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O objetivo deste capítulo é o de demonstrar que maior parte do açúcar produzido

pela região norte-fluminense, ao longo da segunda metade do século XIX, circulou no


interior da própria província do Rio de Janeiro e, mais especificamente, na Corte, que
funcionava como principal centro consumidor e produtor de riquezas àquele momento.
Isto implica considerar que um município cuja produção escravista era de larga escala,
devido ao grande percentual de engenhos e escravos, sustentou-se durante décadas
mediante a realização de suas mercadorias no interior das fronteiras do Império
brasileiro. Para demonstrar esta hipótese dividimos o texto em três partes. Na
primeira, discutiremos a questão do outrora tão comentado pela historiografia
fluminense “mercado interno”: o significado do conceito e a forma através da qual a
historiografia brasileira o trabalhou em períodos anteriores, pois não é unanimidade na
literatura econômica que a circulação interna de bens primários constitua um mercado
interno. Na segunda parte tentaremos aprofundar esta questão demonstrando de modo
mais preciso no que consistia este dito “mercado interno”: quais eram os itens que
circulavam nele e quais eram os grupos sociais que participavam ativamente deste
mercado. Para isso, nos basearemos em trabalhos que pesquisaram a economia urbana
do município do Rio de Janeiro ao longo do século XIX, para demonstrar que a cidade
era economicamente poderosa o suficiente para absorver parcela substancial do açúcar
produzido em Campos. Na terceira e última parte, nos debruçaremos sobre a
documentação portuária do Rio de Janeiro e outras fontes secundárias para comprovar
que o açúcar proveniente de Campos, norte fluminense, não tinha sua maior parcela
levada a outras províncias do Império, sendo redistribuída principalmente entre as áreas
de expansão do café no interior da província.
Isto não significa dizer que o açúcar fluminense foi absolutamente excluído do
mercado internacional. Uma fração do açúcar fluminense era destinado ao exterior.
Apesar disso, não fez parte da pauta de exportações para os mais tradicionais parceiros
comerciais do Império, pois os valores mais elevados em exportações foram os
destinados à Argentina e ao “Estado Oriental”, atual Uruguai. De todo modo, isto não
foi impedimento para que o norte fluminense se tornasse uma potência econômica com
uma produção realmente moderna para os padrões ainda coloniais dos engenhos
brasileiros. Ou seja, a modernização da produção campista foi bancada a partir da
realização interna do açúcar produzido, com o objetivo de retomar o espaço perdido no
mercado internacional para Cuba. Seria viável a grande produção campista ser
consumida por um “mercado interno” mesmo considerando que, em 1840, havia, na
1
Província do Rio de Janeiro 407.212 pessoas, sendo 223.992 escravas?

1. A questão do “mercado interno” na historiografia brasileira


As discussões a respeito de um “mercado interno” na sociedade escravista
brasileira começaram a ganhar fôlego no final da década de 1970 e ao longo dos anos
1980, com os trabalhos do grupo de pesquisa de História Agrária da Universidade
Federal Fluminense, ligado aos professores Ciro Flamarion e Maria Yedda Linhares.
Insatisfeitos com o que consideravam ser uma hegemonia plantacionista na
historiografia, este grupo de pesquisadores passou a investigar o que João Fragoso
posteriormente definiu como “a face oculta da lua da história do Brasil, escondida pela
2
casa grande e, não raro, pela senzala”.
Para além da obra de Gilberto Freyre, os trabalhos de Celso Furtado e Fernando
Novais, mesmo que este se refira unicamente ao período colonial de nossa história,
contribuíram muito mais para a negação de formas endógenas de acumulação de
riquezas na vigência da escravidão. Em primeiro lugar, por considerarem que quase toda
e qualquer atividade econômica que não fosse voltada para a exportação se reduzisse a
subsistência.
No caso do historiador paulista, mesmo quando reconhecia uma estrutura
produtiva escravista, caso da pecuária, a via como determinada indiretamente pelo
3
centro dinâmico da economia: o capitalismo europeu. Exatamente por isso, haveria um
elevadíssimo grau de concentração de renda nas mãos dos senhores de escravos, já que
o produtor direto – escravo – não possuiria renda alguma. Ou seja, a menor parcela da
renda que permanece no território colonial é o que permite a reprodução da estrutura de
exploração nos quadros do Antigo Sistema Colonial – a renda global é criada mediante
o regime agroexportador, o que faz com que os grupos burgueses ligados ao comércio
ultramarino se apropriem de sua maior parte, e consumida nas importações vindas da

1
Estes números não consideram o município da Corte. Fonte: Relatório do presidente de província do Rio
de janeiro.
2
FRAGOSO, João. “Prefácio”. In: MATTOS, Hebe. ​Ao sul da história: lavradores pobres na crise do
trabalho escravo.​ Rio de Janeiro. FGV, 2009 (2ª edição, revista e ampliada). p. 9.
3
NOVAIS, Fernando A. ​Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808)​. São Paulo,
Hucitec, 2011 (9ª edição). p. 107.
Metrópole, que seriam as transações típicas do regime colonial de comércio, para o
4
autor. É nesta perspectiva que compreendemos a relação feita por Novais entre a
escravidão e o latifúndio. A utilização do braço escravo enquanto mão-de-obra
predominante impedia a apropriação das terras por colonos povoadores – aqueles que se
utilizariam da terra para produzir, sobretudo, para subsistência, com índices de
comercialização bastante incipientes – e direcionaria a produção colonial para o
5
fornecimento largo de mercadorias aos mercados europeus.
Tudo isto, para Novais, se convertia em uma limitação ao crescimento da
economia de mercado devido a outra limitação estrutural inerente ao trabalho escravo: a
impossibilidade de inversão tecnológica na produção, que resultaria na baixa
produtividade e baixa rentabilidade. Como consequência, a fração senhorial se
esforçaria para fazer com que os custos de reprodução da mão-de-obra fossem cobertos
pelos próprios trabalhadores em uma parcela de terra do interior da empresa
exportadora. Deste modo, a produção destinada à subsistência estaria fora do mercado –
perspectiva adotada também por Jacob Gorender, a despeito de suas críticas ao Antigo
6
Sistema Colonial. Deste modo, ao pensarmos nas etapas de remuneração do fator
trabalho na produção escravista, vemos que, por um lado, ela se realiza parcialmente, no
esquema de Novais, fora da área produtora – o pagamento feito ao traficante na
aquisição do cativo – e, por outro lado, a fração que se realiza internamente – a
manutenção do cativo – não demanda comercialização. Ou seja, não há, de forma
alguma, dinamização do que poderia se chamar de economia interna.
Estas implicações do passado colonial certamente trariam consequências para a
formação econômica do Brasil, título de obra clássica de Celso Furtado, em que a
história surge para “captar as inter-relações e as cadeias de causalidade que constituem a
7
urdidura dos processos econômicos”. Ponto central para Furtado é a questão do fluxo
da renda gerada internamente nas várias atividades econômicas do período colonial. Em
nosso juízo, os capítulos em que trabalha a economia mineradora são os mais
significativos para que compreendamos as limitações históricas e estruturais do mercado

4
Idem, ibidem. p. 107-109
5
Idem, ibidem. p. 102-103
6
Idem, ibidem. p. 109-110
7
​ ão Paulo: Companhia das Letras, 34ª edição, 2007.
FURTADO, Celso. ​Formação Econômica do Brasil. S
p. 21.
interno brasileiro. Isto porque, de modo diferente do que ocorreu no Nordeste, em que a
pecuária surge como apêndice da economia açucareira, nas regiões meridionais da
colônia a atividade criatória precedeu a descoberta do ouro, de tal forma que em
algumas localidades já havia alguma exportação de couros.
A exploração das minas revitalizou a atividade criatória em dois sentidos: 1) por
ter elevado significativamente a rentabilidade da pecuária, graças às características
específicas da mineração, que dependia do transporte de mulas – grande distância do
litoral e ausência de abastecimento local; e 2) por viabilizar a interdependência entre as
regiões pecuaristas, produzindo, inclusive, especializações entre elas – áreas de criação,
8
de engorda, de distribuição ou simplesmente como mercado consumidor. Outras
características favoreceriam o fomento do que chamaríamos de um “mercado interno”,
como a renda menos concentrada e a maior procura de bens de consumo cotidianos em
detrimento dos bens de luxo. Além disso, o longo transporte do litoral até a região das
9
minas encareceria, segundo Furtado, as mercadorias importadas. Ainda assim, não foi
possível firmar as bases para uma produção interna autônoma, porque faltava o
conhecimento técnico necessário para o desenvolvimento manufatureiro no Brasil. Esta
ausência é explicada pela política colonial portuguesa, no contexto da assinatura do
Tratado de Methuen de 1703.
Graças a este tratado, o ouro extraído da colônia em velocidade cada vez maior
foi utilizado para pagar as importações que Portugal fazia das manufaturas têxteis
inglesas durante toda primeira metade do século XVIII. Deste modo, para que a colônia
pudesse empreender o desenvolvimento manufatureiro, a condição primária seria a
existência prévia de uma sólida base manufatureira em Portugal, o que não ocorreu
devido à política externa metropolitana. Portanto, o fluxo da renda que era gerada na
periferia colonial não permitiu a construção perene das atividades econômicas que
esboçaram características de um “mercado interno”. À medida que a atividade
mineradora ia se esgotando, já na segunda metade do século XVIII, o sistema foi se
atrofiando cada vez mais, de modo a reduzir-se, mais uma vez, em pequenas economias
de subsistência desconexas. Apesar disso Furtado nos alerta para o fato de que a ilusão

8
Idem. Ibidem. p. 123.
9
Idem, Ibidem. p. 125.
do ouro permaneceu levando grande contingente demográfico disposto a investir suas
10
economias na exploração.
Como vimos nos parágrafos acima, o fluxo externo da renda de nossa economia
foi utilizado como argumento para explicar o porquê da economia interna brasileira ser
tão rarefeita. Por meio de outro referencial teórico, mas preocupados com as mesmas
questões, Wilson Suzigan e Newton Paulo Bueno realizaram estudo comparativo entre
Brasil e EUA e seus respectivos processos de industrialização e formação de mercado
interno após o apogeu da fase agroexportadora de cada um destes países, fracassado no
caso brasileiro e bem-sucedido no caso estadunidense. O argumento básico dos autores
é o de que estes processos são cumulativos e dependentes de alterações nos padrões de
distribuição regional ou setorial das atividades econômicas, que são conduzidas
mediante transformações institucionais responsáveis por realizar os investimentos
11
necessários para tal. A ausência de apenas um destes dois elementos seria a
responsável por inviabilizar um processo de industrialização, já que um governo
poderia, por exemplo, não encontrar força política necessária para direcionar os recursos
públicos para este setor da economia.
Para que a evolução do processo histórico de ambas as nações tenha tomado
rumos tão distintos, o fator chave apontado é a capacidade do comércio externo
fomentar a formação de mercados internos, de tal modo que permita às instituições
públicas tomar a frente no processo de expansão econômica e de industrialização. No
caso norte-americano, tido como bem-sucedido, a integração econômica e espacial de
sua economia foi importante porque unificou uma população que dispunha de algum
poder aquisitivo. Para comprovar esta hipótese, os autores utilizam dados de
crescimento do PIB ​per capta de cada um dos países na etapa em que a industrialização
seria induzida pela renda gerada pela agroexportação, com os EUA apresentando
crescimento anual quatro vezes superior ao brasileiro; são apresentados também dados a
respeito do PIB ​per capta em cada um dos países, sendo o estadunidense maior do que o
12
dobro do brasileiro em 1820 e seis vezes maior em 1950.

