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1
Estes números não consideram o município da Corte. Fonte: Relatório do presidente de província do Rio
de janeiro.
2
FRAGOSO, João. “Prefácio”. In: MATTOS, Hebe. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do
trabalho escravo. Rio de Janeiro. FGV, 2009 (2ª edição, revista e ampliada). p. 9.
3
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo,
Hucitec, 2011 (9ª edição). p. 107.
Metrópole, que seriam as transações típicas do regime colonial de comércio, para o
4
autor. É nesta perspectiva que compreendemos a relação feita por Novais entre a
escravidão e o latifúndio. A utilização do braço escravo enquanto mão-de-obra
predominante impedia a apropriação das terras por colonos povoadores – aqueles que se
utilizariam da terra para produzir, sobretudo, para subsistência, com índices de
comercialização bastante incipientes – e direcionaria a produção colonial para o
5
fornecimento largo de mercadorias aos mercados europeus.
Tudo isto, para Novais, se convertia em uma limitação ao crescimento da
economia de mercado devido a outra limitação estrutural inerente ao trabalho escravo: a
impossibilidade de inversão tecnológica na produção, que resultaria na baixa
produtividade e baixa rentabilidade. Como consequência, a fração senhorial se
esforçaria para fazer com que os custos de reprodução da mão-de-obra fossem cobertos
pelos próprios trabalhadores em uma parcela de terra do interior da empresa
exportadora. Deste modo, a produção destinada à subsistência estaria fora do mercado –
perspectiva adotada também por Jacob Gorender, a despeito de suas críticas ao Antigo
6
Sistema Colonial. Deste modo, ao pensarmos nas etapas de remuneração do fator
trabalho na produção escravista, vemos que, por um lado, ela se realiza parcialmente, no
esquema de Novais, fora da área produtora – o pagamento feito ao traficante na
aquisição do cativo – e, por outro lado, a fração que se realiza internamente – a
manutenção do cativo – não demanda comercialização. Ou seja, não há, de forma
alguma, dinamização do que poderia se chamar de economia interna.
Estas implicações do passado colonial certamente trariam consequências para a
formação econômica do Brasil, título de obra clássica de Celso Furtado, em que a
história surge para “captar as inter-relações e as cadeias de causalidade que constituem a
7
urdidura dos processos econômicos”. Ponto central para Furtado é a questão do fluxo
da renda gerada internamente nas várias atividades econômicas do período colonial. Em
nosso juízo, os capítulos em que trabalha a economia mineradora são os mais
significativos para que compreendamos as limitações históricas e estruturais do mercado
4
Idem, ibidem. p. 107-109
5
Idem, ibidem. p. 102-103
6
Idem, ibidem. p. 109-110
7
ão Paulo: Companhia das Letras, 34ª edição, 2007.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. S
p. 21.
interno brasileiro. Isto porque, de modo diferente do que ocorreu no Nordeste, em que a
pecuária surge como apêndice da economia açucareira, nas regiões meridionais da
colônia a atividade criatória precedeu a descoberta do ouro, de tal forma que em
algumas localidades já havia alguma exportação de couros.
A exploração das minas revitalizou a atividade criatória em dois sentidos: 1) por
ter elevado significativamente a rentabilidade da pecuária, graças às características
específicas da mineração, que dependia do transporte de mulas – grande distância do
litoral e ausência de abastecimento local; e 2) por viabilizar a interdependência entre as
regiões pecuaristas, produzindo, inclusive, especializações entre elas – áreas de criação,
8
de engorda, de distribuição ou simplesmente como mercado consumidor. Outras
características favoreceriam o fomento do que chamaríamos de um “mercado interno”,
como a renda menos concentrada e a maior procura de bens de consumo cotidianos em
detrimento dos bens de luxo. Além disso, o longo transporte do litoral até a região das
9
minas encareceria, segundo Furtado, as mercadorias importadas. Ainda assim, não foi
possível firmar as bases para uma produção interna autônoma, porque faltava o
conhecimento técnico necessário para o desenvolvimento manufatureiro no Brasil. Esta
ausência é explicada pela política colonial portuguesa, no contexto da assinatura do
Tratado de Methuen de 1703.
Graças a este tratado, o ouro extraído da colônia em velocidade cada vez maior
foi utilizado para pagar as importações que Portugal fazia das manufaturas têxteis
inglesas durante toda primeira metade do século XVIII. Deste modo, para que a colônia
pudesse empreender o desenvolvimento manufatureiro, a condição primária seria a
existência prévia de uma sólida base manufatureira em Portugal, o que não ocorreu
devido à política externa metropolitana. Portanto, o fluxo da renda que era gerada na
periferia colonial não permitiu a construção perene das atividades econômicas que
esboçaram características de um “mercado interno”. À medida que a atividade
mineradora ia se esgotando, já na segunda metade do século XVIII, o sistema foi se
atrofiando cada vez mais, de modo a reduzir-se, mais uma vez, em pequenas economias
de subsistência desconexas. Apesar disso Furtado nos alerta para o fato de que a ilusão
8
Idem. Ibidem. p. 123.
9
Idem, Ibidem. p. 125.
do ouro permaneceu levando grande contingente demográfico disposto a investir suas
10
economias na exploração.
Como vimos nos parágrafos acima, o fluxo externo da renda de nossa economia
foi utilizado como argumento para explicar o porquê da economia interna brasileira ser
tão rarefeita. Por meio de outro referencial teórico, mas preocupados com as mesmas
questões, Wilson Suzigan e Newton Paulo Bueno realizaram estudo comparativo entre
Brasil e EUA e seus respectivos processos de industrialização e formação de mercado
interno após o apogeu da fase agroexportadora de cada um destes países, fracassado no
caso brasileiro e bem-sucedido no caso estadunidense. O argumento básico dos autores
é o de que estes processos são cumulativos e dependentes de alterações nos padrões de
distribuição regional ou setorial das atividades econômicas, que são conduzidas
mediante transformações institucionais responsáveis por realizar os investimentos
11
necessários para tal. A ausência de apenas um destes dois elementos seria a
responsável por inviabilizar um processo de industrialização, já que um governo
poderia, por exemplo, não encontrar força política necessária para direcionar os recursos
públicos para este setor da economia.
Para que a evolução do processo histórico de ambas as nações tenha tomado
rumos tão distintos, o fator chave apontado é a capacidade do comércio externo
fomentar a formação de mercados internos, de tal modo que permita às instituições
públicas tomar a frente no processo de expansão econômica e de industrialização. No
caso norte-americano, tido como bem-sucedido, a integração econômica e espacial de
sua economia foi importante porque unificou uma população que dispunha de algum
poder aquisitivo. Para comprovar esta hipótese, os autores utilizam dados de
crescimento do PIB per capta de cada um dos países na etapa em que a industrialização
seria induzida pela renda gerada pela agroexportação, com os EUA apresentando
crescimento anual quatro vezes superior ao brasileiro; são apresentados também dados a
respeito do PIB per capta em cada um dos países, sendo o estadunidense maior do que o
12
dobro do brasileiro em 1820 e seis vezes maior em 1950.
10
Idem, Ibidem. p. 134.
11
BUENO, Newton Paulo & SUZIGAN, Wilson. “Expansão do mercado interno e evolução institucional
no processo de industrialização: uma análise comparativa Brasil – Estados Unidos”. In: história
econômica & história de empresas. V.1. 2002. p. 43.
