1145 nas
regiões de Verfeil e Saint-Pol, próximas de Toulouse. Subseqüentemente, o
anticlericalismo da nobreza do Lauragais, Laurac, Castelnaudary, Fanjeaux encontrava no
catarismo uma das suas formas de expressão. As conseqüências foram catastróficas.
15
John Hines MUNDY, “Noblesse et hérésie. Une famille cathare: les Maurand”. Annales ESC, 29-5, 1974,
pp. 1218-1220.
16
Charles P. BRU, “Elements pour une interprétation sociologique du catharisme occitan”. In: René NELLI
(Org). Spiritualité de l’hérésie: le catharisme. Paris/Toulouse: PUF/Éd. Privat, 1953, pp. 31-33.
11
17
Elié GRIFFE, Les débuts de l’aventure cathare en Languedoc. Paris: Letouzey et Ané, 1969, pp. 84-87.
18
Paul LABAL, Op. Cit., p. 144; Cf. ainda Etienne DELARUELLE, “Devotion populaire et hérésié au
Moyen Age”. In: Jacques LE GOFF (Org), Hérésies et sociétés dans l’Europe pré-industrielle, p. 153.
19
Julien HAVET, “L’hérésie et le bras seculier au Moyen Age jusqu’au treizième siècle. IV – Région du
Midi”. Bibliothèque de l’École des Chartes, XLI, 1880, pp. 580-583.
12
ataques e a toda a sorte de atrocidades20. Com o pontificado de Inocêncio III, ocorrido entre
1198 e 1216, a Igreja começou a pôr em prática medidas efetivas com o objetivo de
eliminar de vez as heresias. Inocêncio passou “da palavra aos atos” e essa mudança de
atitude veio a ter conseqüências profundas não somente para o conde de Toulouse, mas
para toda a Occitânia. No final do século XII a execução do negotium pacis et fidei foi
entregue aos monges cistercienses. Por meio da predicação junto ao povo e da pressão
sobre os condes, os monges procuraram eliminar aos poucos os “inimigos” alojados no
corpo da Cristandade21.
A ampla aceitação do catarismo nas terras do Languedoc era descrita em tom
bastante sombrio nos escritos dos sacerdotes da Igreja romana. A heresia aparece nesses
textos como um “câncer”, como um “tumor” no corpo da Cristandade. O monge trovador
Guilherme de Tudela inicia a composição de sua Chanson de la Croisade Albigeoise
afirmando que a “maldita” heresia dominava todo o território nas proximidades de Albi, de
Lauragais, de Bourdeaux e Béziers, onde pululavam “crentes”22. O cronista Pierre des Vaux
de Cernay mostrava-se mais enfático: “esses crentes se entregavam livremente ao roubo e à
usura, aos homicídios e aos prazeres da carne, ao perjúrio e a outras perversidades.
Pecavam com tal segurança e com tal frenesi porque acreditavam ter a salvação garantida
sem necessidade de confissão ou penitência, bastando-lhes recitar o “pater noster” e
receber de seus mestres a imposição das mãos”23. Aos homens de Deus, não restava
qualquer dúvida. Essa “gente desgarrada” deveria experimentar o “gládio” do Senhor!
A CRUZADA ALBIGENSE
20
H. GÉRAUD, “Les routiers au douzième siècle”. Bibliothèque de l’École des Chartes, tome 3, 1841, pp.
125-147.
21
Marie-Humbert VICAIRE, “L’affaire de paix et de foi du Midi de la France”. In: Paix de Dieu et Guerre
Sainte en Languedoc au XIII siécle (Cahiers de Fanjeaux nº 4). Toulouse: Édouard Privat, 1969, pp. 102-
127.
22
Canso, I, estr. 2, vv. 5-9.
13
alguns meses depois na prisão. Todas as terras de sua família foram atribuídas a Simão de
Montfort, conde de Leicester. Daí em diante, este nobre da região de Ile de France assumiu
a liderança militar do movimento, assediando cidades e fortalezas dos domínios
anteriormente pertencentes à família Trencavel.
Enquanto isso, Raimundo VI tentava em vão obter sua reconciliação no concílio de
Saint Gilles, em 1210, e no concílio de Montpellier, em 1211. Naquele mesmo ano
Toulouse foi sitiada pela primeira vez. No seguinte, o conde pediu apoio ao rei de Aragão,
Pedro, o Católico, de quem era cunhado. Contando também com a ajuda de importantes
senhores feudais occitanos, entre os quais Bernardo de Comminges e sobretudo o conde
Raimundo Rogério de Foix, ele jogou todas as cartas numa grande ofensiva armada no
princípio de 1213. A grande coligação de cavaleiros dos dois lados dos Pirineus foi contudo
derrotada pelas tropas de Simão de Montfort na Batalha de Muret, ocorrida em setembro de
121324. Toulouse foi então forçada a abrir suas portas ao novo senhor. Dois anos mais
tarde, Inocêncio III reconheceu os direitos de Simão de Montfort em todo o Languedoc por
ocasião do IV concílio de Latrão25.
