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DUNKER, C.I.L. – Introdução à Psicanálise Lacaniana.

Semana de Psicanálise da Faculdade


de Psicologia da Bauru, Unesp, 2009.

Introdução à Psicanálise Lacaniana


Contextos e Conceitos

Christian Ingo Lenz Dunker


1. Introdução

Quero iniciar nossa conversa de hoje refazendo, brevemente, o percurso que me


trouxe até aqui. Creio que isso pode ser ilustrativo para os nossos propósitos, que são os
de apresentar alguns conceitos de Lacan e colocá-los em contexto. A pergunta que se
coloca então é qual contexto ? Contexto para quem ?

Há seis anos atrás eu me encontrava completamente perdido em um congresso


de Psicologia na Venezuela. Não sei se vocês já tiveram esta experiência de participar
de congressos grandes. São centenas de comunicações simultâneas indo do nada para
lugar nenhum. Uma espécie de supermercado de discursos, rigorosamente controlado
pelo fluxo temporal coordenado de falas e movimentos entre uma sala e outra. Foi neste
cenário desértico, dominado pela apatia burocrática, própria da universidade, e pela
exaltação do consumo, própria das massas, que eu encontrei uma experiência bem
estranha. Estavam lá Erica Burman falando criticamente sobre a psicologia do
desenvolvimento. De repente iam surgindo referências conhecidas: Lacan, Benjamin,
Freud, Derrida, Foucault. Também foi ali que conheci Ian Parker e afinal descobri que
haviam pessoas que se interessavam pelo pensamento de Lacan no Reino Unido. Cada
reencontro e a cada aprofundamento de leitura sobre os trabalhos do grupo de
Manchester foram levando-me a verificar uma espécie de arejamento e versatilidade,
que ofereciam alternativas para as questões e para as formas de habitualmente trata-las
no universo lacaniano. Alguns elementos eram conhecidos, outros nem tanto, mas,
sobretudo as relações eram novas e, principalmente, havia o que mais tarde pude
reconhecer como um estilo. Um estilo de pensar e tratar as relações teóricas, suas
implicações clínicas e políticas.
Esta é uma primeira categoria lacaniana: o estilo. Na abertura dos escritos Lacan
retoma uma afirmação clássica que diz: o estilo é o homem. Estilo é uma noção difícil
de definir, apesar de sabermos empregá-la com facilidade. Diz-se que alguém tem
estilo, ás vezes, como sinônimo do que a psicologia popular chama de personalidade ou
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classe. São noções que sugerem que alguém tem algo de muito próprio que torna esse
alguém ... alguém. Mais precisamente isso significa que podemos reconhecer este
alguém, mas o curioso é que não sabemos, completamente como e por quê o fazemos.
Quando reconhecemos um estilo há uma impressão de que existe uma essência
perceptível naquela pessoa, uma essência que a faz diferente, única e idêntica a si
mesma. Há uma outra propriedade importante da noção de estilo. O estilo é algo de se
deseja possuir ou que se deseja encontrar no outro. Alguém sem estilo é alguém
comum, no sentido de vulgar ou indiferenciado. É aquele que está submetido a signos,
modos de ser, falar, vestir e consumir. É aquela pessoa cujo estilo de vida nos parece
inautênticos ou postiços.
Ora, esta maneira de entender o que é um estilo é completamente oposta a de
Lacan. Se seguirmos a referência completa encontramos que a frase usada por Lacan, na
contracapa de seus Escritos, vem de Buffon e não diz apenas que “o estilo é o homem”
mas que “o estilo é homem a quem nos dirigimos”. Por esta afirmação se depreende
que meu estilo não é uma coisa que está em mim, que eu possuo e que corresponderia à
essência mais íntima de meu ser. Por exemplo, agora, enquanto eu falo com vocês, meu
estilo (se eu tivesse um) estaria em vocês, não em mim. Afinal são vocês a quem eu
estou me dirigindo. São vocês a quem eu estou me endereçando. Mas aqui vale a pena
examinar melhor este a quem nos dirigimos. O que significa me dirigir a vocês ? Todos
aqui já tiveram a desagradável sensação de que aquele com quem falamos não está
falando realmente conosco. Ás vezes temos uma intuição de que a pessoa está falando
com seus próprios preconceitos, suas próprias ilusões e comete toda sorte de
antecipações que pode fazer acerca do outro a quem se dirige. Na desavença cotidiana
entre casais isso se revela em expressões do tipo: “parece que eu estou falando com a
parede” ou por uma interminável sucessão de correções do tipo “o que você entendeu,
não foi isso que eu quis dizer”.
Uma vez eu fui fazer uma conferência numa fábrica. Uma fábrica de cimento na
periferia de São Paulo onde operários preocupados queriam ouvir algo sobre o perigo
que as drogas podem representar para seus filhos. Do alto de minha empáfia arrogante
de jovem professor universitário fiz uma exposição absolutamente complexa sobre a
sociopsicologia da dependência química. Acho que foi uma das coisas mais ridículas
que fiz na vida. No meio da conferência me dei conta de que podia estar falando com
meus professores, meus supervisores, meu analista, mas estava desconhecendo, aqueles
que estavam efetivamente diante de mim, aqueles a quem eu realmente devia me dirigir.
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Eu estava desconhecendo o contexto. Eu poderia me ater mais ao contexto, mas o que


