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O palco como escritório: aprender a ser empreendedor na Vertente da Canção

Estudantil de Santana do Livramento-RS

Gaucho nativist culture seen as a resource: identity and entrepreneurship in Vertente


da Canção Estudantil music festival
Edilacir dos Santos Larruscain1
Luis Fernando Lazzarin2
RESUMO
Este artigo analisa a Vertente da Canção Nativista Estudantil, festival que reúne, desde 2002, na Escola
Estadual Liberato Salzano Vieira da Cunha, centenas de estudantes das redes do Ensino Básico e
Superior de Santana do Livramento e de cidades vizinhas, na região da fronteira entre Rio Grande do Sul
e Uruguai. A Vertente é considerada, neste estudo, sob a abordagem dos Estudos Culturais em
Educação, como um dispositivo pedagógico, no qual são produzidos modos de ser e de viver. Estes são
alinhados a determinados padrões ditados pela sociedade contemporânea, baseado no movimento global
de produção e consumo de bens culturais. Nesta relação social e mercadológica da cultura, são
negociadas e produzidas as identidades culturais. As estratégias metodológicas consistiram em
acompanhar, ouvir e interpretar as práticas e narrativas de alunos e professores durante a organização do
evento, nas oficinas de música e no palco, onde a cultura é colocada em cena. O principal propósito da
Escola em valorizar a cultura regional é o de oferecer formação empreendedora para os alunos
concluintes do Ensino Médio. Neste plano, a Escola e seu currículo procuram manter a postura do uso da
cultura como um recurso gerenciável. O estudo mostra a circularidade dos sentidos da arte – nesse caso,
a música – trabalhando para articular diferentes modos de produzir o conhecimento, criando um campo
gerador de saberes e comportamentos cada vez mais importantes na produção de subjetividades
discentes. Sobremaneira, deve ser apropriada como uma atividade epistemológica interdisciplinar
completa e extremamente necessária na formatação dos currículos contemporâneos.
Palavras-chave: Educação, Identidade Cultural, Nativismo, Empreendedorismo

ABSTRACT
This paper analyzes the music festival known as Vertente da Canção Nativista Estudantil (Student Nativist
Music Festival), which has been held at Liberato Salzano Vieira da Cunha State School since 2002. The
festival gathers hundreds of basic school and university students from the city of Santana do Livramento
and nearby towns in the frontier region between the state of Rio Grande do Sul and Uruguay. The Festival
is here considered as a pedagogic cultural place (in Cultural Studies approach) in which ways of being and
living are produced. These are aligned with certain standards dictated by contemporary society, based on
the global movement of production and consumption of cultural goods. In such social and market relation
of culture, cultural identities are negotiated and produced. The methodological strategies were set in
follow, listen and interpret the narratives and practices of students and teachers during the event's
organization, music workshops and music on stage, where culture is put into play. By valuing regional
culture, the major purpose of Liberato Salzano Vieira da Cunha State School is to provide entrepreneurial
training to senior high school students. Both the school and its curriculum attempt to keep the posture of
using culture as a manageable resource. The study presents the circularity of the senses of art - in this
case, music - working to articulate different ways of producing knowledge, creating a generator field of
knowledge and behaviors increasingly important in the production of students subjectivities. Greatly, the
study showed that this is suitable as a complete and extremely necessary interdisciplinary epistemological
activity in shaping contemporary curriculum.

