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Universidade de São Paulo

Escola de Comunicações e Artes

Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação

Curso de Pós-Graduação em Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais;

O afrofuturismo feminino na música: uma análise dos elementos artístico-


visuais do afrofuturismo nas capas de álbuns da carreira da cantora Janelle Monáe.

Raiany Fernandes Costa da Silva

Paper apresentado à disciplina Arte Africana e afro-brasileira


ministrada pela Profª Drª Alecsandra Matias de Oliveira, como parte
dos requisitos para avaliação.

São Paulo

2019
1. Introdução

O afrofuturismo é um movimento cultural de resistência, que busca por meio de


sua estética, resgatar o protagonismo negro na era pós diáspora africana. A fim de
reposicionar o sujeito negro dentro do imaginário cultural vigente, o movimento utiliza
de diversas expressões culturais, como o cinema; a música; as artes visuais; a
literatura; a moda; e outros, para resgatar a identidade social negra como movimento
político. Misturando elementos do futuro, em forma de ficção científica, com elementos
da cultura negra, esta apagada historicamente pelo colonialismo, o afrofuturismo
busca retomar para a negritude um lugar nas hipóteses futuras de forma decolonial,
ou seja, onde as narrativas não sejam contadas somente de forma única, onde a
história não seja contada somente a partir da visão dos colonizadores responsáveis
pela maior diáspora da história, a africana.

Apesar do termo afrofuturismo ter surgindo apenas nos anos 90 dentro do


ensaio Black to the Future de Mark Dery (1994), um homem branco, a origem dos
traços do movimento tem dados iniciais registrados na metade do século XX, com
exemplo da inserção da cultura Yorubá ao gênero da ficção científica literária pelo
escritor nigeriano Amos Tutuola. Contudo foi na música que o afrofuturismo teve sua
principal referência, Sun Ra.

Sun Ra, nome artístico do músico, produtor e filósofo Herman Poole Blount, foi
o líder da Sun Ra Arkestra. Misturando o gênero musical Jazz com críticas ao racismo,
ancestralidade e protagonismo negro no filme Space is the Place (1974), e em todas
as suas outras obras musicais, Sun Ra foi o expoente do movimento afrofuturista ao
reencontrar as narrativas e os elementos artísticos-culturais do Egito antigo e
adicionar aos mesmos o futuro espacial, os apresentando como uma possível
libertação do povo em africano em diáspora.

Desta forma, o presente trabalho busca analisar os elementos artístico-visuais


do afrofuturismo nas capas dos álbuns da artista Janelle Monáe, referência
contemporânea feminina do afrofuturismo na música negra em diáspora
estudianense, e suas origens na arte africana. Para isso, o trabalho se baseará em
referenciais teóricos da autora Kênia Freitas (2015), em artigos sobre o afrofuturismo,
sua estética visual e sua influência na construção do imaginário coletivo sobre o povo
negro, com ênfase na mulher negra.
2. O afrofuturismo e seus elemento visuais

Ao analisarmos os traços originários do movimento afrofuturista, vemos artistas


usando a estética artística africana e sua mitologia em busca da reafirmação da
negritude como padrão estético. Sun Ra torna-se uma das principais figuras do
afrofuturismo ao se intitular como o Deus da Raça, e, ao misturar a mitologia egípcia
com o intergaláctico, afirma ser um nativo do planeta Saturno pregando que a
libertação do povo negro em diáspora viria com o retorno do mesmo para o planeta
participante do mesmo sistema solar da Terra.

Como resultado do colonialismo, a diáspora ocasionada por ele juntamente com o


apagamento da cultura africana e dos elementos da cultura egípcia em conjunto, é
impossível para o imaginário coletivo, criado com base na cultura nórdica e europeia,
conceber a civilização egípcia como avançada e com tecnologias, filosofias e
elementos capazes de se igualar a cultura europeia. Desta forma, se torna mais fácil
para esse imaginário coletivo da sociedade comparar os egípcios a extraterrestes.