isso significaria ? Isso me levaria a dirigir-me aos meus próprios preconceitos,
antecipações e estereótipos sobre o que é um operário da periferia de São Paulo. Mesmo
que eu estudasse profundamente a história deste grupo, suas narrativas de referências,
suas práticas sociais e a estrutura micropolítica de sua forma de poder; mesmo que eu
pesquisasse a fundo suas atitudes dominantes, de forma a conhecer bem o se contexto
de vida, ainda assim eu estaria prisioneiro de uma imagem à qual estaria me dirigindo.
Nada me garante que então estaria falando com estes operários de tal forma que deles
me viesse de fato um estilo.
O exame do tema do estilo nos leva assim a duas constatações complementares:
(1) nossas relações intersubjetivas comportam uma espécie de ilusão permanente de que
estamos falando com um outro que pensamos conhecer, como conhecemos os objetos
do mundo e assim podemos prever e intervir sobre seu funcionamento.
(2) nossas relações intersubjetivas comportam ainda uma outra ilusão insidiosa, a saber,
que somos os senhores de nossa própria fala, e que esta é apenas a expressão de nossa
intencionalidade interior.
Ao sistema de funcionamento articulado destas duas formas de ilusão Lacan deu
o nome de imaginário. Como espero que os exemplos tenham deixado claro o
imaginário não é uma substância, mas um efeito e uma condição das relações
interhumanas. O imaginário foi deduzido por Lacan à partir das fragilidades que este
detecta na teoria freudiana do narcisismo. A principal delas é que, para Lacan, Freud
não teria distinguido suficientemente o sujeito em sua acepção psicológica do sujeito
em sua acepção epistemológica. Ou seja, o sujeito freudiano, presente na teoria do
narcisismo, é simultaneamente um sujeito conhecedor e desejante, mas ali onde ele
conhece, ele não deseja e ali onde ele deseja, ele não conhece.
Narciso é este personagem mitológico que se apaixona pela própria imagem
refletida no espelho. Narciso interessa-se por sua imagem, ele quer conhecê-la.
Inversamente ele experimenta a sensação de que esta mesma imagem, que ele
desconhece como sendo sua, esta imagem o deseja. Menos conhecida é a história da
musa que se apaixona por Narciso. A musa chama-se Eco, e devolve, portanto, a
Narciso o retorno de sua própria fala. No fundo Eco acaba realmente devolvendo o que
narciso quer dizer, mas a questão aí é: quer dizer para quem ?
Há uma síntese lapidar feita por Lacan acerca do processo psicanalítico que
envolve este tema do descompasso entre a fala e o outro. Quando o paciente chega à
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análise ele fala de si mas não fala com o analista, em seguida ele fala com o analista
mas não fala de si, quando o analisante fala de si com o analista a análise se conclui.
As duas funções complementares do imaginário nos informam sobre o estatuto
de desconhecimento de si, próprio do ego, e ao estatuto de conhecimento do outro,
como objeto, reduzido a uma projeção duplicada do próprio eu. Chamo a atenção de
vocês para esta dupla de termos: conhecimento do outro como objeto e
desconhecimento de si como sujeito. Lacan formula o conceito de imaginário à partir de
três referências principais:

(1) Estudando a paranóia Lacan percebe que esta pode ser entendida como uma espécie
de hipertrofia da função do conhecimento. O paranóico sente-se perseguido como se
fosse um objeto de conhecimento. Ele interessa ao outro, mas não sabe o que ele possui
para ser objeto deste interesse. O paranóico assim como aquele que acredita possui
atributos essenciais que lhe conferem um estilo, leva-se à sério demais, acredita que ele
é imagem da função que ele exerce. Ele é capaz de punir-se para satisfazer à este
insondável desejo do Outro. Esta idéia de que a paranóia tem uma vocação ao
conhecimento já aparecia em Salvador Dali. Lacan extrapola e inverte esta tese. Não só
a paranóia é um fenômeno da esfera do conhecimento como o conhecimento, ele
mesmo, tem estrutura paranóica. Com esta inversão a paranóia deixa de ser
especificamente uma variante das psicoses e passa a constituir um aspecto da estrutura
mesma do ego.

(2) Estudando os trabalhos de Wallon sobre as relações da criança com sua imagem no
espelho, os estudos etológicos sobre o comportamento animal e certas descobertas da
Psicologia da Forma, Lacan postula que o imaginário constrói-se para um sujeito à
partir de uma captura inata na imagem do semelhante. O fascínio narcísico do
reencontro da própria imagem unificada à partir, principalmente, do olhar do outro,
comporiam as premissas que tornam o imaginário o domínio da identificação. Disto
Lacan destaca dois efeitos fundamentais: a agressividade (fruto da ruptura da imagem) e
a paixão (fruto da unificação da imagem).

(3) Acompanhando os trabalhos de Hegel sobre o desejo e, principalmente, sua teoria da


alienação, Lacan assimila à ordem do imaginário todo um espectro de problemas em
torno das relações de estranhamento e fascinação para como semelhante. A alienação
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corresponde à separação entre o sujeito e a posição de onde este enuncia seu desejo.
Quando então desconhecemos a posição de onde nos dirigimos ao outro, assim como
quando conhecemos demais aquele a quem nos dirigimos, estamos ás voltas com uma
alienação. A alienação traz para a teoria do imaginário um elemento novo em relação ao
puro domínio da imagem, a saber o ideal. Um ideal resume a função da imagem
prescindindo dela. Não devemos pois confundir o ideal com a imagem, o ideal é a
posição à partir da qual a imagem se forma ou se mantém. Com isso Lacan pode
postular uma dialética entre o ideal e a imagem, entre eu ideal (que é uma imagem) e
Ideal de eu (que é uma função). O funcionamento desta dialética explicaria o progresso
da alienação. Quando me alieno em uma imagem é porque não reconheço o ideal que
ela veicula e quando me alieno em um Ideal é porque desconheço a imagem que ele
forma.

3. A Crítica do Imaginário

A teoria lacaniana do imaginário representou uma verdadeira revolução no


circuito psicanalítico brasileiro dos anos 80. Até então a psicanálise em vigor no país
era principalmente de extração anglo-saxônica. Melanie Klein e Bion, que fez diversas
viagens ao Brasil durante os anos 60 e 70 eram referências importantes. O pensamento
de Lacan chega ao Brasil em um momento de virada político cultural. Vivia-se os
últimos anos da ditadura militar e o país esboçava um processo de redemocratização. A
psicanálise, presente nas universidades e também nos hospitais psiquiátricos desde a sua
origem identificava-se assim com uma certa estratificação social: patriarcalista,
aristocrática e conservadora.
Nesta situação era muito compreensível que as práticas clínicas,
reconhecidamente psicanalíticas ou de inspiração psicanalítica fossem associadas à um
dirigismo ostensivo. O psicanalista era percebido como uma espécie de mestre que,
dotado do saber privilegiado sobre o ser do sujeito, podia dirigir interpretativamente o
sujeito rumo ao seu autoconhecimento. Um regramento bastante austero do sistema de
formação de analistas contribuía para isso. Neutralidade severa, rigor no tratamento e
principalmente apego ao contrato e à estabilidade do setting analítico eram temas
constantes.
Neste contexto as teses de Lacan sobre o imaginário pareciam ser aplicadas
quase que espontaneamente à própria imagem corrente acerca do tratamento analítico.
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Uma experiência de alienação, baseada no privilégio concedido à imagem do analista,