Key Words: Education, Cultural Identity, Nativism, Entrepreneurship

1
Mestre em Educação. Professor na Universidade da Região da Campanha – Urcamp – campus de Santana do Livramento
– Colégio da Urcamp e Ciências Jurídicas – Direito. edilacir@hotmail.com
2
Doutor em Educação. Professor Adjunto na Universidade Federal de Santa Maria – Ufsm – Centro de Educação,
Departamento de Administração Escolar. lazza@hotmail.com
INTRODUÇÃO
A pesquisa apresentada neste artigo tem como materialidade a Vertente da Canção
Nativista Estudantil, festival de música que reúne, desde 2002, na Escola Estadual Liberato
Salzano Vieira da Cunha, centenas de estudantes das redes do Ensino Básico e Superior de
Santana do Livramento e de cidades vizinhas, na região da fronteira entre Rio Grande do Sul
e Uruguai.
O evento nasceu da iniciativa de uma professora que lecionava a disciplina de
Gestão nas turmas de terceiro ano do Ensino Médio da Escola. Segundo ela, havia a
preocupação pessoal de que os alunos desenvolvessem habilidades para o mundo do
trabalho e, de igual maneira, contribuíssem para o desenvolvimento econômico e social do
entorno da cidade. O empenho da Escola em construir um projeto deste alcance
sociocultural aconteceu, segundo a professora, porque a maioria dos alunos não sabia o que
fazer ao concluir o Ensino Médio. A Escola, segundo descreve, “precisa perceber o que os
alunos querem pra vida e ser um ponto de partida para o desenvolvimento regional”. Para a
professora-coordenadora, o principal objetivo é de “através da música nativa, valorizar a
cultura gaúcha proporcionando um momento de beleza artística com alto teor pedagógico”. A
Vertente da Canção obteve, no ano de 2002, o 12º lugar no Concurso Nacional Práticas
Pedagógicas no Ensino Médio, promovido pelo SEBRAE.
A estrutura montada para a Vertente é semelhante a dos festivais profissionais
nativistas que ocorrem no Rio Grande do Sul, ou seja, uma competição musical em que os
concorrentes disputam premiação e são julgados por um júri de especialistas. A organização
do Festival está a cargo de uma comissão composta por alunos e professores e os
concorrentes ao prêmio são, em sua maioria, preparados em oficinas de música
extraescolares da Cidade. Contudo, os coordenadores do festival consideram que a Vertente
se configura, até o momento, singular no gênero, pois não é restrito a um festival estudantil
de intérpretes, mas também de compositores e instrumentistas.

MATERIAL E MÉTODOS

Pesquisadores vertenteanos
A análise de um evento como um festival de música nas proporções da Vertente
se apresentou diante de algumas dúvidas: como dar conta da pesquisa em um evento que
acontece em apenas três dias? Como acompanhar a simultaneidade da produção dos
músicos e da organização do festival? Os trabalhos de pesquisa disponíveis sobre festivais
nativistas já mostravam o pesquisador assentado no campo por um período maior do que os
dias do evento e procurando dar conta de acontecimentos concorrentes, como os trabalhos
de Lucas (1990) e Marcon (2009).
Acompanhamos o cotidiano de alunos e professores envolvidos no festival, na 5ª
e na 6ª edições, durante os anos de 2010 e 2011, junto à escola auxiliando a comissão
organizadora e convivendo em ensaios das oficinas de música. Nesta caminhada foram
utilizados a observação com diários de campo e pequenos roteiros semiestruturados de
entrevista.
Em pesquisa dificilmente vamos encontrar prescrições metodológicas definitivas. O
que há são caminhos investigativos, que colocam em movimento um processo
metodológico, a ser definido pelo próprio desenrolar da pesquisa. Assim,

nenhuma metodologia é a “sua”; assim como nenhuma pode ser privilegiada e


empregada com garantias sobre como responder às questões de dados contextos (e,
também por isso, nenhuma metodologia pode ser descartada antecipadamente); da
mesma maneira como nenhuma traz a confiança de se obterem boas respostas
(CORAZZA, 2007. p. 119).

