Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Definição
O que é o Antigo Testamento? Quando eu faço esta pergunta numa sala de aula, as
respostas são variadas. Alguns dizem que o Antigo Testamento é o “complemento do Novo
Testamento” ou “a promessa de Deus de enviar o Messias.” Outros destacam o aspecto
histórico, dizendo que o Antigo Testamento é “a revelação progressiva de Deus para o povo
hebraico”. Estas respostas mostram, em termos gerais, como o leitor ocasional ou até
freqüente do Antigo Testamento pensa do seu conteúdo. Estas respostas são corretas? Na
realidade, em todas essas respostas, podemos encontrar alguns aspectos da natureza do AT.
A questão que ainda permanece é a seguinte: Será possível definir em poucas palavras um
corpo de literatura que levou mais que mil anos para se escrever e transmitir? É possível
reduzir tudo que se encontra no AT a uma só frase? Certamente, definir do Antigo
Testamento não é fácil, principalmente por causa da natureza desta literatura. A resposta
inclui vários aspectos importantes. Vamos esboçar alguns:
Primeiro, o Antigo Testamento pode ser chamado uma coletânea de literatura hebraica. Esta
literatura foi escrita principalmente em hebraico e contem narrativas, poesias, profecias, e a
sabedoria da antiga cultura hebraica até o período da restauração depois do exílio babilônico.
O seu conteúdo reflete a história e a cultura da antiga nação de Israel bem como as normas
e convenções da literatura do Oriente Médio em geral e do povo hebraico em particular. Por
isso, a leitura e interpretação do Antigo Testamento devem levar em conta as suas
características históricas, culturais e literárias.
Segundo, uma outra maneira de pensar do Antigo Testamento é como os livros sagrados da
comunidade judaica. São estes livros que formam a Bíblia Hebraica, o Tanak. Estes livros
preservam as tradições religiosas antigas dos judeus e são usados por esta comunidade, ao
lado das suas próprias tradições, na observância dos rituais da sua religião. A influência
judaica mais óbvia pode ser vista na divisão e ordem dos livros da Tanak. Este se divide em
três partes: a Tora, os Nevi’im (os profetas), e os Ketuvim (os escritos). Falaremos mais
sobre este aspecto do Antigo Testamento.
Terceiro, o Antigo Testamento é a primeira parte da Bíblia cristã. Como parte desta, é aceito
pela igreja como escritura ao lado do Novo Testamento. Assim, a igreja deve ler o Antigo
Testamento com seriedade porque é considerado inspirado por Deus. O Antigo Testamento
ainda fala à igreja e deve ser usado na elaboração da doutrina e prática juntamente com o
Novo Testamento.
As questões básicas
A questão da definição do Antigo Testamento nos leva a considerar como devemos estudá-lo.
Quando abrimos o Antigo Testamento para ler ou estudar o seu conteúdo, algumas questões
básicas nos enfrentam. O estudante sério do texto bíblico tem que lidar ou mais cedo ou
mais tarde com estas questões.
A questão do texto
Porque nós não temos os manuscritos originais do Antigo Testamento, o nosso conhecimento
do conteúdo vem por meio das copias e versões antigas que foram preservadas. Existem
vários manuscritos antigos ao nosso dispor para o estudo do texto e transmissão do Antigo
Testamento. O mais importante dos manuscritos hebraicos é o Texto Masorético, um texto
“padrão” produzido pelos masoretas, escribas judaicos encarregados pela tarefa de copiar e
preservar o texto hebraico. Este “texto padrão” apareceu acerca de 500 dC e foi baseado em
textos mais antigos. Um dos manuscritos masoréticos mais importantes é o Códice de
Leningrado B19, escrito acerca de 1008 dC e que forma a base da Bíblia Hebraica
Stuttgartencia (BHS), uma das edições mais recentes da Bíblia Hebraica.
Versões são outros exemplos de textos do Antigo Testamento. Uma versão é um manuscrito
não-hebraico, isto é, uma tradução antiga do Antigo Testamento. A versão mais importante
é a Septuaginta (LXX), uma tradução grega do texto. A história da tradução desta versão
não é totalmente conhecida, mas, sabemos que provavelmente foi produzida no terceiro
século aC de um manuscrito hebraico desconhecido. A LXX foi usada, primeiro pelos judeus e
depois, pelos cristãos. Quando autores do Novo Testamento precisavam citar o Antigo
Testamento, a LXX foi o manuscrito normalmente usado. Além disso, é usado pelos
tradutores contemporâneos do Antigo Testamento como fonte de leituras comparativas
quando o texto hebraico é difícil, corrupto ou ambíguo.
