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INSTITUTO JOÃO CALVINO

IJC

O texto grego do Novo Testamento no período de


fechamento do cânon.
Uma rápida análise sobre a possível canonização de um tipo de manuscrito e uma sugestão
sobre o texto mais comum no quarto e quinto século da era cristã.

Weliton Borges de Eça


Manuscritologia
Prof: Abram de Graff

Novembro, 2014
Maceió - AL
Quais são os textos originais da bíblia? Para responder a esta questão os pastores e teólogos tem
gastado bastante energia no trabalho conhecido como crítica textual. A crítica textual é o estudo
de algumas cópias dos textos autógrafos da Bíblia, com o objetivo de encontrar qual é o texto
original das Sagradas Escrituras. Greenlee sugere que este trabalho deve ser classificado como
baixa crítica para ser distinguida da crítica literária1.
Esta busca é motivada pela crença de que os livros da bíblia são canônicos, isto é, são a
Divina Escritura, a voz de Deus, a única regra de fé e prática do cristão2. Mesmo com a busca
pelo texto original por meio da pesquisa entre os manuscritos, abre-se ainda as questões: a
canonização dos livros da bíblia envolveu uma canonização dos manuscritos? Qual era o texto
comum do período de fechamento do cânon nas igrejas cristãs?
Diante das questões, este trabalho se limitará à argumentação de que não existia um
texto grego e hebraico oficial nas igrejas, porém é possível que na maioria do mundo cristão no
fim do quarto e no quinto século, usavam o texto que foi o precursor do texto bizantino e
consequentemente do texto majoritário.
Será apresentado a acumulação dos argumentos a partir (1) de uma rápida análise do
processo de canonização dos livros do Novo Testamento; (2) do ensino de Agostinho sobre a
importância das Escrituras e (3) a apresentação do argumento de Confort sobre o texto do quarto
século e posterior.

O processo de canonização do texto do Novo Testamento.


O reconhecimento do cânon cristão não foi um processo rápido e simples, nem foi por uma
decisão arbitrária de algum concílio da igreja. Isso pode ser observado pelo processo de
reconhecimento dos textos do Novo Testamento como sagrados, que inicialmente é
reconhecido pelos primeiros cristãos, como registrado em 2 Pedro 3.16. Conforme Voorwinde
ainda no primeiro século e início do segundo já existia um grupo de escritos conhecidos como
Os Evangelhos e outro conhecido como O Apóstolo. Porém a partir do segundo século surgiu
nas igrejas algumas heresias que intencionalmente mudaram o texto do Novo Testamento e
estavam sugerindo um outro cânon, são elas, o marcionismo, o gnostiscimo e o montanismo3.
O surgimento destes cânons com livros apócrifos ou com textos alterados para embasar
heresias levou a igreja primitiva reagir. O acadêmico Theodor Zahn (1838-1933) buscou provar

1
GREENLEE, J. Harold. Introduction to New Testament Textual Criticism. Massachusetts: Hendruckson
Publishers, 1995, p. 1
2
Confissão Belga, Artigo 7.
3
VOORWINDE, Stephen. The Formation of the New Testament Canon. Vox Reformata 60, 1995.
Disponível em: http://www.bible-researcher.com/voorwinde1.html em 26/11/2014
que existem evidências de que a Igreja teve uma reação a estas heresias justamente ao considerar
os escritos do Novo Testamento igualmente santos como o Antigo Testamento. Isso mostra que
já existia o conceito de canonicidade dos textos do Novo Testamento ainda no segundo século.
O Cânon Muratório datado do fim do segundo século contém uma lista de livros do Novo
Testamento com alguns comentários que indica que estes livros não eram apenas uma coleção
de livros usados pela igreja, mas que eram considerados livros sagrados4.
Ademais outras listas canônicas surgiram no segundo século. Já no terceiro século o
cânon cristão estava mais ou menos fixado, sendo por fim fechado no quarto século5. Ainda no
quarto século alguns concílios/sínodos começaram a ter listas dos livros que deveriam ser lidos
nas igrejas e considerados canônicos, o primeiro foi Hipona 393, depois Cartago 397 e o
concilio que trouxe uma lista com todos os livros da LXX e os vinte e sete livros do novo
testamento foi Cartago 419.
A decisão de Cartago é de grande importância para se responder a questão a respeito de
uma canonização de manuscritos. A baixo segue a decisão deste concilio:

CANON XXIV. (Greek xxvii.)