Usando disso, o afrofuturismo abraça sua ancestralidade egípcia para, junto com
a ideia de futuro high-tech e decolonial, onde o negro tem o seu devido lugar na mesa
da história, criar estéticas que exaltam a negritude e a majestosa ancestralidade da
África.

As populações negras do continente americano são as descendentes


diretas de alienígenas sequestrados, levados de uma cultura para
outra. Os seus antepassados, separados dos seus territórios originais,
foram abduzidos como escravos para o Novo Mundo. (FREITAS,
2015. p. 5)
Na Mostra Afrofuturismo Cinema e Música em uma Diáspora Intergaláctica,
organizada por Kênia Freitas para a Caixa Cultural, Freitas chama de brutal, potente
e, ao mesmo tempo, curiosa a comparação da diáspora sofrida pela população
africana na sua vinda para as américas. A autora ainda acredita que narrativas de
ficção cientifica são formas de especular sobre o presente, levanta questionamentos
sobre a possibilidade de que as expressões culturais serem um dos caminhos para
criar uma nova história da população negra e afirma acreditar que o afrofuturismo é a
estética dessa nova narrativa (FREITAS, 2015. p. 5).

Para criar essa estética tão singular o afrofuturismo faz uso de elementos da
ancestralidade e da arte africana. Inspirados pela natureza, e não a copiando, os
artistas africanos sempre criaram formas e elementos completamente novos em
comparação a arte europeia. Com formas que somente sugerem uma forma pré-
existente e que deixam a cargo da imaginação criar um realismo conceitual, a arte
africana foi influência direta pra o modernismo surgido no ocidente da Europa.

Durante séculos os povos africanos produziram objetos, formas que


ainda hoje nos surpreendem: pinturas rupestres, murais, máscaras,
esculturas em pedra e madeira, figuras em argila, bronze, ouro, prata.
Os estudiosos dessa produção são unânimes em afirmar que tais
heranças se situam entre as mais belas e instigantes expressões
humanas jamais produzidas (SILVA, CALAÇA, 2006. p. 26)
Assim, no movimento afrofuturista o corpo negro vira norma e suas características
são exaltadas. Lábios grossos ganham destaques com cores fortes, o cabelo afro em
suas diversas formas, como crespo natural ou em tranças, vira uma coroa afim de
lembrar os grandes reinados africanos e de nossos faraós. Ainda ressaltando e
fazendo projeções sobre singularidades da arte africana, a estética afrofuturista
destaca as características do rosto negro, referenciando as máscaras africanas.

Os tons usados em destaque são terrosos, ou ressaltando cores vivas como o


vermelho, amarelo e verde com inspiração na natureza. Em contraste com os tons
terrosos e da pele negra, o ouro;
bronze; e prata são utilizados
sempre para destacar a
ancestralidade faraônica da
população negra e suas posteriores
artes. Ainda, o prateado e tons
metalizados são ressaltados para
marcar a mistura com o high-tech.
A composição formada pelas cores
fortes e o brilho do high-tech é
destacada e iluminada, e formas
geométricas extremamente
destacadas contribuem para
finalizar a composição estética que
busca ressignificar os corpos
negros com base no seu glorioso
passado, a afrofuturista.
3. Análise Janelle Monaé

Janelle Monáe, é o nome artístico de Janelle Monáe Robinson. Janelle é


cantora, compositora, bailarina e atriz estadunidense. Já foi indicada ao Grammy
Awards, um dos grandes prêmios da indústria fonográfica. Monaé deixou uma grande
impressão na indústria fonográfica e no gênero musical R&B nos anos 2010 com uma
sonoridade afrofuturistica misturando neo-soul, rock, funk, hip-hop, R&B, música
eletrônica com uma teatralidade exagerada.

