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O nhandereko rimado no Rap: indigenização da cultura e reflexividade cultural

dentre os jovens kaiowás das aldeias de Jaguapirú e Bororó – Dourados/MS1


Rodrigo Amaro - Doutorando pelo PPGAS/Museu Nacional
Resumo: O presente trabalho objetiva apresentar uma sistematização inicial da minha
experiência de pesquisa de campo de doutorado, efetivada nas aldeias Jaguapirú e
Bororó, que margeiam a cidade de Dourados /MS. A partir dos dados de campo,
somados a algumas reflexões teórico-metodológicas, o trabalho pretende suscitar
discussões sobre novas formas de objetivação cultural entre a juventude kaiowá, quais
sejam, as manifestações étnicas e políticas de jovens por meio do rap indígena,
praticadas pelos grupos Brô MCs e Jovens Conscientes, bem como pela Aty Guasu
(grande reunião) de Jovens e Crianças. Levando em conta as pautas e desafios
específicos relacionados a este recorte geracional, observados etnograficamente, creio
ser importante pensar em novas formas de resistência e reflexividade por parte dos
kaiowás. No que tange aos integrantes dos grupos de rap, estes agentes, de um modo
geral, usualmente identificam os problemas vividos no cotidiano da Reserva Indígena,
como, por exemplo, o preconceito e a discriminação sofrida mediante aos brancos
(karais), questões envolvendo a posse e a exploração da terra, conflitos internos
inerentes à própria aldeia etc., com um passado comum de opressão e exploração vivido
cotidianamente no contexto urbano. Em resumo, apresentaremos como o rap, elemento
externo ao contexto cultural da Reserva Indígena de Jaguapirú e Bororó, se torna um
instrumento de reflexividade para os integrantes destes grupos, contudo, em um
processo contínuo de ressignificação.
Palavras-chave: rap kaiowá, reflexividade, cultura com aspas, ne’e, porahei.

1 – Compartilhando dilemas etnológicos e experimentos teórico-metodológicos

“Encontra-se a moderna etnologia em situação


tristemente cômica, para não dizer trágica: no exato
momento em que começa a colocar seus laboratórios
em ordem, a forjar seus próprios instrumentos e a
preparar-se para a tarefa indicada, o objeto de seus
estudos desaparece rápida e inevitavelmente”
(MALINOWSKI, 1976, p. 15).

Ao contrário dos trabalhos de etnologia clássica que, geralmente, iniciam


descrevendo o seu primeiro contato com o povo estudado, partindo de início de uma
descrição sobre as dificuldades para se chegar a aldeia em que se desenvolverá a
pesquisa, meu contato inicial com o coletivo ameríndio em questão se deu no âmbito da
cidade, que diga-se de passagem, se localiza bastante distante da aldeia que estes
habitam. Isto é, conheci os jovens integrantes do grupo Bro MC’s na cidade de São

1
Versão revisada e ampliada do trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia,
realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. A pesquisa de campo, bem como a
apresentação do trabalho, foi realizada com o apoio da CAPES e do PPGAS/Museu Nacional.
1
Carlos, no interior de São Paulo, em um local bem distante das aldeias do entorno de
Dourados - MS.
Neste sentido, o trabalho que apresentarei nas páginas seguintes é fruto da minha
pesquisa de campo entre os jovens kaiowás e guaranis2, sobretudo das aldeias Jaguapirú
e Bororó, que margeiam a cidade de Dourados. Todavia, o mesmo se vale de dados
colhidos em outras aldeias, tais como a ocupação Prudêncio Thomaz, no entorno do
distrito de Aroeira que pertence à cidade Rio Brilhante.3 Além disso, outra parcela do
material etnográfico, que se será problematizado, foi recolhido na aldeia Tey’i Kue, que
fica próxima a cidade de Caarapó-MS.4
Buscando entender o contexto dos jovens kaiowás e guaranis, e levando em
conta tal conjuntura, é que participei da Aty Guasu5 de Jovens e Crianças que ocorreu na
Aldeia Tey’i Kue, durante os dias 24, 25 e 26 de janeiro do presente ano. Nesta feita,
tive a rica oportunidade de conhecer um dos meus principais interlocutores de pesquisa,
Fabio Toribo que me convidou para participar das festividades da Semana do Índio em
na Ocupação Prudêncio Thomaz, considerada por ele e por seus familiares como
Tekoha Aldeia Guarani. Fabio é representante dos jovens junto ao Conselho Aty Guasu,
e por isso nossos diálogos estão sendo de suma importância para esta etnografia, na
medida em que suas interlocuções constituem um elo importante para pensar o pano de
fundo em que vivem os jovens kaiowás e guaranis, nos tekohas que compõem a região
de Dourados. Meu contato com Fabio me permitiu superar as limitações experienciais
de campo impostas pela condição sui generis das aldeias Jaguapirú e Bororó,
permitindo uma vivência de aprendizado contínuo da língua guarani, requisito básico e
inexorável para qualquer etnografia envolvendo coletivos ameríndios. Além disso, o