12
Ver, respectivamente, tabelas 1 e 2 em BUENO, Newton Paulo & SUZIGAN, Wilson. “Expansão do
mercado interno ...” In: história econômica & história de empresas. V.1. 2002. p. 50.
A maior concentração de renda no caso brasileiro fazia com que o efeito
dinamizador do setor externo sobre o interno tivesse papel muito reduzido. A renda
gerada pela exportação, de acordo com Bueno e Suzigan, seria destinada principalmente
às importações, sendo uma parcela significativa aplicada na aquisição de máquinas e
equipamentos usados no beneficiamento agrícola, na indústria têxtil ou nos transportes,
cuja demanda, sem os estímulos necessários por parte do governo, não crescia o
suficiente para ameaçar o superávit da balança comercial. Em resumo, recuperando
argumento que também é de Celso Furtado, os dois autores acreditam que o déficit no
comércio brasileiro existiria apenas por duas razões: queda no volume das exportações
ou quando os termos de troca – os preços – se apresentariam menos favoráveis aos bens
13
primários. Argumentam, por fim, que a balança comercial brasileira sempre foi
superavitária após a plena maturação da economia cafeeira, a partir dos anos 1870. Na
próxima seção deste capítulo, em que apresentaremos dados a respeito do mercado
consumidor brasileiro, apresentaremos argumentos contrários a esta hipótese.
Em uma situação inicial de renda menos concentrada como nos Estados Unidos,
a variação da balança comercial se inverte: o consumo interno se expandia numa
velocidade maior do que as exportações, aumentando a demanda por mercadorias
importadas que, por sua vez, serviam como estímulo às produções domésticas. A
integração econômica e espacial regional, permitida pela combinação de investimentos
públicos e privados na infraestrutura de transportes do país, potencializa o “vazamento”
da renda gerada pela exportação. Ou seja, nos momentos em que as exportações estão
em alta, seja pelo volume ou pelos preços, haveria um acréscimo tão significativo no
poder de compra que toda a produção interna não daria conta e o resultado óbvio seria
um crescimento maior das importações, o que colaboraria diretamente para depreciar a
14
balança comercial.
Cabe aqui uma crítica ao modo de proceder dos autores. Para tentar comprovar a
existência de uma renda mais bem distribuída entre os norte-americanos, os autores
utilizaram-se de médias de crescimento per capta d o PIB do país. Entretanto, as médias
são medidas estatísticas bastante sensíveis aos outliers, sejam de valores baixos ou
elevados. Ou seja, o meio crescimento percentual do PIB per capta a nual não significa,
13
Idem, ibidem. p. 47.
14
Idem, ibidem. p. 51-53.
necessariamente que a renda seja menos concentrada. Consideramos que o
procedimento correto para avaliação de questões como as de renda seja hierarquiza-la a
partir de quartis, criando grupos de fortuna. Naturalmente, o trabalho empírico
Até aqui vimos apenas autores que se utilizam de evidências a respeito do fluxo
da renda para argumentar sobre o quão rarefeito ou o quão inexistente era o mercado
interno brasileiro durante todo o século XIX e em alguma parte do XX. Se, por um lado,
este grupo de autores demonstrou maior preocupação em conceituar o que seria um
“mercado interno”, a despeito das evidências empíricas mais rarefeitas, por outro lado,
aqueles que se empenharam em demonstrar empiricamente que havia um sem número
de atividades econômicas destinadas ao abastecimento interno empregaram o termo de
forma relativamente acrítica, de tal modo que aquilo que chamaram de “mercado
interno” talvez tenha se apresentado apenas como centros consumidores fracamente
integrados entre si. Para eles, as questões centrais a serem encaradas eram duas, sendo a
segunda decorrente da primeira: 1) a possibilidade desta economia brasileira gerar renda
de forma autônoma, sem a necessidade de mercados externos para a realização das
mercadorias; e 2) tão importante quanto, é o fato deste “mercado interno” permitir o
surgimento de grupos com capacidade para atuar enquanto classe dominante em escala
local, para além dos grandes barões que, no século XIX, interferiam diretamente na
política nacional.
A dissertação de mestrado de Márcia Motta, defendida em 1989 no programa de
pós-graduação da UFF, apresenta hipóteses que demonstram bem nossas afirmações
anteriores. Uma delas é a de que a chegada da Corte portuguesa, em 1808, agravou de
sobremaneira os problemas de abastecimento alimentício da cidade do Rio de Janeiro,
de modo a impulsionar o desenvolvimento de uma agricultura policultora, em lugar da
decadente cultura açucareira existente na região analisada pela autora: as “bandas
d’além” – municípios localizados na outra extremidade da Baía de Guanabara, extremo
oposto ao Rio de Janeiro. Neste sentido, a autora admite a possibilidade de se gerar
renda a partir de uma produção que grande parte dos autores, até então, julgava ser
apenas de “subsistência”, cuja capacidade mercantil seria próxima de nula.
Motta analisa esta produção policultora através de três chaves interpretativas
distintas, todas influenciadas teoricamente pelo que Ciro Cardoso chamou de “brecha
camponesa”: acesso à terra estável, autonomia na gestão da parcela e acesso aos
15
mercados. Se o acesso à terra e as oportunidades de acumulação estão abertas de
maneira mais ou menos estável, a depender das faixas de fortuna de um grupo
heterogêneo como este de arrendatários-escravistas estudado pela autora, o contato com
o mercado também é frequente. Neste caso, entretanto, não há qualquer autonomia, uma
vez que o acesso aos mercados se dá de modo vertical, mediado pelo capital comercial,
materializado na figura dos donos dos portos locais que eram, simultaneamente,
16
proprietários das terras arrendadas pelos agricultores em questão. Na medida em que
interferia na comercialização e no financiamento das explorações arrendadas, a classe
dominante local também controlava, ao menos de forma parcial e indireta, a reprodução
destas unidades produtivas. Isto fica claro após a década de 1850, período entendido
como de “crise do escravismo” entre os pesquisadores da “Escola do Rio”. A segunda
metade dos oitocentos é marcada pela crescente dificuldade dos arrendatários em repor
seu contingente de cativos, além da impossibilidade de aumentarem suas parcelas de
exploração, em função da elevação dos preços da terra ocasionada pelo seu processo de
mercantilização em curso. Mesmo se levarmos em consideração a elevação dos preços
dos produtos alimentícios cultivados por estes minifundistas, a tendência foi de um
17
empobrecimento geral.
Vislumbrou-se, portanto, ao longo dos oitocentos, transformações na estrutura
fundiária e a formação de uma classe dominante local tendo como ponto de partida a
instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro e a subsequente transformação da
cidade em um poderoso centro consumidor, permitindo o renascimento da agricultura
local na forma de policultura. Se não podemos atribuir ao “mercado interno” todas estas
transformações econômicas e sociais na região, é certo que ele foi tido ao menos como
catalizador da mudança, ratificando sua importância para a economia escravista.
Passemos agora ao trabalho de Antônio Carlos Jucá de Sampaio, Magé na Crise
do Escravismo, dissertação de mestrado defendida também no programa de
pós-graduação da Universidade Federal Fluminense. O autor trata de questões similares
às de Motta, com estudo de caso reservado ao município de Magé, especializado na
15
CARDOSO, Ciro F. S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo:
Brasiliense, 1986. p.