Que nada seja lido nas igrejas a não ser as Escrituras Canônicas.
ITEM, que a não ser as Escrituras Canônicas, nada seja lido nas igrejas sob o nome de Escritura
divina.
As Escrituras Canônicas são as seguintes:
 Gênesis;
 Êxodo;
 Levíticos;
 Números;
 Deuteronômio;
 Josué o filho de Num;
 Os Juízes;
 Rute;
 Os 4 livros dos Reis;
 Os 2 livros de Crônicas;
 Jó;
 Os Salmos;
 Os 5 livros de Salomão;
 Os 12 livros dos Profetas;

4
VOORWINDE, 1995
5
CONFORT, Filip. Encountering the Manuscripts. Nashville: Broadman & Holman, 2005, p. 261
 Isaias;
 Jeremias;
 Ezequiel;
 Daniel;
 Tobias;
 Judite;
 Ester;
 Esdras, os dois livros; e
 Macabeus, os 2 livros.
O Novo Testamento:
 Os Evangelhos, os 4 livros;
 O livro de Atos dos Apóstolos;
 Epístolas de Paulo, as 14;
 Epístolas de Pedro, o Apóstolo, as 2;
 Epístolas de João, o Apóstolo, as 3;
 Epístola de Tiago, o Apostolo;
 Epístola de Judas, o Apóstolo; e
 O Apocalipse de João.
Que isto seja enviado para nosso irmão e companheiro, bispo Bonifácio e para os outros bispos
destas partes, para que se confirme este cânon, pois estas são as coisas que recebemos de nossos
pais para serem lidas na igreja.6

A decisão dos bispos em Cartago nada fala sobre algum manuscrito ou algum texto-tipo
de manuscrito, há apenas lista os livros. Ainda assim é importante observar que a lista de livros
do Antigo Testamento é a mesma da Septuaginta. Isso não é um indicio de uma escolha pelo
texto da LXX, mas mostra que esta tradução alexandrina era comum também nas igrejas do
norte da África e seus livros considerados como sagrados e dignos de serem lidos nas igrejas.
Com relação ao Novo Testamento a lista de livros não indica necessariamente nenhum tipo de
manuscrito.
Nota-se que apesar de ser um concilio regional, da igreja do norte da África 7, o cânon
sugerido foi aceito em todas as outras igrejas cristãs, o que segundo Confort, trouxe um forte
impacto no processo de preservação e manutenção do texto.

6
HEFELE, K J. Histoire des Concilies d'apress les Documents Originaux. Disponível em:
http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0325-
0787,_Concilia,_The_First_Seven_Ecumenical_Councils_[History_And_Canons],_EN.pdf em 26/11/2014
(tradução livre)
7
WIKIPEDIA. Concílio de Cartago. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Concílio_de_Cartago
em 25/11/2014
Então, percebe-se que a canonização dos livros bíblicos não aconteceu por uma decisão
conciliar, mas por um processo, como mostrado anteriormente. Esta compreensão ajuda a
entender que o próprio conceito de canonização nos primeiros séculos estava ligado diretamente
ao conceito de inspiração8 e que na maior parte da igreja não estava relacionada diretamente a
cada palavra do texto, mas ao conteúdo do Novo Testamento. Desta compreensão então
decorreu a necessidade de proteger os escritos bíblicos das falsificações como as do marcionitas
e dos gnósticos, porém aparentemente não consideravam a necessidade de ter um texto sem
variantes.

O ensino de Agostinho sobre os textos originais.