2
Em meio à literatura, tanto antropológica como historiográfica, estes indígenas são conhecidos como
Guarani-Kaiowá (SCHADEN, 1974; MELIA & GRUNBERG, 1976). Todavia, Tonico Benites
argumenta que embora tenham em comum muitos aspectos culturais e de organização social, os
“Guarani-Kaiowá não se reconhecem como Guarani, mas aceitam a denominação de Avá Kaiowá. Por
sua vez, os Guarani Ñandéva se autodenominam como Ava Guarani”. (TONICO BENITES, 2012, p. 29)
3
O termo nativo ocupação, juntamente com o termo retomada, são constantes no vocabulário kaiowá e
guarani. Ambos se referem a áreas que estes coletivos indígenas identificam como sendo historicamente
tradicionais. Assim, a Comunidade Purdêncio Thomaz, ou Aldeia Guarani, é uma ocupação que se
localiza em âmbito urbano, em um local que os kaiowás residentes consideram como sendo tradicional.
4
Antes de tudo, me explico melhor do porque desta experiência difusa. Por conta do quadro distinto das
aldeias Jaguapirú e Bororó, que será melhor explicitado adiante, me vi impossibilitado de fazer um campo
de pesquisa à nível “clássico”, dado os alarmantes índices de violência das mesmas, principalmente no
período noturno. Assim, fui aconselhado por etnógrafos que possuem uma vasta experiência na região a
não permanecer nestas aldeias a partir do entardecer e nem mesmo perambular pelas estradas durante o
período diurno sem ter um objetivo claro e preciso.
5
O termo Aty Guasu, de acordo com Tonico Benites, designa a Grande Assembléia dos povos kaiowás e
guaranis.
2
fato de estar entre essas duas aldeias me permite circular entre aqueles que produzem o
rap kaiowá, bem como entre outros jovens kaiowás que consomem o rap em outros
tekohas.
Já nas aldeias Jaguapirú e Bororó, também conhecida e intitulada como Reserva
de Dourados, minha vivência buscou acompanhar o cotidiano familiar dos jovens que
integram os grupos Brô MC’s e Jovens Conscientes, bem como outros espaços e
momentos de suas vidas, tais como os momentos escolares, as rodas de tereré e os
momentos de diversão nos campos de futebol. Destes momentos de convivialidade,
destaco as rodas de tereré como um momento importante para entender muito da
dinâmica dos grupos e das representações que são valorizadas por estes jovens,
principalmente pelo fato de que são estes tipos de momentos cotidianos que nos
permitem ir além do âmbito da performance e da cultura com aspas. (CARNEIRO DA
CUNHA, 2009)
Além desses espaços, acompanhei também a gravação de um vídeo-clipe e pude
etnografar também quatro apresentações do primeiro grupo aqui citado – na cidade de
São Carlos-SP; uma outra apresentação em uma aldeia Terena, chamada Água Azul’;
um show em Belo Horizonte; e, por fim, uma última performance recente na
Universidade Federal da Grande Dourados. Nestes momentos, por outro lado, podemos
perceber o quão valorizado são as categorias de um discurso externalizante, que torce as
categorias nativas em uma junção intrínseca com as categorias antropológicas como as
de tradição e cultura.

3
Imagem I – Apresentação do grupo rap indígena Brô MC’s na Aldeia Terena Água Azul,
na ocasião das comemorações do Dia do índio – Abril de 2014.