10
Idem, Ibidem. p. 134.
11
BUENO, Newton Paulo & SUZIGAN, Wilson. “Expansão do mercado interno e evolução institucional
no processo de industrialização: uma análise comparativa Brasil – Estados Unidos”. In: ​história
econômica & história de empresas​. V.1. 2002. p. 43.
12
Ver, respectivamente, tabelas 1 e 2 em BUENO, Newton Paulo & SUZIGAN, Wilson. “Expansão do
mercado interno ...” In: ​história econômica & história de empresas.​ V.1. 2002. p. 50.
A maior concentração de renda no caso brasileiro fazia com que o efeito
dinamizador do setor externo sobre o interno tivesse papel muito reduzido. A renda
gerada pela exportação, de acordo com Bueno e Suzigan, seria destinada principalmente
às importações, sendo uma parcela significativa aplicada na aquisição de máquinas e
equipamentos usados no beneficiamento agrícola, na indústria têxtil ou nos transportes,
cuja demanda, sem os estímulos necessários por parte do governo, não crescia o
suficiente para ameaçar o superávit da balança comercial. Em resumo, recuperando
argumento que também é de Celso Furtado, os dois autores acreditam que o déficit no
comércio brasileiro existiria apenas por duas razões: queda no volume das exportações
ou quando os termos de troca – os preços – se apresentariam menos favoráveis aos bens
13
primários. Argumentam, por fim, que a balança comercial brasileira sempre foi
superavitária após a plena maturação da economia cafeeira, a partir dos anos 1870. Na
próxima seção deste capítulo, em que apresentaremos dados a respeito do mercado
consumidor brasileiro, apresentaremos argumentos contrários a esta hipótese.
Em uma situação inicial de renda menos concentrada como nos Estados Unidos,
a variação da balança comercial se inverte: o consumo interno se expandia numa
velocidade maior do que as exportações, aumentando a demanda por mercadorias
importadas que, por sua vez, serviam como estímulo às produções domésticas. A
integração econômica e espacial regional, permitida pela combinação de investimentos
públicos e privados na infraestrutura de transportes do país, potencializa o “vazamento”
da renda gerada pela exportação. Ou seja, nos momentos em que as exportações estão
em alta, seja pelo volume ou pelos preços, haveria um acréscimo tão significativo no
poder de compra que toda a produção interna não daria conta e o resultado óbvio seria
um crescimento maior das importações, o que colaboraria diretamente para depreciar a
14
balança comercial.
Cabe aqui uma crítica ao modo de proceder dos autores. Para tentar comprovar a
existência de uma renda mais bem distribuída entre os norte-americanos, os autores
utilizaram-se de médias de crescimento ​per capta d​ o PIB do país. Entretanto, as médias
são medidas estatísticas bastante sensíveis aos ​outliers​, sejam de valores baixos ou
elevados. Ou seja, o meio crescimento percentual do PIB ​per capta a​ nual não significa,

13
Idem, ibidem. p. 47.
14
Idem, ibidem. p. 51-53.
necessariamente que a renda seja menos concentrada. Consideramos que o
procedimento correto para avaliação de questões como as de renda seja hierarquiza-la a
partir de quartis, criando grupos de fortuna. Naturalmente, o trabalho empírico
Até aqui vimos apenas autores que se utilizam de evidências a respeito do fluxo
da renda para argumentar sobre o quão rarefeito ou o quão inexistente era o mercado
interno brasileiro durante todo o século XIX e em alguma parte do XX. Se, por um lado,
este grupo de autores demonstrou maior preocupação em conceituar o que seria um
“mercado interno”, a despeito das evidências empíricas mais rarefeitas, por outro lado,
aqueles que se empenharam em demonstrar empiricamente que havia um sem número
de atividades econômicas destinadas ao abastecimento interno empregaram o termo de
forma relativamente acrítica, de tal modo que aquilo que chamaram de “mercado
interno” talvez tenha se apresentado apenas como centros consumidores fracamente
integrados entre si. Para eles, as questões centrais a serem encaradas eram duas, sendo a
segunda decorrente da primeira: 1) a possibilidade desta economia brasileira gerar renda
de forma autônoma, sem a necessidade de mercados externos para a realização das
mercadorias; e 2) tão importante quanto, é o fato deste “mercado interno” permitir o
surgimento de grupos com capacidade para atuar enquanto classe dominante em escala
local, para além dos grandes barões que, no século XIX, interferiam diretamente na
política nacional.
A dissertação de mestrado de Márcia Motta, defendida em 1989 no programa de
pós-graduação da UFF, apresenta hipóteses que demonstram bem nossas afirmações
anteriores. Uma delas é a de que a chegada da Corte portuguesa, em 1808, agravou de
sobremaneira os problemas de abastecimento alimentício da cidade do Rio de Janeiro,
de modo a impulsionar o desenvolvimento de uma agricultura policultora, em lugar da
decadente cultura açucareira existente na região analisada pela autora: as “bandas
d’além” – municípios localizados na outra extremidade da Baía de Guanabara, extremo
oposto ao Rio de Janeiro. Neste sentido, a autora admite a possibilidade de se gerar
renda a partir de uma produção que grande parte dos autores, até então, julgava ser
apenas de “subsistência”, cuja capacidade mercantil seria próxima de nula.
Motta analisa esta produção policultora através de três chaves interpretativas
distintas, todas influenciadas teoricamente pelo que Ciro Cardoso chamou de “brecha
camponesa”: acesso à terra estável, autonomia na gestão da parcela e acesso aos
15
mercados. Se o acesso à terra e as oportunidades de acumulação estão abertas de
maneira mais ou menos estável, a depender das faixas de fortuna de um grupo
heterogêneo como este de arrendatários-escravistas estudado pela autora, o contato com
o mercado também é frequente. Neste caso, entretanto, não há qualquer autonomia, uma
vez que o acesso aos mercados se dá de modo vertical, mediado pelo capital comercial,
materializado na figura dos donos dos portos locais que eram, simultaneamente,
16
proprietários das terras arrendadas pelos agricultores em questão. Na medida em que
interferia na comercialização e no financiamento das explorações arrendadas, a classe
dominante local também controlava, ao menos de forma parcial e indireta, a reprodução
destas unidades produtivas. Isto fica claro após a década de 1850, período entendido
como de “crise do escravismo” entre os pesquisadores da “Escola do Rio”. A segunda
metade dos oitocentos é marcada pela crescente dificuldade dos arrendatários em repor
seu contingente de cativos, além da impossibilidade de aumentarem suas parcelas de
exploração, em função da elevação dos preços da terra ocasionada pelo seu processo de
mercantilização em curso. Mesmo se levarmos em consideração a elevação dos preços
dos produtos alimentícios cultivados por estes minifundistas, a tendência foi de um
17
empobrecimento geral.
Vislumbrou-se, portanto, ao longo dos oitocentos, transformações na estrutura
fundiária e a formação de uma classe dominante local tendo como ponto de partida a
instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro e a subsequente transformação da
cidade em um poderoso centro consumidor, permitindo o renascimento da agricultura
local na forma de policultura. Se não podemos atribuir ao “mercado interno” todas estas
transformações econômicas e sociais na região, é certo que ele foi tido ao menos como
catalizador da mudança, ratificando sua importância para a economia escravista.
Passemos agora ao trabalho de Antônio Carlos Jucá de Sampaio, ​Magé na Crise
do Escravismo,​ dissertação de mestrado defendida também no programa de
pós-graduação da Universidade Federal Fluminense. O autor trata de questões similares
às de Motta, com estudo de caso reservado ao município de Magé, especializado na

15
CARDOSO, Ciro F. S. ​Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas.​ São Paulo:
Brasiliense, 1986. p.
16
MOTTA, Márcia. ​Pelas “bandas d’além”: fronteira fechada e arrendatários-escravistas em uma
região policultora (1808-1888)​. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1989. p. 78-79.
17
Idem, ibidem. p. 122-123.
produção de farinha de mandioca, produto base da alimentação da população à época.
Novamente a proximidade com a Corte é levantada para justificar o fato de 86% de suas
18
culturas serem de mandioca, o que dava grande vantagem a Magé em relação às
demais regiões produtoras, na medida em que pode aproveitar melhor os momentos de
elevação nos preços, pois o custeio de transporte era reduzido.
O mais interessante – e também o ineditismo do trabalho – é o fato de Sampaio
identificar em uma região alheia ao sistema agroexportador uma hierarquização
econômica e social bastante intensa: por um lado, há a empresa escravista mercantil,
representada pelos grupos de fortuna A e B, com riqueza acima de três mil libras e entre
mil e três mil libras, respectivamente; por outro, há a pequena produção de alimentos
realizada por um “campesinato” que, apesar de possuir cativos, utilizava seu trabalho
como complemento a um trabalho familiar. Em relação à grande empresa mercantil, sua
característica mais marcante eram os grandes plantéis, com elevada razão de
masculinidade e maioria em idade produtiva, característica presente em todas as grandes
fazendas do Vale do Paraíba fluminense do mesmo período. Ou seja, a economia
escravista brasileira não só possui seus circuitos internos de realização das mercadorias,
como também produz diferentes grupos sociais capazes de atuar como classes
dominantes em suas próprias regiões, algumas com hierarquias e práticas econômicas
não muito diferente dos tradicionais centros exportadores.
Os dois trabalhos analisados anteriormente apresentam contrapontos aos
clássicos textos de Fernando Novais e de Celso Furtado, bem como ao artigo de Bueno
e Suzigan. A evidência empírica de regiões produtoras de alimentos cuja dimensão
mercantil é explícita é o suficiente para que estes autores – mas também outros –
assinalem com a existência de um verdadeiro “mercado interno” em nossa economia.
Mas será isso o suficiente? João Antônio de Paula, apoiado em clássicos estudos de caso
sobre a emergência do capitalismo na Rússia e na Itália, afirma que ao falar em
“mercado interno”, deveríamos nos preocupar algumas questões basilares: 1) a
formação do mercado de trabalho e do mercado de terras; 2) o grau de
articulação-interação do mercado interno verificado pela análise da variância dos preços

SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. ​Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução
18

econômica na produção de alimentos (1850-1888)​. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de


Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1994. p. 22-25.
entre as diversas regiões; 3) o sistema de transporte e comunicações; e 4) a dinâmica
19
demográfica da população economicamente ativa.
Em relação à infraestrutura de transportes, por exemplo, a situação do Brasil
durante o século XIX e boa parte do século XX foi a de isolar o país de todo o sudeste
cafeeiro, na medida em que a malha ferroviária brasileira se concentrava quase que
integralmente nesta região. A baixa integração ​dificulta a efetivação de preços
minimamente uniformes ao nível nacional. Os dados apresentados por Evaldo Cabral de
Melo, a respeito das taxas de juros discrepantes praticadas em diferentes regiões,
demonstram a inexistência de um mercado interno propriamente dito no Brasil: a
economia nordestina apresentava uma variação de 18% a 24%, enquanto as praças do
20
sudeste oscilavam apenas entre 10% e 12%.
Pelo apresentado acima, apenas em meados do século XIX podemos falar em
um processo de constituição de mercado interno no Brasil, na medida em que o Estado
brasileiro se movimenta no sentido de viabilizar um mercado de terras e de trabalho,
condições essenciais para a acumulação primitiva – concentração das terras e meios de
produção nas mãos de uma classe e a subsequente proletarização das demais. O ano de
1850 é, ao menos de plano jurídico, oficial e institucional, um marco para estas
transformações no Brasil, com a aprovação da Lei de Terras, do Código Comercial e da
Lei Eusébio de Queiróz, que pretendiam, no conjunto, transformar a terra e o trabalho
em mercadorias. A efetividade duvidosa deste projeto, no entanto, deu ao nascente
mercado interno nascente características ambíguas. Em relação às terras, por exemplo,
com a abolição do regime das sesmarias em 1822, entre esta data e 1850 a posse
tornou-se uma dentre outras formas de apropriação, sem que houvesse preeminência
jurídica de outras formas sobre ela. Ao invés de reformar ou reestruturar a propriedade
fundiária brasileira, como foi em parte com o ​Homestead Act d​ e 1862 dos EUA, a Lei
de Terras de 1850 apenas sancionou toda a estrutura latifundiária construída até então,
ao mesmo tempo em que excluiu do acesso à terra aqueles que por ela não poderiam
pagar. Isto fica evidente a partir do trabalho de Francisco Iglésias sobre Minas Gerais,
em que observa que a partir de 1850, apenas uma fração muito pequena das terras

19
PAULA, João Antônio de. “O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história”. In: In:
história econômica & história de empresas.​ V.1. 2002. p. 14.
20
MELLO, Evaldo Cabral de. ​O norte agrário e o Império, 1871-1889​. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
21
estariam disponíveis aos efeitos da Lei de Terras. Ou seja, na prática – e por mais que
suas conclusões não possam ser generalizadas para todo território nacional –, em uma
das maiores províncias do Império, a fronteira agrícola já estava fechada, fazendo com
que sua capacidade criadora da pequena propriedade ou mesmo de um mercado de
terras tivesse alcance limitado.
Para além da Lei de Terras, a Lei Eusébio de Queiróz, a política de imigração
com participação do Estado no financiamento do transporte e da instalação dos
trabalhadores, a Lei do Ventre Livre de 1871 e a Lei de Locação de Serviços de 1879,
tornaram-se a base para constituição do moderno mercado de trabalho livre no Brasil.
Segundo José Antônio de Paula, este foi um processo que respondeu, basicamente, à
expansão da cafeicultura do sudeste que enfrentou obstáculos em relação à terra e ao
22
trabalho ao longo de sua existência. A despeito destas e de outras iniciativas do poder
imperial, o processo de modernização do Brasil esbarrou em graves limitações, a
começar pelos interesses e motivações da classe senhorial, responsáveis pela condução
de uma modernidade excludente que reiterou desigualdades regionais e entregou um
mercado interno absolutamente heterogêneo.
Vimos acima duas formas de perceber a constituição do mercado interno no
Brasil: uma que privilegia o fluxo da renda das atividades econômicas e outra que o vê
inserido em um processo mais amplo de modernização capitalista, com amplas
transformações de cunho político, social e econômico visando fazer do mercado uma
compulsão. Em relação ao fluxo da renda, temos duas maneiras distintas de percebe-lo.
A primeira implica na dependência exterior e a subsequente negação do mercado
interno, posição compartilhada por Novais e Furtado.
O historiador paulista justifica sua posição baseado em quatro pontos: 1) a renda
global é criada na exportação, o que permite que os grupos ligados ao comércio
ultramarino fiquem com sua maior parte; 2) a menor parcela da renda, que permanece
no território colonial, é o que permite a reprodução da estrutura de exploração nos
quadros do Antigo Sistema Colonial – há, em função disso, um alto grau de
concentração de renda entre a classe senhorial, pois os trabalhadores, escravos, não
possuem renda alguma; 3) a impossibilidade de inversão tecnológica na produção, que