16
MOTTA, Márcia. Pelas “bandas d’além”: fronteira fechada e arrendatários-escravistas em uma
região policultora (1808-1888). Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1989. p. 78-79.
17
Idem, ibidem. p. 122-123.
produção de farinha de mandioca, produto base da alimentação da população à época.
Novamente a proximidade com a Corte é levantada para justificar o fato de 86% de suas
18
culturas serem de mandioca, o que dava grande vantagem a Magé em relação às
demais regiões produtoras, na medida em que pode aproveitar melhor os momentos de
elevação nos preços, pois o custeio de transporte era reduzido.
O mais interessante – e também o ineditismo do trabalho – é o fato de Sampaio
identificar em uma região alheia ao sistema agroexportador uma hierarquização
econômica e social bastante intensa: por um lado, há a empresa escravista mercantil,
representada pelos grupos de fortuna A e B, com riqueza acima de três mil libras e entre
mil e três mil libras, respectivamente; por outro, há a pequena produção de alimentos
realizada por um “campesinato” que, apesar de possuir cativos, utilizava seu trabalho
como complemento a um trabalho familiar. Em relação à grande empresa mercantil, sua
característica mais marcante eram os grandes plantéis, com elevada razão de
masculinidade e maioria em idade produtiva, característica presente em todas as grandes
fazendas do Vale do Paraíba fluminense do mesmo período. Ou seja, a economia
escravista brasileira não só possui seus circuitos internos de realização das mercadorias,
como também produz diferentes grupos sociais capazes de atuar como classes
dominantes em suas próprias regiões, algumas com hierarquias e práticas econômicas
não muito diferente dos tradicionais centros exportadores.
Os dois trabalhos analisados anteriormente apresentam contrapontos aos
clássicos textos de Fernando Novais e de Celso Furtado, bem como ao artigo de Bueno
e Suzigan. A evidência empírica de regiões produtoras de alimentos cuja dimensão
mercantil é explícita é o suficiente para que estes autores – mas também outros –
assinalem com a existência de um verdadeiro “mercado interno” em nossa economia.
Mas será isso o suficiente? João Antônio de Paula, apoiado em clássicos estudos de caso
sobre a emergência do capitalismo na Rússia e na Itália, afirma que ao falar em
“mercado interno”, deveríamos nos preocupar algumas questões basilares: 1) a
formação do mercado de trabalho e do mercado de terras; 2) o grau de
articulação-interação do mercado interno verificado pela análise da variância dos preços
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução
18
19
PAULA, João Antônio de. “O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história”. In: In:
história econômica & história de empresas. V.1. 2002. p. 14.
20
MELLO, Evaldo Cabral de. O norte agrário e o Império, 1871-1889. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
21
estariam disponíveis aos efeitos da Lei de Terras. Ou seja, na prática – e por mais que
suas conclusões não possam ser generalizadas para todo território nacional –, em uma
das maiores províncias do Império, a fronteira agrícola já estava fechada, fazendo com
que sua capacidade criadora da pequena propriedade ou mesmo de um mercado de
terras tivesse alcance limitado.
Para além da Lei de Terras, a Lei Eusébio de Queiróz, a política de imigração
com participação do Estado no financiamento do transporte e da instalação dos
trabalhadores, a Lei do Ventre Livre de 1871 e a Lei de Locação de Serviços de 1879,
tornaram-se a base para constituição do moderno mercado de trabalho livre no Brasil.
Segundo José Antônio de Paula, este foi um processo que respondeu, basicamente, à
expansão da cafeicultura do sudeste que enfrentou obstáculos em relação à terra e ao
22
trabalho ao longo de sua existência. A despeito destas e de outras iniciativas do poder
imperial, o processo de modernização do Brasil esbarrou em graves limitações, a
começar pelos interesses e motivações da classe senhorial, responsáveis pela condução
de uma modernidade excludente que reiterou desigualdades regionais e entregou um
mercado interno absolutamente heterogêneo.
Vimos acima duas formas de perceber a constituição do mercado interno no
Brasil: uma que privilegia o fluxo da renda das atividades econômicas e outra que o vê
inserido em um processo mais amplo de modernização capitalista, com amplas
transformações de cunho político, social e econômico visando fazer do mercado uma
compulsão. Em relação ao fluxo da renda, temos duas maneiras distintas de percebe-lo.
A primeira implica na dependência exterior e a subsequente negação do mercado
interno, posição compartilhada por Novais e Furtado.
O historiador paulista justifica sua posição baseado em quatro pontos: 1) a renda
global é criada na exportação, o que permite que os grupos ligados ao comércio
ultramarino fiquem com sua maior parte; 2) a menor parcela da renda, que permanece
no território colonial, é o que permite a reprodução da estrutura de exploração nos
quadros do Antigo Sistema Colonial – há, em função disso, um alto grau de
concentração de renda entre a classe senhorial, pois os trabalhadores, escravos, não
possuem renda alguma; 3) a impossibilidade de inversão tecnológica na produção, que
21
IGLÉSIAS, Francisco.
PAULA, João Antônio de. “O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história”. In: história
22
23
ABREU, Maurício de. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos,
2011. p. 35.
24
DIAS, Maria Odila Silva.
25
mediante concessões do Império – a tendência geral de segregação já estava lançada,
26
como também demonstra Carlos Valencia Villa em sua tese de doutoramento.
À época da “interiorização da Metrópole”, o raio de ocupação estava
circunscrito à região central e as áreas ao sul eram ocupadas, aos poucos, com chácaras
que as faziam parecer locais de veraneio. No fim da primeira metade do século,
entretanto, frações da classe dominante já puderam se afastar do centro devido a ação do
poder público, que sistematicamente abria caminho para a efetiva ocupação da zona sul
da cidade – freguesias da Lagoa e Glória – e passavam definitivamente a integrar o rol
das freguesias urbanas. Ao mesmo tempo, São Cristóvão, freguesia do Engenho Velho,
também abrigou uma parcela importante das classes abastadas, já que era residência da
família Real e por isso dispunha de infraestrutura útil aos que poderiam pagar pela
mobilidade urbana. A população pobre, por outro lado, incapaz de arcar com os custos
da ainda escassa mobilidade urbana, permanecia próxima ao centro, já que lá
27
concentravam-se as ofertas de trabalho cotidianas.
A partir de meados da década de 1850, a cidade tem um novo impulso de
expansão, com a intensificação da ocupação da zona sul e, principalmente, de novas
áreas correspondentes aos atuais bairros da Cidade Nova, Estácio, Rio Comprido e
28
Catumbi, todas muito próximas ao centro e por isso também habitada por pobres. A
partir dos anos 1870, quando os bondes e trens levaram a cidade a se expandir em
sentidos opostos – os trens associados ao subúrbio e aos pobres, os bondes à zona sul e
aos barões e demais frações das classes abastadas –, mas as bases para a hierarquização
social do espaço já estavam lançadas. A “Metrópole interiorizada”, cidade que
respondia às necessidades simbólicas, econômicas e políticas das mais significativas,
unia, de modo contraditório, a fração mais miserável da população. O resultado deste
processo foi a grande proliferação de cortiços, posteriormente destruídos pela
intervenção estatal no período de Pereira Passos. O gráfico abaixo ilustra o referido
processo.