Já no que tange a algumas questões teóricas e metodológicas acerca da


espacialidade da pesquisa, gostaríamos de fazer também alguns apontamentos e
considerações. Em outras palavras, um interesse paralelo da nossa etnografia passa
pelas discussões que, mormente, são intituladas como “índios nas cidades”, “etnologia
urbana” ou até mesmo “índios citadinos”.
Os fluxos espaciais, os intercâmbios culturais, juntamente com as “peripécias do
capitalismo” (SAHLINS, 1997), que se processaram paulatinamente desde o século
passado, davam a Malinowski a impressão de que a etnologia, sem demora, não teria
mais objeto de estudo. (MALINOWSKI, 1976) Este “pessimismo sentimental”,
utilizando de uma expressão de Marshall Sahlins (1997), se constitui a partir de uma
concepção de cultura essencializante que se pautava a partir da dicotomia clássica
existente entre o que deveria ser considerado como objeto de estudo da Sociologia e
aquilo que seria próprio aos estudos antropológicos.
De acordo com Gilberto Velho, uma das premissas mais valorizadas no âmbito
das Ciências Sociais é a necessidade de uma certa distância do objeto de estudo em que
o pesquisador se coloca em contato. (VELHO, 2013) Por conta disso, a Antropologia
por muito tempo ficou conhecida, e porque não dizer relegada, aos estudos dos povos
ditos tradicionais, isolados em localidades remotas.

4
A este respeito, mas apontando uma opção oposta, Ulf Hannerz aponta que:
Some anthropologists have seen their vocation as a study of "the Other"—with a preference for
the most Other, as different as possible from that anthropologist's self which is most often rooted
in an urban, industrial or even postindustrial, capitalist large-scale social order. I do not; I prefer
to think of anthropology as a general and comparative study of society and culture, including, as
Kroeber had it in the quotation above, "ourselves, here, now, at home." (HANNERZ, 1992, p. 5)