Sobre o uso de diversos manuscritos na tradução do Novo Testamento, é importante se analisar
os escritos do Pai da Igreja mais influente no processo de canonização, Agostinho. Adolf Von
Arnack disse a respeito dos critérios para se considerar um livro como Escritura Sagrada de
acordo com Agostinho: “A opinião de Agostinho fixou regra para o Ocidente todo” (Précis de
I histoire des dogmes, p. 152) 9.
Em sua obra Da Doutrina Cristã, que começou a ser escrita em 397 e já era conhecida
em 40010, Agostinho têm uma lista que reconhece os livros canônicos idêntica à lista da decisão
de Cartago 41911. Porém é importante observar que agostinho defendeu que quanto à lista dos
livros canônicos deve-se seguir a “autoridade da maioria das igrejas católicas, entre as quais,
sem dúvida, se contam as que mereceram ser sede dos apóstolos e receber cartas deles” 12 e
também explica os critérios para a canonização dos livros do Novo Testamento mostrando que

8
Conforme Confort existiam nos primeiros séculos diferentes conceitos sobre inspiração das escrituras.
Confort explica que no primeiro século da Igreja cristã é muito provavelmente houveram mudanças nos textos
bíblicos, porém estas foram autorizadas, visto que eram realizadas pelos próprios autores ou por alguém
autorizado. Porém não houveram mudanças nos textos sem autorização e as que houveram não foram
significativas. A partir do segundo século, com a morte das testemunhas oculares de ressurreição de Cristo, os
escritos do Novo Testamento se tornaram mais vulneráveis a mudanças em seu texto. Estas mudanças dependeram
da compreensão dos copistas a respeito do valor dos escritos [quão sagrados eram]. Confort alista três tipos de
copitas que existiam no segundo século; (1) os profissionais que buscavam fazer uma cópia exata do texto,
inclusive considerando palavra por palavra [cada palavra era inspirada]; (2) os não-profissionais que desejavam
manter a fidelidade apenas da mensagem, podendo portanto alterar e “melhorar” o texto dos escritos do NT [apenas
a mensagem é inspirada]; (3) e os que eram movidos por motivações teológicas e buscam harmonizar os contos
dos Evangelhos, entre esses pode-se inserir também os que queriam perverter a doutrina, como Marcião, e os que
buscavam a defesa de uma cristologia ortodoxa e por isso alteraram os textos para garantir a doutrina
9
Citado em (AGOSTINHO: 2005), p. 96, Nota de rodapé 5.
10
Informações apresentadas na Introdução da obra traduzida para o português. AGOSTINHO, St. Da
doutrina cristã. São Paulo: Paulus, 2002, p. 11.
11
AGOSTINHO. Da doutrina cristã. São Paulo: Paulus, 2002 – (Patrística). Livro II, Cap 8.13
12
Idem. Cap 8.12
existiam “igrejas mais autorizadas” que é uma referência às igrejas cuja a sucessão episcopal
remonta a um dos apóstolos13.
Diante da questão de quais manuscritos eram utilizados na época, ou ainda se existia
algum tipo de comparação de manuscritos para se chegar a um texto grego mais preciso, tem-
se um pequeno comentário de Agostinho sobre a escolha dos melhores manuscritos. No livro
II Da doutrina cristã, Agostinho está argumentando sobre a necessidade de conhecer as línguas
originais, grego e hebraico, para poder avaliar uma tradução. No capítulo 15, o Pai da Igreja
descreve seu apresso pela tradução da Itália e pela tradução dos setenta, porém quando comenta
sobre o texto grego ele diz:

Pelo que se refere aos livros do Novo Testamento, se houver algo duvidoso nas diferentes versões
latinas, não há dúvidas de que se devem ceder aos exemplares gregos e sobre tudo aos que se
encontram nas igrejas mais doutas e fiéis. 14

Ao usar o termo igrejas doutas e fieis dentro deste contexto, que é a discussão sobre os
livros canônicos e a avalição da tradução, pode-se concluir que ele esta fazendo uma referência
as igrejas mais autorizadas citadas a acima, ou seja, as igrejas mais importantes e as que na
sucessão episcopal remontavam a algum apóstolo.
A ideia de comparação de exemplares apresentada por Agostinho revela, não apenas,
que haviam vários manuscritos do Novo Testamento e que isso não afetava o conceito de
canonicidade, como também mostra que havia algum trabalho de escolha entre as variantes
textuais, devendo portanto o estudioso preferir os testemunhos das igrejas doutas e fieis.

