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A formação da Bíblia judaica

Por muito tempo, as histórias e os ensinamentos foram passados adiante apenas de


forma oral. A família era o espaço fundamental para a transmissão dos conteúdos da fé.
Antes do exílio, começaram a surgir alguns escritos que, mais tarde, fariam parte da Bíblia.
Tradições antigas começaram a ser escritas e guardadas: eram costumes, leis, histórias,
ensinamentos, orações, ordens de culto, calendários de festas religiosas, entre outras.
Também os reis mandavam escrever sobre os seus feitos: as batalhas, as construções, o
comércio e a relação com outros reinos.
Mas foi apenas a partir do exílio na Babilônia que alguns desses escritos começaram a
ser considerados sagrados. Nessa mesma época surgiram, também, muitos outros escritos.
Em 539 a.C., os persas conquistam a Babilônia. Jerusalém e seus arredores (Judá)
passam a fazer parte do Império Persa. Os judeus que estavam no exílio receberam
autorização para voltar a Judá e reconstruir Jerusalém. Durante o domínio persa – que durou
até 332 a.C., formou-se a primeira parte da Bíbliajudaica: a Torá. Ela é composta dos cinco
primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. A Torá,
que significa “instrução” ou “lei” (de Deus), é considerada, pelo judaísmo, a parte principal
da Bíblia.
Nos séculos seguintes, foi sendo composta e formada a segunda parte, que leva o nome
de Profetas. Ela é composta dos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis e dos profetas
propriamente ditos (com exceção do livro de Daniel). Esses livros são vistos pelos judeus
como uma interpretação da Torá. No tempo de Jesus, tanto a “Torá” como os “Profetas”
eram lidos no culto da sinagoga. Por fim, foi formada a terceira e última parte da Bíblia
judaica, chamada de Escritos. Dela fazem parte os seguintes livros: Salmos, Jó, Provérbios,
Rute, Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras, Neemias e Crônicas.

Introduzindo o Antigo Testamento

Definição

O que é o Antigo Testamento? Quando eu faço esta pergunta numa sala de aula, as
respostas são variadas. Alguns dizem que o Antigo Testamento é o “complemento do Novo
Testamento” ou “a promessa de Deus de enviar o Messias.” Outros destacam o aspecto
histórico, dizendo que o Antigo Testamento é “a revelação progressiva de Deus para o povo
hebraico”. Estas respostas mostram, em termos gerais, como o leitor ocasional ou até
freqüente do Antigo Testamento pensa do seu conteúdo. Estas respostas são corretas? Na
realidade, em todas essas respostas, podemos encontrar alguns aspectos da natureza do AT.
A questão que ainda permanece é a seguinte: Será possível definir em poucas palavras um
corpo de literatura que levou mais que mil anos para se escrever e transmitir? É possível
reduzir tudo que se encontra no AT a uma só frase? Certamente, definir do Antigo
Testamento não é fácil, principalmente por causa da natureza desta literatura. A resposta
inclui vários aspectos importantes. Vamos esboçar alguns:
Primeiro, o Antigo Testamento pode ser chamado uma coletânea de literatura hebraica. Esta
literatura foi escrita principalmente em hebraico e contem narrativas, poesias, profecias, e a
sabedoria da antiga cultura hebraica até o período da restauração depois do exílio babilônico.
O seu conteúdo reflete a história e a cultura da antiga nação de Israel bem como as normas
e convenções da literatura do Oriente Médio em geral e do povo hebraico em particular. Por
isso, a leitura e interpretação do Antigo Testamento devem levar em conta as suas
características históricas, culturais e literárias.

Segundo, uma outra maneira de pensar do Antigo Testamento é como os livros sagrados da
comunidade judaica. São estes livros que formam a Bíblia Hebraica, o Tanak. Estes livros
preservam as tradições religiosas antigas dos judeus e são usados por esta comunidade, ao
lado das suas próprias tradições, na observância dos rituais da sua religião. A influência
judaica mais óbvia pode ser vista na divisão e ordem dos livros da Tanak. Este se divide em
três partes: a Tora, os Nevi’im (os profetas), e os Ketuvim (os escritos). Falaremos mais
sobre este aspecto do Antigo Testamento.