Muitas discussões e experimentos tiveram que ser efetivados para que houvesse
uma ampliação do campo de estudo antropológico. Retomando os primórdios da
Antropologia, observamos que as cidades não eram a localidade de assentamento dos
povos que constituíam seu objeto inicial e privilegiado de analise. (MAGNANI, 2008)
Todavia, autores clássicos constituem a base da Antropologia como Durkheim, Tonnies,
Simmel e Weber que já se preocupavam, há tempos, com questões e práticas citadinas.
De todo modo, o fato destes autores serem muito mais lidos e utilizados na Sociologia
constitui um indicativo importante dessa predileção inicial de objeto de estudo
antropológico, e também como indício para reconstruirmos a gênese da construção da
antinomia aldeia/cidade.
A recorrência do binômio comunidade e sociedade, presente, principalmente, em
Tonnies também demonstra a dicotomia entre cidade e aldeia. Neste sentido, segundo
Tonnies, comunidade é “marcada por laços de sangue relações primárias, consenso,
rígido controle social; sociedade, ao contrário, caracteriza-se pela presença de relações
secundárias, por convenção, anonimato, troca de equivalentes”. (TÖNNIES apud
MAGNANI, 2008, p. 22) Este binarismo também pode ser encontrado em outros
autores, mas sob novas alcunhas, como, por exemplo, em Durkheim, expresso pela
dicotomia solidariedade orgânica versus solidariedade mecânica. (DURKHEIM, 1999)
É neste contexto que a Antropologia, conhecida tradicionalmente como estudo
das sociedades consideradas “simples”, “primitivas” e “isoladas”, vê surgir o que viria a
ser chamado de Antropologia Urbana, ou Antropologia das Sociedades Complexas. De
modo semelhante à Sociologia Urbana, este novo campo antropológico carecia de uma
maior definição, na medida em que, na primeira impressão, deixa entrever uma falta de
objeto próprio. Em outras palavras, a Antropologia Urbana parecia necessitar de uma
maior definição já que o urbano seria tudo o que ocorre no interior das cidades. Deste
modo, seria mais correto em falar de uma Antropologia na cidade do que uma
Antropologia da cidade, já que o objetivo desta seria estudar situações que ocorrem em
“cidades sem que tenhamos, forçosamente, de explicá-las pelo fato de estarem
ocorrendo naquele quadro especial”. (VELHO & MACHADO, 1977, p. 71)
5
Como bem destacou José Guilherme Magnani, atualmente, não se pode mais
aceitar a oposição entre “sociedades simples” e “sociedades complexas”, todavia, “não
se pode negar que o modo de operar dessa disciplina, seja qual for o contexto de seu
estudo, carrega inevitavelmente as marcas das primeiras incursões a campo”.
(MAGNANI, 2008, p. 20) A despeito destas marcas, a Antropologia vem ampliando
seus campos de estudo e intentando, a partir de recortes empíricos efetivados no âmbito
das cidades, estabelecer novos desafios para a pesquisa e reflexão antropológicas.
E é por conta destes novos desafios que pudemos observar inúmeros estudiosos
às voltas com nomenclaturas como Antropologia Urbana, Antropologia da / na Cidade,
Antropologia das Sociedades Complexas e Antropologia das Sociedades
Contemporâneas. (FELDMAN-BIANCO, 2010) Em linhas gerais, a meu ver, estamos
diante do desafio de delimitar algo que seja próprio ao universo do citadino, mas ao
mesmo tempo sem reforçar um dualismo entre aldeia e cidade, que acaba sendo um
desdobramento de outra antinomia mais antiga, qual seja, natureza x cultura.
Estas questões apresentadas até aqui tornam-se ainda mais intrigantes quando
nos deparamos com a temática dos índios nas cidades, intitulada, mormente, como
“índios citadinos”. Índios nessas condições, raramente, figuram como objeto de
preocupação dos etnólogos clássicos, interessados nos grupos intocados que conservam
as especificidades de uma pretensa cultura tradicional. Por isso, ainda hoje, são muito
raros os estudos que se debruçam sobre estes.
A despeito desta carência atual de pesquisa, poderíamos citar o pioneirismo do
trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira, intitulado Urbanização e tribalismo – a
integração dos índios Terena numa sociedade de classe.(1968) Posteriormente, com a
chegada da década de 1980, juntamente com Roque de Barros Laraia, Roberto Cardoso
de Oliveira elaborou o projeto Índios citadinos: identidade, etnicidade em Manaus,
coordenado por Alcida Ramos no âmbito do Programa de Pós-Graduação da
Universidade de Brasília. Este projeto teve como problema central as “relações
interétnicas na Amazônia urbana e suas representações ideológicas, resultando nos
trabalhos de Romano (1982), Lazarin (1981) e Fígoli (1982).” (ATHIAS e LIMA, 2010,
p. 52)
Após estas publicações, somente com a chegada dos anos 2000 que a temática
volta a aparecer entre as preocupações etnográficas de um número, ainda assim
reduzido, de pesquisadores. (NUNES, 2010, p. 11) De acordo com Julio Cezar Melatti
6
(1983), estas pesquisas constituem uma ponte entre a Etnologia Indígena e a
Antropologia Urbana. Todavia, apesar deste incontestável potencial que esta ponte
poderia estabelecer, podemos verificar a ressonância de um senso comum, num âmbito
mais amplo, a nível nacional, que erroneamente associa índios a floresta/natureza e os
não-índios a esfera da cidade/civilização e da cultura, no âmbito acadêmico. Mediante a
ínfima produção literária sobre esta temática, é que creio que podemos afirmar que a
Antropologia não passou incólume diante dessas ideias, tão presentes na mídia e no
senso comum. Em suma, tal ideário pressupõe uma ideia de cultura essencializante que
concebe os fluxos, bem como a permanência, ameríndios para a cidade como um
movimento contra-identitário.
Mesmo os que se propõem a superar a ínfima produção acadêmica acerca desta
temática, muita das vezes, incorrem em alguns equívocos. A meu ver, por exemplo, a
expressão “índios citadinos” ou “índios urbanos”, reproduz as dicotomias clássicas, tais
como, comunidade x sociedade, natureza x cultura e aldeia x cidade. Dito de outro
modo, creio que expressões como “índios citadinos”, ou ainda “aldeias urbanas”,
acabam por criar uma antinomia entre um índio da cidade e um índio da aldeia/reserva;
assim como uma diferença apriorística e essencializante entre uma reserva/aldeia que se
encontra longe da cidade e uma que tenha sido englobada pela o ambiente da cidade -
como no caso da Reserva Indígena de Jaguapirú e Bororó, que se encontra em amplo
processo de conurbação com a cidade de Dourados. Sendo assim, se utilizarmos de
expressões como estas, consequentemente, em algum momento nos encontraríamos
diante da seguinte questão: existe algo que difere o índio que é urbano mediante aqueles
que se encontram aldeados? Enfim, creio que o caminho trilhado por Geraldo Andrello,
em seu livro Cidade do índio (2006), seja um exemplo profícuo de etnografia neste
segmento, uma vez que este se propõe a pensar as relações e representações do índio
sobre o ambiente citadino, consequentemente debruçando sobre o índio na cidade.
Independente do termo utilizado para se pensar uma Antropologia que se
debruce sobre tais coletivos que se utilizem ou práticas que ocorram em cidades, ou
entre a cidade e a reserva, creio que uma definição de antropologia, e do próprio fazer
antropológico, aventadas por Marilyn Strathern sejam úteis para pensarmos o objeto de
estudo que me proponho a investigar. Assim, Strathern afirma que as “as pessoas não
interagem ‘com’ cultura, elas interagem com pessoas com quem têm relações”
(STRATHERN: 2005, p. 132. Minha tradução).. Ademais, creio que o maior mérito de
7
Strathern seja o de chamar atenção para a primazia das relações, colocando em suspeita
qualquer apriorismo culturalista.