Essa abertura e ampliação das possibilidades metodológicas não devem ser


interpretadas como falta de rigor ou de sistematicidade científica. Lidar com a experiência
humana – eminentemente histórica – aumenta nossa preocupação e nosso compromisso
com as análises de fenômenos que não podem ser reproduzidos e controlados no mesmo
sentido da experiência de laboratório – padrão de validação da verdade para as Ciências
Experimentais que se estendeu para o conjunto das ciências. Estamos atentos a essa
problemática, que afeta a pesquisa qualitativa e vem sendo objeto de disputa ao longo da
história da ciência.
O trabalho de pesquisa implica na capacidade de deixar-se contagiar pelos fluxos de
circulação de significados, participar, interagir, questionar, vivenciar as mesmas atividades
que os alunos e professores. Pressupõe também exercer a capacidade de ser observado e
julgado pelos outros. Essas práticas, porém, deixavam uma inquietação: será que esta
aproximação não vai causar prejuízos à pesquisa? Até onde posso intervir? Em que devo e
em que não devo participar? Mas, aos poucos, percebeu-se que a presença, as palavras, o
trabalho, também faziam parte da pesquisa.
No projeto inicial estavam descritos dois instrumentos básicos: o diário de campo e a
entrevista semiestruturada. Eles foram ferramentas importantes de organização e produção
das narrativas dos sujeitos envolvidos. Assim, durante as noites de festival “pegamos
carona” com entrevistadores de uma rádio local e passamos a registrar as expectativas dos
jovens músicos junto ao palco, antes e depois das apresentações. Também ouvimos
pessoas da plateia em pequenas “charlas” (conversas na roda de chimarrão) sobre as
apresentações e as transcrevemos paralelas aos depoimentos dos músicos durante o
evento. Do mesmo modo, nas agitadas noites do festival, colhemos depoimentos de alunos
nas comissões (de palco, de credenciamento, de jurados, de recepção, de coordenação,
entre outras) sobre o trabalho no evento. Neste texto, contudo, dadas as limitações,
apresentamos de maneira resumida uma pequena parte dos resultados das análises
empreendidas, mas que apresenta um panorama claro do uso da cultura como recurso
pedagógico.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Gauchismo, tradicionalismo e nativismo
O “Gauchismo” é heterogêneo. Ele se constitui tanto por aqueles que se intitulam
nativistas - e que tentam manter-se independentes em relação do tradicionalismo - quanto
pelos que pertencem ao Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) - a parte organizada e
que impõe sua perspectiva de um gaúcho oficial e legítimo como hegemônica. Mas o
gauchismo também se constitui por “todas as manifestações, estruturadas ou não, que
operam com um processo identitário relacionado ao Rio Grande do Sul e ao gaúcho.
(MACIEL, 2000, p. 135). O Gauchismo, a partir de elementos tradicionais, efetua uma
atualização do passado que “pretende a autenticidade - preservação do passado, mas
implica em criação e recriação. Implica, de fato, em permanente transformação onde,cada
vez mais, surgem novas formas, novas práticas e novos sentidos (MACIEL, 2005, p. 452).
Ou seja, o que chamamos costumeiramente de tradição sobrevive como tal pelo fato de que
está a todo momento sofrendo interferências, sendo negociado, mudando.
Tanto quanto no tradicionalismo, no nativismo reelabora-se e ressignifica-se,
constantemente e de formas específicas em cada um deles, o mito original “baseado no
estereótipo do cavaleiro e peão de estância da região da campanha, no noroeste do Rio
Grande do Sul, região em que se iniciou a colonização do Estado” (OLIVEN, 2010, p 15).
Conserva-se também um ideal de vida campeira, da lida do campo, mantém-se certas
características essenciais, mas apropriam-se outras qualidades e comportamentos
“modernizantes”. Entendemos que os modos de ser “verdadeiramente gaúcho” variam de
acordo com quem os enuncia, muito embora o retorno ao mito do gaúcho herói e “centauro
dos pampas” esteja sempre presente.
O Movimento Nativista desencadeado pelos festivais tornou-se um fenômeno social
mais amplo do que o musical, expandindo-se para os âmbitos do consumo e dos costumes.
A classe média gaúcha é mobilizada, seja no palco ou na plateia, em direção à uma
mudança de comportamento em relação às “coisas do Rio Grande”. Hábitos anteriormente
tidos como “grossura” (como usar bombacha, beber chimarrão e utilizar o vocabulário
gauchesco, incluindo o famoso tchê) passaram a ser admirados e adotados (MILLARCH
APUD SANTI, 2004).