Terceiro, o Antigo Testamento é a primeira parte da Bíblia cristã. Como parte desta, é aceito
pela igreja como escritura ao lado do Novo Testamento. Assim, a igreja deve ler o Antigo
Testamento com seriedade porque é considerado inspirado por Deus. O Antigo Testamento
ainda fala à igreja e deve ser usado na elaboração da doutrina e prática juntamente com o
Novo Testamento.

Finalmente, o Antigo Testamento é o primeiro testamento das atividades de Deus na história


da sua auto-revelação para o ser humano. Como o primeiro “testamento”, o Antigo
Testamento fala de Deus, seus atos e sua natureza no contexto da sua auto-manifestação ao
povo hebraico. Também, trata da resposta que o ser humano deu a esta revelação, tanto
para o bem como o mal. Para a igreja, é uma fonte confiável de conhecimento verdadeiro de
Deus e é indispensável na formulação da teologia bíblica e sistemática.

As questões básicas

A questão da definição do Antigo Testamento nos leva a considerar como devemos estudá-lo.
Quando abrimos o Antigo Testamento para ler ou estudar o seu conteúdo, algumas questões
básicas nos enfrentam. O estudante sério do texto bíblico tem que lidar ou mais cedo ou
mais tarde com estas questões.

A questão do texto

A primeira é a questão da natureza do próprio texto. O Antigo Testamento foi escrito


principalmente em hebraico, com alguns trechos em aramaico. São línguas desconhecidas
pela maioria dos leitores bíblicos modernos. Mesmo com traduções contemporâneas
modernas, nem sempre o sentido de uma palavra ou expressão é claro. Felizmente, uma
leitura comparativa das traduções modernas pode ajudar o leitor entender melhor o sentido
original das palavras e expressões bíblicas. Mas, para o estudante sério das escrituras, um
conhecimento básico das línguas bíblicas é de valor imenso na leitura e interpretação do
Antigo Testamento.

Porque nós não temos os manuscritos originais do Antigo Testamento, o nosso conhecimento
do conteúdo vem por meio das copias e versões antigas que foram preservadas. Existem
vários manuscritos antigos ao nosso dispor para o estudo do texto e transmissão do Antigo
Testamento. O mais importante dos manuscritos hebraicos é o Texto Masorético, um texto
“padrão” produzido pelos masoretas, escribas judaicos encarregados pela tarefa de copiar e
preservar o texto hebraico. Este “texto padrão” apareceu acerca de 500 dC e foi baseado em
textos mais antigos. Um dos manuscritos masoréticos mais importantes é o Códice de
Leningrado B19, escrito acerca de 1008 dC e que forma a base da Bíblia Hebraica
Stuttgartencia (BHS), uma das edições mais recentes da Bíblia Hebraica.

Além do manuscrito masoréitco, uma outra fonte importante de informações sobre o


conteúdo do texto do Antigo Testamento são os rolos do Mar Morto. Entre os rolos, temos
exemplos dos manuscritos hebraicos mais antigos que existem. Os textos do Mar Morto
representam uma tradição textual não-masorético, isto é, um manuscrito que não foi
utilizado pelos masoretas na produção do texto padrão. Os textos do Mar Morto mais antigos
foram escritos acerca de 200 aC por membros de um grupo de indivíduos conhecidos como
os essênios, uma seita judaica que se separou do judaísmo da Palestina e se estabeleceu na
beira do Mar Morto para esperar a vinda do “Mestre de Justiça.” Enquanto o grupo esperava,
passava o tempo estudando as escrituras, praticando os seus rituais religiosos e fazendo
cópias e comentários dos textos do Antigos Testamento. Algumas desses manuscritos foram
preservados no deserto até a descoberta em 1948.