daí a ênfase na transferência e em sua interpretação extensiva, no aqui e agora. A
dependência vigorosa, assim criada e mantida entre analista e analisante, que já era
sentida como problemática, tinha agora uma explicação teórica. A psicanálise, que
deveria orientar-se para a travessia do imaginário estava simplesmente estimulando-o. A
teoria dos conteúdos mentais, interiorizados e essencializados caía como uma luva para
exemplificar o empreeendimento imaginário de auto-objetivação. A teoria das relações
de objeto admitia nominalmente aquilo que se deveria evitar, a saber a objetalização do
outro. A mestria, ao qual o analista se dedicava em sua prática era agora percebida
como o exato oposto do que se deveria esperar do tratamento analítico.
É importante mencionar que o lacanismo não chegou em um solo ausente de
resistências á este tipo de clínica. O que havia de mais combativo, especialmente nas
univerisdades, era representado pela fenomenologia intepesssoal, de tipo rogeriano, por
exemplo, e pela psicologia científica de contornos behavioristas. Lacan surgiu como
uma teoria que respondia e continuava, com vantagens, os argumentos já introduzidos
por estas duas vertentes. Sentia-se em Lacan um forte desejo de justificação da prática
clínica e de seus fundamentos, bem como um diálogo aberto com a ciência,
principalmente na sua dimensão epistemológica. Além disso, abria-se uma discussão
direta sobre a ética da psicanálise e o problema do poder no interior do tratamento
psicanalítico. Como vocês devem saber o principal e mais lido texto de Lacan sobre a
clínica chama-se Direção da Cura e os Princípios de seu Poder (1958). O próprio título
deste trabalho representava um programa de resistência a psicanálise hegemônica no
Brasil dos anos 80. Direção da cura, não direção do paciente, princípios de seu poder,
ou seja, ética e não técnica.
Mas há outra via pela qual Lacan tornou-se tão palatável tão rapidamente no
Brasil. As teses sobre o imaginário permitiam tematizar criticamente um aspecto
importante da cultura brasileira, a saber, seu apego ao espetáculo e à exibição ostensiva
como práticas imanentes ao poder. Portanto um questionamento que punha no centro da
ação clínica o questionamento sobre os princípios do poder, e como ele pode ser
sustentado em uma dimensão imaginária, por exemplo, na qual mestre e escravo são
lidos pelo valor de face podia conectar diretamente a problemática clínica com o tema
da ideologia e da crítica.
A lei, no sentido de ordenamento jurídico e também de regulamentação
institucional, era percebida não como um princípio formal decorrente da formação
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coletiva, mas como instrumento arbitrário e encarnado de dominação. Como afirma o


ditado popular: para os amigos tudo, para os inimigos a lei. Ora, essa incidência da lei
corresponde exatamente ao que Lacan descrevia como funcionamento paranóico. A
identificação entre a pessoa e a função, a redução do outro à condição de objeto e a
identificação entre ideal e imagem, típicas do funcionamento imaginário, eram práticas
sociais e políticas extensivas na cultura e visíveis no interior da psicanálise tradicional.
A noção de imaginário servia assim como um interpretante não só crítico em
relação às práticas sociais de opressão como incluía a psicanálise entre elas. A idéia de
que a psicanálise serviria para efetivar a harmonização das diferenças, ajustando o
indivíduo à sociedade, tornando-o compatível e em conformidade com os ideais da
cultura mostrava-se assim o avesso do que Lacan propunha.
Também do ponto de vista do modelo formativo o pensamento de Lacan
representava uma abertura com relação à medicalização e elitização da psicanálise.

4. O Simbólico como Alternativa

Mas voltemos ao problema do estilo e a Caracas 2000. Fomos levados a uma


espécie de impasse sobre a questão. No plano do imaginário estamos entre
conhecimento paranóico e desconhecimento sistemático. É da estrutura da consciência
uma preganante alienação no outro que nos faz ver nele um recíproco, simétrico de mim
mesmo. Ou seja, o outro imaginário não é um verdadeiro outro, portanto se me dirijo á
ele só posso esperar tapeação e engano, oscilação entre paixão e agressividade, reversão
perpétua entre amor e ódio. A solução encontrada por Lacan para este impasse não
reside nem no conhecimento nem no desconhecimento, mas no reconhecimento. O
estilo é o homem a quem me dirijo, porque e somente quando ao me dirigir ao outro eu
o introduzo em um dialética do reconhecimento. O ponto aqui, naturalmente, é saber o
que é então este ato de reconhecimento para além do falso reconhecimento narcísico. A
distinção crucial reside no fato de que o reconhecimento verdadeiro não toma por
conteúdo qualquer atributo, traço ou signo do outro ou do sujeito. O reconhecimento
verdadeiro é uma questão de forma, é o reconhecimento das mediações que tornam
possível que um se dirija ao outro. Estas mediações são de diversos tipos e o conjunto
delas recebeu, em Lacan, o nome de simbólico, ou de ordem simbólica.
Num primeiro momento Lacan considerou que esta mediação poderia ser o
trabalho ou a luta por fazer reconhecer e por reconhecer-se nos Ideais do Eu. Esta
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mediação seria exemplificada pela passagem do sujeito da família à sociedade. Logo


