Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº
0009885-34.2012.8.26.0223, da Comarca de Guarujá, em que são apelantes MARIA ANTONIETA DE BRITO e PREFEITURA MUNICIPAL DE GUARUJÁ, é apelado PAULO CESAR CLEMENTE.
ACORDAM, em 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de
Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Por maioria, deram provimento em parte ao apelo da ré Maria Antonieta de Brito. Vencido o relator sorteado que continuará com a relatoria, consignando a divergência, e, por unanimidade, deram provimento em parte ao recurso do Município.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos.
Desembargadores JOÃO CARLOS GARCIA (Presidente), CRISTINA COTROFE E JARBAS GOMES.
São Paulo, 10 de setembro de 2014
João Carlos Garcia
PRESIDENTE E RELATOR Assinatura Eletrônica PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
VOTO
EMENTA - AÇÃO POPULAR - LICITAÇÃO - EXIGIBILIDADE
- Contratação de artista por intermédio de empresa com carta de exclusividade - Pretensão de reconhecimento de “exclusividade fabricada” - Ocorrência - Ausência de contratação diretamente com o artista - Cartas de exclusividade irregulares que se mostram insuficientes para a contratação - Contrato nulo - Dolo e dano ao erário configurados - Não reconhecimento da litigância de má-fé por parte do autor da ação popular – Provimento, em parte, do apelo da ré, para excluir do da restituição reparadora o valor dos cachês efetivamente pagos aos artistas, apurado em liquidação - Apelo do Município provido, em parte, para dele afastar o pagamento de custas e despesas de que está isento – Encargos de sucumbência, incluindo verba honorária fixada na sentença, repartidos na proporção de dois terços para os réus e um terço para o autor. Apelos em parte providos.
1. Trata-se de ação popular ajuizada por PAULO
CESAR CLEMENTE contra MARIA ANTONIETA DE BRITO, STYLLUS CARD COMUNICAÇÕES LTDA ME. e MUNICÍPIO DO GUARUJÁ, objetivando a declaração de nulidade, ilegalidade e invalidade da contratação da empresa ré por não ter sido precedida de regular licitação.
Consta na inicial que a MUNICIPALIDADE DO
GUARUJÁ, através da sua Prefeita MARIA ANTONIETA DE BRITO, para a realização do evento “Shows Musicais de Festejos Juninos 2012”, contratou de maneira direta a empresa ré, detentora de cartas de exclusividade dos artistas escolhidos para se apresentarem. Diz o
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autor que tal exclusividade foi fabricada para afastar a necessidade
de realização de licitação prévia e beneficiar a empresa requerida, causando dano ao erário público (fls. 02/08).
A tutela antecipada foi deferida (fls. 55/57), mas
posteriormente revogada por decisão que concedeu efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento nº 0130664-08.2012.8.26.0000 (fls. 71/73).
Às contestações (fls. 85/101, 302/312 e 319/339) e
réplica (fls. 353/356), sobreveio sentença de procedência do pedido inicial, reconhecendo a nulidade do contrato e condenando as rés, solidariamente, à devolução do valor de R$ 350.000,00 (fls. 368/375).
Inconformados com a decisão, MARIA ANTONIETA
DE BRITO e a MUNICIPALIDADE DO GUARUJÁ apelam insistindo na legalidade da contratação e na ausência de dano ao erário público. Pretende, ainda, a prefeita, a condenação do autor à litigância de má-fé, enquanto que a MUNICIPALIDADE requer, no caso de mantida a sentença, a redução dos honorários advocatícios e sua exclusão do pagamento dos ônus sucumbenciais (fls. 382/413 e 418/432).
Contrarrazões (fl. 438/442 e 445/448) e parecer, pelo
desprovimento, da Egrégia Procuradoria de Justiça (fls. 450/457 e 462/469).
É o relatório.
2. Inicialmente, analisam-se os pedidos formulados
por MARIA ANTONIETA DE BRITO, concernentes ao diferimento do
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preparo e à concessão da assistência judiciária, acolhendo-se o
primeiro e rejeitando o segundo.
Com efeito, a lei de regência da ação popular (LEI
4.717/65, art. 10), prevê a possibilidade das partes adiarem para o final da ação o pagamento das custas e preparo, sem distinção quanto á posição que figuram na relação processual, nos termos da regência estadual da chamada taxa judiciária, (LEI ESTADUAL 11.608/03, art. 2º, §6º), que assim dispõe: “na ação popular, a taxa será paga ao final”.