2 – Notas etnográficas sobre juventude, violência e o rap kaiowá das aldeias


Jaguapirú e Bororó – MS

No Estado do Mato Grosso do Sul, com a chegada e a ocupação do espaço por


parte dos não-índios, os ameríndios, em pouco mais de cem anos, se viram diante da
inexorável transformação de seus territórios por conta das fazendas e das cidades.
Todavia, por mais que o crescimento das cidades e das fazendas sejam, em certo
sentido, contrário aos modos de assunção do território próprio à cosmologia kaiowá é
interessante notar como estes são incorporados e ressignificados na vida cotidiana
desses índios. Em outras palavras, o entendimento sobre a ocupação e utilização desse
território “não deve se apresentar ao observador de modo a priori como fragmentária e
estanque em cada um destes espaços (ou seja, a “aldeia”, a “cidade” e a “fazenda”)”.
(BARBOSA DA SILVA, 2008, p. 1) Antes disso, devemos observar que as atividades e
relações aí desenvolvidas acabam por constituir uma gama de possibilidades de
obtenção de recursos para os grupos domésticos, que são de fato o eixo fundamental de
organização social destes indígenas. Sendo assim, a problematização das representações
e (re)apropriações destes espaços deve levar em conta esta unidade social e suas lógicas
de orientação.

Tratando em específico da Reserva Indígena de Dourados (RID)6, que comporta


em conjunto as aldeias de Jaguapirú e Bororó, a situação se complica mais ainda. Na
RID, o pesquisador se depara com uma situação deveras complexa, qual seja, nesta
reserva há presença de kaiowás, guaranis e terenas. Assim, como se não bastasse os
inúmeros conflitos por conta da carência de espaço, os conflitos são ainda mais
corriqueiros em função dos contatos interétnicos que coloca frente a frente distintas
cosmologias e organizações sociais. Em termos numéricos, só para se ter uma ideia
geral, a RID em seus míseros 3475 hectares abriga uma população de aproximadamente

6
A RID “foi criada pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI, em 1917, pelo Decreto Estadual 401 de
1917, com 3.600 ha. O título definitivo da área, legalizada como patrimônio da União, foi emitido em
1965 (Monteiro, 2003). Esta área foi, inicialmente, reservada aos índios da etnia kaiowá, que já ocupavam
o local e suas imediações. Está situada nas cabeceiras das bacias dos córregos Laranja Doce e São
Domingos, tributários da bacia do rio Brilhante”. (PEREIRA, S/D, p. 2)

8
doze mil pessoas. Além das três etnias anteriormente citadas, a RID ainda agrega
indígenas de outras origens étnicas, como Bororo e Kadiwéu, além de alguns poucos
regionais (brasileiros e paraguaios), normalmente agregados a parentelas indígenas, por
terem contraído casamentos com membros de alguma das etnias que vivem na RID.
(PEREIRA, S/D, p. 15) É importante destacar também que a proximidade da cidade
também traz inúmeros problemas, como poderíamos citar, por exemplo, o excessivo
consumo de álcool e drogas, tanto por parte dos adultos quanto por parte dos jovens.