25
ABREU, Maurício de. op. cit.. p. 42.
26
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. A economia dos negros livres no Rio de Janeiro e em Richmond
(1840-1860). Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2012.
27
ABREU, Maurício de. op. cit. p. 37-39.
28
Idem, ibidem. p. 39-41.
Fonte: ABREU, Maurício de. op. cit. p. 39.
29
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. A economia dos negros livres no Rio de Janeiro e em Richmond
(1840-1860). Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2012. p . 90 e 93.
30
Idem, ibidem. p. 177, 195, 216, 259 e 277.
abaixo ilustra este processo ao comparar o número de desembarques de escravos em
vários portos do Brasil entre os séculos XVIII e XIX.
Fonte: SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos
escravos nos Campos dos Goytacazes (1750-1830). Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. p. 37-39.
31
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 32-33.
32
SOARES, Márcio de Sousa. op. cit. p. 38.
33
LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência: senhores e escravos na capitania do Rio de Janeiro
(1750-1808). São Paulo: Nova Fronteira, 1988. p. 131-132.
34
REIS, Manuel Martins do Couto. Uma descripção política, geographica e cronographica do Districto
dos Campos Goitacaz.
apontam para 308 e 378 engenhos na região, respectivamente, mas outra documentação
demonstra a presença de 324 unidades produtivas no mesmo ano de 1799, que
35
corresponderia a 52,6% de todos os engenhos presentes na capitania até então. No
início do século XIX, Pizarro e Araújo notou a presença de 280 engenhos, mas um
36
crescimento para 400 no ano de 1815 e 700 para o ano de 1828.
Em termos populacionais, podemos auferir a expansão no norte fluminense a
partir do gráfico abaixo. Tanto para esta região, quanto para o Vale do Paraíba
fluminense, dispomos de dados a partir dos anos 1840, provenientes dos mapeamentos
demográficos contidos nos Relatórios dos presidentes de Província do Rio de Janeiro.
Se os juntarmos aos recenseamentos nacionais de 1872 e 1890, mesmo com este último
não constando mais a população escrava em razão da abolição, poderemos traçar a
evolução da população destas regiões. Ademais, contamos com um mapeamento da
população escrava da província entre os anos de 1873 e 1885, ou seja, exatamente entre
o período após o censo de 1872 e os anos finais da escravidão, que o censo de 1890 não
é capaz de informar.
35
ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro (1820-22). Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1945-51. p. 102.
36
Mapa da População, Fábricas e Escravaturas de que se compõem as diferentes Freguesias da Vila de S.
Salvador dos Campos dos Goitacases no ano de 1799”. AIEB — Coleção Lamego — Cod. 19-69-A8.
LARA, Sílvia Hunold. op. cit. p. 132. apud: LARA, Sílvia Hunold. op. cit., p. 132.
Fontes: Para os anos de 1872 e 1890, ver os respectivos censos nacionais; para os anos de 1840 e 1885, ver os relatórios
dos presidentes de província do Rio de Janeiro para os anos de 1840 e 1886, disponíveis em:
37
http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_de_janeiro
37
Acesso em: 19/08/2015.
operação é o seguinte: 1) em 1885, como mostra nossa barra cinza no gráfico, havia
27.129 cativos em Campos; 2) entre 1873 e 1885, 2.417 escravos emigraram do
município e 6.986 faleceram; 3) se calcularmos uma média anual de cativos emigrados e
falecidos entre os anos de 1873-85, teríamos, respectivamente, 201,41 e 582,16; 4) se
descontarmos essas médias anuais em um espaço de quatro anos (1885-89), teríamos
uma redução total de 2.328 escravos por falecimento e 805,64 por migrações. A
despeito das muitas limitações desta operação, até porque o censo de 1890 é bastante
controverso, podemos supor que Campos, na última década dos oitocentos contava com
78.036 habitantes livres mais 23.996 libertos não catalogados no censo, que resultaria
em uma população total de 102.032 habitantes, número que se encontra em nosso
gráfico.
O mesmo procedimento foi adotado para os demais municípios, resultando em
uma população total de 26 mil para São João da Barra e de 31 mil para São Fidélis, em
38
1890. Neste espaço de dezoito anos o município de Campos apresentou um
crescimento demográfico positivo de 30%, ao passo que São João da Barra teve um
incremento de 52%. São Fidélis, na contramão das anteriores, aparenta ter tido
crescimento negativo de aproximadamente 25%.
Em relação à população escrava, a queda progressiva era esperada, já que 1840 é
o último retrato que temos antes do fechamento do tráfico negreiro, que tem alguns de
seus sintomas sinalizados no censo de 1872: dos 32.620 cativos registrados no
município de Campos, apenas 4.328, correspondente a aproximadamente 13,5%, eram
estrangeiros. Proporção semelhante encontramos no município de São Fidélis, em que
2.508 dos 14.815 escravos – algo em torno dos 17% - eram estrangeiros. São João da
Barra, apesar de ainda apresentar preeminência total de cativos “nacionais”, tem
estatística ligeiramente diferenciada: 1.061 estrangeiros para 5280 escravos
39
– aproximadamente 21%.
Por outro lado, em 1885, período final da escravidão, podemos observar os
efeitos da Lei de 1871. O relatório do presidente de província do Rio de Janeiro do ano
38
Estimativas feitas com base no censo de 1890 e com o “Quadro demonstrativo do movimento da
população escrava da província do Rio de Janeiro, de 30 de setembro de 1873 a 30 de junho de 1885”. In:
Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio de Janeiro na abertura da primeira
sessão da vigesima sexta legislatura em 8 de agosto de 1886 pelo presidente, dr. Antonio da Rocha
Fernandes Leão. Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1886. p. 91
39
Fonte: Censo nacional de 1872. p. 85.
de 1886 apresenta o número de cativos entre julho de 1873 e janeiro de 1885 existentes
no Rio de Janeiro. Os números para 1873, que optamos por não colocar no gráfico,
graças à proximidade com 1872, são maiores do que o censo apresenta para o ano
anterior. Segundo o relatório, havia 35.666 escravos em 1873 no município de Campos,
ao passo que em 1885 este número se reduziu para 27.129. Ou seja, se considerarmos os
dados deste documento, o crescimento demográfico negativo da população escrava
entre 1873 e 1885 é ainda mais expressivo do que o que mostra o gráfico. Neste
período, aproximadamente 2900 escravos foram libertados em Campos, sendo 550 pelo
fundo de emancipação, resultado da Lei de 1871, ou seja, algo próximo de 19% do total
de libertos. A lei também favorece a libertação do cativo “por ato oneroso particular”,
ou seja, a compra da liberdade pelo próprio. 345 tornaram-se livres em Campos por este
40
mecanismo, que corresponde a aproximadamente 12% do total de libertos. Os outros
dois municípios, São João da Barra e São Fidélis, tem um contingente cativo registrado
para o ano de 1873 muito próximo do que há no censo de 1872.
Este crescimento demográfico, especialmente da população escrava, talvez nos
ajude a compreender os limites da indústria açucareira campista e o fracasso de seu
projeto de se recolocar como grande exportador de açúcar no mercado internacional.