Versões são outros exemplos de textos do Antigo Testamento. Uma versão é um manuscrito
não-hebraico, isto é, uma tradução antiga do Antigo Testamento. A versão mais importante
é a Septuaginta (LXX), uma tradução grega do texto. A história da tradução desta versão
não é totalmente conhecida, mas, sabemos que provavelmente foi produzida no terceiro
século aC de um manuscrito hebraico desconhecido. A LXX foi usada, primeiro pelos judeus e
depois, pelos cristãos. Quando autores do Novo Testamento precisavam citar o Antigo
Testamento, a LXX foi o manuscrito normalmente usado. Além disso, é usado pelos
tradutores contemporâneos do Antigo Testamento como fonte de leituras comparativas
quando o texto hebraico é difícil, corrupto ou ambíguo.

A questão das fontes

Uma segunda questão é a questão das fontes do Antigo Testamento.[1] De onde veio o texto
do Antigo Testamento? Como chegou até nós? Infelizmente, a história da produção e
transmissão do texto hebraico não é conhecida completamente e o próprio texto nos dá
poucas informações específicas. O texto indica que, desde as épocas remotas dos
antepassados de Israel até o fim da época do Antigo Testamento, Deus comunicou-se com
seus servos. A natureza desta comunicação nem sempre é conhecida. Uma das frases mais
comuns no Antigo Testamento é “e Deus disse . . .” Os autores originais não explicaram
como Deus falou. Muitos especialistas acreditam que estas revelações foram transmitidas
oralmente de geração a geração antes de serem escritas. A única coisa que podemos afirmar
é que foram aceitas como comunicações diretas e legítimas de Deus para seus servos.

Aos poucos, as falas de Deus, as narrativas da história do povo de Israel, as falas dos
profetas e as suas poesias foram preservados por escrito, criando um corpo literário. O texto
bíblico nos dá algumas indicações deste processo. Em Êx. 17.14, lemos que Deus ordenou
que Moisés escrevesse o relato na batalha entre os israelitas e os amalequitas. Outros
exemplos podem ser encontrados em Êx. 24.4; 34.27; Nu. 33.2; Dt. 31.9, 19. Os livros de
Reis e Crônicas registram a existência de fontes escritas que foram utilizados na compilação
das narrativas do reino, como os “registros históricos do vidente Samuel, do profeta Natã e
do vidente Gade” (1Cr. 29.29), “os registros históricos de Salomão” (1Rs. 11.41) e “os
registros dos reis de Judá e de Israel” (2Cr. 25.26). Além destas fontes “oficiais”,
proclamações e cartas foram incluídas (Es. 1.2-4; 7.12-26) e citações de livros
desconhecidos, como, por exemplo, o “Livro das Guerras do SENHOR” (Nu. 21.14, 15) e o
“Livro de Jasar” (Js. 10.12, 13).

A questão do cânon

Tudo isso mostra que a produção do texto do Antigo Testamento foi um processo histórico
dinâmico, envolvendo pessoas e fontes conhecidas e desconhecidas. Gradualmente, as várias
coleções foram juntadas para criar um corpo de literatura “autorizada.” O processo de
aceitação da literatura como literatura autorizada é chamado canonização. A divisão dos
livros da Bíblia Hebraica em Lei (Torá), Profetas (Nevi’im), e Escritos (Ketuvim)
provavelmente reflete a ordem em que os livros foram aceitos como escritura. Certamente a
autoridade da Torá, os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, foi aceita logo por causa
do seu vínculo com Moisés e pelo fato de conter as leis da aliança do Sinai. Partes desta
literatura foram lidas em várias ocasiões históricas de Israel, mostrando o seu valor
intrínseco. Na ocasião da formação da aliança no Sinai, o “livro da aliança” foi lido,
concluindo a cerimônia da confirmação da aliança. (Êx. 24.7) Mais tarde, na ocasião da
renovação da aliança nos dias do Rei Josias, o “livro da lei” foi lido ao rei e depois ao povo.
(2 Rs. 22.10, 11; 23.2) A leitura pública do livro da lei durante a restauração nos dias de
Esdras e Neemias foi instrumental na reconstrução da sociedade pós-exílica. (Ne. 8.3, 5-8)
Nesta ocasião, o povo ficou em pé para ouvir a leitura, demonstrando o reconhecimento do
valor já atribuído a esta literatura.