O mesmo não ocorre com a gratuidade postulada,
certo de que os serviços judiciários não são gratuitos, senão quando os seus usuários comprovem insuficiência de recursos para provê-los, sem comprometimento da subsistência própria ou da família (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, artigo 5º, LXXIV).
Essa é a interpretação que se perfilha da LEI
1.060/50, em conformidade com os postulados jurídicos da tutela jurisdicional, conferidas pelo livre convencimento judicial. Por essa razão, a alegação isolada de insuficiência de recursos configura presunção simples, carente de comprovação, pena de indevida oneração do Estado com a graciosidade indiscriminada em prejuízo dos que efetivamente dela são os seus destinatários.
No mais, embora alegada, a sua comprovação
não veio para os autos conjuntamente com o recurso interposto, de modo que o pleito assistencial não pode ser concedido.
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irregularidades praticadas pela Prefeita Municipal do Guarujá,
MARIA ANTONIETA DE BRITO, no contexto de festividade municipal, conhecida por “Shows Musicais de Festejos Juninos 2012”, consistente em indevida inexigibilidade de licitação na contratação de STYLLUS CARD COMUNICAÇÕES LTDA ME., com dano ao erário.
A sentença afastou a dispensa de licitação ao bom
argumento da inconsistência da prova de exclusividade de promoção dos artistas apresentada pela empresa corré e constante de procedimento administrativo (fls. 120, 125, 135, 137, 139, 146, 148, 151, 155, 176, 180, 182, 190 e 193), entendendo ser, na realidade, simples promotora do evento, com programação ostentada em data anterior à das cartas de exclusividade, além de não ostentar a natureza de empresário exclusivo, cuja contratação a Lei de Licitações confere a possibilidade de dispensa do certame.
Com efeito, sobre a dispensa de licitação, dispõe o
ordenamento de regência (LEI 8.666/93, art. 25, inciso III):
Artigo 25: É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de
competição, em especial:
...
III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico,
diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
A controvérsia dos autos reside em saber se STYLLUS
CARD COMUNICAÇÕES LTDA ME. enquadra-se, ou não, no conceito de empresário exclusivo de artista e se, as cartas por ela apresentadas e juntadas, foram ou são suficientes para permitir sua contratação direta.
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O Procedimento Administrativo 017225/2012 foi
instaurado com o encaminhamento da programação das festividades elaborada pela empresa ré, datada de 21 de maio de 2012 (fls. 108/110). Ao que se verifica das cartas juntadas, na referida data, a empresa não detinha ainda nenhuma exclusividade, o que somente veio a obtê-la posteriormente, robustecendo a conclusão da sentença de que a dicção “empresário exclusivo” não passou de expediente para fraudar a lei de certames administrativos.
Além disso, os documentos por ela juntados, à guisa
de tal comprovação, são de extrema fragilidade probatória, na exata medida em que sequer contêm declaração firmada pelos artistas dos quais se autoproclama empresária exclusiva, senão de um suposto representante a conceder tal exclusividade para a data do evento.
Ao que se vê não é a STYLLUS CARD que gerencia
ou cuida dos contratos do profissional do setor artístico, senão que age como intermediária, promovendo eventos, conclusão que se reforça à vista de seus objetivos sociais, de realização de exposições, feiras, convenções e shows, entre os quais não incluindo o de representação de artistas (fls. 111/116).
É de boa exegese interpretar restritivamente norma
que introduz tratamento excepcional, de modo que o abrandamento do rigor das licitações para contratação de profissionais do setor artístico (LEI 8.666/93, art. 25, III) não se se estende às empresas promotoras de eventos culturais ou de lazer.
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apresentadas não atendem, nem minimamente, ao exigido por lei,
pois estão desacompanhadas de prova de representação do artista e até mesmo do valor do cachê artístico negociado (fls. 120/193); aliás, em relação ao cantor Felipe Strepavava, não se tem prova da existência da questionada exclusividade, a não ser mera declaração sequer direcionada à corré STYLLUS CARD (fls. 153).
Em resumo, não atendidos os requisitos legais, tem-
se por indevida a dispensa de licitação, sendo a contratação ilegal e o contrato administrativo nulo.
O dolo, entendido como vontade consciente de
praticar o ato imputado na inicial, transparece na conduta da aludida empresa, através do expediente para simular exclusividade empresarial de artistas com o escopo de justificar a dispensa de licitação, e do agente público pela aceitação, sem qualquer questionamento, dos documentos do questionado agenciamento artístico, malgrado as aparentes irregularidades.