A Califórnia da Canção Nativa, criado em 1971 na cidade de Uruguaiana-RS foi o


primeiro festival Nativista. Contrário à rigidez e ao forte disciplinamento e sem um centro de
poder e regulação, o Nativismo encontra nos festivais de música o espaço de inovação que
buscava. Artistas, poetas, jornalistas, entre outros sujeitos urbanos propunham, apesar de
cultivarem o apego aos temas do meio rural e uma pretensa “autenticidade” regional, uma
maior “liberdade” de expressão, opondo-se ao sistema disciplinar e prescritivo do Movimento
Tradicionalista Gaúcho (MTG).
Oliven (1992) atribui o sucesso dos festivais a um clima de oposição cultural ao
caráter essencializante do MTG, no sentido de que o Nativismo viabilizou e canalizou o
desejo de liberdade na busca desta ‘identidade gaúcha perdida’. O autor também aponta
estes eventos como uma atitude, não mais em termos de um separatismo - como a tradição
farroupilha - mas enquanto forma e expressão de distinção cultural frente à homogeneização
cultural promovida pela mídia a partir de padrões oriundos das grandes metrópoles
brasileiras.
Jacks (2003) lembra que há muitos pontos polêmicos quando se debate a cultura
regional do Rio Grande do Sul. Entre os aspectos mais relevantes estão as variações de
vestuário típico, a mistura de ritmos e temas gauchescos com outros gêneros musicais. Para
a pesquisadora há ainda fortes pendências que aumentam a oposição dos movimentos
gauchescos: a paternidade da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, o
reconhecimento da participação do movimento Tradicionalista na criação do Nativismo,
assim como a contestação do Tradicionalismo em relação à própria legitimidade do
Nativismo como instância autônoma do primeiro.
Ainda segundo Jacks (2003), tanto o Tradicionalismo quanto o Nativismo surgem
apoiados pela indústria cultural no Rio Grande do Sul (literatura, mídia, entidades...),
buscando um diferencial de consumo. Para a autora, a indústria cultural, baseada nos usos
e costumes do gaúcho, aos poucos, nas últimas décadas do século XX, foi pressionada
pelos acontecimentos vindos do interior a entrar no projeto cultural ligado às raízes
campeiras. A autora adverte para os interesses mercadológicos de identificação com um
grande segmento do público.
Hoje há um mercado de trabalho estabelecido pelos festivais que produz um efetivo
de profissionais especializados: instrumentistas, cantores, letristas, imprensa, empresas de
sonorização, por exemplo. Inúmeros eventos do gênero foram criados em várias cidades no
Rio Grande do Sul: Musicanto, em Santa Rosa; Tertúlia, em Santa Maria, Coxilha Nativista,
em Cruz Alta, Seara, em Carazinho, Vigília, em Cachoeira do Sul, Círio, em Pelotas, Tafona,
em Osório. Como consequência da ampliação desse mercado observa-se um significativo
crescimento de espaços destinados à produção e circulação da música Nativista através de
gravadoras e produtoras especializadas, programas de rádio e televisão, Centros de
Tradição Gaúcha, projetos culturais, e até mesmo em eventos dentro de escolas (como é o
caso da Vertente) e universidades.

A poética do campeiro

Abordamos a Vertente da Canção Nativa como um dispositivo pedagógico que,


através do recurso do Nativismo, ensina um modo específico de ser empreendedor. Isso
pode ser observado através de três declarações de diferentes participantes do Festival, que
fazem referência ao modo de vida campeiro. O campeiro da Vertente celebra o culto ao
gaúcho mítico e ao modo de vida rural: o trabalho de peões e capatazes, a lida com o gado, a
doma, a plantação, o tropeirismo. Neste contexto, ser campeiro está vinculado com certas
características de um gaúcho autêntico.

Ser campeiro para mim é se identificar com a natureza... se eu não estivesse aqui eu
juro que queria ser peão, eu não queria estar aqui dentro destas pedras... eu preferia
estar no meio das árvores, trabalhando com os bicho em campanha,entocado... o
campeiro é aquele que vivencia os valores do campo, da natureza, de Deus, pode ser
só na saudade do campo, que já dá uma paz de espírito, a vontade de estar no
campo, mesmo aqui no meio destas construções. (18/08/2011)