Em 1216 Raimundo VI e seu filho, o futuro Raimundo VII, encontravam-se
exilados na Espanha enquanto Simão de Montfort e sua equipe de cavaleiros procuravam
manter sob controle as terras conquistadas. Foi então que, primeiro na cidade de Beaucaire,
e depois em Toulouse, as populações rebelaram-se contra os cavaleiros nortistas, abrindo
suas portas aos príncipes espoliados. Desgastado por tantos anos de conflito intermitente,
sem apoio regular de novos contingentes de guerreiros, Simão de Montfort tentou quebrar a
resistência meridional. Entre 1217 e 1218 manteve o longo cerco da cidade de Toulouse,
vindo a morrer por ocasião dos combates em 25/06/1218. Seu lugar passou a ser ocupado
pelo filho, Amauri de Montfort, mas pouco a pouco os domínios anteriormente vencidos
voltaram às mãos dos antigos senhores. Em 1224, Montfort renunciou aos seus direitos,
23
PVC, cap. 13, p. 7.
24
Charles HIGOUNET. “Les relations franco-iberiques au Moyen Age”. In: Les relations franco-espagnoles
jusqu’au XVII siècle. Bulletin Philologique et Historique du Comité des Travaux Historiques et
Scientifiques. Paris: Bibliothèque Nationale, 1972, pp. 9-10.
25
Michel ROQUEBERT, L’Épopée cathare. Toulouse: Édouard Privat, 1977. Tome II – 1213-1216: Muret
ou la dépossession.
14
transferindo-os para Luís VIII, o rei da França. Era o fim da “Cruzada baronial” e o início
da “Cruzada real”26.
A atuação direta do rei na “questão albigense” aconteceu em 1226, e limitou-se ao
assédio e submissão da cidade de Avignon. A derrota daquela grande cidade, associada
com o prestígio da monarquia, levou a uma torrente de submissões. O monarca faleceu
naquele mesmo ano quando retornava a Paris, mas teve tempo de designar homens de sua
confiança para administrar as regiões que lhe pertenciam. A Cruzada Albigense terminou
oficialmente em 12/04/1229, quando os representantes da Igreja e de Luís IX (São Luís)
estabeleceram em Paris um tratado de paz com Raimundo VII. A partir da assinatura do
tratado, os direitos da realeza foram assegurados e a ingerência dos representantes da
monarquia na administração local aumentaram paulatinamente.
Pelo Tratado de Paris, a Raimundo VII ficavam garantidas as terras do condado de
Toulouse, do Agenais, do Rouerge e do Quercy, mas, em contrapartida, o mesmo
comprometeu-se a combater a heresia, contribuir para a fundação de uma Universidade e
prestar o apoio inicial aos tribunais de Inquisição instalados em todo o Languedoc. O antigo
viscondado de Béziers e Carcassonne, assim como toda a parte oriental da Occitânia
doravante pertenciam aos territórios capetíngios. A cláusula mais funesta era a que previa o
casamento de sua filha de nove anos, Joana, com o irmão mais novo do rei, Alfonso de
Poitiers. Caso não tivesse sucessores do sexo masculino, suas posses seriam herdadas pelo
casal e se esses, por sua vez, não deixassem descendentes, elas passariam diretamente para
a coroa. Foi o que efetivamente aconteceu: o último conde de Toulouse faleceu sem deixar
filhos varões, sendo sucedido por Joana e Alfonso; ambos vieram a falecer em 1270,
também sem deixar filhos. Pouco tempo depois, os representantes do rei Filipe, o Ousado,
tomavam posse oficial do que ainda lhes escapava do Languedoc27.
Nos últimos anos da tumultuada vida de Raimundo VII o derradeiro conde de
Toulouse passou por uma série de dificuldades mas manteve o empenho de recuperar o
prestígio de sua linhagem. Recorreu em vão ao papa Inocêncio IV e a São Luís na
esperança de reabilitar a memória do pai excomungado e enterrá-lo em solo consagrado.
26
Monique ZERNER-CHARDAVOINE, La Croisade des Albigeois. Paris: Gallimard, 1979; Maria
Henriqueta FONSECA, “O catarismo e a Cruzada contra os Albigenses”. Revista de História (USP),
volume VIII nº 17-18, 1954, pp. 79-117.
27
Paul LABAL. Los cátaros: herejia y crisis social. Barcelona: Editorial Crítica, 1984.
15
Viúvo, esforçou-se por arranjar um casamento e ter afinal um filho que pudesse sucedê-lo.
As tratativas para o enlace com Beatriz, filha mais jovem do conde Raimundo Berengário
de Provença não deram resultados satisfatórios. O futuro sogro morreu em 1245 e a
pretendida foi entregue pelos tutores a Carlos de Anjou, outro irmão do rei!