Lacan substitui esta idéia pela tese de que o mediador principal a ser reconhecido na
relação intersubjetiva é o desejo. O desejo é desejo de reconhecimento, é desejo de ter
seu desejo reconhecido, e por isso ele é desejo de desejo do Outro. Aqui começa a surgir
um dos principais atributos do simbólico em Lacan, a saber a negatividade. É pelo
trabalho da negatividade que o desejo progride. A positivação do desejo em um objeto
corresponde à sua alienação neste objeto.
Aqui a demonstração de Lacan é minunciosa. Ele mostra como as estruturas
clínicas se definem por seu modo próprio de introduzir o trabalho negativo do desejo.
Por exemplo, a neurose se caracteriza por uma negação simbólica da castração, por isso
ela se apresenta, clinicamente, pelo retorno no simbólico daquilo que foi negado
(recalcado) no simbólico, ou seja, o sintoma. A perversão, longe de ser definida apenas
em termos morais, é pensada como um outro tipo de negação, uma negação imaginária,
cujo retorno é também no imaginário, o fetiche. Finalmente a psicose corresponderia à
uma terceira e mais vigorosa forma de negação, uma negação cujo retorno se daria no
real. Aqui vem uma idéia nova, o real já não é definido como realidade, mas seu
protótipo é a alucinação.
Para realizar esta leitura Lacan precisa rever aquilo que em Freud era o eixo de
consideração da castração, ou seja, o falo. Para Lacan, em sua tentativa de ultrapassar
uma leitura realista ingênua, empirista e biologizante de Freud, o falo não pode ser
considerado como equivalente do pênis. Por que ? Porque o pênis é uma imagem ou
objeto positivo e como vimos o simbólico é uma mediação não um objeto positivo. Por
isso o falo passa a ser pensado como o representante da falta e a falta como o articulador
central do desejo.
Também em relação ao drama edípico a negatividade se fará presente. O pai não
se identificará mais com o genitor, o que, como vimos é um trabalho do imaginário,
(sobrepor objeto e função). O pai em psicanálise será definido justamente como agente
de um certo tipo de negação, assim como a mãe o será também, mas em outro sentido.
Finalmente a teoria da libido será relida sob esta ótica da negatividade
representada pelo falo. Agora não se trata mais da relação de objeto, interno ou externo,
mas da relação com a falta. É importante salientar que na esfera da mediação
representada pelo desejo há uma dialética entre simbólico e imaginário, portanto um
desdobramento da negatividade interna ao simbólico, em uma dialética na qual
simbólico e imaginário se negam de forma recíproca e determinada. Um belo exemplo
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disso é a tese da disparidade entre o eu e seu desejo. Ali onde o sujeito sabe o que quer
ele não sabe quem é, e ali onde ele sabe quem é ele não sabe mais o que quer.
É o que ilustra a trajetória de Goethe no romance de formação, O Mestre
Wilhelm. Trata-se da história de um jovem bem sucedido, que tendo um brilhante futuro
à sua frente sente-se inesperadamente vazio, apático e desorientado. Após uma
educação sólida que lhe faz se apropriar de seu lugar social ele não consegue mais se
empenhar com relação ao desejo. Ele sabe demais quem é, daí não sabe mais o que
quer. Neste ponto ele decide-se fantasiar de pobre monge e passa a morar em um
vilarejo afastado. Nesta condição, onde seu identidade supostamente real, não pode ser
mais reconhecida, ele é arrebatado pela paixão por uma bela jovem. A paixão é tão
violenta e decidida que ele está prestes a abandonar tudo por ela. Mas o romance se
torna difícil por que ela não o reconhece como potencial amante. Neste ponto ele
mesmo começa a duvidar de si. Se ele era o bem sucedido estudante ou o monge no
qual se disfarça. Sabe bem o que quer, mas o preço é a incerteza sobre quem ele é.
Temos então a primeira mediação, que é o trabalho e a segunda mediação, que
é o desejo. A terceira mediação, que representará um verdadeiro salto e expansão na
noção de simbólico, é a mediação da linguagem. Aqui reencontramos a negatividade,
mas em uma acepção mais fina. É a negatividade contida na noção de significante. Sob
forte influência do estruturalismo de Lévy-Strauss, Jakobson e Saussure, (nesta ordem)
que faz Lacan elevar a noção de simbólico de sua dialética com o imaginário ao estatuto
de uma ordem. Uma ordem que supera e sobredetermina os efeitos imaginários.
Voltando ao nosso tema do estilo. O estilo é o homem a quem nos dirigimos.
Retirada a projeção imaginária, pela qual o outro a quem nos dirigimos se reduz a um
objeto de nossa consciência e restrigido o processo de identificação com o desejo do
outro para quem me faço de objeto seria possível, ainda sim, conceber que nos
dirigimos ao outro ? O Outro mesmo, o outro real, como situá-lo ?
Lembro-me aqui de um fragmento de minha própria análise. Estava eu
discorrendo sobre o sexo dos anjos em uma fala que me parecia de fato muito vazia.
Mas eu a mantinha mesmo assim pois achava que isso estava de acordo com o que meu
analista esperava. É bem isso que se passa no imaginário: eu falo o que suponho que
meu destinatário quer ouvir e recebo minha própria mensagem invertida, mas sem saber
que ela é o retorno de minha própria mensagem. Ocorre que dentro deste espaço em que
eu acreditava obedecer fielmente a regra que o definia, ou seja, a associação livre,
escuto de repente um estranho ruído. Como se fosse um “tzzz”, “tzzz”, que em
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português é uma interjeição para exprimir contrariedade ou pouco caso. Sinto-me