Como veremos na terceira parte deste capítulo, ainda nos anos finais da escravidão, da
pequena parte do açúcar produzido na província do Rio destinado à exportação, o porto
do Rio de Janeiro preferencialmente o envia à Argentina e ao Uruguai, longe, portanto,
dos grandes centros consumidores.
Passemos agora à investigação dos movimentos de expansão em outras regiões
e/ou outras temporalidades da província fluminense. João Fragoso e Manolo Florentino,
bem como outros autores, apontam a década de 1830 como momento de consolidação
do Vale do Paraíba como grande importador de escravos e como grande produtor de
café, ao ponto de suplantar o açúcar no percentual das exportações brasileiras. O gráfico
abaixo traduz em números este processo de expansão no Vale do Paraíba e demais
regiões da província.
40
“Quadro demonstrativo do movimento da população escrava da província do Rio de Janeiro, de 30 de
setembro de 1873 a 30 de junho de 1885”. In: Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial
do Rio de Janeiro na abertura da primeira sessão da vigesima sexta legislatura em 8 de agosto de 1886
io de Janeiro, Typ. Montenegro, 1886. p. 91.
pelo presidente, dr. Antonio da Rocha Fernandes Leão. R
Fontes: Fontes: Para os anos de 1872 e 1890, ver os respectivos censos nacionais; para os anos de 1840 e 1885, ver os
relatórios dos presidentes de província do Rio de Janeiro para os anos de 1840 e 1886, disponíveis em:
41
http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_de_janeiro
41
Acesso em: 19/08/2015.
SALLES, Ricardo. E o Vale era Escravo: senhores e escravos no coração do império. Vassouras,
42
43
“Quadro demonstrativo do movimento da população escrava da província do Rio de Janeiro...”. p. 91.
2.2.1 As operações financeiras dos pobres e a questão da moeda
Na primeira sessão deste capítulo, mencionamos que a elevada concentração de
renda foi apontada por Fernando Novais e pela dupla Suzigan e Bueno como um dos
motivos para justificar a inexistência do mercado interno no Brasil. Mas mesmo entre
aqueles que defendem sua existência a questão se torna relevante para justificar o quão
estreito seria este mercado. É o caso de João Fragoso que sozinho ou em coautoria com
Manolo Florentino defende a existência de um mercado restrito, com circulação precária
44
de mercadorias e moedas. A prova empírica para este argumento da iliquidez de nossa
economia é retirada dos testamentos e inventários, que demonstram que a elite mercantil
do Rio de Janeiro concentrava entre 34% e 71% do total de moeda em circulação, além
de outros bens, tais como os empréstimos (entre 77% e 95%), as apólices e ações (96%)
e os bens rurais, estes com concentração menor (intervalo de 47% a 71%), já que não
faziam parte essencial da estratégia de acumulação, mais restrita aos grandes negócios.
Deste modo, segundo os autores, as frações mais pobres da população “tinham na
45
lavoura o setor de investimentos mais viável”.
Diante destes dados, Carlos Valencia Villa questiona o monopólio da classe
mercantil do Rio de Janeiro sobre a circulação monetária, já que os bens rurais estavam
ainda mais concentrados em termos percentuais do que a própria moeda – devido ao
intervalo percentual menor –, e ainda assim os pobres tinham acesso a eles. Ou seja, se
há acesso a um, pelos argumentos apresentados por Fragoso e Florentino, não há razão
46
para crermos que o acesso ao outro – a moeda – seja plenamente vedado aos pobres.
Os gráficos abaixo, inspirados na proposta do próprio Valencia, mas construídos a partir
de outra combinação de dados, evidenciam uma forte correlação entre as alterações no
volume de papel moeda em poder do público e as alterações no custo de vida:
44
FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992, p. 185.
45
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto: Mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma sociedade colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 184.
46
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. La producción de la libertad: economia de los esclavos manumitidos
em Río de Janeiro a mediados del siglo XIX. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia e História,
2011. p. 152-155.
Fonte: IBGE. Históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. Rio de
Janeiro: IBGE, 1990. p. 527-32. BUESCU, Mircea. História econômica do Brasil: pesquisas e análises.
São Paulo: APEC, 1970.
FINLAY, Barbara & AGRESTI, Alan. Métodos Estatísticos para Ciências Sociais. Porto Alegre: Ed.
47
Penso-Artmed, 2012.
Fonte: IBGE. Históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. Rio de
Janeiro: IBGE, 1990. p. 527-32. BUESCU, Mircea. História econômica do Brasil: pesquisas e análises.
São Paulo: APEC, 1970.
48
Idem, ibidem. p. 157-158.
49
GRINBERG, Keila. “A poupança: alternativas para a compra da alforria no Brasil (2ª metade do século
XIX). In: Revista de Índias, vol. LXXI, nº 251, 2011. p. 140.
50
Idem, ibidem. p. 143-144.
privado e experimental. Criada em 1831, os autores identificam um total de 33 escravos
em um universo de 771 poupadores, no primeiro semestre de 1833. Já no segundo
semestre do mesmo ano o número de acionistas chega a 1326, contando com 111
cativos. Ou seja, no segundo semestre deste ano, a população de acionistas cativos
aumentou mais, percentualmente, do que a de livres. Para demonstrar a força econômica
destes pequenos acionistas, os autores resolvem comparar o fundo total da Caixa
Econômica com de outros estabelecimentos financeiros, que não possuem a restrição de
serem destinados a pequenos poupadores. O resultado é surpreendente: em 1842, o
Banco Comercial possuía um capital de 2500 contos de réis, ao passo que o da Caixa
Econômica, no início de 1840, era de 3409 contos, o que corresponde a 136% do capital
51
total daquele. Ou seja, mesmo antes da Lei de 1871 os escravos poupavam.
Quem melhor trabalhou com as operações financeiras dos pobres no Rio de
Janeiro – escravos e/ou libertos – em meados do século XIX foi Carlos Valencia Villa.
Estudando as alforrias na cidade do Rio de Janeiro entre 1840-71, o autor manuseou um
total de 17650 ações de liberdade, sendo 4600 alforrias pagas, que não necessariamente
são pagas com dinheiro, já que havia casos de pagamentos via crédito. No total,
estipula-se que as alforrias pagas teriam representado 38% do total analisado para o
52
período. Importante destacar que este número não representa o total de cativos que
eventualmente tenham operado com dinheiro, mas apenas os que conseguiram a
liberdade, indubitavelmente a minoria entre a população total de cativos. Ainda assim,
esta pequena fração escrava, junta, pode ser considerada detentora de um poder
econômico significativo.
Podemos exemplificar isso de duas formas: demonstrando o percentual de
alforrias pagas com dinheiro sobre o total de moedas em circulação ou comparando os
pagamentos em dinheiro pela alforria com o investimento em grandes fazendas do Vale
do Paraíba em anos específicos. Em ambas as formas, verifica-se uma expansão das
operações econômicas para pagamento da liberdade, seja pelo aumento de indivíduos
dispostos a pagar, seja pelo aumento do valor da liberdade. No primeiro caso, que
inclusive corrobora as informações de nossos gráficos 6 e 7, Valencia demonstra que na
década de 1840, o total de alforrias pagas representou entre 0,08 a 0,13% das moedas
51
SARAIVA, Luiz Fernando & OLIVEIRA, Thiago Alvarenga de. “A primeira Caixa-Econômica do Rio
de Janeiro: 1831-1858, notas de pesquisa”. Texto inédito. p. 15-18.