21
IGLÉSIAS, Francisco.
PAULA, João Antônio de. “O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história”. In: ​história
22

econômica & história de empresas.​ V.1. 2002. p. 31.


se desdobra em produtividade e rentabilidade baixa; e 4) em decorrência da questão
anterior, a fração senhorial se empenha para reduzir ao máximo os custos de
manutenção da mão-de-obra, atribuindo aos trabalhadores, por meio de uma parcela de
terra, tal responsabilidade. Ou seja, o fluxo da renda, sempre para fora, faz com que aqui
permaneça apenas o necessário à reprodução da estrutura escravocrata, o que é
insuficiente para dinamizar um mercado.
O economista Celso Furtado, por sua vez, vislumbrou a possibilidade do
mercado interno a partir da articulação gerada pelo binômio mineração e pecuária, mas
a política colonial portuguesa, nomeadamente a partir do tratado de Methuen de 1703,
bloqueou todas as possibilidades de desenvolvimento manufatureiro em Portugal e no
Brasil, de tal modo que a crise da exploração aurífera acarretou também a desarticulação
das diferentes zonas econômicas ligadas às minas. Novamente o fluxo da renda, desta
vez para fora até mesmo da Metrópole, surge como impedimento do desenvolvimento
econômico autônomo do país.
Os autores fluminenses utilizaram-se também do argumento do fluxo da renda,
mas para comprovar o contrário: a existência e o desenvolvimento de atividades
econômicas destinadas ao abastecimento. As inúmeras unidades produtivas espalhadas
pela província do Rio de Janeiro, mesmo que possuíssem estratégias e cálculos
econômicos distintos estavam unidas por uma característica comum: quase todas eram
empreendimentos mercantis, mesmo que alcances distintos. A produção e a
comercialização de alimentos eram as provas empíricas necessárias à comprovação da
existência de um mercado interno em nossas terras. Mas em momento algum há alguma
preocupação em caracterizar quais são os segmentos da população que compõem este
suposto mercado interno e em que condições eles fariam parte deste mercado, caso
fossem capazes de fazê-lo. De nossa parte, preferimos caracterizar o mercado interno à
maneira de Antônio de Paula, vendo-o como um processo de construção paulatina
envolvendo questões não apenas econômicas, mas políticas e também sociais. Portanto,
vemos a província e o município do Rio de Janeiro apenas enquanto uma área com
grande potencial consumidor, e não como manifestação empírica de um mercado
interno no Brasil.
2. A expansão econômica na capital e na província e a composição
econômica-social do mercado consumidor
As questões a serem tratadas nesta sessão são as seguintes: quem forma em
poderoso mercado consumidor? Quais são as limitações deste mercado, haja vista que
parte considerável de sua população era cativa? Nossa pretensão aqui é apresentar o
desenvolvimento econômico e demográfico da província e da cidade, no período áureo
do escravismo

2.1 A expansão demográfica, econômica e urbana do município e da província do


Rio de Janeiro no século XIX
2.1.1 O movimento de expansão na cidade
Segundo o geógrafo Maurício de Abreu, o século XIX é o momento em que o
Rio de Janeiro altera significativamente sua forma urbana, tanto em termos de
aparência, quanto de conteúdo, ou seja, a própria função da estrutura urbana. Até este
momento, a cidade convivia com grandes limitações físicas à própria expansão e a
ausência de meios coletivos de transporte fazia com que a distribuição da população no
espaço não fosse hierarquizada, diferenciando-se mais pelas residências – umas mais
23
simples, outras sofisticadas – do que pela localização. A chegada da família Real é o
24
pontapé inicial das transformações. Como capital e agora “metrópole interiorizada”, a
cidade deveria transformar-se para que pudesse responder às necessidades econômicas,
políticas e ideológicas que dela se exigiria. É a partir deste momento que a
diferenciação social do Rio de Janeiro também passa a se materializar no espaço urbano,
com a classe dos barões acomodando-se em áreas rigorosamente distintas daquelas
ocupadas pelas pessoas pobres, fossem elas livres ou escravas.
O eixo destas mudanças está relacionado aos problemas ligados ao transporte
urbano. Apesar de Abreu defender que o marco transformador da cidade é a década de
1870, com a difusão das companhias de trens e de bondes – todas elas frutos do capital
internacional que encontrava em nossas terras fontes bastantes seguras de reprodução,

23
ABREU, Maurício ​de. ​Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos,
2011. p. 35.
24
DIAS, Maria Odila Silva.
25
mediante concessões do Império – a tendência geral de segregação já estava lançada,
26
como também demonstra Carlos Valencia Villa em sua tese de doutoramento.
À época da “interiorização da Metrópole”, o raio de ocupação estava
circunscrito à região central e as áreas ao sul eram ocupadas, aos poucos, com chácaras
que as faziam parecer locais de veraneio. No fim da primeira metade do século,
entretanto, frações da classe dominante já puderam se afastar do centro devido a ação do
poder público, que sistematicamente abria caminho para a efetiva ocupação da zona sul
da cidade – freguesias da Lagoa e Glória – e passavam definitivamente a integrar o rol
das freguesias urbanas. Ao mesmo tempo, São Cristóvão, freguesia do Engenho Velho,
também abrigou uma parcela importante das classes abastadas, já que era residência da
família Real e por isso dispunha de infraestrutura útil aos que poderiam pagar pela
mobilidade urbana. A população pobre, por outro lado, incapaz de arcar com os custos
da ainda escassa mobilidade urbana, permanecia próxima ao centro, já que lá
27
concentravam-se as ofertas de trabalho cotidianas.
A partir de meados da década de 1850, a cidade tem um novo impulso de
expansão, com a intensificação da ocupação da zona sul e, principalmente, de novas
áreas correspondentes aos atuais bairros da Cidade Nova, Estácio, Rio Comprido e
28
Catumbi, todas muito próximas ao centro e por isso também habitada por pobres. A
partir dos anos 1870, quando os bondes e trens levaram a cidade a se expandir em
sentidos opostos – os trens associados ao subúrbio e aos pobres, os bondes à zona sul e
aos barões e demais frações das classes abastadas –, mas as bases para a hierarquização
social do espaço já estavam lançadas. A “Metrópole interiorizada”, cidade que
respondia às necessidades simbólicas, econômicas e políticas das mais significativas,
unia, de modo contraditório, a fração mais miserável da população. O resultado deste
processo foi a grande proliferação de cortiços, posteriormente destruídos pela
intervenção estatal no período de Pereira Passos. O gráfico abaixo ilustra o referido
processo.

25
ABREU, Maurício de. op. cit.. p. 42.
26
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​A economia dos negros livres no Rio de Janeiro e em Richmond
(1840-1860). Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2012.
27
ABREU, Maurício de. op. cit. p. 37-39.
28
Idem, ibidem. p. 39-41.
Fonte: ABREU, Maurício de. op. cit. p. 39.

Vários elementos deste gráfico chamam nossa atenção. A freguesia da


Candelária, localizada no coração da área central da cidade, é a única que apresenta
crescimento demográfico negativo para todo o período. Isto se explica pelo fato dela ter
sido, originalmente, residência fixa das classes abastadas, em um momento em que a
zona sul da cidade, aqui representada pelas freguesias da Glória e da Lagoa, ainda
integravam a zona rural, o que também explica sua participação bastante restrita nos
períodos iniciais. Conforme os caminhos ao sul foram sendo abertos e as companhias de
bonde foram sendo disseminadas, a tendência foi o esvaziamento da Candelária e o
adensamento da ocupação das outras duas freguesias supracitadas, que aos poucos
foram tendo suas chácaras e sítios sendo incorporadas à área efetivamente urbana da
cidade.
A freguesia de São Cristóvão, criada apenas em 1856, fruto de sua separação da
freguesia do Engenho Velho, era residência da família Real e por isso área dotada de
boa infraestrutura, o que inicialmente também atraiu uma fração da população abastada.
No final do século XIX, aproveitando-se dessa estrutura, São Cristóvão passou a ser por
excelência a área da indústria nascente do Rio de Janeiro, o que assegurou sua ocupação
crescente nas décadas de 1870 e 1880. As freguesias de Santa Rita e de Santana são
próximas ao centro, ocupadas de modo crescente pelos que não dispunham do privilégio
da mobilidade urbana. Deste modo, a enxurrada de escravos e de libertos que se
multiplicaram durante todo o século XIX, quando permaneciam na Corte, residiam
nestas regiões, o que explica seu crescimento vertiginoso.
Carlos Valencia Villa contribui para nosso argumento, pois demonstra que os
espaços cuja presença de negros livres possuía maior densidade era justamente na área
correspondente à Cidade Velha, mais precisamente entre o Morro do Castelo e a Praia
29
do Valongo. Impressiona a correspondência destes dados com aqueles que se referem
aos trabalhadores que se oferecem para trabalhar, com especial destaque às seguintes
funções: “escravo para vender”, “livre para contratar” e “trabalhador para contratar”.
Estas tendências se mantem ao longo de todo o período analisado pelo autor (1840-60)
e, por mais que hajam algumas alterações como aumento da concentração das ofertas de
trabalho e/ou da região de logradouro de negros livres, a maior densidade está sempre
30
circunscrita à Cidade Velha. É importante notar que estes que se oferecem para
trabalhar não especificam a função a ser desempenhada, traço característico das
camadas populares deste período, que cotidianamente dirigiam-se ao centro em busca
dos serviços disponíveis no dia.

2.1.2 O movimento de expansão em outras regiões da província


O século XIX marca o desenvolvimento não apenas da cidade, mas também da
província do Rio de Janeiro, com a ocupação de novas áreas para exploração do café, no
Vale do Paraíba fluminense, e também da cana de açúcar, ao norte, na região de
Campos dos Goytacazes. Todo este processo de expansão demográfica e também
econômica se verifica nos dados de desembarque de cativos no Brasil, que vive seu
período áureo no curto espaço dos primeiros cinquenta anos dos oitocentos. Não é
coincidência, portanto, o fato do Rio de Janeiro se consolidar definitivamente como
maior importador de escravos, algo que já era notável desde o século anterior. O gráfico

29
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​A economia dos negros livres no Rio de Janeiro e em Richmond
(1840-1860). Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2012. p​ . 90 e 93.
30
Idem, ibidem. p. 177, 195, 216, 259 e 277.
abaixo ilustra este processo ao comparar o número de desembarques de escravos em
vários portos do Brasil entre os séculos XVIII e XIX.

Fonte: ​http://slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces​; Acesso em: 04/08/2015.

Cada região de desembarque no gráfico está representada por duas curvas da


mesma cor. As curvas lineares representam as tendências de cada uma das regiões de
desembarque, que apresentam os números absolutos de indivíduos desembarcados pelas
curvas não lineares. A tendência geral é a do Rio de Janeiro se tornar, cada vez mais, o
local “oficial” de desembarque de cativos de todo o Brasil. O porto do Rio apresenta,
inclusive, uma tendência de crescimento maior do que a do Brasil, com crescimento
positivo ao longo de todo o século e meio representado no gráfico. A Bahia, outro
importante ponto de desembarque, seguiu o caminho oposto e apresentou crescimento
negativo para todo o período. Sua tendência de queda foi mais expressiva do que a de
Pernambuco, que já não tinha a mesma importância de outrora no tráfico negreiro e por
isso também apresentou queda, apesar de ter oscilado positivamente nos intervalos entre
1750-1800 e 1801-1825. Entretanto, voltou a cair de forma vertiginosa no intervalo de
1826-50.
Naturalmente, os escravos desembarcados no porto do Rio de Janeiro não
permaneciam todos nos limites da Corte. Ou seja, a referida expansão econômica, além
da demográfica, pode ser verificada pelo número de escravos levados às outras regiões
da província, em especial o Vale do Paraíba e o norte fluminense. Márcio Soares nos dá
algumas pistas sobre a participação de Campos dos Goytacazes no mercado de escravos
entre meados do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX. A partir de seus
dados, construímos o gráfico abaixo.

Fonte: SOARES, Márcio de Sousa. ​A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos
escravos nos Campos dos Goytacazes (1750-1830).​ Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. p. 37-39.

