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Resumo: A trajetória de Steve Jobs se relaciona com a da marca que ele fundou, a Apple. A partir das diferentes
narrativas relacionadas à marca, tanto pela história de vida, quanto pela produção de publicidade e ficção
cinematográfica sobre Jobs, buscamos compreender como ocorreu a construção de um mito, como proposta
estratégica de consumo de seu brandscape. Para esse estudo, seguimos o caminho analítico do discurso crítico,
que nos permitiu demostrar os diferentes textos e imagens que compõem o mito da marca Apple, chamado Steve
Jobs.
Palavras-chave: Marca; Narrativas de consumo; Mito.
Abstract: The story of Steve Jobs is related to the brand he founded, Apple. From the different narratives related
to the brand, whether in the history of life, or in the production of advertising and of a moving picture about
Jobs, we aimed to understand how did the construction of a myth take place, as a strategic consumption proposal
of their brandscape . For this study, we followed the analytical path of critical discourse, which allowed us to
demonstrate the different texts and images that make up the myth of the Apple brand, called Steve Jobs.
Keywords: Brand; Consumption Narratives; Myth.
1. Introdução
Steve Jobs foi um dos criadores da multinacional Apple Inc. nos Estados Unidos em 1976.
Sua empresa passou a ser conhecida por sua logomarca, uma maçã com uma mordida, e em
2013 atingiu o ponto mais alto dos rankings de valor de mercado nos Estados Unidos e de
marca mais valiosa no mundo. Sendo conhecida por seus produtos, como o computador
Macintosh, o iPod, iPhone, iPad, entre outros, a marca também tem em seu fundador um de
seus principais símbolos, que representa a trajetória da empresa ao longo desses quase 40 anos
de existência.
A partir das diferentes narrativas relacionadas à Apple, tanto pela história de vida, quanto
pela produção de publicidade e ficção cinematográfica sobre Steve Jobs, buscamos
compreender como ocorreu a construção de um mito, como proposta estratégica para
consumo da marca.
Para isso, analisaremos (1) a narrativa publicitária da Apple, por meio das campanhas
“1984”, “Crazy ones”, “iPod Silhouettes” e “1984 Revisited”; (2) a narrativa literária da
história de vida de Steve Jobs, por meio da biografia “Steve Jobs” publicada por Walter
Isaacson; e (3) a narrativa audiovisual dessa história, na ficção cinematográfica “Jobs”. Para
esse estudo, seguimos o caminho analítico proposto por Norman Fairclough (2001), nas
relações indissociáveis entre práticas sociais e discursivas: os textos e filmes possuem tanto
1
Doutoranda em Comunicação e Práticas de Consumo na Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM e
Mestre pelo PPGCOM-ESPM. E-mail: beatriz.braga@hotmail.com
2
Doutoranda em Sociologia na Goldsmiths College (University of London) e em Comunicação e Práticas de
Consumo na Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM e Mestre pelo PPGCOM-ESPM. E-mail:
viviane_riegel@terra.com.br.
uma estética documental quanto uma estética ficcional, e em ambas o estatuto de verdade é
sustentado pelo efeito de real da história representada (BARTHES, 1994).
3
Lippmann (1972, p. 16) define os estereótipos como imagens mentais que se interpõem, sob a forma de
enviesamento, entre o indivíduo e a realidade. Segundo o autor, os estereótipos formam-se a partir do sistema de
valores do indivíduo, tendo como função a organização e estruturação da realidade.
4
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2zfqw8nhUwA. Acesso em: 02 de junho de 2015.
tão representativa que até hoje ele é considerado o filme publicitário mais assistido na história
da publicidade mundial. Isso quer dizer que ele não foi assistido somente no seu momento de
veiculação, no intervalo do Super Bowl, mas inúmeras vezes posteriormente em gravações e
via Internet.