Uma segunda questão é a questão das fontes do Antigo Testamento.[1] De onde veio o texto
do Antigo Testamento? Como chegou até nós? Infelizmente, a história da produção e
transmissão do texto hebraico não é conhecida completamente e o próprio texto nos dá
poucas informações específicas. O texto indica que, desde as épocas remotas dos
antepassados de Israel até o fim da época do Antigo Testamento, Deus comunicou-se com
seus servos. A natureza desta comunicação nem sempre é conhecida. Uma das frases mais
comuns no Antigo Testamento é “e Deus disse . . .” Os autores originais não explicaram
como Deus falou. Muitos especialistas acreditam que estas revelações foram transmitidas
oralmente de geração a geração antes de serem escritas. A única coisa que podemos afirmar
é que foram aceitas como comunicações diretas e legítimas de Deus para seus servos.
Aos poucos, as falas de Deus, as narrativas da história do povo de Israel, as falas dos
profetas e as suas poesias foram preservados por escrito, criando um corpo literário. O texto
bíblico nos dá algumas indicações deste processo. Em Êx. 17.14, lemos que Deus ordenou
que Moisés escrevesse o relato na batalha entre os israelitas e os amalequitas. Outros
exemplos podem ser encontrados em Êx. 24.4; 34.27; Nu. 33.2; Dt. 31.9, 19. Os livros de
Reis e Crônicas registram a existência de fontes escritas que foram utilizados na compilação
das narrativas do reino, como os “registros históricos do vidente Samuel, do profeta Natã e
do vidente Gade” (1Cr. 29.29), “os registros históricos de Salomão” (1Rs. 11.41) e “os
registros dos reis de Judá e de Israel” (2Cr. 25.26). Além destas fontes “oficiais”,
proclamações e cartas foram incluídas (Es. 1.2-4; 7.12-26) e citações de livros
desconhecidos, como, por exemplo, o “Livro das Guerras do SENHOR” (Nu. 21.14, 15) e o
“Livro de Jasar” (Js. 10.12, 13).
A questão do cânon
Tudo isso mostra que a produção do texto do Antigo Testamento foi um processo histórico
dinâmico, envolvendo pessoas e fontes conhecidas e desconhecidas. Gradualmente, as várias
coleções foram juntadas para criar um corpo de literatura “autorizada.” O processo de
aceitação da literatura como literatura autorizada é chamado canonização. A divisão dos
livros da Bíblia Hebraica em Lei (Torá), Profetas (Nevi’im), e Escritos (Ketuvim)
provavelmente reflete a ordem em que os livros foram aceitos como escritura. Certamente a
autoridade da Torá, os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, foi aceita logo por causa
do seu vínculo com Moisés e pelo fato de conter as leis da aliança do Sinai. Partes desta
literatura foram lidas em várias ocasiões históricas de Israel, mostrando o seu valor
intrínseco. Na ocasião da formação da aliança no Sinai, o “livro da aliança” foi lido,
concluindo a cerimônia da confirmação da aliança. (Êx. 24.7) Mais tarde, na ocasião da
renovação da aliança nos dias do Rei Josias, o “livro da lei” foi lido ao rei e depois ao povo.
(2 Rs. 22.10, 11; 23.2) A leitura pública do livro da lei durante a restauração nos dias de
Esdras e Neemias foi instrumental na reconstrução da sociedade pós-exílica. (Ne. 8.3, 5-8)
Nesta ocasião, o povo ficou em pé para ouvir a leitura, demonstrando o reconhecimento do
valor já atribuído a esta literatura.
Todavia, até o fim do período do Antigo Testamento, é impossível falar de uma “Bíblia
Hebraica” ou o “Antigo Testamento” como nós temos hoje. Não se sabe a data precisa
quando os livros proféticos, poéticos e sapienciais foram aceitos como escritura autorizada
pela comunidade judaica. No prólogo do livro de Eclesiástico, escrito no segundo século aC, o
autor fez menção das “grandes lições” que são disponíveis por meio da “lei, os profetas e os
outros escritores,” (Eclo. 1.1,2) mostrando o conhecimento de livros “canônicos” nesta
época. Mais tarde, Jesus demonstrou conhecimento de “livros autorizados” quando ele falou
das coisas escritas sobre ele “na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.” (Lc. 24.44) Além
disso, as citações da LXX no NT mostram que a comunidade cristã do primeiro século dC já
reconheceu o valor desta coletânea para a proclamação de Jesus como o Messias. Assim, é
bem provável que o conteúdo do cânon do Antigo Testamento já foi determinado, pelo
menos em termos práticos, a partir do segundo século aC. A determinação do cânon “oficial”
provavelmente demorou até o fim do primeiro século dC.
A questão do cânon do Antigo Testamento não foi resolvida totalmente pelo estabelecimento
de um texto “padrão.” Ainda existem diferenças entre os “cânones” usadas várias
comunidades religiosas. A tabela seguinte mostra a situação que existe hoje entre as três
grandes comunidades que usam o Antigo Testamento como escritura.