Este gráfico nos dá alguns sinais da expansão econômica e também demográfica


vivida no norte fluminense nas primeiras décadas do oitocentos. Campos dos
Goytacazes aparece, sozinho, nos três intervalos de tempo, como sendo responsável por
absorver mais de um terço de todos os escravos desembarcados no principal porto do
Império, como já vimos acima. O referido processo de expansão na planície campista
tem início ainda na segunda metade do século XVIII, quando a Coroa portuguesa
recupera a administração da região – anteriormente sob controle dos Asseca –,
apaziguando os conflitos constantes. Outro fator contribuiu para o início de seu ​boom
neste período: transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, fazendo com
que toda a capitania tivesse maior visibilidade e fosse alvo de mais investimentos por
parte dos homens de negócio, interessados em reverter seus ganhos comerciais em terras
31
e escravos. Mas é no século XIX que o escravismo vive seu auge em Campos dos
Goytacazes.
No gráfico acima, é possível notar que entre 1809-14 e 1824-30 o número de
escravos levados a Campos aumenta mais de 34 vezes, saindo de 630, no primeiro
intervalo de tempo, e atingindo a incrível cifra de 22580 na segunda metade da terceira
década dos oitocentos. Em termos percentuais, isto corresponde a um aumento de
3585%. No mesmo período, o número de escravos desembarcados no Rio de Janeiro
cresceu “apenas” 2700%.
Infelizmente não dispomos de dados deste tipo para o período após a
consolidação da economia do café no Rio de Janeiro, mas Márcio Soares, trabalhando
com dados de João Fragoso e de Roberto Guedes, demonstra que desde 1815 tanto
Campos quanto as demais regiões da província do Rio de Janeiro passaram a sofrer uma
espécie de concorrência de Resende no comércio negreiro. Nos sete anos do intervalo
1815-21, Resende absorveu mais de 14 mil cativos, que provavelmente seriam
32
conduzidos a outros locais, possivelmente Minas Gerais e São Paulo. Evidentemente,
há outros sinais da já referenciada expansão. O aumento vertiginoso no número de
cativos se dá em função do enorme crescimento do número de engenhos de açúcar. O
número exato de fábricas de açúcar é incerto, mas por meio da comparação de fontes
diferentes é possível que nos aproximemos da realidade em questão.
Sílvia Lara aponta a existência de 34 e 50 engenhos para os respectivos anos de
1737 e 1752. Utilizando-se ainda da relação de engenhos e engenhocas de aguardente
entregues ao Marquês de Lavradio, identifica a existência de 177 unidades produtivas
33
em 1779. Já em 1785, Manuel do Couto Reis aponta a presença de 297 engenhos –
34
288 engenhos e mais 9 engenhocas de aguardente. Entre 1790 e 1799 as fontes

31
FARIA, Sheila de Castro. ​A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial​. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 32-33.
32
SOARES, Márcio de Sousa. op. cit. p. 38.
33
LARA, Sílvia Hunold. ​Campos da Violência: senhores e escravos na capitania do Rio de Janeiro
(1750-1808)​. São Paulo: Nova Fronteira, 1988. p. 131-132.
34
REIS, Manuel Martins do Couto. ​Uma descripção política, geographica e cronographica do Districto
dos Campos Goitacaz​.
apontam para 308 e 378 engenhos na região, respectivamente, mas outra documentação
demonstra a presença de 324 unidades produtivas no mesmo ano de 1799, que
35
corresponderia a 52,6% de todos os engenhos presentes na capitania até então. No
início do século XIX, Pizarro e Araújo notou a presença de 280 engenhos, mas um
36
crescimento para 400 no ano de 1815 e 700 para o ano de 1828.
Em termos populacionais, podemos auferir a expansão no norte fluminense a
partir do gráfico abaixo. Tanto para esta região, quanto para o Vale do Paraíba
fluminense, dispomos de dados a partir dos anos 1840, provenientes dos mapeamentos
demográficos contidos nos Relatórios dos presidentes de Província do Rio de Janeiro.
Se os juntarmos aos recenseamentos nacionais de 1872 e 1890, mesmo com este último
não constando mais a população escrava em razão da abolição, poderemos traçar a
evolução da população destas regiões. Ademais, contamos com um mapeamento da
população escrava da província entre os anos de 1873 e 1885, ou seja, exatamente entre
o período após o censo de 1872 e os anos finais da escravidão, que o censo de 1890 não
é capaz de informar.

35
ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro e. ​Memórias históricas do Rio de Janeiro (1820-22)​. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1945-51. p. 102.
36
Mapa da População, Fábricas e Escravaturas de que se compõem as diferentes Freguesias da Vila de S.
Salvador dos Campos dos Goitacases no ano de 1799”. AIEB — Coleção Lamego — Cod. 19-69-A8.
LARA, Sílvia Hunold. op. cit. p. 132. ​apud: ​LARA, Sílvia Hunold. op. cit., p. 132.
Fontes: Para os anos de 1872 e 1890, ver os respectivos censos nacionais; para os anos de 1840 e 1885, ver os relatórios
dos presidentes de província do Rio de Janeiro para os anos de 1840 e 1886, disponíveis em:
37
http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_de_janeiro

Este gráfico traça um panorama da comarca de Campos, que reúne os


municípios de Campos dos Goytacazes e São João da Barra, uma vez que São Fidélis,
nos documentos anteriores a 1872, fazia parte do município de Campos. Isto justifica a
ausência de dados para o período 1840. A explicação lógica que entendemos para um
número menor de pessoas recenseadas em 1890 é o não registro dos libertos, que não se
enquadram na categoria de livres. Portanto, a população total em 1890 é equivalente ao
número de pessoas livres mais todo o contingente de libertos. Isto serve igualmente para
os municípios de São Fidélis e São João da Barra, bem como para os do Vale do
Paraíba, que analisaremos na sequência.
Como não temos acesso ao número exato de libertos no momento do
recenseamento, decidimos considera-los com um tamanho proporcional ao contingente
cativo do ano de 1885, descontando em cada ano até 1888 um número equivalente à
média anual de mortalidade e de emigração entre a população cativa. O resultado desta

37
Acesso em: 19/08/2015.
operação é o seguinte: 1) em 1885, como mostra nossa barra cinza no gráfico, havia
27.129 cativos em Campos; 2) entre 1873 e 1885, 2.417 escravos emigraram do
município e 6.986 faleceram; 3) se calcularmos uma média anual de cativos emigrados e
falecidos entre os anos de 1873-85, teríamos, respectivamente, 201,41 e 582,16; 4) se
descontarmos essas médias anuais em um espaço de quatro anos (1885-89), teríamos
uma redução total de 2.328 escravos por falecimento e 805,64 por migrações. A
despeito das muitas limitações desta operação, até porque o censo de 1890 é bastante
controverso, podemos supor que Campos, na última década dos oitocentos contava com
78.036 habitantes livres mais 23.996 libertos não catalogados no censo, que resultaria
em uma população total de 102.032 habitantes, número que se encontra em nosso
gráfico.
O mesmo procedimento foi adotado para os demais municípios, resultando em
uma população total de 26 mil para São João da Barra e de 31 mil para São Fidélis, em
38
1890. Neste espaço de dezoito anos o município de Campos apresentou um
crescimento demográfico positivo de 30%, ao passo que São João da Barra teve um
incremento de 52%. São Fidélis, na contramão das anteriores, aparenta ter tido
crescimento negativo de aproximadamente 25%.
Em relação à população escrava, a queda progressiva era esperada, já que 1840 é
o último retrato que temos antes do fechamento do tráfico negreiro, que tem alguns de
seus sintomas sinalizados no censo de 1872: dos 32.620 cativos registrados no
município de Campos, apenas 4.328, correspondente a aproximadamente 13,5%, eram
estrangeiros. Proporção semelhante encontramos no município de São Fidélis, em que
2.508 dos 14.815 escravos – algo em torno dos 17% - eram estrangeiros. São João da
Barra, apesar de ainda apresentar preeminência total de cativos “nacionais”, tem
estatística ligeiramente diferenciada: 1.061 estrangeiros para 5280 escravos
39
– aproximadamente 21%.
Por outro lado, em 1885, período final da escravidão, podemos observar os
efeitos da Lei de 1871. O relatório do presidente de província do Rio de Janeiro do ano

38
Estimativas feitas com base no censo de 1890 e com o “Quadro demonstrativo do movimento da
população escrava da província do Rio de Janeiro, de 30 de setembro de 1873 a 30 de junho de 1885”. In:
Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio de Janeiro na abertura da primeira
sessão da vigesima sexta legislatura em 8 de agosto de 1886 pelo presidente, dr. Antonio da Rocha
Fernandes Leão. ​Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1886. p. 91
39
Fonte: Censo nacional de 1872. p. 85.
de 1886 apresenta o número de cativos entre julho de 1873 e janeiro de 1885 existentes
no Rio de Janeiro. Os números para 1873, que optamos por não colocar no gráfico,
graças à proximidade com 1872, são maiores do que o censo apresenta para o ano
anterior. Segundo o relatório, havia 35.666 escravos em 1873 no município de Campos,
ao passo que em 1885 este número se reduziu para 27.129. Ou seja, se considerarmos os
dados deste documento, o crescimento demográfico negativo da população escrava
entre 1873 e 1885 é ainda mais expressivo do que o que mostra o gráfico. Neste
período, aproximadamente 2900 escravos foram libertados em Campos, sendo 550 pelo
fundo de emancipação, resultado da Lei de 1871, ou seja, algo próximo de 19% do total
de libertos. A lei também favorece a libertação do cativo “por ato oneroso particular”,
ou seja, a compra da liberdade pelo próprio. 345 tornaram-se livres em Campos por este
40
mecanismo, que corresponde a aproximadamente 12% do total de libertos. Os outros
dois municípios, São João da Barra e São Fidélis, tem um contingente cativo registrado
para o ano de 1873 muito próximo do que há no censo de 1872.
Este crescimento demográfico, especialmente da população escrava, talvez nos
ajude a compreender os limites da indústria açucareira campista e o fracasso de seu
projeto de se recolocar como grande exportador de açúcar no mercado internacional.
Como veremos na terceira parte deste capítulo, ainda nos anos finais da escravidão, da
pequena parte do açúcar produzido na província do Rio destinado à exportação, o porto
do Rio de Janeiro preferencialmente o envia à Argentina e ao Uruguai, longe, portanto,
dos grandes centros consumidores.
Passemos agora à investigação dos movimentos de expansão em outras regiões
e/ou outras temporalidades da província fluminense. João Fragoso e Manolo Florentino,
bem como outros autores, apontam a década de 1830 como momento de consolidação
do Vale do Paraíba como grande importador de escravos e como grande produtor de
café, ao ponto de suplantar o açúcar no percentual das exportações brasileiras. O gráfico
abaixo traduz em números este processo de expansão no Vale do Paraíba e demais
regiões da província.

40
“Quadro demonstrativo do movimento da população escrava da província do Rio de Janeiro, de 30 de
setembro de 1873 a 30 de junho de 1885”. In: ​Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial
do Rio de Janeiro na abertura da primeira sessão da vigesima sexta legislatura em 8 de agosto de 1886
​ io de Janeiro, Typ. Montenegro, 1886. p. 91.
pelo presidente, dr. Antonio da Rocha Fernandes Leão. R
Fontes: Fontes: Para os anos de 1872 e 1890, ver os respectivos censos nacionais; para os anos de 1840 e 1885, ver os
relatórios dos presidentes de província do Rio de Janeiro para os anos de 1840 e 1886, disponíveis em:
41
http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_de_janeiro

Antes de analisarmos o gráfico, destacamos que os municípios que o compõem


foram escolhidos por serem os mais importantes da região durante o período que
estamos estudando. Grandes famílias de barões e estadistas importantes do Estado
brasileiro construíram suas fazendas nestes municípios, que compunham o coração do
42
império para alguns. Tal qual no gráfico anterior, nos utilizamo-nos de aproximações
para apreender a população no início da última década do século XIX. A partir do
mesmo processo, com os mesmos documentos, deduzimos que a população de
Vassouras girava em torno dos 52 mil habitantes, número muito próximo do que
encontramos para Valença: 55 mil. Paraíba do Sul, por sua vez, apresentou um
contingente populacional de 54 mil. Em termos percentuais, Vassouras apresentou
crescimento demográfico positivo de 28%, enquanto Valença, mais discreta, “apenas”

41
Acesso em: 19/08/2015.
SALLES, Ricardo. ​E o Vale era Escravo: senhores e escravos no coração do império. Vassouras,
42

século XIX.​ Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.


de 17% entre 1872 e 1890. Paraíba do Sul, com crescimento positivo de cerca de mil
habitantes, consideramos como estável.
Em relação à população escrava, este gráfico apresenta uma diferença em
relação a Campos, por exemplo, no gráfico anterior. Por ser uma região de ocupação
bastante mais recente em relação ao Norte-Fluminense, o Vale do Paraíba não parece
viver o apogeu do escravismo nos anos 1840, já que em todos os casos o início da
década de 1870 apresentou um contingente cativo superior. A queda que período
1872/73-1885 sugere não é tão intensa quanto a que mostramos para o
Norte-Fluminense. Pelos números do censo de 1872, as populações escravas de
Vassouras, Valença e Paraíba do Sul reduziram-se em 15%, 17% e 18%,
respectivamente. Esta redução foi menor porque os três municípios adquiriram muitos
cativos após 1873: Vassouras presenciou a entrada de 3.254; Valença recebeu 7.778 e
Paraíba do Sul 4.897. Talvez pelo fato de haver um significativo contingente de novos
cativos, o número de libertos, seja por liberalidade particular, seja pelo fundo de
emancipação ou pelo ato oneroso particular do próprio cativo, jamais tenha atingido
43
sequer 10% da população cativa.
De maneira geral, observamos movimentos de expansão econômica e
demográfica na província ao longo do século XIX. Entre as décadas de 1840 e 1870,
observamos um incremento no número de cativos, pois em 1840, havia na província do
Rio de Janeiro quase 225 mil cativos, sem contar o município neutro, número que sobe
para 292 mil no recenseamento de 1872. Acreditamos que esta tendência tenha se
mantido também na própria Corte. De tal modo que, no período em que nos propomos a
analisar, este imenso contingente negro poderia, sim, tornar-se um gigantesco mercado
consumidor de produtos primários, como açúcar e/ou café, mandioca, dentre outros
elementos que poderia compor sua alimentação. Para isso, é preciso rever as ideias
clássicas da historiografia a respeito do mercado que, como expusemos na primeira
parte, o consideravam como inexistente ou como extremamente restrito. Pesquisas
recentes, com estudos de caso na própria Corte, demonstram o contrário.