O produto apresentado nesse filme, o Macintosh, era um lançamento de um computador
pessoal de mesa (um desktop), que trazia diversas inovações tecnológicas e um novo sistema
operacional, fator que apresentava uma ruptura no mercado de computadores da época. Ele foi
uma importante conquista que marca a busca de Steve Jobs por um computador pessoal que
oferecesse um avanço importante na interface gráfica, tratamento de vídeo, imagem e som,
questões relevantes para a criação e para o crescimento da Apple. Macintosh é também uma
menção a um tipo de maçã, elemento que virou um dos símbolos mais relevantes da marca,
como sua logomarca. O nome Macintosh virou referência aos computadores Apple, que até a
atualidade são também chamados de Mac pelo público (o produto atualmente é denominado
de iMac). Na época, a empresa líder desse mercado era a IBM, e ela possuía grande
participação do mercado, sendo a principal fornecedora tanto de computadores pessoais
quanto de sistemas para utilização nesses produtos. Logo, IBM era o grande concorrente do
mercado que Apple buscava combater e superar.
O filme “1984” (os frames das sequencias do filme estão recortados na ordem na Figura 1
a seguir) inicia com uma imagem de trabalhadores marchando dentro de um túnel, com a
locução de um homem: "Today we celebrate the first glorious anniversary of the Information
Purification Directives5”. Aparece, então, uma mulher com um martelo nas mãos e seguranças
armados correndo, com a locução: “We have created for the first time in all history a garden
of pure ideology, where each worker may bloom, secure from the pests of any contradictory
true thoughts6”. Surge, então, uma sala com uma tela, onde está a imagem do homem locutor,
e uma plateia, formada pelos trabalhadores sentados, e o discurso segue, enquanto outros
entram marchando e a mulher com o martelo continua correndo, seguida dos seguranças:
“Our Unification of Thoughts is more powerful a weapon than any fleet or army on earth. We
are one people, with one will, one resolve, one cause7”. A mulher com o martelo entra, então,
nessa sala onde o discurso está sendo projetado e gira o martelo, enquanto os seguranças
também chegam para detê-la, no fundo a locução segue: “Our enemies shall talk themselves
to death and we will bury them with their own confusion8”. O martelo é arremessado contra a
tela e a atinge durante o pronunciamento da frase: “We shall prevail!9”. Da tela sai um estouro
e no rosto dos espectadores sentados há uma fumaça branca, e suas feições espantadas,
enquanto um letreiro sobe na tela, na voz de outro narrador: “On January 24th Apple
Computer will introduce Macintosh. And you'll see why 1984 won't be like '1984'10".
5
Tradução livre do autor: Hoje nós celebramos o primeiro aniversário glorioso das Diretivas de Purificação da
Informação.
6
Tradução livre do autor: Nós criamos pela primeira vez em nossa história um jardim de pura ideologia, onde
cada trabalhador pode florescer, protegido das pestes de quaisquer pensamentos verdadeiros contraditórios.
7
Tradução livre do autor: Nossa Unificação de Pensamentos é uma arma mais ponderosa do que qualquer frota
ou exército na Terra. Nós somos um povo, com uma vontade, uma resolução, uma causa.
8
Tradução livre do autor: Nossos inimigos devem se convencer a morrer e nós os enterraremos com sua própria
confusão.
9
Tradução livre do autor: Nós devemos prevalecer!
10
Tradução livre do autor: Em 24 de Janeiro a Apple Computer apresentará o Macintosh. E você verá porque
1984 não será como ‘1984’.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=2zfqw8nhUwA. Acesso em: 02 de junho de 2015.
O filme “Crazy ones”, de 199711 marca a introdução de um novo slogan, “Think Different”,
e o retorno de Steve Jobs à Apple, como CEO, doze anos depois de sua demissão. O filme
mostra diversas imagens de personalidades como Mahatma Ghandi e Martin Luther King, e
os relaciona com os “loucos”, que mudaram o mundo. O texto, recitado como um manifesto a
esses personagens “loucos”, porém geniais, termina com uma visão utópica (em contraposição
às imagens distópicas do primeiro filme), de possibilidade de se mudar o mundo: “Porque as
pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo, são as que de fato,
mudam”12. O retorno de Jobs e a continuação da narrativa da marca Apple permitem que
compreendamos as representações no texto desse filme, de Steve Jobs como um desses loucos
que querem e podem mudar o mundo. O slogan, “Think Different”, também se conecta ao
sentido daqueles que querem mudar e pensam de forma “não normal” (ou loucos), e é
novamente uma forma de combater a imagem da concorrente IBM, que teve como slogan o
texto “Think”.
11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nmwXdGm89Tk. Acesso em: 02 de junho de 2015.