52
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. La producción... o p. cit. p. 36-37.
em circulação, números esses que se ampliam para 0,20% a 0,26% nos anos 1850, ou
seja, mais do que o dobro da anterior. Já a proporção do montante entre alforrias e
grandes fazendas, em três das cinco ocasiões elencadas pelo autor o valor conjunto das
ações de liberdade foram maiores do que das fazendas, correspondendo a 105%, 138% e
164% de seu valor. Nos outros dois casos, a proporção foi bastante próxima, com as
53
alforrias somando 78% e 96% dos valores das fazendas. Isto significa dizer que, no
ano de 1859, as alforrias somaram 155 contos de réis, valor quase duas vezes maior do
que toda exportação de açúcar do porto do Rio de Janeiro para o estrangeiro no biênio
1880-81, que atingiu apenas a cifra dos 83 contos de réis e também maior do que os 147
54
contos de réis usados na montagem da fazenda de Guilhermo Francisco Rodrigues.
Reiteramos o fato destas análises contar apenas com os cativos que obtiveram êxito na
aquisição da liberdade, grupo restrito, e não todos aqueles que movimentavam dinheiro.
Estes exemplos nos parecem ser o suficiente para demonstrar que os cativos
podiam e de fato operavam com dinheiro. Mesmo que nós tenhamos tomado os escravos
sempre em conjunto, comparando com operações de cunho individual, como o
investimento em fazendas, certamente estas operações se realizavam em um volume
cuja historiografia não supunha ser possível até então. Chegamos então a um dos pontos
nodais deste capítulo: a possibilidade deste segmento pobre ser um possível consumidor
das mercadorias primárias exportadas de Campos aos diversos espaços da província
fluminense cuja evolução demo-econômica já analisamos anteriormente. Naturalmente,
não queremos com isso dizer que um poderoso polo açucareiro do império tinha sua
produção absorvida por escravos da província, mas simplesmente que se havia a
possibilidade econômica do mais desfavorecido grupo social participar deste mercado
consumidor de bens primários, os demais grupos certamente também poderiam fazê-lo,
seja para consumo próprio, seja como matéria-prima para outras atividades. Incluímos
neste grupo de potenciais consumidores os libertos, quase tão pobres quanto os cativos,
mas com o importante diferencial de não entregar uma fração de seus ganhos a um
senhor.
Naturalmente, o grupo dos libertos também compõe um expressivo grupo
econômico entre aqueles que podemos classificar como “pobres”. As escrituras de
53
Idem, ibidem. p. 160-61.
54
Idem, ibidem. p. 161-162.
negócio por eles assinadas também deixam bastante claro que participavam do mercado
também enquanto consumidores, e não apenas como produtores. Somente no período
entre 1840-46, as escrituras públicas do quartil inferior registradas no primeiro ofício de
notas do Rio de Janeiro somaram 189 contos de réis. Das 524 escrituras usadas por
Valencia para analisar a questão, 199 se referiam a vendas, 195 a empréstimos, 54 a
aluguéis, 38 a pagamentos de dívidas e 11 a aforamentos. O endereço dos vendedores e
compradores destas mercadorias transacionadas – 44% delas era dinheiro – coincidiu
55
com os endereços em que os trabalhadores se ofereciam no Jornal do Commercio.
No período compreendido entre 1847-50, dois anos a menos do que entre
1840-46, os valores transacionados nas escrituras do quartil inferior somaram 118
contos de réis, tendo predominado as vendas e os empréstimos. Novamente, os
fornecedores e os destinatários concentraram-se na Cidade Velha, local que tanto
Valencia quanto Maurício de Abreu consideram ser moradias de pobres e, dentre eles,
56
escravos e libertos. Ou seja, cativos e libertos realizavam operações financeiras que
não se restringiam à compra da liberdade. Evidentemente, não podemos considerar
como “padrão”, especialmente em relação aos escravos, a realização de empréstimos,
mas a possibilidade de fazê-lo, por mais restrita que fosse – e era – estava aberta a
alguns poucos.
Como já analisamos anteriormente, o gráfico 6 demonstra uma curva em que o
custo de vida, a despeito das pequenas oscilações para mais e para menos, tende a
crescer. Mas, em se tratando de uma sociedade ainda pré-capitalista, seriam os efeitos
do aumento dos preços das mercadorias primárias sobre os trabalhadores os mesmos de
hoje, em uma sociedade de mercado?
55
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. “A economia dos negros livres...” op. cit. p. 120-122.
56
Idem, ibidem. p. 166-67, 174-176.
recorrer ao mercado. Talvez o maior exemplo disso seja a questão da “brecha
camponesa” estudada por Ciro Cardoso, que se caracterizava por permitir ao cativo um
espaço econômico relativamente autônomo para atuar não apenas provendo sua
subsistência de modo parcial ou total, mas também comercializando eventuais
57
excedentes agrícolas.
Isto fica explícito no caso da fazenda de Cachambú estudado por João Fragoso
em sua dissertação de mestrado. As despesas com a mão de obra cativa representavam
aproximadamente 40% dos gastos totais da fazenda. Dentre esses, o que mais pesava era
aquele com a aquisição de gêneros alimentícios, algo em torno de 40% deste total gasto
58
com os escravos. Dentre os anos analisados pelo autor, no 1º semestre a tendência era
a fazenda ter gastos maiores no mercado, com feijão e arroz, já que era período de
colheita, em que há trabalhadores extras. O mesmo não acontecia no 2º semestre, em
que somente um dos dois produtos era comprado no mercado – feijão ou arroz –, uma
vez que o outro era adquirido junto aos escravos. Apesar dos gastos serem grandes para
adquirir os gêneros necessários à subsistência da unidade produtiva de maneira geral, o
autor conclui que ele seria significativamente maior caso fosse necessário buscar no
mercado os gêneros obtidos junto aos escravos, lembrando ainda que o grosso da
59
produção cativa era destinada ao consumo dos próprios escravos.
No caso exemplificado por Fragoso e em tantos outros semelhantes, é possível
notar um dado curioso: a inflação poderia eventualmente ajudar, e não dificultar, a
situação econômica dos pobres. Isto se expressa a partir de alguns dados levantados por
Valencia: entre 1842 e 1847, a produção autônoma dos cativos deveria incrementar-se
em quase 17% para cobrir o aumento de quase 12% dos preços das ações de liberdade;
entre 1847-50, com valor nominal acrescido em 19,5%, a produção de bens primários
realizadas pelos cativos deveria crescer em quase 52% para que pudesse acompanhar o
valor da alforria. Ou seja, neste período o valor nominal da liberdade subiu mais do que
o das mercadorias comercializadas, dificultando o cotidiano do trabalhador. Mas o
inverso também acontecia: entre 1850-53, o preço nominal da alforria praticamente
57
CARDOSO, Ciro F. S. Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
58
FRAGOSO, João. Sistemas agrários em Paraíba do Sul (1850-1920): um estudo sobre relações
não-capitalistas de produção. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
História da UFRJ. Rio de Janeiro, 1983. p. 65-67.