O termo campeiro é comumente usado para designar um tipo de sujeito seja ele
urbano ou interiorano, que cultiva hábitos e valores narrados como “originais” do Estado
(tomar chimarrão, comer churrasco, vestir a pilcha, usar o vocabulário rio-grandense, andar
a cavalo, frequentar fandangos e rodeios, respeitar aos outros e às instituições, entre outros)
e ouvir, tocar, cantar e dançar o cancioneiro aceito como nativo do Estado. A preferência dos
artistas Nativistas pelos temas “campeiros” remete, ao que podemos deduzir, à busca por
uma “essência”, “raiz” ou “origem” que determine um modelo de gaúcho a ser cultuado ou
seguido.
Ligado à simplicidade da vida do campo, à autenticidade e verdade (os valores do
campo e de Deus) das coisas simples, vida em contato com a natureza (valores do campo),
avesso às complicações da vida urbana, considerada artificial (no meio dessas construções).
Nem que seja saudade de uma vida imaginada, virtual (Pode ser só na saudade do campo).
Uma oposição entre campo e cidade, liberdade e prisão.
Ser campeiro é falar do cotidiano, até do carroceiro, que vem parar na cidade,
ou no caminhão, que é lá do campo e vem pra cá e vice-versa, ou de gente que
foi daqui pra lá [para o campo]; é uma realidade, é gente que vem e gente que
volta. A cultura se faz no dia a dia, na realidade do povo, um espírito campeiro.
Tu tem que saber falar de um jeito que abranja o campo e a cidade, os costumes
povoeiros, inclusive. Falando de hoje, tu não pode fugir muito da realidade. É
falar do campo e falar da cidade. Tem uma ligação direta do que acontece no campo
e o que repercute na cidade e vice-versa.(24/11/2010)

Um modo circular entre cidade e campo, rural e urbano. Idealização de uma natureza,
utopia de liberdade da natureza contra a prisão da cidade (não queria estar aqui dentro destas
pedras). Howes Neto (2009) constata essa circularidade de fluxos interpretativos entre o rural
e o urbano, que ressignificam o “peão de estância” (aquele que efetivamente trabalha na lida
do campo) e o “peão tradicionalista” (o freqüentador e participante do CTG, morador da
cidade). Essa circularidade, forma fluxos interpretativos entre o rural e o urbano, entre o
campo e a cidade, entendendo esta relação como um diálogo, no sentido de trocas e
interfaces entre peões tradicionalistas e peões de estância, que fazem circular estas
identidades de maneira constante e intermitente, não constituindo uma via única de modelo
e cópia, verdadeiro e falso, real e imaginário. O autor procura demonstrar que essa
identidade “gauchesca” urbana, criada ao modelo do homem rural sulino, reinventa-se na
cidade e devolve ao campo novas práticas e representações, que por sua vez, são também
apropriadas e re-significadas nas estâncias. Desta forma, os peões de estância (inclusive
aqueles que se apresentam poética e musicalmente na Vertente ou que participam de sua
organização) re-significam as práticas tradicionalistas e devolvem para a cidade novas
práticas e representações sobre o gauchismo.

Sou campeiro por que eu gosto. Assim...não tenho ligação direta com o campo,
meu pessoal [família] nunca teve nada na campanha, só visitando uns amigos,
pescando, acampando, estas coisas. Bueno, acho que a vida no campo te dá
humildade, educação com as pessoas, respeito com todo mundo, né. A gente tem
uma coisa firme pra se agarrar, esse é o campeiro, o Nativista;fui educado assim, pra
respeitar e também preservar o que é nosso, a natureza, os rios... é a nossa riqueza.
(19/09/2011)

Ser campeiro é uma opção de vida, uma escolha. Mesmo não morando no campo, ou sequer
ter ido à campanha, pode-se ser campeiro. O contato com a natureza faz com que as pessoas
tenham uma vida mais simples, sejam mais respeitosas e educadas. O campeiro preserva a tradição
e esse modo de vida (imaginado) “autêntico”. O estabelecimento da origem, da identidade e da
tradição (A gente tem uma coisa firme pra se agarrar). Essas recorrências são celebradas e
utilizadas, no dispositivo do Festival, em uma aproximação e um alinhamento com as práticas
empreendedoras. Elas se alinham para justificar moralmente a produção da Vertente no sentido de
que é importante valorizar o modo de vida campeiro, as próprias raízes, a tradição, por todas essas
qualidades que são nele cultivados e transmitidos: uma vida simples de respeito pela natureza e pela
tradição, e por isso considerada mais verdadeira, moralmente mais digna e solidária.