12
Trecho do texto do filme Crazy ones (1997), traduzido livremente pelo autor do original em inglês.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=oFiEPEWK6xY&list=PL7JtADjbou7LrqLa21JKl6JHLZkO_z7fe.
Acesso em: 02 de junho de 2015.
Os filmes criados para a campanha “iPod Silhouettes”13, a partir de 2003 até 2006,
introduzem o iPod, um produto que marca uma grande inovação no mercado tecnológico e
musical. Com esse produto, o brandscape da Apple se amplia com novas possibilidades de
práticas, fato que será ainda mais consolidados com os lançamentos que seguiram, como o
iPhone e o iPad. Essa amplitude é perceptível também na multiplicação dos gêneros musicais,
que são trabalhados nos diferentes filmes da campanha, como rock, pop, hip hop. Os filmes
mostram o aparelho branco em destaque, sendo utilizado por silhuetas, figuras na cor preta,
contra fundos coloridos de tela. Quando Steve Jobs lançou o iPod em outubro de 2001, ele
afirmou que ouvir música não seria nunca mais a mesma coisa. Dessa forma, sua busca em
criar diferenças, mudar determinadas formas e práticas (como foi mostrado desde a introdução
do Macintosh, fato que foi resgatado com o relançamento do filme “1984” em 2004, o “1984
Revisited” com a inserção do iPod, dialogando com o texto de inovação que rompe com a
realidade das grandes indústrias, das grandes narrativas), se evidencia novamente, aqui
atingindo uma nova abrangência narrativa e simbólica.
13
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=oFiEPEWK6xY&list=PL7JtADjbou7LrqLa21JKl6JHLZkO_z7fe. Acesso
em: 02 de junho de 2015.
14
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B2IaaFz4Fz4. Acesso em: 02 de junho de 2015.
partes do mundo. Ao fundo dessas imagens, há uma locução de uma voz reconhecida, a do
ator Robin Williams, recitando um trecho do texto do filme que protagonizou, Sociedade dos
Poetas Mortos (WEIR, 1989):
“We don’t read and write poetry because it’s cute. We read and write poetry
because we are members of the human race. And the human race is filled
with passion. And medicine, law, business, engineering – these are noble
pursuits and necessary to sustain life. But poetry, beauty, romance, love –
these are what we stay alive for. To quote from Whitman, ‘O me, O life of
the questions of these recurring. Of the endless trains of the faithless. Of
cities filled with the foolish. What good amid these, O me, O life? Answer:
that you are here. That life exists and identity. That the powerful play goes
on, and you may contribute a verse’. “That the powerful play goes on, and
you may contribute a verse. What will your verse be?”
Para apresentar o texto, o filme publicitário demonstra diferentes formas de uso do iPad,
como formas de se fazer um verso, e a partir dele, a poesia, a beleza, o romance e o amor.
15
Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/1322/1322-h/1322-h.htm. Acesso em: 04 de junho de 2015.
Essas imagens incluem biologia marinha, escalar montanhas, coreografias de dança, música,
educação, medicina, produção de filme, e atletismo. Todas as práticas que, segundo o texto,
dão suporte à vida. Atividades que podem ser praticadas e mediadas pelas ferramentas
oferecidas pelo produto Apple apresentado.
Ao utilizar essas cenas como referência e representação e propor uma produção de sentidos
que remetem à contribuição à raça humana, Apple segue na construção de seu discurso
publicitário. Nesse discurso, a partir da proposta de análise de Maingueneau (2005; 2008),
encontramos: 1) a captação do imaginário do co-enunciador, do consumidor de iPad, com a
participação efetiva na construção da narrativa da marca, com o envio de histórias, de
imagens, músicas, vídeos, feitos com esse produto, atribuindo assim à identidade da marca
Apple pequenas partes da identidade de cada um de seus interlocutores; 2) a utilização de
estereótipos validados, como a narrativa poética do filme e de Whitman, incorporados no
imaginário de Apple, como ferramenta que dá suporte à vida e possibilita, portanto, que os
indivíduos produzam aquilo que realmente precisam para dar significado às suas vidas: a
poesia.
Esse filme contribui para o discurso da Apple, na intencionalidade em cultivar uma
personalidade baseada nas ideias de inovação e criatividade. Nessa perspectiva, sua estratégia
de cultivar esperança nos consumidores, de inspirá-los, propondo um projeto individual, que
pode tornar-se coletivo, uma forma de cada indivíduo tornar-se único e ao mesmo tempo
pertencer à comunidade da marca.