indignado, eu aqui tentando ser um bom analisante, esforçando-me com a associação
livre e meu analista me escuta com desdém ? O estilo é o homem a quem nos dirigimos,
neste caso o estilo é chato, ou seria melhor dizer, não havia estilo. Fiquei então
realmente bravo, mas em silêncio durante algum tempo. Considerando que se meu
analista havia rompido a regra que impunha a ele, escutar-me com acolhimento e
parcimônia, autorizei-me eu também a interromper a regra. Virei-me então do divã
disposto a um “ajuste de contas transferencial”. Qual não é minha surpresa neste
momento ao constatar que o tal barulho era apenas meu analista tentando acender um
cigarro e como seu isqueiro não funcionava direito ouvia-se o tal “tzzz”, “tzzz”. Recebi
então minha própria mensagem, a tal fala vazia, mas agora de forma invertida e não
direta. Estava claro que eu mesmo não achava grande coisa o que estava dizendo e que
se estivesse no lugar do outro seria impelido a reprovar-me. Mas aqui se tratou de uma
mensagem, que tomo como exemplo porque justamente não tem nada que ver com a
intencionalidade. Uma mensagem que se chegou desde uma outra forma de outro, uma
forma que Lacan chamou de grande Outro. Esta mensagem se produziu à partir de uma
interrupção da cadeia associativa. Interrupção, ou ponto de basta, pela qual determinou-
se um novo sentido sobre a mensagem e principalmente realizou uma espécie de divisão
do sujeito. Este instante de divisão, e esvaziamento do sentido inicial será, no tempo
seguinte reocupado com uma significação. Afinal por que eu via-me assim reprovado,
por quem ? A quem afinal eu estava me dirigindo ? Se não era isso que ele quer ouvir,
o que seria então ?
Espero que o exemplo sirva para introduzir alguns elementos próprios ao
conceito de simbólico e, principalmente, como Lacan chega neste conceito à partir de
uma reflexão crítica sobre o que é o outro. Normalmente se apresenta este conceito de
forma unificada, mas para nossos interesses aqui quero sugerir que este conceito de
Outro é um conceito bastante heterogêneo em Lacan. Isso decorre, quero crer, de certas
dificuldades em absorver a noção estruturalista de ordem simbólica e integrá-las à uma
acepção dialética do Outro.

(1) Na origem a noção de ordem simbólica contém um premissa cara à racionalidade


sistêmica, ou seja, o sistema simbólico funciona às expensas da representação que
os indivíduos podem fazer sobre ele. Isso interessou Lacan na medida em que
permitia entender o inconsciente como este sistema simbólico e ainda explicar a
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noção freudiana de sobredeterminação psíquica. A noção de sistema simbólico


privilegia os lugares e posições que são definidos por suas relações internas e não
pelos conteúdos que ocupam estes lugares ou posições. Lacan demonstrou a
compatibilidade entre estes lugares e estas relações com a teoria freudiana do Édipo
e da castração. Mas se este Outro à quem me dirijo é apenas uma ordem formal de
significantes, se ele é, por assim dizer impessoal, não é possível responder ao
problema do desejo e ainda mais explicar os efeitos de sujeito, senão com uma
teoria do tipo da de Althusser, e mesmo de Foucault (Arqueologia do Saber), pela
qual o sujeito está permanentemente assujeitado. O risco aqui é fazer uma teoria que
passe da heteronomia do simbólico para a heteronomia do sujeito, excluindo
definitivamente o tema da liberdade da psicanálise.

(2) Ora, se o programa clínico, que disto recorre, nos leva simplesmente à uma
submissão à ordem simbólica, e se a ética que lhe corresponde é uma ética da
resignação à falta, tudo o que havíamos ganho com a crítica do imaginário parace
agora perdido em prol de uma nova forma de assujeitamento, com perigosas
matizes, agora não mais naturalistas, mas ontológicas. Uma coisa é criticar as
práticas clínicas de alienação que exploram um falso conceito de liberdade, uma
liberdade individualista, liberal e intencionalista; outra coisa é exluir toda e qualquer
forma de possibilidade de transformação, o que, convenhamos, para um clínico não
deixa de ser paradoxal.

(3) Este raciocínio foi percebido pelo próprio Lacan que começa então a deslocar
sua noção de ordem simbólica de tal forma a que ela representa não mais um
sistema perfeito, um código completo, mas uma espécie de auto-contradição lógica.
Ou seja, a ordem simbólica não deve ser entendida como o conjunto completo e
articulado de todos os sistemas simbólicos, o sistema de parentesco, mais o sistema
de reprodução social, mais o sistema cultural (arte, ciência, religião), mais o sistema
das instituições, e assim por diante. A ordem simbólica não é a síntese de todas as
formas de alteridade, mas a contradição que impede que esta síntese de fato
aconteça. Este movimento corresponde à tese de que ao Outro falta um significante,
que o Outro é não-todo, que o Outro contém um vazio ou um furo. Do lado do
sujeito isso implica que seu desejo será também não-todo articulado na linguagem.

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5. O Simbólico como Problema

A descoberta deste problema relativo à acepção de simbólico e de Outro em


Lacan teve algumas conseqüências para a difusão da psicanálise lacaniana no Brasil.
Como vocês devem saber a psicanálise no Brasil é comparativamente muito difundida.
Há centenas de associações, grupos e escolas ligados aos mais diferentes instituições e
orientações teóricas. Sua presença nos cursos universitários tanto de psicologia quanto
de ciências sociais é realmente grande. Das dez melhores revistas científicas em
psicologia, segundo o órgão estatal de regulação, cinco são de psicanálise. Já se
descreveu o Brasil como um país de alto consumo de psicanálise, com a ressalva crítica
de que isso se aplica as camadas médias, que estão longe de ser a maioria da população.
Mas também nos serviços de saúde mental e nos principais hospitais do país há uma
presença significativa da psicanálise, sem que se possa caracterizar qualquer vinculação
expressiva ao sistema de formação e controle próprios à medicina.
O consumo extensivo de psicotrópicos como antidepressivos, cresce
assustadoramente, mas não parece fazer grande oposição simbólica à prática da
psicanálise. Como no caso francês ambas as práticas convivem apesar das grandes
reportagens que insistem na sua rivalidade. Mas, ao contrário do caso francês, e mais
próximo da situação americana na década de 70, o consumo maciço de psicotrópicos,
estimulantes da potência sexual ou fórmulas psicoativas de emagrecimento, ocorre
“dentro da lei”.
No Brasil o recurso aos convênios é ainda muito pequeno entre os psicanalistas.
Esta situação de sobrevivência ampla da prática de tipo liberal no exercício da
psicanálise, deve ser matizado com o fato de que ela muitas vezes é praticada fora dos
cânones do tipo quatro vezes por semana e que não segue os padrões europeus e
americanos em termos de honorários.
Sem dúvida a psicanálise é hoje a forma de psicologia mais organizada e
influente em um país com quase 120 mil psicólogos. Ressalte-se que a psicologia é uma
carreira extremamente procurada e a proliferação de cursos é um problema importante
no contexto atual. Na década de 80 mais pesquisadores brasileiros fizeram mestrado e
doutorado em psicanálise, fora do país, subsidiados pelo governo, do que agrônomos ou
físicos nucleares. Isso não se restringe à psicologia clínica que é a área majoritária de

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DUNKER, C.I.L. – Introdução à Psicanálise Lacaniana. Semana de Psicanálise da Faculdade
de Psicologia da Bauru, Unesp, 2009.

atuação (45.5% apenas em consultório particular 1 ). A psicanálise, neste contexto, tem


um papel importante na psicologia social, na psicologia educacional, na semiótica e na
filosofia brasileiras. Também já se assinalou a importância da psicanálise,
particularmente a de extração lacaniana, para as vanguardas estéticas dos anos 70 e 80.
Neste contexto a problemática teórica relativa ao campo do simbólico
desembocou em três temas de ampla discussão dentro do lacanismo nos anos 90.