2.2 Cativos e forros – compradores e vendedores de mercadorias primárias

43
“Quadro demonstrativo do movimento da população escrava da província do Rio de Janeiro...”. p. 91.
2.2.1 As operações financeiras dos pobres e a questão da moeda
Na primeira sessão deste capítulo, mencionamos que a elevada concentração de
renda foi apontada por Fernando Novais e pela dupla Suzigan e Bueno como um dos
motivos para justificar a inexistência do mercado interno no Brasil. Mas mesmo entre
aqueles que defendem sua existência a questão se torna relevante para justificar o quão
estreito seria este mercado. É o caso de João Fragoso que sozinho ou em coautoria com
Manolo Florentino defende a existência de um mercado restrito, com circulação precária
44
de mercadorias e moedas. A prova empírica para este argumento da iliquidez de nossa
economia é retirada dos testamentos e inventários, que demonstram que a elite mercantil
do Rio de Janeiro concentrava entre 34% e 71% do total de moeda em circulação, além
de outros bens, tais como os empréstimos (entre 77% e 95%), as apólices e ações (96%)
e os bens rurais, estes com concentração menor (intervalo de 47% a 71%), já que não
faziam parte essencial da estratégia de acumulação, mais restrita aos grandes negócios.
Deste modo, segundo os autores, as frações mais pobres da população “tinham na
45
lavoura o setor de investimentos mais viável”.
Diante destes dados, Carlos Valencia Villa questiona o monopólio da classe
mercantil do Rio de Janeiro sobre a circulação monetária, já que os bens rurais estavam
ainda mais concentrados em termos percentuais do que a própria moeda – devido ao
intervalo percentual menor –, e ainda assim os pobres tinham acesso a eles. Ou seja, se
há acesso a um, pelos argumentos apresentados por Fragoso e Florentino, não há razão
46
para crermos que o acesso ao outro – a moeda – seja plenamente vedado aos pobres.
Os gráficos abaixo, inspirados na proposta do próprio Valencia, mas construídos a partir
de outra combinação de dados, evidenciam uma forte correlação entre as alterações no
volume de papel moeda em poder do público e as alterações no custo de vida:

44
FRAGOSO, João. ​Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830)​. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992, p. 185.
45
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. ​O Arcaísmo como Projeto: Mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma sociedade colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840​. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 184.
46
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​La producción de la libertad: economia de los esclavos manumitidos
em Río de Janeiro a mediados del siglo XIX. ​Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia e História,
2011. p. 152-155.
Fonte: IBGE. ​Históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. Rio de
Janeiro: IBGE, 1990. p. 527-32. BUESCU, Mircea. ​História econômica do Brasil: pesquisas e análises.​
São Paulo: APEC, 1970.

O gráfico 6 apresenta a evolução percentual tanto do papel moeda em poder do


público quanto do custo de vida no Brasil, entre 1852-1888. Apesar da distância entre as
curvas aumentar de forma bastante visível, o importante é notar que na maior parte das
vezes as duas curvas têm comportamentos semelhantes, apesar de não proporcionais.
Via de regra, seguem a mesma tendência: quando uma sobe, a outra acompanha e
vice-versa. Apesar das curvas fazerem referência ao país como um todo, é possível
supor que haja uma correspondência com o Rio de Janeiro, na medida em que é a
capital do império, maior centro comercial e portuário da América do Sul àquele
momento. Ou seja, se há um espaço que concentra boa parte da circulação monetária do
país, este lugar é a cidade do Rio de Janeiro. Importante destacar que o papel moeda em
poder do público é distinto da emissão de papel moeda, pois esta é sempre maior do que
aquela. O papel moeda em poder do público se refere, basicamente, à emissão total
menos a fração que se encontra nas casas bancárias – a menor parte. O gráfico 7 nos
permite, por meio de recursos estatísticos de correlação e regressão, visualizar melhor a
47
correspondência entre as curvas do gráfico 6.

FINLAY, Barbara & AGRESTI, Alan. ​Métodos Estatísticos para Ciências Sociais.​ Porto Alegre: Ed.
47

Penso-Artmed, 2012.
Fonte: IBGE. ​Históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. Rio de
Janeiro: IBGE, 1990. p. 527-32. BUESCU, Mircea. ​História econômica do Brasil: pesquisas e análises​.
São Paulo: APEC, 1970.

O gráfico 7 apresenta a correlação, bem como a regressão entre duas variáveis: o


índice % da variação do papel moeda em poder do público – variável independente – e o
índice % da variação do custo de vida – variável dependente. Nosso objetivo com ele é
avaliar o quanto a variável independente pode explicar a variação da variável
dependente. Os pontos dispersos apresentam exatamente isso: o aumento do papel
moeda em poder do público – eixo horizontal – gera aumento nos preços de maneira
geral – índice vertical. Uma correlação é tanto mais forte quanto mais reta for a
disposição dos pontos no gráfico; quanto mais reta esta disposição, mais próxima de 1
será o ​R – coeficiente de correlação Pearson – sendo +1 o maior valor possível para uma
correlação diretamente proporcional e -1 o maior para uma correlação inversamente
proporcional. Quanto mais próximo de 0 estiver o ​R​, menor será a correlação.
Nosso caso apresenta uma correlação considerada forte – ​R ​= 0,79, sendo acima
de 0,9 uma correlação considerada muito forte –, ou seja, nossa variável independente
explica de forma satisfatória a variação de nossa variável dependente. Para traduzir isto
em números, utilizamo-nos do método de regressão linear, representado no gráfico 7
pela reta pontilhada e pelo coeficiente de determinação – ​R² - que nos informa a respeito
do quanto, em termos percentuais, a variável dependente pode ser explicada. Ou seja,
pelo nosso coeficiente de determinação de 0,6329, temos que 63,29% da variação nos
preços são explicadas pelo papel moeda em poder do público; os outros 37% são
explicados por outras variáveis que não dispomos. De todo modo, é um indício forte de
que havia circulação monetária, contrariando, portanto, os argumentos de Fragoso e
Florentino de um estado quase permanente de iliquidez nos circuitos alheios ao grande
comércio. Daí o papel absolutamente fundamental que os autores atribuem às cadeias de
endividamento capitaneadas pelos grandes comerciantes. Porém, como alerta Valencia,
não se pode deduzir disto uma caracterização de todo o mercado. Não há dúvidas de que
a oferta era bastante concentrada neste segmento. Mas não passava disso: um – o maior,
48
sem dúvidas –, dentre outros segmentos. Os pobres, fossem eles livres ou escravos,
tinham acesso ao dinheiro, mesmo que em pequenas quantias, o que justifica a condição
de pobres.
Pesquisas recentes tem tratado das formas de pecúlio entre os cativos, os
elementos mais desfavorecidos economicamente de toda nossa história. Este não é um
tema novo em nossa historiografia, por isso vamos nos balizar aqui nos que enfatizam
as operações financeiras dos cativos. Keila Grinberg analisa a poupança como uma
dentre outras alternativas usadas pelos cativos para a compra da alforria na segunda
metade do século XIX. No ano de 1860, no contexto de criação da Lei dos Entraves,
que visava, dentre outras coisas, centralizar minimamente a oferta de crédito, o império
previu a criação das Caixas Econômicas, casa bancária destinada a “receber as pequenas
49
economias das classes menos abastadas”.
A autora aponta para a realização de quase 23 mil depósitos de até 50 mil reis
apenas no ano de 1871 e, entre os classificados como ‘pequenos capitalistas”, foram
realizados neste mesmo ano quase 88 mil depósitos, maioria no valor de 50 mil réis.
Uma das explicações dadas por Grinberg para esta explosão do número de poupadores a
partir do início dos anos 1870, haja vista a baixa procura da década anterior, é a
regulamentação da Lei do Ventre Livre, que reconhecia oficialmente o direito do
50
escravo acumular pecúlio. Entretanto, em artigo bastante recente, Luiz Fernando
Saraiva e Thiago Alvarenga de Oliveira identificam depósitos de cativos ainda na
década de 1830, na primeira Caixa Econômica fundada do Rio de Janeiro, de caráter

48
Idem, ibidem. p. 157-158.
49
GRINBERG, Keila. “A poupança: alternativas para a compra da alforria no Brasil (2ª metade do século
XIX). In: ​Revista de Índias,​ vol. LXXI, nº 251, 2011. p. 140.
50
Idem, ibidem. p. 143-144.
privado e experimental. Criada em 1831, os autores identificam um total de 33 escravos
em um universo de 771 poupadores, no primeiro semestre de 1833. Já no segundo
semestre do mesmo ano o número de acionistas chega a 1326, contando com 111
cativos. Ou seja, no segundo semestre deste ano, a população de acionistas cativos
aumentou mais, percentualmente, do que a de livres. Para demonstrar a força econômica
destes pequenos acionistas, os autores resolvem comparar o fundo total da Caixa
Econômica com de outros estabelecimentos financeiros, que não possuem a restrição de
serem destinados a pequenos poupadores. O resultado é surpreendente: em 1842, o
Banco Comercial possuía um capital de 2500 contos de réis, ao passo que o da Caixa
Econômica, no início de 1840, era de 3409 contos, o que corresponde a 136% do capital
51
total daquele. Ou seja, mesmo antes da Lei de 1871 os escravos poupavam.
Quem melhor trabalhou com as operações financeiras dos pobres no Rio de
Janeiro – escravos e/ou libertos – em meados do século XIX foi Carlos Valencia Villa.
Estudando as alforrias na cidade do Rio de Janeiro entre 1840-71, o autor manuseou um
total de 17650 ações de liberdade, sendo 4600 alforrias pagas, que não necessariamente
são pagas com dinheiro, já que havia casos de pagamentos via crédito. No total,
estipula-se que as alforrias pagas teriam representado 38% do total analisado para o
52
período. Importante destacar que este número não representa o total de cativos que
eventualmente tenham operado com dinheiro, mas apenas os que conseguiram a
liberdade, indubitavelmente a minoria entre a população total de cativos. Ainda assim,
esta pequena fração escrava, junta, pode ser considerada detentora de um poder
econômico significativo.
Podemos exemplificar isso de duas formas: demonstrando o percentual de
alforrias pagas com dinheiro sobre o total de moedas em circulação ou comparando os
pagamentos em dinheiro pela alforria com o investimento em grandes fazendas do Vale
do Paraíba em anos específicos. Em ambas as formas, verifica-se uma expansão das
operações econômicas para pagamento da liberdade, seja pelo aumento de indivíduos
dispostos a pagar, seja pelo aumento do valor da liberdade. No primeiro caso, que
inclusive corrobora as informações de nossos gráficos 6 e 7, Valencia demonstra que na
década de 1840, o total de alforrias pagas representou entre 0,08 a 0,13% das moedas

51
SARAIVA, Luiz Fernando & OLIVEIRA, Thiago Alvarenga de. “A primeira Caixa-Econômica do Rio
de Janeiro: 1831-1858, notas de pesquisa”. Texto inédito. p. 15-18.
52
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​La producción... o​ p. cit. p. 36-37.
em circulação, números esses que se ampliam para 0,20% a 0,26% nos anos 1850, ou
seja, mais do que o dobro da anterior. Já a proporção do montante entre alforrias e
grandes fazendas, em três das cinco ocasiões elencadas pelo autor o valor conjunto das
ações de liberdade foram maiores do que das fazendas, correspondendo a 105%, 138% e
164% de seu valor. Nos outros dois casos, a proporção foi bastante próxima, com as
53
alforrias somando 78% e 96% dos valores das fazendas. Isto significa dizer que, no
ano de 1859, as alforrias somaram 155 contos de réis, valor quase duas vezes maior do
que toda exportação de açúcar do porto do Rio de Janeiro para o estrangeiro no biênio
1880-81, que atingiu apenas a cifra dos 83 contos de réis e também maior do que os 147
54
contos de réis usados na montagem da fazenda de Guilhermo Francisco Rodrigues.
Reiteramos o fato destas análises contar apenas com os cativos que obtiveram êxito na
aquisição da liberdade, grupo restrito, e não todos aqueles que movimentavam dinheiro.
Estes exemplos nos parecem ser o suficiente para demonstrar que os cativos
podiam e de fato operavam com dinheiro. Mesmo que nós tenhamos tomado os escravos
sempre em conjunto, comparando com operações de cunho individual, como o
investimento em fazendas, certamente estas operações se realizavam em um volume
cuja historiografia não supunha ser possível até então. Chegamos então a um dos pontos
nodais deste capítulo: a possibilidade deste segmento pobre ser um possível consumidor
das mercadorias primárias exportadas de Campos aos diversos espaços da província
fluminense cuja evolução demo-econômica já analisamos anteriormente. Naturalmente,
não queremos com isso dizer que um poderoso polo açucareiro do império tinha sua
produção absorvida por escravos da província, mas simplesmente que se havia a
possibilidade econômica do mais desfavorecido grupo social participar deste mercado
consumidor de bens primários, os demais grupos certamente também poderiam fazê-lo,
seja para consumo próprio, seja como matéria-prima para outras atividades. Incluímos
neste grupo de potenciais consumidores os libertos, quase tão pobres quanto os cativos,
mas com o importante diferencial de não entregar uma fração de seus ganhos a um
senhor.
Naturalmente, o grupo dos libertos também compõe um expressivo grupo
econômico entre aqueles que podemos classificar como “pobres”. As escrituras de