O brandscape assume agora não somente tecnologia, música, telefone, internet, fotos,
vídeos, mas também as histórias dos próprios sujeitos que consomem Apple e produzem com
seus produtos. A partir das imagens e da locução do filme Sociedade dos Poetas Mortos, o
poema, o verso que pode ser criado com as ferramentas do iPad, é uma forma de representar a
vida, a identidade do consumidor Apple, do grande poeta (morto) da marca, Steve Jobs.
Já a partir desse texto é possível perceber a ênfase dada no filme aos traços fortes e
questionáveis da personalidade de Jobs. Composto de modo não linear, o roteiro parte do
lançamento do iPod em 2001 e regressa no tempo para dar início à trajetória de Steve, desde
16
Tradução livre pelo autor: É estranho pensar que você acumula toda essa experiência e talvez um pouco de
sabedoria, e que isso simplesmente vai embora. Então eu realmente quero acreditar que algo sobrevive, e que
talvez sua consciência dure.
17
Texto da contracapa do DVD. Disponível em: http://goo.gl/YjQQht. Acesso em: 20/03/2015.
sua passagem pela universidade até a fundação e o sucesso da empresa Apple. Passando por
uma fase “hippie”, quando usa drogas, anda descalço e reflete bastante sobre o fato de ter sido
abandonado por seus pais biológicos, ele decide abandonar os estudos (era avesso aos moldes
convencionais de ensino) e se empenhar no trabalho.
Figura 5 – Ashton Kutcher em cena inicial de Jobs
É na Atari que sua carreira parece ter um início realmente marcante. Seu chefe, após
passar-lhe um sermão por mau comportamento junto à equipe, propõe uma tarefa desafio.
Caso conseguisse programar um jogo de computador em cores com o menor recurso possível
e em um prazo apertado, receberia US$ 5 mil. Auxiliado por seu colega Steve Wozniak, Jobs
entrega o jogo ao chefe e sua questionável postura já se revela ao repassar para esse colega
somente US$ 350.
Por outro lado, Jobs se depara com o novo trabalho de Wozniak e enxerga ali uma
oportunidade: um computador atrelado ao visor da televisão. Era o protótipo do computador
pessoal. A partir de uma feira de inventores, Jobs consegue um negócio com um comerciante
do ramo de informática para a produção de placas de computador. Dessa forma surgiu a
Apple, com uma equipe convocada para trabalhar em uma oficina improvisada na garagem da
casa dos pais de Jobs.
Desse momento em diante, a empresa evolui e ganha uma nova sede, mas Jobs continua
em suas oscilações entre discursos motivadores sobre criatividade e inovação e sermões
destemperados junto aos funcionários. O filme remonta cenas em que o líder da Apple passa
horas fazendo ligações para conseguir financiadores ou para reduzir o orçamento de seus
projetos e, em contrapartida, o momento da demissão de um colaborador aos gritos na frente
de todos por pura intolerância. Seu perfeccionismo e arrogância lhe custaram o afastamento
da companhia por votação unânime do conselho; sua genialidade e determinação o fizeram ser
recontratado, anos depois, para resgatar os valores originais da Apple.
Embora o filme tenha recebido diversas críticas18 alegando seu caráter demasiadamente
exaltador à figura de Jobs e pouco realista, ressalta-se, aqui, que a obra, embora biográfica, é
ficcional e não documental. As perspectivas tecidas sobre Jobs e a “identidade” que lhe foi
conferida são ficcionais, não cabendo aqui o julgamento de sua veracidade e sim sua análise
18
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/09/1338290-critica-jobs-o-filme-falha-ao-omitir-
lado-ordinario-de-criador-da-apple.shtml. Acesso em: 20/03/2015.
enquanto construção midiática. Evidencia-se, contudo, que a narrativa audiovisual Jobs
consolida a imagem mitológica de Steve Jobs: um gênio, um visionário, um líder. E, como
muitos daqueles reconhecidos por sua genialidade – a saber, Newton, Van Gogh, Beethoven19
–, era indomável, arrogante e, por que não, “louco”.
7. Considerações finais
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19
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