Como ao ordenador da despesa cabe zelar pela
regularidade da contratação e consecução do interesse público, pelos atos ilegais e ofensivos aos princípios da Administração Pública ele responde. No caso, a então prefeita MARIA ANTONIETA DE BRITO, que não logrou comprovar a responsabilização de outra pessoa, nem demonstrar por que ela poderia se isentar da responsabilidade pela gestão da verba pública de maneira negligente e temerária, configurada na ausência de interesse público na contratação, dispensa indevida da licitação e contratação direta com empresa que apresentou “cartas de exclusividade” fabricadas e irregulares,
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deve responder.
Ao contrário, contra ela pesa o fato de já ter sido
processada pelo Ministério Público, por conta de igual procedimento, concernente à festividade do ano anterior, como faz prova a cópia da inicial da referida ação (fls. 20/34).
Demais disso, o procedimento administrativo para
dispensa de licitação baseia-se em parecer de servidora municipal, Diretora Jurídica de Licitações (fls. 198/207), sem nenhum dado concreto para a sua análise e conclusão, sequer, do prestígio dos artistas ou de enquete para apurar eventual escolha pleito dos munícipes, a não ser informação prestada graciosamente por outro servidor municipal, Averaldo Menezes de Almeida, qualificado como Coordenador da UPP (fl. 210), com base, ao que tudo indica, em oferta precedentemente feita pela empresa corré, dispondo, antes de sua escolha, sobre a programação a se realizar (fls. 108/110).
Embora os apelantes aleguem não ter ocorrido
superfaturamento na contratação e que o serviço foi prestado, está configurado o prejuízo ao erário.
Deveras, apesar de inexistir informação quanto ao
cachê cobrado por cada um dos artistas para a realização dos shows contratados pelo MUNICÍPIO, considerando os valores presentes nos documentos que acompanharam as cartas de exclusividade (fls. 121/124, 126/133, 136, 138, 140/145, 147, 149/150, 152, 154, 156/161, 163/172, 174/175, 177/179, 181, 183/189 e 191/192) e o preço pago à contratada STYLLUS CARD (fls. 108/110), tem-se que ao menos para as apresentações na 1ª Semana na Praça
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Possidônio, dos artistas Felipe Strepavava, Cantos Ricardinho e Algo
Mais, foi cobrado o valor de R$ 30.000,00, quando a soma dos cachês resultaria em R$ 15.000,00.
O que se percebe é que o MUNICÍPIO, mesmo sem
saber o valor pago a cada artista, visto que tal informação não está presente no contrato firmado, dispensou a licitação e contratou diretamente a empresa ré, sem ao menos saber se o valor pago era de fato justo.
Deste modo, indiscutível que a contratação direta
dos artistas seria mais vantajosa e a um preço menor, pois não haveria a necessidade de pagar pela intermediação “realizada” pela empresa ré.
Demais disso, como anotado na lição doutrinária
transcrita na sentença, de Lúcia Valle Figueiredo e Sérgio Ferraz (fls. 373/374), o prejuízo ao erário decorre de pagamento feito a contratante de contrato radicalmente nulo, não se incorrendo no risco de locupletamento ilícito, porque aqueles que tiverem prestado serviço de boa-fé serão indenizados, com a vantagem, de resto, do restabelecimento do prestígio dos princípios moralizadores da Administração Pública.
Como não há provas concretas do quanto foi pago
a maior, e sendo o contrato administrativo nulo, correta a condenação ao ressarcimento integral do valor pago.
Necessária, porém, ressalva quanto à condenação
do MUNICÍPIO DE GUARUJÁ que deve ficar isento do reembolso do valor do contrato, afinal, é o destinatário direto do mesmo,
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persistindo, no entanto, as demais condenações ao pagamento das
custas e despesas processuais, bem como dos honorários advocatícios.
Também não comporta acolhimento o pleito do
MUNICÍPIO de redução equitativa da verba honorária.
O arbitramento deve considerar os trabalhos
desenvolvidos, o tempo despendido e a complexidade da causa.
A sentença, observando tais critérios, bem dosou os
honorários em 10% sobre o valor da condenação, montante que deve prevalecer.
Por fim, não merece acolhimento a alegada
litigância de má-fé do apelado.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (art. 5º, LXXIII), permite o
ajuizamento da ação popular contra ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
A alegação de revanchismo político do autor não
interfere com o interesse processual, nem com a legitimidade para a defesa da sociedade na condição de cidadão, pois a motivação pessoal do autor popular não exclui o cabimento da ação pelos seus pressupostos objetivos.