Monáe lançou seu primeiro EP, Metropolis Suit I (The Chase) em 2007 e
dedicou três álbuns posteriores ao seu cenário futurístico conceitual, Metropolis, em
que a narrativa de uma androide fugitiva numa sociedade distópica traz elementos
para pensar a segregação racial e social no presente dos EUA, assim como a
identidade social negra e a libertação das opressões de raça e sexualidade.

A androide, Cindi Mayweather, era


descrita como uma robô messiânica e
revolucionária que se apaixonou por um
humano. Ao precisar ser desativada, em
função do seu amor por um humano, se
tornou fugitiva. Fez votos de libertar todos
os seres de Metropolis do controle de The
Great Divide, uma sociedade secreta que
usa o tempo de viagem para suprimir a
liberdade e amor. Em uma entrevista para
o Chicago Tribune ela explica um pouco
mais sobre a escolha do personagem da narrativa futurista:

Eu escolhi uma androide porque a androide para mim representa “o


outro” em nossa sociedade. Eu posso me conectar com “o outro”,
porque existem tantos paralelos com a minha própria vida – só de ser
uma artista mulher e afro-americana na indústria musical de hoje. O
androide representa o novo “outro” para mim”. É difícil não pensar no
feminismo futurista do “Manifesto Ciborgue” de Donna Haraway: “O
ciborgue é um tipo de eu – pessoal e coletivo – pós-moderno, um eu
desmontado e remontado. Esse é o eu que as feministas devem
codificar. (CHICAGO TRIBUNE, 2010)
Em seu primeiro álbum, o The
ArchAndroid (Suits II and III) lançado em 2010,
Monáe dá continuidade a narrativa de Cindy
Mayweather na cidade utópica de Metropolis.
Suas referências visuais do afrofuturismo na
capa deste álbum, assim como na capa de seu
EP de estréia são baseadas no conceito
estético do movimento: características negras
ressaltadas, neste caso em forma de cabelo,
formas diferenciadas e elementos high-tech.

Na capa do EP Metropolis, Monaé se apresenta como uma androide sucateada,


usando o prateado para marcar a referência high-tech e estabelecer a narrativa de
Cindy Mayweather, alinhando-se com a estética afrofuturista retratada no ano de
lançamento do EP. Já em The ArchAndroid a cantora aparece representada em sua
forma humana, mas com elementos futurísticos na forma de seu cabelo, que é
retratado em formato black mas com prédios futuristas, referenciando um realismo
conceitual. As cores prateadas e douradas contrastam com a sua pele negra. Vale
ainda ressaltar a coroa futurista usada por Monáe, lembrando a realeza africana e
alinhada com a estética afrofuturista retratada no ano de lançamento do álbum. Ainda,
a capa presta homenagem ao cartaz do filme homônimo, lançado em 1927.

Em seu segundo álbum, o Eletric Lady


(2013), a artista decide retratar Cindy
Mayweather em uma pintura junto com suas
irmãs, reforçando a presença feminina nesse
futuro distópico. Continuando sua narrativa, a
artista chamou a ilustração de “Concerning
Cindi and Her Sisters and the Skull of Night
Thrashings.”. O artista visual responsável
pela ilustração, Samuel Spratt, ao ser
perguntado sobre suas referências em uma
entrevista afirmou manter a narrativa e as referências de Monáe, como o
afrofuturismo, androides, cultura egípcia e ficção científica dos anos oitenta.
4. Considerações Finais

Traçando perspectivas para um novo futuro, o afrofuturismo costura assuntos


cruciais para a construção da narrativa de um futuro coletivo com a população negra
em protagonismo. O movimento busca quebrar o estigma racial, com ênfase no
africanismo e na afrocentridade. Ao fazer uma releitura do passado para projetar um
futuro com a presença do povo negro, sua visão de mundo e sua estética, o
afrofuturismo tenta transformar o presente.