A questão de autoridade
Mas, a capacidade de “ouvir a voz de Deus” nos livros do Antigo Testamento não resolve
completamente a questão da autoridade do Antigo Testamento. A questão tem um aspecto
altamente prático. Devemos ou não guardar tudo que se encontra no Antigo Testamento? O
que é que a igreja deve fazer com as leis e histórias que freqüentemente criam problemas
para os leitores? Para muitos leitores do Antigo Testamento, a resposta é relativamente fácil:
com a chegada de Jesus e o Novo Testamento, a igreja deve guardar tudo aquilo que
combina com o Novo Testamento e os ensinamentos de Jesus e o resto é praticamente
dispensável.
Mas, esta atitude é contrária à orientação que encontramos no próprio Novo Testamento. O
apóstolo Paulo escreveu a Timóteo, dizendo que “toda escritura é inspirada por Deus e útil
para o ensino.” (itálico meu) O apóstolo reconheceu que o valor do Antigo Testamento é
devido principalmente à sua origem divina. O problema baseia-se principalmente na questão
histórica do Antigo Testamento. Com a vinda de Jesus e o estabelecimento da igreja, muitos
rituais, cerimônias e leis do Antigo Testamento parecem ultrapassados. O motivo oferecido
pela igreja para o não cumprimento destas leis é que, com a vinda de Jesus, não há
necessidade de cumprir tudo que se encontra no Antigo Testamento porque Jesus cumpriu a
lei por nós. Certamente este é um dos princípios mais importantes do Novo Testamento e a
igreja não deve abandonar esta posição. Mas, dizer que em Cristo a lei se cumpriu não é
dizer, ao mesmo tempo, que estas passagens perderam o seu valor teológico para a igreja.
Cabe à igreja descobrir como resgatar o sentido teológico destas passagens.
Uma solução foi proposta por John Bright.[3] Bright apelou à teologia do Antigo Testamento
como uma maneira de resolver o problema. Uma das tarefas da teologia bíblica é identificar
as normas teológicas de que o texto fala e ajudar o leitor a separar estas normas teológicas
das formas históricas de Israel. São estas normas teológicas que servem para a igreja
aproveitar o conteúdo do Antigo Testamento e não os aspectos especificamente históricos de
Israel. Como Bright disse: “no Antigo Testamento, o que é normativa para nós como
cristãos, reside precisamente na sua teologia—não nos detalhes da história de Israel ou na
formas historicamente condicionadas no qual a fé de Israel se expressou.”[4] Bright
continuou dizendo que o estudo da história de Israel deve fazer parte da tarefa teológica.
Aliás, é o estudo desta histórica que dá à teologia uma base para extrair uma norma
teológica que ultrapassa a particularidade histórica. Mas, é a teologia e não a história de
Israel que serve como norma para a igreja.
O presente autor concorda com a posição de Bright, mesmo consciente dos problemas que
esta metodologia apresenta. Nem sempre é possível identificar facilmente a norma teológica
embutida na forma histórica e, mesmo identificando, nem sempre é uma tarefa fácil aplicar a
norma à vida da igreja. Mas, às luz das outras possibilidades (a alegoria, por exemplo) a
sugestão de Bright merece a nossa consideração. A tarefa de descobrir o sentido do Antigo
Testamento e aplicar os seus ensinamentos na vida da igreja é uma tarefa que não somente
vale a pena fazer, mas, é essencial se a igreja contemporânea vai ficar fiel à sua missão de
proclamar a verdade sobre Deus a um mundo que necessita conhecer a verdade.
[1] A questão das fontes do Antigo Testamento é extremamente complicada quando se trata
das várias hipóteses documentarias históricas. Nesta apresentação, não há espaço para um
tratamento completo da questão. Para uma discussão detalhada da questão das fontes do
ponto de vista crítica, veja, por exemplo, Rolf Rendtorff, A formação do Antigo Testamento,
3a ed., São Leopoldo: Sinodal, 1983 e Hans Walter Wolff, Bíblia Antigo Testamento:
introdução aos escritos e aos métodos de estudo São Paulo: Paulinas, 1978.
[2] Para uma discussão mais ampla da questão da canonização do Antigo Testamento, veja
LaSor, William,Sanford et. Al., Introdução ao Antigo Testamento, tradução de Luci Yamakami
(São Paulo: Vida Nova, 1999), pp.651-659.
[3] The Authority of the Old Testament. (Baker: Grand Rapids, 1975).
Por isso, mesmo que alguns estudiosos atuais entendam que certos
relatos não são históricos, eles não perdem sua importância, porque
transmitem uma realidade ainda maior que os próprios fatos. O seu propósito é
dizer de um Deus que está presente na história diária de seu povo, que o ama
e está ao seu lado em suas dificuldades.