O Nativismo como recurso


O principal propósito da Vertente é o de oferecer formação empreendedora para
os alunos concluintes do Ensino Médio da Escola Liberato Salzano através da da música
nativista. Neste plano, a Escola e seu currículo procuram manter a postura do uso da cultura
como um recurso gerenciável. Yúdice (2004) aponta que, inserida no movimento global das
indústrias culturais, a cultura conteria e expressaria elementos importantes para os
agenciamentos da sociedade civil, visando o crescimento econômico, a solução de conflitos
sociais e a criação de novas oportunidades de trabalho.
Tais agenciamentos acontecem tanto na etapa de organização quanto na de
performance do festival. A construção do regulamento, a divulgação, as inscrições, a gestão
compartilhada dos recursos, a organização das instalações no ginásio da Escola, a recepção
dos músicos, dos jurados, o credenciamento dos grupos, a acolhida às rádios e convidados,
o assessoramento de palco, a prestação de contas, tudo isso conta com a participação
efetiva dos alunos do terceiro ano do Ensino Médio da Escola.
Em suas análises, Yúdice (2004) afirma que as artes e a cultura transformaram-se e
modificaram-se, formando uma rede, em que administradores intermedeiam as fontes de
fomento, a produção dos artistas e o consumo das obras pelas comunidades. Segundo o
autor, os agentes culturais estão se organizando em várias instâncias, de forma que é
necessário, para o sucesso profissional do artista ou criador cultural, compreender e interagir
num mundo povoado por uma gama de instâncias intermediárias financiadoras, situadas em
vários níveis. Em um encontro coletivo de avaliação, após o evento, entre depoimentos
emocionados, surgiram anúncios de encanto pelo nativismo, vindos de alunos que, antes do
festival, declaravam-se opositores ferrenhos desta cultura. Para um dos alunos, a
experiência foi “a oportunidade para despertar para o trabalho, para a produção coletiva e o
respeito à cultura regional. A gente tem de ceder um pouco pra conquistar alguma coisa”.
Os alunos são convocados pela Escola a entrarem no jogo de linguagem das
práticas empreendedoras de garantia da cidadania. Conforme a professora coordenadora do
Festival, “as experiências com a gestão visam ensinar o aluno a gerenciar sua vida, diante
de um mercado de trabalho competitivo”. Para isso a Escola oferece encontros de
treinamento de gestão com os alunos da comissão organizadora.
A professora de Sociologia e uma das coordenadoras discentes do projeto salienta
que são necessárias alternativas curriculares urgentes para a educação. Para ela, “o ensino
é mais eficaz quando há diálogo e amor, a troca de conhecimentos, com cobrança, mas sem
autoritarismo e os alunos ficam mais envolvidos em estudos que fazem mais sentido para as
práticas sociais”. A professora afirma que o trabalho com a Vertente é uma ótima alternativa
para a escola dar um sentido inovador e transformador ao ensino, ao mesmo tempo em que
os alunos são chamados à formação da cidadania.

Os nossos alunos ficam diferentes quando começam a assumir a


responsabilidade com a Vertente. A escola vira a casa deles, eles se transformam e
ajudam a transformar os outros, a escola, a cidade. As escolas precisam inovar e
trazer de novo o aluno como nosso companheiro, aliado da educação, um amigo
mesmo. Não é só conteúdo, é união e participação (PROFESSORA DE
SOCIOLOGIA, entrevista concedida em 10/02/2011).

A “diferença de atitude” enunciada pela professora pressupõe a performance da


cultura como recurso praticada de um modo intenso. Os alunos são conclamados a
participar e a atuar de forma solidária no sentido da transformação social, através de uma
atitude responsável e inovadora. Há um apelo ao comprometimento moral e a um
sentimento de união de esforços. Aqui o sujeito atua conforme o campo de forças da
performatividade, “uma prática reflexiva de autogerenciamento frente aos modelos […]
impostos por determinada sociedade ou formação cultural”. (YÚDICE , 2004, p. 64). A escola
tem, segundo a declaração da professora, a capacidade de transformar as pessoas que por
sua vez, poderão transformar a sociedade.