Todavia, até o fim do período do Antigo Testamento, é impossível falar de uma “Bíblia
Hebraica” ou o “Antigo Testamento” como nós temos hoje. Não se sabe a data precisa
quando os livros proféticos, poéticos e sapienciais foram aceitos como escritura autorizada
pela comunidade judaica. No prólogo do livro de Eclesiástico, escrito no segundo século aC, o
autor fez menção das “grandes lições” que são disponíveis por meio da “lei, os profetas e os
outros escritores,” (Eclo. 1.1,2) mostrando o conhecimento de livros “canônicos” nesta
época. Mais tarde, Jesus demonstrou conhecimento de “livros autorizados” quando ele falou
das coisas escritas sobre ele “na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.” (Lc. 24.44) Além
disso, as citações da LXX no NT mostram que a comunidade cristã do primeiro século dC já
reconheceu o valor desta coletânea para a proclamação de Jesus como o Messias. Assim, é
bem provável que o conteúdo do cânon do Antigo Testamento já foi determinado, pelo
menos em termos práticos, a partir do segundo século aC. A determinação do cânon “oficial”
provavelmente demorou até o fim do primeiro século dC.

O evento que motivou a finalização do processo “oficial” de canonização entre os judeus


provavelmente foi a destruição do Templo pelos romanos em 70 dC. Até a destruição do
Templo, a cidade de Jerusalém foi o centro de atividade religiosa judaica na Palestina. Depois
da invasão dos romanos e a destruição do Templo, o centro se mudou para a cidade de
Jâmnia (ou Jabneh). A tradição indica que, num concílio rabínico, a questão do conteúdo
“oficial” das escrituras entre os judeus foi discutida e finalmente resolvida, mas, não há
consenso sobre o valor deste “concilio de Jâmnia” nem dos seus propósitos. A conclusão
mais provável é que até o fim do século um dC, tanto a comunidade judaica como a cristã
reconheceram a autoridade dos livros que compõe a Bíblia Hebraica hoje.[2]

A questão do cânon do Antigo Testamento não foi resolvida totalmente pelo estabelecimento
de um texto “padrão.” Ainda existem diferenças entre os “cânones” usadas várias
comunidades religiosas. A tabela seguinte mostra a situação que existe hoje entre as três
grandes comunidades que usam o Antigo Testamento como escritura.

A questão de autoridade

Finalmente, temos que considerar a questão da autoridade do Antigo Testamento para a


igreja. A questão da autoridade do Antigo Testamento para a igreja é vinculada à
canonização e à inspiração do conteúdo do Antigo Testamento. O processo de canonização,
que estabeleceu a autoridade do Antigo Testamento tanto para a comunidade judaica
quando a comunidade cristã foi fruto da inspiração dos textos. No processo da canonização,
vários critérios foram usados, como, por exemplo, a questão de autoria. Mas, o critério
fundamental foi o da inspiração. Os judeus e os cristãos aceitam o valor intrínseco dos livros
do Antigo Testamento porque estas comunidades acreditam que quando estes livros são
lidos, eles “ouviram a voz de Deus.”

Mas, a capacidade de “ouvir a voz de Deus” nos livros do Antigo Testamento não resolve
completamente a questão da autoridade do Antigo Testamento. A questão tem um aspecto
altamente prático. Devemos ou não guardar tudo que se encontra no Antigo Testamento? O
que é que a igreja deve fazer com as leis e histórias que freqüentemente criam problemas
para os leitores? Para muitos leitores do Antigo Testamento, a resposta é relativamente fácil:
com a chegada de Jesus e o Novo Testamento, a igreja deve guardar tudo aquilo que
combina com o Novo Testamento e os ensinamentos de Jesus e o resto é praticamente
dispensável.