53
Idem, ibidem. p. 160-61.
54
Idem, ibidem. p. 161-162.
negócio por eles assinadas também deixam bastante claro que participavam do mercado
também enquanto consumidores, e não apenas como produtores. Somente no período
entre 1840-46, as escrituras públicas do quartil inferior registradas no primeiro ofício de
notas do Rio de Janeiro somaram 189 contos de réis. Das 524 escrituras usadas por
Valencia para analisar a questão, 199 se referiam a vendas, 195 a empréstimos, 54 a
aluguéis, 38 a pagamentos de dívidas e 11 a aforamentos. O endereço dos vendedores e
compradores destas mercadorias transacionadas – 44% delas era dinheiro – coincidiu
55
com os endereços em que os trabalhadores se ofereciam no ​Jornal do Commercio​.
No período compreendido entre 1847-50, dois anos a menos do que entre
1840-46, os valores transacionados nas escrituras do quartil inferior somaram 118
contos de réis, tendo predominado as vendas e os empréstimos. Novamente, os
fornecedores e os destinatários concentraram-se na Cidade Velha, local que tanto
Valencia quanto Maurício de Abreu consideram ser moradias de pobres e, dentre eles,
56
escravos e libertos. Ou seja, cativos e libertos realizavam operações financeiras que
não se restringiam à compra da liberdade. Evidentemente, não podemos considerar
como “padrão”, especialmente em relação aos escravos, a realização de empréstimos,
mas a possibilidade de fazê-lo, por mais restrita que fosse – e era – estava aberta a
alguns poucos.
Como já analisamos anteriormente, o gráfico 6 demonstra uma curva em que o
custo de vida, a despeito das pequenas oscilações para mais e para menos, tende a
crescer. Mas, em se tratando de uma sociedade ainda pré-capitalista, seriam os efeitos
do aumento dos preços das mercadorias primárias sobre os trabalhadores os mesmos de
hoje, em uma sociedade de mercado?

2.2.2 O “jornal” e as flutuações dos preços das mercadorias primárias


Em linhas gerais, o que distingue uma sociedade pré-capitalista de uma
sociedade capitalista é o fato dos produtores diretos, os trabalhadores, não estarem
plenamente separados dos meios de produção, de tal modo que o mercado não se torna
uma compulsão. Existem diversos indícios de que os cativos, tanto no espaço rural
quanto no urbano, tinham acesso a ao menos uma fração de sua subsistência sem

55
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. “A economia dos negros livres...” op. cit. p. 120-122.
56
Idem, ibidem. p. 166-67, 174-176.
recorrer ao mercado. Talvez o maior exemplo disso seja a questão da “brecha
camponesa” estudada por Ciro Cardoso, que se caracterizava por permitir ao cativo um
espaço econômico relativamente autônomo para atuar não apenas provendo sua
subsistência de modo parcial ou total, mas também comercializando eventuais
57
excedentes agrícolas.
Isto fica explícito no caso da fazenda de Cachambú estudado por João Fragoso
em sua dissertação de mestrado. As despesas com a mão de obra cativa representavam
aproximadamente 40% dos gastos totais da fazenda. Dentre esses, o que mais pesava era
aquele com a aquisição de gêneros alimentícios, algo em torno de 40% deste total gasto
58
com os escravos. Dentre os anos analisados pelo autor, no 1º semestre a tendência era
a fazenda ter gastos maiores no mercado, com feijão e arroz, já que era período de
colheita, em que há trabalhadores extras. O mesmo não acontecia no 2º semestre, em
que somente um dos dois produtos era comprado no mercado – feijão ou arroz –, uma
vez que o outro era adquirido junto aos escravos. Apesar dos gastos serem grandes para
adquirir os gêneros necessários à subsistência da unidade produtiva de maneira geral, o
autor conclui que ele seria significativamente maior caso fosse necessário buscar no
mercado os gêneros obtidos junto aos escravos, lembrando ainda que o grosso da
59
produção cativa era destinada ao consumo dos próprios escravos.
No caso exemplificado por Fragoso e em tantos outros semelhantes, é possível
notar um dado curioso: a inflação poderia ​eventualmente ajudar, e não dificultar, a
situação econômica dos pobres. Isto se expressa a partir de alguns dados levantados por
Valencia: entre 1842 e 1847, a produção autônoma dos cativos deveria incrementar-se
em quase 17% para cobrir o aumento de quase 12% dos preços das ações de liberdade;
entre 1847-50, com valor nominal acrescido em 19,5%, a produção de bens primários
realizadas pelos cativos deveria crescer em quase 52% para que pudesse acompanhar o
valor da alforria. Ou seja, neste período o valor nominal da liberdade subiu mais do que
o das mercadorias comercializadas, dificultando o cotidiano do trabalhador. Mas o
inverso também acontecia: entre 1850-53, o preço nominal da alforria praticamente

57
CARDOSO, Ciro F. S. ​Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas​. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
58
FRAGOSO, João. ​Sistemas agrários em Paraíba do Sul (1850-1920): um estudo sobre relações
não-capitalistas de produção. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
História da UFRJ. Rio de Janeiro, 1983. p. 65-67.
59
Idem, ibidem. p. 68-69.
dobrou, mas a quantidade de farinha de mandioca que correspondia a este valor se
60
reduziu em 33%.
Em suma, ao contrário dos dias de hoje, em que os trabalhadores se veem
obrigados na maior parte das vezes a recorrer ao mercado para subsistência, as
possibilidades dos cativos e/ou forros manterem uma produção de mercadorias
agropecuárias independente os dava a chance de amenizar os efeitos inflacionários.
Evidentemente é sempre uma questão de risco: para que a inflação seja “benéfica” para
determinados grupos, é necessário haver uma coincidência entre a mercadoria produzida
e as mercadorias mais valorizadas pela inflação. Não há como sabermos se havia
alguma forma de prever isto na época, sobretudo se considerarmos que se trata de uma
população majoritariamente analfabeta.
Os rendimentos dos pobres não provinham unicamente desta produção
independente. Todas as pesquisas que se debruçaram sobre este tema afirmam de modo
61
categórico que a chave para a sobrevivência era a flexibilidade, a despeito de algumas
fontes sugerirem o contrário. O recenseamento de 1872 possui seções específicas que
avaliam e dividem a população pelas ocupações, sugerindo a existência apenas de
profissionais especializados e de pessoas sem profissão. Dos aproximadamente 340 mil
escravos existentes na província fluminense, o censo assim os classifica:

Profissionais/regiã Artista Operário Profissõe Jornaleiro Serviço Sem Outra


o s s s s Doméstic Profissã s
Agrícolas o o
Município Neutro 498 2135 5695 5285 22842 9899 2085

Província 275 649 144575 25670 27136 90242 7090


62
Tabela 1 – Profissões exercidas pelos cativos na Corte e na província

Algumas categorias de nossa tabela reúnem várias profissões listadas no censo


de 1872. É o caso das “profissões agrícolas”, que se dividem entre lavradores e

60
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​La producción...​ op. cit. p. 237-239.
61
SOARES, Luiz Carlos. ​O povo de Cam na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do
século XIX.​ Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011; VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​La producción...​ op. cit.
62
Fonte: “Recenseamento do Brazil em 1872”. p. 12 e 90.
criadores – nesta última não há qualquer cativo empregado, seja na capital ou nos
demais municípios da província –, dos “operários”, que consiste nos cativos
empregados em qualquer tipo de indústria, como construção civil, calçados, chapéus,
tinturaria e etc. – representam quase todas as ocupações mecânicas, exceção feita à
63
profissão de “costureira”, que colocamos junto à categoria “outros”.
Nenhuma surpresa ao constatar que em uma sociedade rural maior parte dos
cativos estivesse empregada na lavoura e estes, acreditamos, tinham uma margem de
flexibilidade menor. Não simplesmente por estar no espaço agrícola, no sentido de
reificarmos as clássicas dicotomias da historiografia entre o escravo urbano – negro de
ganho, capaz de acumular uma fração de seus rendimentos cotidianos – e o escravo
rural – preso ao feitor e à fazenda, absolutamente incapaz de circular sem qualquer
vigilância coercitiva –, já que Keila Grinberg nos informa que muitos poderiam ser
empregados como intermediários no comércio entre quilombolas e/ou comerciantes de
64
outros espaços, revendendo madeira, leite, dentre outras mercadorias. Ao mencionar a
brecha camponesa, expusemos que era viável a existência de espaços menos coercitivos
ao cativo. A questão aqui é destacar que as cidades possuíam um sem-número de
atividades econômicas, fossem elas produtivas ou de serviços, que dava aos
trabalhadores de maneira geral um leque maior de possibilidades. Neste sentido, o censo
de 1872 dá a impressão de que os cativos – e os livres pobres – exerciam apenas as
funções nas quais foram registrados, o que não corresponde à realidade. Provavelmente
um mesmo indivíduo registrado como “artista” – artífice – poderia tornar-se operário ou
empregar-se no serviço doméstico pouco depois. O mesmo vale para as demais
ocupações mencionadas na tabela.
Importante destacar que isto se refere tanto a escravos quanto a livres ou
libertos. Em termos econômicos não havia muita diferença em relação ao que faziam e
quanto recebiam. A distinção fundamental – e o que justifica, em termos econômicos, a
busca da liberdade entre os cativos – é o fato de um liberto não entregar uma fração de
seu jornal a um senhor. Esta é uma diferença importante se quisermos pensar na
inserção deste segmento de trabalhadores no mercado de bens primários. A fração que
anteriormente era dispensada ao senhor poderia ser revertida em uma melhoria

63
Idem, ibidem. p. 12 e 90.
64
GRINBERG, Keila. op. cit. p. 147.
significativa na subsistência. Já a poupança para aquisição da liberdade, muito
provavelmente, continuava, já que normalmente a “produção” desta mercadoria tinha na
65
família um ponto seminal. Ou seja, após a libertação de um, investia-se na dos demais
membros. Mas, em termos ocupacionais, as diferenças eram quase inexistentes.
Novamente é Carlos Valencia que exemplifica isso de forma empiricamente
consistente. Estudando o que julga ser um mercado de trabalho da cidade do Rio de
Janeiro, o autor utilizou-se dos classificados do ​Jornal do Commercio para mensurar a
oferta e a procura por trabalhadores na cidade entre 1840-60. Em casos de procura, os
anúncios continham informações que muitas vezes deixam claro que não é corriqueira a
especialização profissional ou a condição jurídica, mas sim a contratação de
trabalhadores que estejam dispostos a receber o quanto o anunciante se propõe a pagar.
Somente às vezes se informava as habilidades requeridas ou a ocupação em si, sendo o
mais comum o endereço de onde se poderia encontrar o trabalhador, caso em que o
próprio anuncia a disponibilidade para trabalhar em algo, ou a vaga para trabalhar, caso
66
do anunciante que vai à procura de um empregado. De fato, entre 1840 e 1846, o lado
da oferta de trabalho era composto de forma majoritária pelos que pretendiam vender
cativos, mas a oferta de trabalhadores não especializados para alugar, fossem eles
escravos ou livres, triplicou: saiu de uma média de cinco anúncios por jornal para
67
dezesseis.
Se a flexibilidade era uma das características das atividades desempenhadas por
este segmento da população, é de se esperar que os rendimentos provenientes também o
fossem. E assim era caracterizado o “jornal” destes trabalhadores: inconstante tanto na
periodicidade quanto no valor a ser recebido, o que o impede de ser comparado a um
salário. Considerando as inconstâncias inerentes a este tipo de relação social, estipula-se
que o valor do jornal poderia variar, na média, entre 8 a 12 mil réis mensais, com uma
tendência geral de ampliação dos valores nominais e uma oscilação nos valores reais.
Partindo destes dados, é possível calcular, de modo aproximado, a quantia necessária
para manutenção de um trabalhador adulto. Segundo Valencia, entre 1840 e 1871 este
valor – nominal – oscilou entre 70 e 250 réis diários, correspondente 2100 e 7500 réis
mensais, respectivamente. Em termos reais, os custos de alimentação chegam a atingir,