59
Idem, ibidem. p. 68-69.
dobrou, mas a quantidade de farinha de mandioca que correspondia a este valor se
60
reduziu em 33%.
Em suma, ao contrário dos dias de hoje, em que os trabalhadores se veem
obrigados na maior parte das vezes a recorrer ao mercado para subsistência, as
possibilidades dos cativos e/ou forros manterem uma produção de mercadorias
agropecuárias independente os dava a chance de amenizar os efeitos inflacionários.
Evidentemente é sempre uma questão de risco: para que a inflação seja “benéfica” para
determinados grupos, é necessário haver uma coincidência entre a mercadoria produzida
e as mercadorias mais valorizadas pela inflação. Não há como sabermos se havia
alguma forma de prever isto na época, sobretudo se considerarmos que se trata de uma
população majoritariamente analfabeta.
Os rendimentos dos pobres não provinham unicamente desta produção
independente. Todas as pesquisas que se debruçaram sobre este tema afirmam de modo
61
categórico que a chave para a sobrevivência era a flexibilidade, a despeito de algumas
fontes sugerirem o contrário. O recenseamento de 1872 possui seções específicas que
avaliam e dividem a população pelas ocupações, sugerindo a existência apenas de
profissionais especializados e de pessoas sem profissão. Dos aproximadamente 340 mil
escravos existentes na província fluminense, o censo assim os classifica:
60
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. La producción... op. cit. p. 237-239.
61
SOARES, Luiz Carlos. O povo de Cam na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do
século XIX. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011; VILLA, Carlos Eduardo Valencia. La producción... op. cit.
62
Fonte: “Recenseamento do Brazil em 1872”. p. 12 e 90.
criadores – nesta última não há qualquer cativo empregado, seja na capital ou nos
demais municípios da província –, dos “operários”, que consiste nos cativos
empregados em qualquer tipo de indústria, como construção civil, calçados, chapéus,
tinturaria e etc. – representam quase todas as ocupações mecânicas, exceção feita à
63
profissão de “costureira”, que colocamos junto à categoria “outros”.
Nenhuma surpresa ao constatar que em uma sociedade rural maior parte dos
cativos estivesse empregada na lavoura e estes, acreditamos, tinham uma margem de
flexibilidade menor. Não simplesmente por estar no espaço agrícola, no sentido de
reificarmos as clássicas dicotomias da historiografia entre o escravo urbano – negro de
ganho, capaz de acumular uma fração de seus rendimentos cotidianos – e o escravo
rural – preso ao feitor e à fazenda, absolutamente incapaz de circular sem qualquer
vigilância coercitiva –, já que Keila Grinberg nos informa que muitos poderiam ser
empregados como intermediários no comércio entre quilombolas e/ou comerciantes de
64
outros espaços, revendendo madeira, leite, dentre outras mercadorias. Ao mencionar a
brecha camponesa, expusemos que era viável a existência de espaços menos coercitivos
ao cativo. A questão aqui é destacar que as cidades possuíam um sem-número de
atividades econômicas, fossem elas produtivas ou de serviços, que dava aos
trabalhadores de maneira geral um leque maior de possibilidades. Neste sentido, o censo
de 1872 dá a impressão de que os cativos – e os livres pobres – exerciam apenas as
funções nas quais foram registrados, o que não corresponde à realidade. Provavelmente
um mesmo indivíduo registrado como “artista” – artífice – poderia tornar-se operário ou
empregar-se no serviço doméstico pouco depois. O mesmo vale para as demais
ocupações mencionadas na tabela.
Importante destacar que isto se refere tanto a escravos quanto a livres ou
libertos. Em termos econômicos não havia muita diferença em relação ao que faziam e
quanto recebiam. A distinção fundamental – e o que justifica, em termos econômicos, a
busca da liberdade entre os cativos – é o fato de um liberto não entregar uma fração de
seu jornal a um senhor. Esta é uma diferença importante se quisermos pensar na
inserção deste segmento de trabalhadores no mercado de bens primários. A fração que
anteriormente era dispensada ao senhor poderia ser revertida em uma melhoria
63
Idem, ibidem. p. 12 e 90.
64
GRINBERG, Keila. op. cit. p. 147.
significativa na subsistência. Já a poupança para aquisição da liberdade, muito
provavelmente, continuava, já que normalmente a “produção” desta mercadoria tinha na
65
família um ponto seminal. Ou seja, após a libertação de um, investia-se na dos demais
membros. Mas, em termos ocupacionais, as diferenças eram quase inexistentes.
Novamente é Carlos Valencia que exemplifica isso de forma empiricamente
consistente. Estudando o que julga ser um mercado de trabalho da cidade do Rio de
Janeiro, o autor utilizou-se dos classificados do Jornal do Commercio para mensurar a
oferta e a procura por trabalhadores na cidade entre 1840-60. Em casos de procura, os
anúncios continham informações que muitas vezes deixam claro que não é corriqueira a
especialização profissional ou a condição jurídica, mas sim a contratação de
trabalhadores que estejam dispostos a receber o quanto o anunciante se propõe a pagar.
Somente às vezes se informava as habilidades requeridas ou a ocupação em si, sendo o
mais comum o endereço de onde se poderia encontrar o trabalhador, caso em que o
próprio anuncia a disponibilidade para trabalhar em algo, ou a vaga para trabalhar, caso
66
do anunciante que vai à procura de um empregado. De fato, entre 1840 e 1846, o lado
da oferta de trabalho era composto de forma majoritária pelos que pretendiam vender
cativos, mas a oferta de trabalhadores não especializados para alugar, fossem eles
escravos ou livres, triplicou: saiu de uma média de cinco anúncios por jornal para
67
dezesseis.
Se a flexibilidade era uma das características das atividades desempenhadas por
este segmento da população, é de se esperar que os rendimentos provenientes também o
fossem. E assim era caracterizado o “jornal” destes trabalhadores: inconstante tanto na
periodicidade quanto no valor a ser recebido, o que o impede de ser comparado a um
salário. Considerando as inconstâncias inerentes a este tipo de relação social, estipula-se
que o valor do jornal poderia variar, na média, entre 8 a 12 mil réis mensais, com uma
tendência geral de ampliação dos valores nominais e uma oscilação nos valores reais.
Partindo destes dados, é possível calcular, de modo aproximado, a quantia necessária
para manutenção de um trabalhador adulto. Segundo Valencia, entre 1840 e 1871 este
valor – nominal – oscilou entre 70 e 250 réis diários, correspondente 2100 e 7500 réis
mensais, respectivamente. Em termos reais, os custos de alimentação chegam a atingir,
65
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. La producción... op. cit. p. 143-145.
66
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. A economia dos negros livres... op. cit. p. 92-93
67
Idem, ibidem. p. 98-99.
68
no máximo, 33,5% e, no mínimo, 14,3%. Estes são valores que correspondem a trinta
dias de alimentação adquiridas no mercado. Ou seja, quase sempre estes valores, na
realidade, eram menores, haja vista que os trabalhadores não apenas comercializavam
os bens agropecuários que produziam, como também os consumiam.