Mas, esta atitude é contrária à orientação que encontramos no próprio Novo Testamento. O
apóstolo Paulo escreveu a Timóteo, dizendo que “toda escritura é inspirada por Deus e útil
para o ensino.” (itálico meu) O apóstolo reconheceu que o valor do Antigo Testamento é
devido principalmente à sua origem divina. O problema baseia-se principalmente na questão
histórica do Antigo Testamento. Com a vinda de Jesus e o estabelecimento da igreja, muitos
rituais, cerimônias e leis do Antigo Testamento parecem ultrapassados. O motivo oferecido
pela igreja para o não cumprimento destas leis é que, com a vinda de Jesus, não há
necessidade de cumprir tudo que se encontra no Antigo Testamento porque Jesus cumpriu a
lei por nós. Certamente este é um dos princípios mais importantes do Novo Testamento e a
igreja não deve abandonar esta posição. Mas, dizer que em Cristo a lei se cumpriu não é
dizer, ao mesmo tempo, que estas passagens perderam o seu valor teológico para a igreja.
Cabe à igreja descobrir como resgatar o sentido teológico destas passagens.

Uma solução foi proposta por John Bright.[3] Bright apelou à teologia do Antigo Testamento
como uma maneira de resolver o problema. Uma das tarefas da teologia bíblica é identificar
as normas teológicas de que o texto fala e ajudar o leitor a separar estas normas teológicas
das formas históricas de Israel. São estas normas teológicas que servem para a igreja
aproveitar o conteúdo do Antigo Testamento e não os aspectos especificamente históricos de
Israel. Como Bright disse: “no Antigo Testamento, o que é normativa para nós como
cristãos, reside precisamente na sua teologia—não nos detalhes da história de Israel ou na
formas historicamente condicionadas no qual a fé de Israel se expressou.”[4] Bright
continuou dizendo que o estudo da história de Israel deve fazer parte da tarefa teológica.
Aliás, é o estudo desta histórica que dá à teologia uma base para extrair uma norma
teológica que ultrapassa a particularidade histórica. Mas, é a teologia e não a história de
Israel que serve como norma para a igreja.

O presente autor concorda com a posição de Bright, mesmo consciente dos problemas que
esta metodologia apresenta. Nem sempre é possível identificar facilmente a norma teológica
embutida na forma histórica e, mesmo identificando, nem sempre é uma tarefa fácil aplicar a
norma à vida da igreja. Mas, às luz das outras possibilidades (a alegoria, por exemplo) a
sugestão de Bright merece a nossa consideração. A tarefa de descobrir o sentido do Antigo
Testamento e aplicar os seus ensinamentos na vida da igreja é uma tarefa que não somente
vale a pena fazer, mas, é essencial se a igreja contemporânea vai ficar fiel à sua missão de
proclamar a verdade sobre Deus a um mundo que necessita conhecer a verdade.
[1] A questão das fontes do Antigo Testamento é extremamente complicada quando se trata
das várias hipóteses documentarias históricas. Nesta apresentação, não há espaço para um
tratamento completo da questão. Para uma discussão detalhada da questão das fontes do
ponto de vista crítica, veja, por exemplo, Rolf Rendtorff, A formação do Antigo Testamento,
3a ed., São Leopoldo: Sinodal, 1983 e Hans Walter Wolff, Bíblia Antigo Testamento:
introdução aos escritos e aos métodos de estudo São Paulo: Paulinas, 1978.

[2] Para uma discussão mais ampla da questão da canonização do Antigo Testamento, veja
LaSor, William,Sanford et. Al., Introdução ao Antigo Testamento, tradução de Luci Yamakami
(São Paulo: Vida Nova, 1999), pp.651-659.

[3] The Authority of the Old Testament. (Baker: Grand Rapids, 1975).

[4] Ibid., p. 147

A FORMAÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO: O processo e a


importância da tradição oral
Hideíde Brito Torres

Às vezes, quando pegamos a Bíblia em nossas mãos, temos a


impressão de que ela sempre foi como está agora. Pronta, organizada em
livros, capítulos e versículos. Mas apenas depois de muito tempo é que se
convencionou a divisão do texto bíblico em capítulos, ou seja, grandes blocos
de textos, indicados pelos números maiores; e versículos, ou pequenas partes,
indicados pelos números menores que aparecem à esquerda do texto.