65
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​La producción...​ op. cit. p. 143-145.
66
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​A economia dos negros livres... ​op. cit. p. 92-93
67
Idem, ibidem. p. 98-99.
68
no máximo, 33,5% e, no mínimo, 14,3%. Estes são valores que correspondem a trinta
dias de alimentação adquiridas no mercado. Ou seja, quase sempre estes valores, na
realidade, eram menores, haja vista que os trabalhadores não apenas comercializavam
os bens agropecuários que produziam, como também os consumiam.
A questão agora é comparar o preço dos alimentos tradicionalmente consumidos
pelos trabalhadores pobres com os do açúcar produzido em Campos dos Goytacazes, no
sentido de avaliarmos a ​possibilidade deste segmento populacional colocar-se como
consumidores. Infelizmente, para os anos 1850 e 1860, dispomos apenas dos preços
médios anuais do kg do açúcar, sem ter acesso às suas oscilações. Apenas a partir do
ano de 1874 dispomos de informações sobre as oscilações anuais dos preços do açúcar,
bem como de outras mercadorias tradicionalmente comercializadas no Rio de Janeiro.
Resolvemos não contabilizar a aguardente, pois não era o principal objetivo da indústria
campista.
Valencia menciona a média dos preços para o ano de 1856 da seguinte forma:
14$129 réis para o saco de arroz; 5$192 réis para a arroba de carne-seca; 13$000 réis
69
para o saco de feijão. Neste mesmo ano o ​Almanak de Campos publica uma relação de
preços do açúcar produzido em Campos e levado ao Rio de Janeiro entre 1852-1883.
70
Para nossa surpresa o preço médio por kg, em 1856, corresponde à 150 réis. Não
identificamos no texto de Valencia o quanto em kg equivalia o saco de arroz e de feijão,
mas supomos ser o equivalente a 60kg, o que daria um preço por kg de 235 e 216 réis,
respectivamente, enquanto a carne-seca equivaleria a 346 réis por kg. Já para o ano de
1860, a relação de preços médios de Valencia foi a seguinte: 12$146 para o saco de
71
arroz; 11$568 para o saco de feijão; 3$128 para a arroba da carne-seca. Em kg, estes
valores seriam correspondentes a 202, 193 e 208 réis, respectivamente. O preço médio
72
do açúcar de Campos registrado no ​Almanak​ para o ano de 1860 foi de 174 réis por kg.
Não dispomos de dados comparativos para os anos 1860, portanto, voltaremos
nossa atenção para as décadas de 1870 e 1880. Com isso podemos comparar os preços

68
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​La producción...​ op. cit. p. 218.
69
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​A economia dos negros livres... ​op. cit. p. 203.
70
ALVARENGA, João de. (org.). ​Almanak Mercantil, Industrial, Administrativo e Agrícola da cidade e
município de Campos, comprehendendo tambem os municípios de S. Fidélis, Macahé e S. João da Barra
(Rio de Janeiro).​ Campos: Typographia do Monitor Campista, 1885. p. 54.
71
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. ​A economia dos negros livres... ​op. cit. p. 253.
72
ALVARENGA, João de. (org.). op. cit. p. 54.
do açúcar de Campos, seja ele branco ou mascavo, com os da carne-seca, item básico na
subsistência dos pobres, segundo Valencia, entre 1874 e 1889. Os gráficos abaixo
servem de base à nossa comparação.

Fonte: ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio.​ Typographia imperial e constitucional de


J.Villeneuve e C. (1874-79). Disponível em: ​http://memoria.org.br/

Fonte: ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio.​ Typographia imperial e constitucional de


J.Villeneuve e C. (1874-79). Disponível em: ​http://memoria.org.br/
Fonte: ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio (1874-79)​. Typographia imperial e
constitucional de J.Villeneuve e C. (1875-79). Disponível em: ​http://memoria.org.br/

Antes de analisarmos os gráficos é necessário explicarmos como seus dados


foram produzidos a partir das fontes consultadas. O ​Restrospecto Commercial do Jornal
do Commercio oferece uma série de tabelas a respeito das entradas e saídas de
mercadorias do porto do Rio de Janeiro, sejam provenientes dos portos do exterior,
sejam provenientes do próprio império, por cabotagem. As mercadorias mais destacadas
são, nesta ordem, as seguintes: 1) café; 2) açúcar; 3) carne-seca; e 4) aguardente. Em
cada caso, há informações sobre o volume exportado nas últimas safras – para o café, há
informações sobre as exportações dos últimos 24 anos anteriores a partir de 1874 –,
sobre o volume das mercadorias entradas por cabotagem depositada nos trapiches do
porto e, mais importante neste momento, informações a respeito da variação mensal dos
preços de cada mercadoria entre 1870-1890. Consideramos desnecessário demonstrar no
gráfico a flutuação mensal dos preços, portanto, decidimos calcular esta variação média
para cada ano. Isto foi feito a partir do cálculo do preço médio por mês que somados nos
permitiu calcular este mesmo preço médio para o ano. Os valores máximos e médios
referem-se às médias mensais extremas. Ou seja, a média anual não corresponde, como
pode sugerir, à soma dos valores mínimos e máximos divididos por dois, mas sim à
soma dos valores médios de cada mês divididos pelo número de meses.
Pela disposição dos pontos nos gráficos, é possível observar que o açúcar branco
é o que apresenta a série mais uniforme, com as menores oscilações ao longo dos anos.
A carne-seca proveniente da província de Rio Grande, por outro lado, apresenta grandes
oscilações em pelo menos seis anos. O açúcar mascavo está no meio termo entre as
outras duas mercadorias, oscilando mais do que o branco, mas bem menos do que a
carne-seca.
A série do açúcar branco pode ser dividida em três partes com tendências
distintas. A primeira, entre 1870-74, é de uma queda contínua nos preços, variando
somente a intensidade desta queda de ano para ano. 1870 apresenta os maiores índices
de preços máximos, médios e mínimos de toda a década: 3813, 3600 e 3302 réis,
respectivamente, para cada 10kg de açúcar branco. Entre 1874-76, a segunda parte, há
uma tendência de crescimento, mas que não chega a equiparar com o início da década.
Uma terceira etapa se apresenta entre 1876-78, cuja tendência é a estabilidade, portanto,
também se mantém bastante abaixo dos preços do início da década. O ano de 1879
aponta para uma nova tendência de queda, mas que só podemos confirma-la a partir da
comparação com os dados da década de 1880, como faremos mais adiante. Nos seis
anos em que o açúcar branco apresentou oscilação maior em relação aos demais – 1870,
1871, 1873 e 1879 – os preços médios estiveram mais próximos dos máximos do que
dos mínimos. Por outro lado, é um indício de que as oscilações tendiam mais a baixar
do que a subir os preços.
Para a série do açúcar mascavo, identificamos cinco tenências que se
diferenciam muito mais entre si do que as tendências do açúcar branco. A primeira,
entre os anos de 1870-71, apresenta uma tendência de alta, fazendo com que os preços
atinjam os maiores valores máximos, médios e mínimos da década: 3098, 2709 e 2178
réis, respectivamente, para cada 10kg de açúcar mascavo. Igualmente curta, a segunda
tendência – 1871-72 – é de queda abrupta nos preços, ao ponto de o preço médio ser o
segundo menor de toda a década: 1815 réis por 10kg. Entre 1872-74, há uma tendência
de estabilização dos preços, próximos aos de 1872. Neste período identifica-se o menor
preço médio para a década: 1776 réis por kg em 1874. Uma quarta tendência se inicia
em 1874 e se entende até 1877, com aumento progressivo dos preços, mas sem retomar
os patamares mais altos dos anos de 1870-1871. Na última fração desta tendência –
1876-77 – é possível verificar que o aumento dos preços desacelera. No limite, é
possível advogar que estes dois anos representam uma quinta tendência no gráfico, com
preços estáveis nestes dois anos. Por fim, entre 1877-79, percebe-se nova queda nos
preços, que os aproxima novamente dos patamares mais baixos da década.
Nesta série temos seis anos de grande oscilação, mas mais intensas do que as
oscilações do açúcar branco. 1870, 1871, 1872, 1876, 1877 e 1879 são os anos que
apresentam maiores oscilações, entretanto, não é possível notar de modo evidente, como
o é para o açúcar branco, se os preços médios estão mais próximos dos máximos ou dos
mínimos. O importante aqui é destacar que a despeito de toda flutuação, o açúcar
mascavo, como é de se esperar, apresentou preços bastante mais modestos que o branco.
Supomos que se há consumo de açúcar entre os pobres, ele se realizou mediante o
consumo de mascavos. Aliás, importante notar também que a indústria açucareira
campista é reconhecida na época pela produção de açúcar mascavo, conhecidos como
73
“mascavinhos de Campos”.
A carne-seca proveniente do Rio Grande do Sul apresentou oscilações muito
maiores que os dois tipos de açúcar. O gráfico apresenta quatro tendências distintas
entre 1871-79, pois não possuímos seus dados para 1870. Inicialmente, entre 1871-73,
verificamos uma tendência de queda, que desacelera entre 1872-73, apesar de atingir
seu menor valor médio para a década justamente em 1873: 1791 réis para cada 10kg.
Entre 1873-75 há uma tendência de aumento nos preços, sendo que o aumento entre
1874-75 foi mais intenso do que no período 1873-74, atingindo 2824 réis para cada
10kg em 1875. O período que compreende 1875-78, identificamos alguma estabilidade
nos preços, apesar de uma queda nem tão leve seguida de uma subida igualmente não
desprezível entre 1875-77. Poderíamos, como no caso do açúcar mascavo, dividi-lo em
duas tendências menores, uma de oscilação e uma de estabilidade que se estenderia até
1878. Por fim, teríamos uma tendência de aumento entre 1878-79, em que o preço
atinge seu máximo, 3530 réis por 10kg, aproximando-se muito do preço mais elevado
do açúcar branco. Exceção feita a 1872, em que as oscilações estiveram em nível
semelhante às do açúcar, fica difícil identificar os anos em que elas se fizeram mais

73
Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio de 1874.​ Typographia imperial e constitucional de
J.Villeneuve e C. 1875, p. 32. Disponível em: ​http://memoria.org.br/
intensas. Também não é possível dizer com precisão se os preços médios se aproximam
mais dos preços máximos ou dos mínimos.
Na década de 1870 o açúcar mascavo se mostrou, em termos meramente
econômicos, sem questionar sua importância na dieta cotidiana, mais acessível aos
trabalhadores do que a carne-seca, que muitos autores se mostram unânimes em
afirma-la como peça-chave na alimentação, apesar de não ser tão fundamental quanto a
farinha de mandioca. No topo da hierarquia de preços está o açúcar branco, que em
momento algum baixou da casa dos 250 réis por kg de preço médio. A carne-seca
chegou a este patamar em quatro oportunidades e somente em 1871 o preço médio do
açúcar mascavo se elevou para além dos 250 réis por kg. Para verificarmos se as
tendências apresentadas pelo ano de 1879 são rompidas ou continuadas, é necessário
repetir o processo, tendo em vista a década de 1880. Dispomos de dados mais completos
desta vez – 1880-90. Os gráficos abaixo ilustram esta situação.

Fonte: ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio (1880-90)​. Typographia imperial e


constitucional de J.Villeneuve e C. (1881-91). Disponível em: ​http://memoria.org.br/
Fonte: ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio (1880-90)​. Typographia imperial e
constitucional de J.Villeneuve e C. (1881-91). Disponível em: ​http://memoria.org.br/

Fonte: ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio (1880-90)​. Typographia imperial e


constitucional de J.Villeneuve e C. (1881-91). Disponível em: ​http://memoria.org.br/