A questão agora é comparar o preço dos alimentos tradicionalmente consumidos
pelos trabalhadores pobres com os do açúcar produzido em Campos dos Goytacazes, no
sentido de avaliarmos a possibilidade deste segmento populacional colocar-se como
consumidores. Infelizmente, para os anos 1850 e 1860, dispomos apenas dos preços
médios anuais do kg do açúcar, sem ter acesso às suas oscilações. Apenas a partir do
ano de 1874 dispomos de informações sobre as oscilações anuais dos preços do açúcar,
bem como de outras mercadorias tradicionalmente comercializadas no Rio de Janeiro.
Resolvemos não contabilizar a aguardente, pois não era o principal objetivo da indústria
campista.
Valencia menciona a média dos preços para o ano de 1856 da seguinte forma:
14$129 réis para o saco de arroz; 5$192 réis para a arroba de carne-seca; 13$000 réis
69
para o saco de feijão. Neste mesmo ano o Almanak de Campos publica uma relação de
preços do açúcar produzido em Campos e levado ao Rio de Janeiro entre 1852-1883.
70
Para nossa surpresa o preço médio por kg, em 1856, corresponde à 150 réis. Não
identificamos no texto de Valencia o quanto em kg equivalia o saco de arroz e de feijão,
mas supomos ser o equivalente a 60kg, o que daria um preço por kg de 235 e 216 réis,
respectivamente, enquanto a carne-seca equivaleria a 346 réis por kg. Já para o ano de
1860, a relação de preços médios de Valencia foi a seguinte: 12$146 para o saco de
71
arroz; 11$568 para o saco de feijão; 3$128 para a arroba da carne-seca. Em kg, estes
valores seriam correspondentes a 202, 193 e 208 réis, respectivamente. O preço médio
72
do açúcar de Campos registrado no Almanak para o ano de 1860 foi de 174 réis por kg.
Não dispomos de dados comparativos para os anos 1860, portanto, voltaremos
nossa atenção para as décadas de 1870 e 1880. Com isso podemos comparar os preços
68
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. La producción... op. cit. p. 218.
69
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. A economia dos negros livres... op. cit. p. 203.
70
ALVARENGA, João de. (org.). Almanak Mercantil, Industrial, Administrativo e Agrícola da cidade e
município de Campos, comprehendendo tambem os municípios de S. Fidélis, Macahé e S. João da Barra
(Rio de Janeiro). Campos: Typographia do Monitor Campista, 1885. p. 54.
71
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. A economia dos negros livres... op. cit. p. 253.
72
ALVARENGA, João de. (org.). op. cit. p. 54.
do açúcar de Campos, seja ele branco ou mascavo, com os da carne-seca, item básico na
subsistência dos pobres, segundo Valencia, entre 1874 e 1889. Os gráficos abaixo
servem de base à nossa comparação.
73
Retrospecto Commercial do Jornal do Commercio de 1874. Typographia imperial e constitucional de
J.Villeneuve e C. 1875, p. 32. Disponível em: http://memoria.org.br/
intensas. Também não é possível dizer com precisão se os preços médios se aproximam
mais dos preços máximos ou dos mínimos.
Na década de 1870 o açúcar mascavo se mostrou, em termos meramente
econômicos, sem questionar sua importância na dieta cotidiana, mais acessível aos
trabalhadores do que a carne-seca, que muitos autores se mostram unânimes em
afirma-la como peça-chave na alimentação, apesar de não ser tão fundamental quanto a
farinha de mandioca. No topo da hierarquia de preços está o açúcar branco, que em
momento algum baixou da casa dos 250 réis por kg de preço médio. A carne-seca
chegou a este patamar em quatro oportunidades e somente em 1871 o preço médio do
açúcar mascavo se elevou para além dos 250 réis por kg. Para verificarmos se as
tendências apresentadas pelo ano de 1879 são rompidas ou continuadas, é necessário
repetir o processo, tendo em vista a década de 1880. Dispomos de dados mais completos
desta vez – 1880-90. Os gráficos abaixo ilustram esta situação.
74
“Quadro demonstrativo do movimento da população escrava da província do Rio de Janeiro, de 30 de
setembro de 1873 a 30 de junho de 1885”. In: Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial
do Rio de Janeiro na abertura da primeira sessão da vigesima sexta legislatura em 8 de agosto de 1886
pelo presidente, dr. Antonio da Rocha Fernandes Leão. Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1886. p. 91.
O aumento do número de fazendas do Vale Fluminense, bem como a
dinamização econômica da cidade, cristalizada na pluralidade de atividades econômicas
que os pobres poderiam exercer e na expansão do papel moeda em poder do público,
fizeram da província um poderoso mercado consumidor. As questões que nos resta
desvendar, neste momento, são as seguintes: o quanto deste açúcar é exportado para
portos internacionais, o quanto é exportado para portos nacionais e o quanto dele é
consumido no próprio Rio de Janeiro.
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Apesar de hoje estes estados/cidades fazerem parte da região nordeste, esta denominação inexistia à
época do império. As regiões sudeste e nordeste são invenções republicanas.
entradas de açúcar de ambas as regiões seguem tendências opostas: enquanto Campos
amplia de forma contínua o volume de açúcar levado ao Rio de Janeiro, chegando a 212
mil sacas, o “Norte” encolhe o volume transportado para 51 mil sacas. Entre 1869-70 e
1873-74 ambas as regiões apresentam oscilação no fornecimento de açúcar. No caso de
Campos, há um aumento significativo nas duas safras seguintes, atingindo o ponto
máximo da série em 1871-72, quando o fornecimento atingiu a casa das 336 mil sacas.
Logo na safra seguinte há uma queda abrupta, atingindo o montante de 256 mil sacas
em 1873-74. Apesar do “Norte” mais que dobrar seu fornecimento de açúcar a partir de
1870-71, atingindo o número de 115 sacas, não foi capaz de apresentar uma tendência
permanente de crescimento, tendo oscilado bastante até 1873-74. Mesmo assim,
manteve níveis médios superiores aos apresentados até 1869-70.
Novamente a partir de 1873-74 identificamos tendências opostas: enquanto o
“Norte” amplia de forma contínua seu fornecimento de açúcar até 1876-77, Campos
mantem sua oscilação, intensificando-a até o final desta série. A combinação destes dois
fatores produziu fato inédito até então: em 1874-75 e em 1876-77, Campos dos
Goitacazes deixou de ser o principal fornecedor de açúcar para o Rio de Janeiro. A
discrepância é tão grande que nos faz desconfiar a respeito de uma possível
sub-representatividade dos dados para esta safra. Se, como mencionamos acima, o
volume em 1873-74 foi de 256 mil sacas, o da safra seguinte se reduziu a pouco mais de
15% deste valor, atingindo quase 39 mil sacas. Entretanto, para a safra seguinte,
1874-75, voltou a apresentar um dos maiores indicadores da série, 297 mil sacas. Mas a
oscilação permanece, tendo reduzido a entrada do açúcar de Campos a 226 mil sacas na
safra seguinte que, enfim, mostrou novo aumento no último ano da série: 326 mil. Por
outro lado, o “Norte” sai da casa das 93 mil sacas em 1873-74 para atingir o montante
de quase 262 mil em 1876-77, sofrendo nova queda em 1877-78, mas ainda mantendo
índices elevados: 153 mil sacas.
O último ano da série sinalizou para tendências opostas, que parecem se
confirmar quando analisamos o gráfico posterior,