O palco como escritório


Nas falas de professores, a educação empreendedora precisa ser motivadora e
despertar as lideranças. Percebemos que a escola usa com frequência as técnicas de
dinâmica de grupo, confraternizações e apoio individual. A diretora da escola é enfática ao
defender a educação empreendedora na Escola Liberato. Ela ressalta que ter participado da
Vertente foi fundamental para que os alunos tivessem uma colocação profissional imediata,
tanto pelas habilidades e competências adquiridas quanto pela visibilidade que a Escola,
através da Vertente, proporciona

Isto tudo é uma coisa fantástica pra escola. Nós temos alunos que já começaram a
trabalhar porque fizeram a Vertente agora há pouco. O presidente mesmo, esse ano,
já está trabalhando. Descobriram o potencial dele, já pinçaram e ele está no mercado
de trabalho […] No final, quando eles vêem o evento em si, eles dizem: pôxa, eu
ajudei, pra isso acontecer tem a minha parcela (DIRETORA, entrevista concedida em
13/02/2011).

No exemplo do empreendedorismo adotado pela escola, há flexibilidade na


aplicação das estratégias pedagógicas. Observou-se que não há a preocupação com
normas rígidas de modelos de gestão pré-estabelecidos. Entre os alunos da comissão
organizadora há os que relatam a contribuição do trabalho de gestão para o
autoconhecimento e aprimoramento das habilidades individuais, assim como a melhoria do
rendimento escolar.
Em seus depoimentos, muitos alunos argumentam a necessidade de “dar um
rumo na vida”, a partir da conclusão do Ensino Médio. O aluno “A2” relata que de todas as
oportunidades de formação de gestão que participou aplicou alguma aprendizagem na
Escola, especialmente durante a execução do festival de música.
A música é um meio de vida pra mim. Toco nos shows prá muita gente e o
palco é nosso escritório. É paixão, mas é responsabilidade. A gente tem que
ter disciplina, fazer bem feito, se apresentar adequadamente, aprender sempre.
Mesmo sendo difícil para alguns, tem que olhar o que o mercado tá exigindo,
tem que se especializar e se atualizar [...] na Vertente, a gurizada aprende a
enxergar mais longe, especialmente no trabalho com a cultura, com a música
gaúcha. (Diário de Campo, 08/10/2011)