Apesar da grande maioria dos artistas apontados como expoentes do


afrofuturismo ser homens, a presença feminina no afrofuturismo é demasiadamente
forte. A escolha da artista Janelle Monaé como objeto de análise deste trabalho busca
reforçar essa presença e o protagonismo feminino no movimento. Para além de
Monaé, nomes como Bette Davis, Alice Coltrane, Erykah Badu, Grace Jones já
utilizavam da estética afrofuturista nas capas de seus fonogramas nas décadas
passadas.

No Brasil, o afrofuturismo pode ser relacionado com a geração tombamento


brasileira, tendo pontos de contato em que ambos os movimentos ressignificam a
estética africana a fim de exaltar as características do povo negro. A geração
tombamento também tem uma forte presença feminina. Artistas e influenciadoras
utilizam da estética afrofuturista para passar uma mensagem de aceitação e
empoderamento feminino negro, nomes como Tassia Reis, Karol Conká, Ellen Oléria
e Magá Moura.

A construção da estética afrofuturista, a ressignificação, e a exaltação das


características negras têm um impacto significante na autoestima das mulheres
negras, transformando, por consequência, as relações sociais das mesmas e dos
ambientes onde estão inseridas.

O movimento afrofuturista, partindo da ressignificação da cultura negra,


ultrapassa as barreiras de um movimento artístico, tornando-se um movimento social
e político. O movimento influencia o povo negro a ansiar um futuro onde não haverá
mais o silenciamento, a apropriação da cultura negra e de todos os seus elementos
visuais. Para assim, influenciar o povo negro a questionar o presente e a narrativa que
nos foi imposta.
5. Referências

AMORIM, Tomaz. Afrofuturismo ou raio laser mais barato. Revista Fórum, 29 set.
2017. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/colunistas/afrofuturismo-ou-raio-
laser-mais-barato/>. Acesso em: 05 ago. 2019.
CHICAGO TRIBUNE. Janelle Monae's android power. Disponível em:
<https://www.chicagotribune.com/entertainment/ct-xpm-2010-05-28-ct-ott-0528-janelle-
monae-20100528-story.html>. Acesso em: 6 ago. 2019.
DERY, Mark. Black to the Future. In: Dery, Mark. Flame Wars: The Discourse of
Cyberculture. Duke University Press, 1994.
FREITAS, Kênia Cardoso Vilaça de (Orgs.). Afrofuturismo: cinema e música em
uma diáspora intergaláctica. Disponível em:
<http://www.mostraafrofuturismo.com.br/Afrofuturismo_catalogo.pdf>. Acesso em: 20
ago. 2019.
JORNAL DO COMMERCIO. Em 'Dirty Computer', Janelle Monáe mostra a mulher
por trás do robô. Disponível em:
<https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/2018/05/07/em-dirty-
computer-janelle-monae-mostra-a-mulher-por-tras-do-robo-338295.php>. Acesso em:
26 ago. 2019.
LAS PRETAS. Afrofuturismo na Música. Disponível em:
<http://laspretas.com.br/afrofuturismo-na-musica/>. Acesso em: 6 ago. 2019.
LAS PRETAS. Afrofuturismo. Disponível em: <http://laspretas.com.br/afrofuturismo/>.
Acesso em: 6 ago. 2019.
LAS PRETAS. Estética Afrofuturista. Disponível em: <http://laspretas.com.br/estetica-
afrofuturista/>. Acesso em: 6 ago. 2019.
SILVA, Dilma de Melo. CALAÇA, Maria Cecília Felix. Arte africana e afro-
brasileira. São Paulo: Terceira Margem, 2006.
TRANSCHORDIAN. Metropolis: Janelle Monáe's Hidden Sci-Fi Epic. Disponível em:
<http://www.transchordian.com/2013/10/metropolis-janelle-monaes-hidden-sci-fi-epic/>.
Acesso em: 13 ago. 2019.

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