(1) O primeiro tema foi o estatuto da ética em psicanálise. Uma teoria que afirmava
a heteronomia do simbólico, e sua controversa deriva para um heteronomia do
sujeito, propunha automaticamente um problema: o que fazer com a ética ? Neste
ponto começaram a se dividir as leituras de Lacan no Brasil, entre aqueles que
defendiam o caráter irredutível da reflexão ética em Lacan e aqueles que
enfatizavam o veio lógico-estruturalista. A psicanálise é uma ética, na qual o método
deve se submeter, ou ela é um método, no qual a ética tem um valor propedêutico e
condicional ?

(2) o Segundo tema, que parece decorrer das conseqüências políticas e institucionais
acerca de como se resolve a primeira questão, diz respeito à organização social do
movimento lacaniano e sua internacionalização. A psicanálise lacaniana foi trazida
ao Brasil na década de 70 por três ex-seminaristas que tiveram contato com o
pensamento de Lacan, notadamente no centro universitário católico de Louvain, na
Bélgica. Depois disso veio um período marcado por uma migração de analistas que
vinham à França estudar e fazer análise com lacanianos. Em São Paulo, de onde eu
venho, ao contrário de outras cidades do Brasil, como Rio de Janeiro, Porto Alegre e
Recife, (onde há importantes associações lacanianas), estabeleceu-se um lacanismo
fortemente organizado em torno da corrente milleriana. Sem entrar em detalhes, tal
corrente, notadamente em São Paulo marcou-se pelo forte legitimismo, centralismo
e autoritarismo. Isso não quer dizer que esta fosse a única e nem sequer a mais
importante corrente dentro do lacanismo em São Paulo, mas apenas que ela era a
mais organizada. Quase a metade de outros lacanianos tinha uma atitude teórico-
política contrária à transmissão da psicanálise em instituições, ou então ligavam-se,
individualmente, a instituições internacionais não millerianas. A querela do passe,

1
Fonte Conselho Federal de Psicologia - http://www.pol.org.br/publicacoes/pdf/Pesquisa_WHO.pdf

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as dissenções e movimentações políticas tornaram-se agudas no final dos anos 90.


No centro desta disputa, se a lemos em termos de implicações teóricas havia uma
espécie de encruzilhada acerca de como sair do que se passou a chamar de “primeiro
Lacan” ou o Lacan do simbólico. Para aqueles, que como eu, iniciaram sua
formação analítica nos anos 80, havia uma flagrante contradição entre a crítica do
imaginário e a retomada conservadora do simbólico, mais ainda, uma flagrante
disparidade entre as teses de Lacan e o funcionamento coletivo dos analistas que
teoricamente a elas se referiam. Tudo se passava como se o sentido crítico havia
sido perdido e o processo de normalização havia afetado também a psicanálise
lacaniana.

(3) O terceiro ponto em torno da noção de simbólico na psicanálise brasileira dos


anos 90 deriva da reação das psicanálises não lacanianas ao avanço do lacanismo.
Digo aqui reação teórica. Começam a surgir trabalhos críticos relevantes relevantes
acerca da redução lingüística contida na idéia de simbólico. Autores inspirados no
pragmatismo atacavam a concepção idealista de linguagem herdada por Lacan.
Acusava-se Lacan de ter esquecido o lugar dos afetos, da intensidade e do que Freud
chamava de ponto de vista econômico em psicanálise. Além disso começa a se
discutir que a primazia do simbólico justifica, perigosamente, um neurótico
centrismo. Ou seja, a neurose é a estrutura clínica de onde se infere uma certa teoria
do sujeito universal, à partir do qual a perversão e a psicose seriam formas
deficitárias ou incompletas. Começa-se a estudar mais Laplanche, Deleuze e o
próprio Foucault, que são usados de forma pertinente para criticar o lacanismo
teórico. Mas, além disso, que aliás bem se encaminhou como um diálogo teórico e
clínico cada vez mais forte com outras correntes da psicanálise, além disso havia um
clima dominante de crítica ao estilo lacaniano. Excesso de formalismo nas relações,
silêncio extensivo do analista, prepotência e arrogância no trato com as diferenças
(principalmente representadas pela universidade, pelas psicoterapias e pelas outras
psicanálises, tidas como impostoras e desviantes em relação à verdadeira
psicanálise). Tudo se passava como se devolvêssemos a mesma mensagem
segregatória que havia originado o movimento crítico inicial.