Filip Confort e a sugestão do principal texto do quarto e quinto século


Depois de analisar o processo de canonização que culminou do reconhecimento dos livros em
Cartago e ainda relação de Agostinho com texto do Novo Testamento, é ainda importante
analisar quais tipos de manuscritos eram mais comuns no período de fechamento do cânon.
Para isso Confort traz uma boa explicação usando também o argumento de F. F. Bruce.
Confort aponta para dois centros de produção de cópias dos livros no Novo Testamento,
o primeiro é o Norte da África e o segundo é a região de Constantinopla. A grande perseguição
de Diocleciano que destruiu muitos escritos cristãos, inclusive as cópias do Novo Testamento,
diminuiu a influência dos escritos de Alexandria, porém ainda se preservaram algumas igrejas

13
Idem.
14
Idem. Cap 15.22
no interior do Egito que tinham manuscritos do tipo Alexandrino. O segundo centro de
produção de cópias surgiu depois que Constantino “legalizou” o cristianismo e pediu a
produção de cinquenta cópias das Escrituras que foram distribuídas no mediterrâneo. Confrot
cita Bruce e argumenta que o texto destas cópias foram, mais provavelmente escritas a partir da
compilação de Luciano de Antioquia, se torno o padrão paras as igrejas ocidentais e formou a
base para o texto bizantino (que foi o precursor do texto Majoritário e Receptus)15.
A conclusão de Confort sobre o assunto é plausível, não tanto por mostrar uma ligação
clara do conteúdo do próprio texto bizantino com o das 50 cópias16, mas por mostrar como a
destruição dos textos Alexandrinos na perseguição do início do quarto século, juntamente com
a preferência das igrejas pelos textos produzidos em Constantinopla, torna mais possível que
os textos baseados na compilação de Luciano foram os textos mais comuns no fim do quarto
século. Ainda pode-se acrescentar que o mundo Mediterraneo se tornou latino, apenas de ainda
terem continuado algumas igrejas com leitura em grego das Escrituras, a maioria estava lendo
os textos latinos, produzido em Constantinopla17.
A harmonia destas evidencias, tanto as levantadas por Confort e Bruce, quanto a
comparação com os escritos de Agostinho no fim do quarto século e a decisão de Cartago
constroem uma cadeia de argumentos que podem sugerir que o texto mais popular no fim do
quarto século, e consequentemente, o texto conhecido das igrejas quando o cânon foi por fim
fechado é o texto oriundo da compilação de Luciano, o texto do tipo bizantino.

Conclusão
Diante dos questionamentos a respeito de algum tipo de manuscrito que foi canonizado pode-
se responder por três argumentos apresentados neste trabalho: (1) a decisão do último concílio
de Cartago, o mais importante sobre o assunto, não tem qualquer evidência de se escolher um
tipo de manuscrito em especifico; (2) a própria citação de Agostinho sobre considerar os
exemplares das igrejas fieis em superioridade a outros mostra que havida neste período uma
pluralidade de manuscritos utilizados para as traduções para o latim; (3) combinando os dois
primeiros argumentos pode-se concluir que o conceito de canonização predominante no período
de fechamento do cânon não leva em consideram as variantes textuais do Novo Testamento
existentes na época, mas considerava importante a proteção do conteúdo doutrinário dos livros
considerados Escrituras Divinas.

15
CONFORT: 2005, p. 277-79
16
O que é impossível, pois não se encontrou estas cópias.
17
CONFORT: 2005, p. 278-9
Sobre o texto mais comum neste período, conclui-se que é complicado chegar a alguma
definição com as informações que temos hoje, porém Confort apresenta uma boa argumentação
para mostrar que o texto mais comum nas igrejas eram as traduções de textos oriundos da
compilação de Luciano de Antioquia.

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