Segundo a professora coordenadora, grande parte deles não está inclinada a cursar o
ensino superior imediatamente ao sair da escola, o que, para ela, faz do projeto uma
importante ferramenta de formação para o mundo do trabalho. Um dos alunos mais atuantes
na Vertente, vice-presidente da comissão organizadora, de origem humilde, relata que “é
importante para nós termos uma mentalidade aberta para as novidades, sermos criativos, ter
vontade de fazer, pela gente, né, em primeiro lugar, e também pela família, pelos outros,
pela cidade”.
No festival de música, “o palco torna-se escritório”, os alunos têm de se mostrar
capazes de atuar em determinadas funções de auto-gestão, configuradas em um conjunto
de ações alinhadas com o uso da cultura para o crescimento econômico. Ao mesmo tempo,
o palco é o local privilegiado em que são visibilizados os valores do modo de vida campeiro
acima descritos. Para se estar no palco, é preciso ter uma atitude de “responsabilidade” e
“disciplina” e um esforço constante para “atualizar-se” e especializar-se” para manter-se
competitivo no mercado. Essa atuação no “palco-escritório” alinha-se a uma “nova
discursividade educativa que busca transformar os indivíduos em empreendedores, cujas
características seriam a pró-atividade, a inovação, a invenção, a flexibilidade, o senso de
oportunidade e a capacidade de provocar mudanças” (GADELHA COSTA, 2009, p.183). Na
Vertente acontece a disseminação e ampliação progressiva do empreendedorismo como a
possibilidade e a ferramenta tanto para o sucesso pessoal quanto para o desenvolvimento
econômico da região. Conforme a direção do colégio Liberato,o empreendedorismo e a
música, juntos, potencializam condições pedagógicas muito importantes na formação de
alunos mais sensíveis e críticos, diante dos desafios do mundo contemporâneo, assim como
a possibilidade de integrar as diversas áreas do conhecimento.
A convergência dessas práticas com o Nativismo reside no fato de que os alunos e
professores são conclamados a cumprirem a meta de apresentar com qualidade o evento
dentro do ritual musical nativista. Na organização da Vertente encontram-se práticas
voltadas, especialmente, para o desempenho da boa comunicação, comportamento em
entrevistas, interação no campo do trabalho e negociação. São estratégias, técnicas, para os
sujeitos regularem-se a si mesmos a fim de alcançar metas empreendedoras.
A Vertente constitui-se em um dispositivo pedagógico na medida em que orienta,
constrói e transforma a subjetividade, ou seja, como lugar em que se modificam as relações
que o indivíduo estabelece consigo mesmo (LARROSA, 1994). Um dispositivo pedagógico
não é um instrumento que funciona para aprimorar e desenvolver uma natureza humana
universal, nascida com cada indivíduo, em direção à liberdade e à autonomia, mas sim uma
rede de relações que articula instituições e suas práticas, com o objetivo estratégico de
conduzir a conduta dos outros. Nesse sentido, os alunos aprendem uma “gramática” que
enfatiza o investimento em si mesmo, na qual uma conduta empreendedora é prescrita.
Produzem-se subjetividades na medida em que o dispositivo – no caso, a rede de relações,
entre os organizadores e participantes, que se estabelecem para a produção e execução da
Vertente - circunscreve o que pode e o que não pode ser dito, as maneiras como cada um
deve narrar-se. Nesse sentido, cada vez que se fala, fala-se a partir de um determinado
lugar, que por sua vez não permanece o mesmo em todas as situações. Ao mesmo tempo
em que falo, também sou falado, o que me posiciona ora em lugar, ora em outro e “nesses
lugares há interditos, lutas, modos de existir, dentro dos quais me situo, deixando-me ser
falado e, ao mesmo tempo, afirmando de alguma forma minha integridade” (FISCHER, 2001,
p. 11).

CONCLUSÃO

Finalmente, podemos resumir alguns pontos importantes que as análises


demonstraram. A Vertente da Canção Nativa é um exemplo de um dispositivo pedagógico
que se utiliza da cultura (o Nativismo) como recurso dentro de uma lógica empreendedora.
Os participantes do Festival (professores e alunos) aprendem a narrar-se e a
conduzir-se de acordo com uma gramática que preconiza e articula o compromisso moral
com a transformação e a responsabilidade social. Está muito bem delimitada a preocupação
com o desenvolvimento econômico da região, através da valorização de um modo de viver
campeiro produzido pelo nativismo.
Por sua vez, a poética campeira que celebra um modo de vida de respeito à natureza
e aos valores da tradição é alinhada à pró-atividade (uma atuação prestativa, colaborativa e
responsável, em equipe, que antecipe os prováveis problemas e procure resolvê-los) e a um
investimento em si próprio e na gestão voltada para o plano pessoal, seja na busca
constante por novas oportunidades profissionais, seja na qualificação e na especialização
profissional.
Entendemos que a escola contemporânea necessita voltar-se para as inquietações
que a cultura causa na vida social da aluno, uma vez que o trabalho de ensinar e aprender
necessita de um valor mais objetivo diante das urgências do mundo do trabalho e da
cidadania. As artes – nesse caso, a música – fazem parte de um campo gerador de saberes
e comportamentos cada vez mais importantes na produção de subjetividades e deve ser
apropriada como uma atividade interdisciplinar completa e extremamente necessária.
Referendamos, da mesma maneira, a construção de um campo de investigação e
reflexão acerca das questões curriculares da escola contemporânea, fazendo com que os
sujeitos, alunos e professores, passem a trilhar caminhos cada vez mais ousados, abertos
para o saber do cotidiano e atentos aos novos tempos de trabalho em rede e colaborativos.
REFERÊNCIAS
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