Para compreender os alarmantes índices de violência observado entre os jovens


kaiowás, nos últimos anos, se faz necessário voltarmos para a sua história, marcada por
um dos processos mais radicais de confinamento geográfico e cultural. Conforme
aponta Antonio Brand, nesse processo de espoliação territorial,
a demarcação das assim denominadas reservas indígenas, pelo Serviço de Proteção aos Índios,
SPI, entre os anos de 1915 e 1928, constituiu-se em importante estratégia de liberação dos
territórios indígenas para a colonização, ao total arrepio da legislação em vigor. (BRAND, 2011,
p. 40)

Assim, a violência atual que atinge os ameríndios destas aldeias é decorrente desse
confinamento histórico, tornado possível pela histórica conivência e submissão da
política indigenista dos diversos Governos aos interesses maiores da economia regional.
Pensar o destino dos índios, enquanto futuros trabalhadores nacionais, expressa
o lugar a eles reservado na estrutura de classes da sociedade brasileira do início do
século XX, na medida em que estes necessariamente “deveriam abandonar suas práticas
culturais para assumir a condição de trabalhadores nacionais, no interior da cultura
nacional, considerada mais evoluída”. (PEREIRA, 2011, p. 46) Por decorrência deste
quadro, muitos indígenas falam em desorganização social na reserva, reconhecendo que
os líderes já não conseguem mais manter as pessoas unidas e motivadas a buscarem a
convivência orientada pelos valores ético-religiosos – teko porã. (PEREIRA, 2011)
Neste sentido, devemos destacar que grande parte dos assassinatos são
praticados pelos próprios indígenas. Todavia, esta realidade não exime os não-índios,
levando em conta que estes tiveram participação efetiva neste processo de
desagregamento interno. Como observa Pereira (2011), os homicídios estão
relacionados, na maioria das vezes, às dificuldades de se resolver os conflitos internos
entre os grupos familiares, decorrentes da interferência estatal ao longo do século XX,
que produziu o confinamento dos kaiowás e guaranis nas reservas, além de criar a figura

9
dos capitães. Estes, muitas das vezes (nem sempre) eram líderes familiares legítimos,
mas eram alçados a uma posição de opressão sobre as demais famílias vivendo em um
dado espaço.
Por conta deste quadro complexo é que, sobretudo dentre os jovens, ocorrem
muitas mortes por enforcamento, em sua maioria, associadas a acusações de assassinato,
seja por feitiçaria, ou por meios “mais diretos”, como envenenamento, como bem
observou Spensy Pimentel (PIMENTEL, 2006). Sendo assim, percebemos que há um
quadro de desagregação e conflito onipresente, e que são sintomáticos do mal-estar
imperante nas reservas: como conviver com pessoas de quem se desconfia
constantemente? As suspeitas de feitiçaria ou de assassinato, por sua vez, geram novas
violências e vive-se, atualmente, um círculo vicioso nesses espaços.
Segundo Antonio Brand, os jovens podem ser considerados como uma das
maiores vítimas da violência causada pelo confinamento7.
São os jovens que se percebem, hoje, sem lugar dentro das pequenas extensões de terra,
superpovoadas, que os Kaiowá e Guarani conseguiram manter até o momento frente à sanha
insaciável do agronegócio e, sem lugar fora das terras indígenas, nas pequenas e médias cidades
localizadas no entorno, nas quais esses mesmos jovens se percebem, cotidianamente, como
personas non gratas e não bem vindas e bem vistas. (BRAND, 2011, p. 43)

A este respeito, uma analise da categoria nhemyrõ nos permite trazer elementos
nativos para entender a condição atual do mitã kurusu kuera, isto é, a situação atual dos
jovens, dado que não há uma expressão guarani que designe tantos recortes geracionais
como em nossa sociedade. Conforme Spensy Pimentel, a partir de sua interlocução com
Tonico Benitez, a categoria nhemyrõ, pode ser definida como uma mistura de
desespero, braveza e tristeza que se abate muito rápido sobre a pessoa. Os jovens estão
suscetíveis ao nhemyrõ, principalmente, no momento da mudança de voz e no período
da menstruação. Tal estado de espírito se abate sobre o jovem por diversas causas
distintas, variando, de acordo com Pimentel, sobretudo, por questões internas a aldeia.8
Spensy Pimentel aponta que o confinamento também é responsável direto na
morte dos jovens por enforcamento – muita das vezes contabilizadas como suicídio.
Apesar disso, por mais que o poder público e a imprensa local contabilize de modo
errôneo o número das verdadeiras causas das mortes, o suicídio é um fato entre estes
7
“Essa violência é, inclusive, uma das causas para os deslocamentos de muitas famílias para a beira de
estradas e/ou periferias urbanas, percebidas pelos índios como únicos espaços nos quais ainda é possível,
embora em condições precárias, deslocar-se, ou desenvolver a prática do oguata (caminhar), em casos de
conflitos e/ou tensões de diversas ordens”. (BRAND, 2011, p. 43)
8
Para um detalhamento etnográfico minucioso desta categoria nativa, consultar Pimentel (2006).