Estes gráficos foram elaborados a partir do mesmo expediente dos anteriores,


com a diferença de que não dispomos das informações sobre a variação mensal do preço
da carne-seca produzida no Rio Grande do Sul para os anos de 1889 e 1890. Estes
gráficos também são um pouco menos precisos que os anteriores, pois as relações de
preços ao longo dos anos frequentemente não estavam completas. Muitas vezes as
médias anuais foram calculadas com base nos preços médios apenas dez ou onze meses.
O açúcar branco apresenta uma média de preços bastante menor em relação à
década anterior. Talvez pelo fato da produção ter sido realizada pelos engenhos centrais,
que aumentam de forma muito significativa o volume de açúcar produzido a partir da
mesma quantidade de cana de açúcar moída. Aumentando a oferta, reduzem-se os
preços. A série do açúcar branco dos anos 1880 pode ser dividida em pelo menos quatro
tendências menores. O ano de 1880 mantêm um preço estável em relação ao anterior.
Entre 1880-83, temos uma oscilação nos preços para menos (1881) e depois para mais
(1882, 1883), recuperando o valor do ano inicial da série. Entre 1883-85 há uma
segunda tendência de queda abrupta em que o açúcar branco atinge o menor valor
médio de toda a primeira metade da década e o terceiro menor valor médio de toda a
série. O preço médio de 1885 é também menor do que todos os valores médios da
década de 1870. Uma terceira tendência é inaugurada entre 1885-86, que se estende até
1887 e se caracteriza pelas variações abruptas, primeiro de aumento e depois de redução
nos preços, atingindo o menor valor médio de todo o período analisado por nós: 1713
réis por 10kg de açúcar branco. A quarta tendência é de aumento, muito discreto entre
1887-88 e novamente abrupto entre 1888-89, atingindo um dos maiores valores médios
da década: 2950 réis por 10kg de açúcar branco. Não podemos responder se o período
1889-1890 corresponde efetivamente a um novo período minimamente contínuo de
baixa, pois nossos dados se esgotam aí. A única afirmação prudente que podemos fazer
é a constatação de que há nova queda brusca entre 1889-90.
Em relação à oscilação dos preços, o açúcar branco da década de 1880 perde um
pouco da uniformidade plena da anterior. Em três anos – 1880, 1887 e 1888 – não há,
praticamente, oscilação, mas em anos como 1882, 1884 e 1889 ela se faz presente de
modo notável. Também não é possível cravar se os preços médios estiveram, de modo
geral, mais próximos dos preços máximos ou mínimos. De todo modo, nos parece um
bom indicativo dos preços mais baixos em relação aos anos 1870 o fato do preço
máximo mais elevado da década de 1880 ser apenas um pouco maior do que o maior
preço médio da anterior. Além disso, em quatro anos da última série o preço médio foi
inferior a 2500 réis por 10kg de açúcar branco, algo inexistente na série anterior.
O açúcar mascavo, como era de se esperar, seguiu sendo bastante mais barato,
na média, do que o branco. Em relação ao próprio açúcar mascavo da década de 1870,
também se mostrou muito mais barato, talvez pelo mesmo motivo do açúcar branco:
aumento da produção graças a melhor capacidade de moagem dos engenhos centrais. A
uniformidade que caracterizou a curva dos preços do açúcar branco na década de 1870
parece ser a tônica do mascavo dos anos 1880. Entre 1879 e 1880 há um aumento
significativo nos preços, e daí para frente identificamos quatro tendências distintas.
Inicialmente, entre 1880-83, notamos uma oscilação nos preços médios, primeiro
decaindo cerca de 10% e depois recuperando seu valor nos dois anos seguintes. Uma
segunda tendência pode ser vista a partir de 1883, que se estende até 1885 e se
caracteriza por uma queda brusca nos preços. Entre 1883-84, os preços médios do
açúcar mascavo se reduziram em mais de 25%. No ano seguinte, 1884-85, a queda
continua, mas de forma bastante mais discreta, apesar de atingir o terceiro menor valor
considerando as duas décadas de que dispomos de preços contínuos. Uma terceira
tendência, cuja característica é uma oscilação brusca para mais e para menos, se inicia
em 1885, estendendo-se até 1887. Neste período o preço médio por 10kg de açúcar
mascavo atinge seu maior valor para toda a década de 1880 - 2195 réis – e, logo depois,
o menor valor, considerando-se as décadas de 1870 e 1880 – 1347 réis – em 1886 e
1887, respectivamente. Por fim, temos uma quarta e última tendência de elevação nos
preços, que se estende até 1889, sendo mais intensa este aumento na passagem de
1888-89. Entre 1889-90 há uma queda sensível nos preços, mas não dispomos de dados
para avaliarmos se é uma tendência contínua de queda ou uma oscilação que logo
devolveria os preços aos patamares de fins dos anos 1880. De maneira geral, o açúcar
mascavo mostrou-se, novamente, uma mercadoria acessível, considerando apenas as
questões econômicas, aos trabalhadores, com preços bastantes mais baixos que as outras
duas que lhe serviram de referência para nossa comparação.
Em relação às oscilações do açúcar mascavo, elas parecem menos bruscas do
que na década de 1870, o que novamente favorece sua aquisição pelas populações mais
empobrecidas, já que estas são as mais afetadas pelas flutuações mais bruscas. Não há
dúvidas que nos anos 1880 o açúcar mascavo esteve muito mais próximo da
uniformidade que caracterizou o açúcar branco dos anos 1870. Exceção feita ao ano de
1883, em que não houve oscilação alguma, os preços médios são pontos equidistantes
em relação ao preço máximo e ao preço mínimo. Ou seja, de maneira geral, nos anos
1880, os preços baixaram e oscilaram menos, favorecendo o consumo regular.
Resta-nos agora avaliarmos a carne-seca, mercadoria que apresentou
encarecimento evidente. Fica difícil, inclusive, acreditarmos que ela constituiu parte
importante da dieta dos pobres no período em que estamos tratando. Mesmo se
considerássemos os valores da carne-seca importada do Rio da Prata, o resultado não
seria absolutamente diferente, pois a variação mensal dos preços na década de 1880 foi
muito semelhante àquela verificada para a carne-seca do Rio Grande do Sul,
justificando sua exclusão de nossa análise. Uma outra questão a ser considerada é o fato
do ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio fazer uma distinção entre a
carne-seca “nova” e a “velha”, sendo a segunda com preços relativamente menores do
que as da primeira. Mas o documento tem informações extremamente rarefeitas sobre as
flutuações destes preços de carnes “velhas”, o que inviabiliza seu uso em série. O mais
comum é haver apenas informações para os meses de janeiro e fevereiro, sendo mais
comum apenas para o primeiro mês de cada ano. Feitas estas ressalvas, observemos o
gráfico acima.
Se não podemos apontar todas como tendências, ao menos podemos observar
seis comportamentos diferentes na curva de preços da carne-seca, alguma que se
mantem por apenas um ano. Inicialmente, entre 1880-82, há uma brusca oscilação, para
mais (1880-81) e depois para menos (1881-82), nos preços médios. Este é o momento
em que se constata o maior valor médio para cada 10kg de carne-seca de todo o período
analisado de modo contínuo: 3660 réis. Entre 1882-83 há uma manutenção do preço
médio, apesar das oscilações se restringirem significativamente. Um terceiro
comportamento da curva de preços se observa a parti de 1883, em que há uma queda
contínua, mas com ritmos e intensidades distintas até 1885, ano em que atinge o menor
valor médio da década e o quarto menor se compararmos também com os anos 1870 –
2231 réis por cada 10kg de carne-seca. Esta tendência de queda é interrompida por um
novo ano de estabilidade – 1885-86 –, que apresenta um aumento irrisório de 91 réis por
10kg. Por fim, temos um novo comportamento da curva de preços entre 1886-88, último
ano de nossa mostra, caracterizado, novamente, por bruscas oscilações para mais
(1886-87) e para menos (1887-88), quase retornando o valor de 1885.
De maneira geral, a tendência de grandes variações nos preços da carne-seca se
manteve na década de 1880. Somente nos anos de 1884 e 1888 podemos classificar as
oscilações como “normais”, pois as demais são extremamente amplas, o que
compromete o consumo contínuo da mercadoria por parte dos pobres. Em quatro dos
nove anos que analisamos nesta década, entretanto, os preços mínimos se mostraram
bastante satisfatórios ao consumo, apesar de não terem baixado ao nível dos menores
preços da década de 1870. Deste modo, se quiséssemos fazer uma hierarquia de preços
destas mercadorias na década de 1880, a carne-seca tomaria o lugar do açúcar branco e
ficaria como o mais caro. O açúcar mascavo, como na década de 1870, seguiu sendo o
mais barato entre as três.
Até aqui estivemos investigando alguns aspectos econômicos do mercado da
província para avaliarmos a ​possibilidade ​de os trabalhadores pobres inserirem-se neste
mercado de bens agropecuários, dentre eles, o açúcar. O que foi dito até aqui nos parece
o suficiente para demonstrar que o consumo de açúcar era possível. Mas, caberia a
pergunta: porque fazê-lo? Existe alguma vantagem em consumir açúcar?
Em resumo, vimos nesta segunda sessão do capítulo a expansão demográfica e
econômica vivenciada pela província do Rio de Janeiro, área responsável por absorver
parcela razoável da produção de açúcar campista no século XIX, como veremos a
seguir. Naturalmente, dispomos de mais dados a respeito da situação de Campos dos
Goitacazes, município que aumentou bastante sua inserção no tráfico negreiro, enquanto
este ainda era permitido nos oitocentos, e, provavelmente, que tinha boa inserção
também no tráfico interprovincial. Não existem dados satisfatórios para avaliar esta
questão para o norte-fluminense, mas o já citado ​Quadro demonstrativo do movimento
da população escrava da província do Rio de Janeiro traz informações preliminares
sobre o assunto, pois registra a entrada de cativos no município após setembro de 1873,
obrigatoriamente, portanto, pelo tráfico intra ou interprovincial. Os três municípios do
norte-fluminense que analisamos na subseção 2.1 adquiriram 12257 escravos, ao passo
que os três do Vale do Paraíba, espaço classicamente reconhecido por ser comprador de
74
cativos pós-1850, adquiriu 15949.

74
“Quadro demonstrativo do movimento da população escrava da província do Rio de Janeiro, de 30 de
setembro de 1873 a 30 de junho de 1885”. In: ​Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial
do Rio de Janeiro na abertura da primeira sessão da vigesima sexta legislatura em 8 de agosto de 1886
pelo presidente, dr. Antonio da Rocha Fernandes Leão. ​Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1886. p. 91.
O aumento do número de fazendas do Vale Fluminense, bem como a
dinamização econômica da cidade, cristalizada na pluralidade de atividades econômicas
que os pobres poderiam exercer e na expansão do papel moeda em poder do público,
fizeram da província um poderoso mercado consumidor. As questões que nos resta
desvendar, neste momento, são as seguintes: o quanto deste açúcar é exportado para
portos internacionais, o quanto é exportado para portos nacionais e o quanto dele é
consumido no próprio Rio de Janeiro.

3. Os caminhos da mercadoria: o comércio de bens primários no porto do Rio de


Janeiro na segunda metade do século XIX
A primeira questão a ser avaliada é o quanto do açúcar que chega ao Rio de
Janeiro é proveniente de Campos ou de outros espaços da província ou do império. Para
isso construímos os dois gráficos abaixo. A necessidade de dois gráficos se explica pelo
fato da documentação registrar as entradas de açúcar, até 1878, por safras, ou seja, de
julho a junho do ano seguinte. Após 1878 há um hiato até 1882 e daí para frente
registra-se a entrada de açúcar por ano. Para evitarmos os problemas nas séries, optamos
pela elaboração de dois gráficos.
Fonte: ​Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio (1874-90)​. Typographia imperial e
constitucional de J.Villeneuve e C. (1875-91). Disponível em: ​http://memoria.org.br/

Antes de procedermos com a análise em si é necessário que expliquemos no que


consiste a tipologia “norte”, presente nos dois gráficos. O ​Retrospecto Commercial
assim denominou as capitanias do Norte do Brasil, que exportavam parte de sua
produção de açúcar para o Rio de Janeiro. Deste modo, esta tipologia genérica envolve,
majoritariamente, Pernambuco, Aracaju e Maceió somadas, bem como Bahia, mas esta
75
última de forma muito secundária. Isto significa dizer que ao longo da maior parte do
tempo o açúcar produzido em Campos dos Goitacazes teve entrada muito mais intensa
no Rio de Janeiro do que o de outras regiões. Apenas em quatro anos – dois em cada
série -, 1874-75, 1876-77, 1889 e 1890, o açúcar de Campos não foi o principal a dar
entrada no Rio de Janeiro. Nestes casos, ficou sempre “em segundo lugar”, atrás dos
açúcares provenientes do Norte e muito à frente dos provenientes de demais regiões do
império, fossem de dentro da própria província, caso de Cantagalo, ou de fora dela,
como no caso de Santa Catarina.
Analisando as tendências apresentadas, identificamos que inicialmente, em
meados dos anos 1860, a produção campista e a do “Norte” estão muito próximas: 82
mil e 72 mil sacas, respectivamente. Entretanto, no período 1865-66 a 1869-70, as

75
Apesar de hoje estes estados/cidades fazerem parte da região nordeste, esta denominação inexistia à
época do império. As regiões sudeste e nordeste são invenções republicanas.
entradas de açúcar de ambas as regiões seguem tendências opostas: enquanto Campos
amplia de forma contínua o volume de açúcar levado ao Rio de Janeiro, chegando a 212
mil sacas, o “Norte” encolhe o volume transportado para 51 mil sacas. Entre 1869-70 e
1873-74 ambas as regiões apresentam oscilação no fornecimento de açúcar. No caso de
Campos, há um aumento significativo nas duas safras seguintes, atingindo o ponto
máximo da série em 1871-72, quando o fornecimento atingiu a casa das 336 mil sacas.
Logo na safra seguinte há uma queda abrupta, atingindo o montante de 256 mil sacas
em 1873-74. Apesar do “Norte” mais que dobrar seu fornecimento de açúcar a partir de
1870-71, atingindo o número de 115 sacas, não foi capaz de apresentar uma tendência
permanente de crescimento, tendo oscilado bastante até 1873-74. Mesmo assim,
manteve níveis médios superiores aos apresentados até 1869-70.
Novamente a partir de 1873-74 identificamos tendências opostas: enquanto o
“Norte” amplia de forma contínua seu fornecimento de açúcar até 1876-77, Campos
mantem sua oscilação, intensificando-a até o final desta série. A combinação destes dois
fatores produziu fato inédito até então: em 1874-75 e em 1876-77, Campos dos
Goitacazes deixou de ser o principal fornecedor de açúcar para o Rio de Janeiro. A
discrepância é tão grande que nos faz desconfiar a respeito de uma possível
sub-representatividade dos dados para esta safra. Se, como mencionamos acima, o
volume em 1873-74 foi de 256 mil sacas, o da safra seguinte se reduziu a pouco mais de
15% deste valor, atingindo quase 39 mil sacas. Entretanto, para a safra seguinte,
1874-75, voltou a apresentar um dos maiores indicadores da série, 297 mil sacas. Mas a
oscilação permanece, tendo reduzido a entrada do açúcar de Campos a 226 mil sacas na
safra seguinte que, enfim, mostrou novo aumento no último ano da série: 326 mil. Por
outro lado, o “Norte” sai da casa das 93 mil sacas em 1873-74 para atingir o montante
de quase 262 mil em 1876-77, sofrendo nova queda em 1877-78, mas ainda mantendo
índices elevados: 153 mil sacas.
O último ano da série sinalizou para tendências opostas, que parecem se
confirmar quando analisamos o gráfico posterior,

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