As histórias da Bíblia foram coletadas e guardadas ao longo de muitos


anos, antes de serem escritas. Isso porque são histórias que foram
primeiramente vividas, experimentadas pelo povo de Deus em sua vivência
diária. Quando uma dessas histórias era sempre recordada, recontada,
revivida, ela passava a ter uma importância maior para as pessoas. Então,
alguém (especialmente um escriba, que era um escritor do templo), pegava
essa história e a escrevia num tablete de barro, num papiro (um tipo de papel
feito de fibra vegetal) ou num pergaminho (couro de cabrito curtido).

No Antigo Testamento, esse processo de guardar, contar e escrever as


histórias do povo de Deus durou mais ou menos 1.500 anos. As histórias eram
contadas de pais para filhos e era um dever sagrado preservá-las. Elas
sinalizavam a presença de Deus no meio do povo. Era algo muito importante.
Quer ver um exemplo?
O povo tinha uma festa, chamada Páscoa, na qual celebrava-se a
saída do Egito, da situação de escravos, para a oportunidade de uma nova vida
com Deus, numa terra diferente. Para lembrar essa história de salvação, o
povo criou ritos, nos quais havia comidas especiais, sobre as quais as crianças
deviam perguntar, para que os pais recontassem como Deus os livrara (Êx
12,24-27).

Os salmos também possuem vários exemplos dessa prática de


recontar as histórias. Leia o Sl 78,3-8; Sl 106, Sl 107, entre outros. Todos
esses salmos eram cantados no culto, onde os feitos salvíficos de Deus eram
relembrados, preservando a memória da fé.

Assim, podemos perceber a importância da lembrança para que a


Bíblia pudesse chegar aos nossos dias. Num tempo em que a escrita não era
acessível a muitas pessoas, a memória foi a forma pela qual as histórias
atravessaram os séculos, tornando possível o conhecimento atual daquilo que
Deus fez no passado. Um povo sem memória é um povo em extinção.

Segundo o professor Tércio Machado Siqueira, “as histórias da Bíblia


contêm algo mais que uma descrição de fatos acontecidos. Toda tentativa de
descrever a história do povo de Deus possui dois propósitos: primeiro,
descrever a ação concreta de Deus, num determinado tempo da história do
Antigo Oriente Médio, usando originalmente como instrumento um povo
oprimido que estava em busca de um lugar para morar, plantar e viver com
dignidade; segundo, mostrar que esta ação foi pontilhada de intervenções
milagrosas, descritas pelo historiador bíblico através de expressões como
“sinais e maravilhas”.

Por isso, mesmo que alguns estudiosos atuais entendam que certos
relatos não são históricos, eles não perdem sua importância, porque
transmitem uma realidade ainda maior que os próprios fatos. O seu propósito é
dizer de um Deus que está presente na história diária de seu povo, que o ama
e está ao seu lado em suas dificuldades.

As histórias contadas pelo povo de Deus têm ainda a função de


incentivar, animar, motivar a caminhada. Cada vez que se lembra o que Deus
fez um dia para um antepassado, o povo tem condições de continuar sua
própria trajetória, crendo que Deus permanece fiel. As histórias também
proporcionavam ensinamento sobre as verdades da vida. Vivendo cercado por
povos diferentes, Israel acabaria praticando coisas inaceitáveis por Deus. Mas
as histórias guardadas sempre mostravam os erros e indicavam o caminho por
onde Deus os queria guiar. Por isso, sempre eram lembradas. Por exemplo, em
Gn 22, conta-se a história do sacrifício de Isaque. Ao salvar o pequeno Isaque
da morte sacrificial, o anjo do Senhor mostrava a todo o Israel que Deus não
quer sacrifício de crianças, que não aceita a morte de inocentes.

Além disso, as histórias ensinavam o povo a crer num Deus libertador.


Elas eram um sinal concreto e visível de que Deus não apenas observa, mas
entra nos acontecimentos, promovendo o bem-estar de cada um e da
comunidade.

, A formação do Antigo Testamento, Imprensa Metodista, 1996, p. 7

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