6. O Estilo no Real

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Neste cenário confuso e marcado por controvérsias foi se formando uma espécie
de estratégia baseada na fuga para a frente. Já na virada do século começa a ganhar
impulso uma outra categoria teórica, que será imediatamente traduzida em termos
clínicos, políticos e institucionais. Como vocês sabem a obra de Lacan posterior ao
período 1966-1968, data da publicação dos Escritos e do Seminário XI, havia sido muito
pouco traduzida. Havia o seminário XX, mas a maior parte dos textos circulavam de
forma “pirata”, sem grande apoio de comentadores e o menor consenso interpretativo.
Isso pode ser atribuído à crescente dificuldade estilística e conceitual que parace
dominar os textos de Lacan da década de 70. Sabia-se sim que neste período Lacan
havia reformulado sua teoria radicalizando e formalizando a categoria de Real. O real,
passava então a ser uma espécie de aposta da qual encontraríamos as respostas para as
insuficiências teóricas deixadas pelo imaginário e o simbólico.
Particularmente devo dizer que discordo frontalmente deste modo de apresentar
as coisas. A noção de real em Lacan é primitiva, deriva de sua leitura de Hegel, está
presente muito antes dos anos 70, e mesmo sua mistura com a categoria de realidade
foi, em geral, pouco analisada pelos que se engajaram nesta empreitada. De toda forma
foi através da noção de real que alguns gostariam de reencontrar o criticismo perdido.
Outros viam no real a confirmação de suas teses sobre a soberania do logicismo e do
idealismo transcendental como verdadeira essência do pensamento de Lacan.
O estilo é o homem a quem nos dirigimos. Voltemos a esta frase. Até agora
vimos os problemas relativos à pensar o homem como sujeito consistente, unificado e
dotado de uma essência, da qual o estilo seria um atributo. Vimos em seguida que a
noção de “dirigir-se a” nos causa um problema. Não sabemos a quem nos dirigimos e
que somos ao mesmo tempo agente deste endereçamento, mas também efeito de uma
ordem discursiva que pré-estabelece os lugares aos quais podemos nos endereçar e a
forma de fazê-lo. O inconsciente é o discurso do Outro e o Outro é simbólico. Nos falta
agora examinar o terceiro termo da frase: o estilo.
Estilo, vem do latim stylus, que quer dizer corte, como na pena utilizada para
escrever, que era também chamada de stilette. Disso se sugere que o estilo é no fundo o
modo como cada um lida e articula o corte que o separa do Outro no momento mesmo
em que a ele se dirige. O estilo define o modo como nos separamos uns dos outros,
como criamos diferenças no interior do laço social que nos une aos outros. É daí que
vem o uso da noção de estilo, na moda, para designar um tipo de vestimenta, ou seja, o
corte aplicado ao tecido.
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Compreendemos agora porque a mera aderência identificatória ao outro não faz


estilo. Compreendemos ainda que a mera possibilidade se endereçar ao Outro e receber
dele a própria mensagem de forma invertida, não faz, ou não nos dá, o estilo de como
isso é feito. O estilo seria então um efeito não da identificação, mas da contra-
identifcação, da separação em relação à identificação, seja ela simbólica ou imaginária.
Para sustentar isso teoricamente Lacan foi levado à se perguntar pelas condições
de possibilidade do significante. Como surge, para o sujeito o significante, na medida
em que o significante é o que representa um sujeito para outro significante. É a teoria
do traço unário. O traço é o que Freud chamava de inscrição, marca psíquica de um
acontecimento. Um exemplo:
No livro de Daniel Defoe, Robinson Cruzo encontra-se perdido e solitário em
uma ilha. Certo dia ele encontra uma pegada na areia. Seria isso realmente uma pegada
? Não poderia ser apenas um efeito contingente do bater das ondas sobre a praia ? Ou
seja, a pergunta de Robinson Cruzoé é se há um outro que a ele se dirige naquele sinal.
Se Robinson Cruzoé respondesse de modo psicótico ele poderia ter olhado para
aquela pegada e a entendido imediatamente como uma mensagem, algo assim como
uma garrafa com uma mensagem dentro enviada sabe-se lá de onde, sabe-se lá por
quem. Ele a tomaria como uma mensagem especificamente enviada para ele, uma
mensagem que poderia ser recebida como uma espécie de convite ou de ordem nos
seguintes termos: “Encontre-me lá, amanhã, conforme havíamos combinando
anteriormente”. Onde é lá ? Quando é amanhã ? E com quem eu combinei o tal
encontro ? Ou seja, quero dizer com isso que na psicose há um problema na função do
endereçamento, na função do shifter, que permite reconhecer no enunciado as suas
condições de enunciação. Os shifters, como eu, tu ele, (shifters de pessoa), ontem,
amanhã, daqui a pouco (shifters de tempo) e lá, aqui, já (shifters de lugar) são estes
termos de linguagem que nos indicam a posição do sujeito, que articulam o enunciado a
e enunciação e permitem, portanto, que exista consistentemente um Outro ao qual nos
dirigimos e de onde a ordem simbólica nos interpela.
Mas se Robinson Cruzoé respondesse de modo perverso ao olhar para a pegada
na areia da praia, ele poderia se contentar com a própria pegada. Poderia fazer da
pegada o seu fetiche transformando este traço em parte de seus sistema de escritura
sobre o gozo. Mas de toda forma ele inverteria o sentido habitual da mensagem para
algo como uma prática de apagamento continuado de todas as marcas possíveis e ainda
de reprodução de outras marcas de pegada de tal forma que o pobre Sexta Feira se veria
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DUNKER, C.I.L. – Introdução à Psicanálise Lacaniana. Semana de Psicanálise da Faculdade
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angustiado por não poder mais se reconhecer em suas próprias pegadas, quando voltasse
à ilha novamente.
Finalmente se Robinson Cruzoé respondesse de forma neurótica ele o faria se
perguntando sobre afinal quem é este que deixa esta pegada aqui e se isso é realmente
uma pegada. Ele poderia fantasiar o encontro com o proprietário da pegada, fugir dela,
toma-la como um sinal ou que não lhe diz respeito ou então que lhe diz respeito mas
que ele não sabe como, mais ou menos como o sujeito neurótico reage diante de uma
formação do inconsciente como o sintoma.
Ocorre, e isso é bem interessante, que Robinson Cruzoé não responde de forma
nem neurótica, nem psicótica nem perversa ou então faz algo que se poderia esperar em
qualquer uma destas estruturas: Cruzoé apaga a marca. Ao proceder desta maneira ele
transforma o estatuto da marca da pegada, de marca ela vira um traço. É por poder ser
apagável ou rasurável, se quisermos, que um traço é um traço. Ao ser apagada e manter-
se, mesmo assim, como uma inscrição para Cruzoé, que ela pode ser indefinidamente
repetida.
Estou usando este exemplo de Robinson Cruzoé porque ele contém as
características que Lacan atribui ao Real.