Pretendia prestar voto de cruzado e seguir São Luís até o Oriente, mas foi acometido
pela doença. Morreu em 27 de setembro de 1249, com 52 anos de idade. Seu corpo foi
embalsamado e transportado por Albi, Gaillac e Rabastens através do rio Ródano, até
chegar em Toulouse, para ser sepultado no convento da Ordem de Fontevrault. O cronista
Guilherme de Puylaurens deixou-nos um vivo testemunho da emoção com a qual a
população despediu-se daquele que, durante tantos anos, sintetizara as aspirações da
nobreza languedociana:
capetos. Embora entre 1230 e 1240 diversos nobres meridionais despossuídos durante os
conflitos tenham atacado fortalezas e cidades, exigindo esforços permanentes dos oficiais
da coroa, eles foram esmagados um a um. A última grande rebelião, liderada por Raimundo
Trencavel na cidade de Carcassonne, foi duramente sufocada. Quatro anos depois, em
1244, um importante contingente de adeptos e simpatizantes do catarismo situado na
fortaleza de Montségur teve de se submeter após longo assédio e os “perfeitos” ali
encontrados arderam na fogueira29. Era o último episódio da “resistência cátara”.
A atuação eficiente dos inquisidores do século XIII, por sua vez, colocou os
ministros cátaros na defensiva. As inquirições, julgamentos e sentenças desarticularam a
malha de solidariedade na qual os heterodoxos se apoiavam. Por volta de 1240 o catarismo
sobrevivia na clandestinidade30. Muitos de seus participantes procuraram refúgio em outras
terras, na Catalunha e principalmente na Itália. Aqueles que permaneceram no Languedoc
foram aos poucos sendo identificados, presos, julgados e condenados à fogueira. Ao final
do século XIII, os derradeiros ministros cátaros atuantes escondiam-se nos confins do
condado de Foix, nas proximidades dos Pirineus31. Quando em 1309 o último ministro
cátaro, Pierre Autier, foi aprisionado e submetido aos inquisidores Bernard Gui e Geoffrey
d’Abblis, o catarismo chegou ao seu fim!
Esperamos que essas breves menções tenham sido suficientes para situar o
problema em seu aspecto cronológico. Heresia e cruzada, como vimos, desencadearam
movimentos sociais de grande proporção, dando origem a um dos conflitos militares mais
violentos da Idade Média, a manifestações de intolerância religiosa até então
28
Chronica magistri Guillelmi de Podio Laurentii. Editée, traduite et anoté par Jean DUVERNOY. Paris:
Éditions du CNRS, 1976, capítulo XLVI, p. 186. Doravante, o documento será mencionado em citação de
acordo com as iniciais do autor: GP.
29
Zoé OLDENBOURG, Le bucher de Montségur. Paris: Gallimard, 1959.
30
Aspecto recentemente abordado por Linda Joenne Carvalho Granjense de Lima SARAIVA, “Laços de
sangue, laços de fé. Relações familiares e solidariedade no catarismo do século XIII”. Dissertação de
Mestrado no PPG em História – UnB, 1998.
31
Anette PALES-GOBILLIARD, “Le catharisme dans le comté de Foix des origenes au début du XIV
siècle”. Revue de l’Histoire des Religions, tome CLIX-2, 1976, pp. 192-196.
17
32
Edgard BOUTARIC, “La Guerre des Albigeois et Alphonse de Poitiers”. Revue des Questions Historiques,
tome 2, 1867, p. 155; Pierre BELPERRON, La Croisade Contre les Albigeois et l’union du Languedoc à la
France. Paris: Librairie Plon, 1942, p. 447; Arno BORST, Les cathares. Paris: Payot, 1974, p. 102.
33
Achille LUCHAIRE. Inocent III. La Croisade des Albigeois. Paris: Hachette, 1906, pp. 1-113; Pierre
BELPERRON, Op.cit., pp. 61-140; Jonathan SUMPTION. The albigensian Crusade. London; Faber &
Faber, 1978, pp. 32-76.
18
orientação. Na descrição dos fatos, os escritores não contrapõem católicos a cátaros, mas
“franceses” (frances) ou “estrangeiros” (gen estranha) a occitanos, chamados de “os
nossos” (nos). Simão de Montfort é designado de senhor legal, postiço (apostitz), e
Raimundo VI, como senhor legítimo da terra, da eretat, da lengatge. A resistência contra a
Cruzada encontrou bases de sustentação nessa legitimidade, como também em tudo o que
tal legitimidade representava, isto é, os costumes, a organização política, administrativa e
judiciária próprias, enfim, o modus vivendi específico dos que se mantinham sob o governo
dos príncipes prejudicados.
O reenquadramento dos integrantes da nobreza meridional à sociedade não
constituiu um retorno à sua situação anterior. A reintegração se deu dentro de condições
novas e radicalmente diferentes, mediante submissão à coroa. É nesse processo de
centripedação dos poderes sob a égide da monarquia feudal e sob a égide do papado que o
faiditismo se insere. Em linhas gerais, diríamos que é esse o seu lugar na história da
sociedade européia. Em que pese as especificidades históricas regionais, as particularidades
na constituição do feudalismo occitano e as implicações religiosas do catarismo, os fatos
aqui retratados enquadram-se no amplo processo de domesticação da nobreza no decurso
dos séculos XII e XIII.
...