(1) O Real não são os objetos, mas o tempo que demora até que o objeto apareça. É
exatamente isso que está em jogo em nossa passagem. O tempo entre a pegada e Sexta
Feira, é neste tempo que o Real se mostra como negação. Notes-se que o real não
corresponde à realidade da pegada, o real aparece justamente ali onde nos perguntamos
se é possível que aquilo que se passa seja realmente real. Mas, importante, o real sempre
se depreende de coordenadas simbólicas, no interior do qual ele pode ser parcialmente
reconhecido, logo simbolizado. O Real não é uma categoria primitiva, pré
representacional, pré-linguística ou pré-reflexiva, o Real é sempre deduzido do
simbólico e do imaginário. A teoria do traço unário mostra-se assim uma forma de
conjugar a projeção narcísica, a introjeção simbólica, com uma espécie de identificação
real (uma identificação sem sujeito), que é a identificação em jogo no traço unário.

(2) Real é o que retorna sempre ao mesmo lugar. De fato após ser apagada a pegada vira
traço e como traço pode ser indefinidamente repetida, assim como os traços que compõe
as letras de nosso alfabeto e as letras que são reuniões estáveis de traços, podem ser
reutilizados sem que a eles se fixe nenhum sentido específico. O traço ao contrário do
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DUNKER, C.I.L. – Introdução à Psicanálise Lacaniana. Semana de Psicanálise da Faculdade
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significante é estranho ao campo do sentido. Ele retorna ao longo do tempo, mas seu
retorno não é diferenciante, como no caso do significante, é um retorno de algo que
volta como um e novamente como um, e assim por diante. Ele não unifica os sentido
nem o seu usuário, mas apenas garante que ambos se mantenham contínuos e
reconhecíveis no tempo. Quando Cruzoé encontra a pegada que ele ainda não sabe ser
de Sexta feira, quando ele apaga esta pegada é porque ele sabe que ao fazê-lo ele
permite a hipótese de sua repetição, ele espera e conjectura se a pegada virá novamente
e quando.

(3) O Real, para Lacan, é também da ordem do encontro. É o encontro, por exemplo, de
Robinson Cruzoé com a pegada na areia. O encontro do real, que caracteriza tanto o
trauma, quanto a felicidade e ainda o destino de cada um, é o encontro contingente entre
séries causais simbólicas não contingentes. Como diz Tomás de Aquino, vou até a feira
porque há uma causalidade que me leva até ela. A feira acontece e está lá porque há
uma outra rede de causalidades, (unindo ato e potência). Mas quando vou até a feira e
percebo que estou sem dinheiro e nesta mesma hora encontro meu amigo que me deve
algum. Esta é a noção de feliz encontro. Há também a versão do mau encontro, aquela
que apresenta ao sujeito algo que lhe é insuportável, a sexualidade para Freud
encontrava sempre o sujeito nesta situação. Antes da hora, depois da hora, excessiva,
inconveniente.

(4) Finalmente o conceito de Real se mostra em nosso apólogo muito afim à idéia de
ato. Afinal é por meio do ato de apagamento que a marca se torna traço e como traço
pode sustentar o significante. Encontramos aqui senão uma solução um
encaminhamento para o problema da hiperdeterminação simbólica. O ato é uma espécie
de retorno da noção de liberdade recalcada no interior do sistema teórico de Lacan. A
raidicalização desta tese levará Lacan a pensar o ato sexual e verificar que ele é sempre
uma impossibilidade lógica. Não o ato sexual no sentido do coito, mas a plena harmonia
e completamento entre os sexos. Daí vem as conhecidas, e repetidas ad nausean,
afirmações como a de que a relação sexual não existe, de que a mulher não existe.

Vemos em todas estas acepções de real como ele depende da noção de corte ou
separação, separação temporal entre o objeto e seu reencontro, separação entre as voltas

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da repetição, gesto de corte ou apagamento, corte entre os sexos. O estilo é, portanto, o


corte e o corte é real.

7. A Paixão pelo Real e seus Desatinos

A disseminação da teoria do real entre os lacanianos brasileiros encontrou uma


imediata tradução política. Haviam os que se apresentavam como praticantes da Clínica
do Real, uma clínica muito mais ativa e menos resignada do que a dos que praticavam a
clínica lacaniana clássica, a clínica do significante e do simbólico. Subitamente o
simbólico passou de uma categoria todo poderosa para algo completamente plástico e
redefinível conforme as circunstâncias. Paralelamente houve uma recuperação da noção
de imaginário. Nos últimos anos de seu ensino Lacan passa a reconsiderar o imaginário,
não mais como sede da alienação e do desconhecimento, mas como conte de
consistência e sustentação do vivente. O imaginário pode fornecer agora um conjunto de
alternativas, chamadas também de suplências, a uma subjetividade dilacerada pela
multiplicação e fracasso do Nome-do-Pai.
Subitamente o lacanismo se sociologizou, passou a considerar-se em atraso
diante das novas descrições sobre o estilo de vida e os modos de sofrimento em nossa
época. As leituras da sociologia compreensiva e dos estudiosos da pós modernidade
começam a ser traduzidos em acordo com a tese declínio do Nome-do-Pai e sua versão
no último Lacan, os Nomes-do-Pai. O fenômeno psiquiátrico da criação industrial e
midiática de novos grupos clínicos (pânicos, fobias sociais, anorexias, Munchausen e
depressões) começam a ser incorporadas ao programa clínico do lacanismo.
Simultaneamente a teoria do real pareceu compatível com um alargamento e um
experimentalismo do setting clínico tradicional. No Brasil isso se mostrou compatível
com o crescimento da presença de analistas lacanianos em órgãos de saúde, como
hospitais gerais, além dos psiquiátricos, mas também em escolas, empresas e no sistema
judiciário. Diante das contingências e variedades de problemas colocados por estas
novas circunstâncias o lacanismo se viu exposto tanto a um novo movimento crítico
quanto a uma nova forma de absorção ideológica.
É neste contexto que se verificou tão oportuno e criativo este meu encontro, algo
insólito, com o pensamento do Grupo de Manchester, por volta de 2000. O estilo é o
homem a quem nos dirigimos, espero ter mostrado como isso articula os conceitos e
contextos da psicanálise.
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DUNKER, C.I.L. – Introdução à Psicanálise Lacaniana. Semana de Psicanálise da Faculdade
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Agradeço mais uma vez a acolhida de vocês e espero que agora nosso próximo
encontro possa se dar no Brasil

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