10
jovens. Assim, há de se fazer menção, ainda, ao elevadíssimo número de suicídios de
jovens, dado sensível também apontado por Pimentel. 9
Por decorrência deste quadro, inúmeros jovens, em um número cada vez mais
crescente, estão migrando para as cidades. Muitos jovens kaiowás e guaranis, no
ambiente das cidades, passam por inúmeras situações de preconceito. Na ocasião da Aty
Guasu de Jovens e Crianças que tive oportunidade de acompanhar, relatos de
preconceito nas escolas não-indígenas e nos meios de transporte público eram os casos
mais recorrentes nas falas dos adolescentes e jovens. A analise anteriormente destacada
por Brand, acerca da situação dos jovens nas cidades do Mato Grosso do Sul, pode
também ser observada em um trecho da fala de Clemerson, integrante do Brô MC’S.
Alguns lugares que a gente chega tem preconceito. Por exemplo, a gente tava esperando para
cantar, ai de repente vem os alunos já falando: aqui não é a usina! Eles acham que só porque a
gente é índio a gente vai tá trabalhando na usina.

A identificação do jovem kaiowá com aquele que trabalha na usina é uma constante,
sendo mapeada em outros momentos de suas entrevistas. Sendo assim, percebemos que
estes se sentem discriminados no ambiente citadino por sua condição ameríndia.
Os dados e analises apontados pela bibliografia podem ser observados nas letras
de ambos os coletivos de rap ameríndio, bem como nos relatos por mim colhidos nas
falas dos jovens kaiowás e guaranis na Assembléia de Jovens e Crianças, que ocorreu na
aldeia Tey’i Kue. Assim, Sidney e Jânio, kaiowás que compõem o grupo Jovens
Conscientes, acerca destas questões, rimam assim: “Eu sou da raça do indiozinho sem
escola, pra você pedindo esmola. Triste, oh foi tirado, humilhado nas ruas, e na aldeia
hoje vaga muito louco buscando algo melhor nessa vida”. Além disso, o uso de drogas
também é tema bastante frequente na letra do grupo em questão, vejamos: “Mita’i
pyahu ropita umi petÿ vai” (Criança desde muito cedo já começa a fumar maconha;
Tradução nossa). (...) “Eu estou chegando pra cantar essa música, mostrando a
realidade do dia a dia que é dramática, jovens fuma ‘um’ e deixa a vida problemática”.
(Não julgue pelas aparências – Jovens Conscientes)

9
No ano de 2011, o Distrito Sanitário Especial Indígena do estado (DSEI-MS) registrou 45 casos (no
mesmo período, o CIMI faz menção a 13 casos), 70% dos quais homens na faixa entre os 15 e 29 anos de
idade (RANGEL, 2012, p. 14). Um “grito de alerta”, de acordo com o CIMI, está tentando se fazer ouvir
entre os jovens indígenas do estado, mas as razões para essa epidemia ainda são pouco conhecidas
(PIMENTEL, 2006).

11
No que tange a expressão “realidade”, igualmente, muito corriqueira nas falas
dos jovens kaiowás da Aldeia de Dourados, há explicações diversas nas diferentes
perspectivas geracionais de “antigos” e “jovens”. Isto é, os jovens cantores de rap
justificam os problemas da aldeia como problemas decorrentes do confinamento
causado a partir do contato com a sociedade envolvente. Por outro lado, os antigos,
também julgam o contato com o karai reko como um fator explicativo para a
desagregação interna, mas não perdem de vista as próprias responsabilidades que
contribuem para com esse quadro. De acordo com a fala da nhandesy Dona Tereza, da
aldeia do Bororó, o não cumprimento de muitos rituais importantes para a formação da
pessoa kaiowá e guarani, também deveriam estar sendo respeitados pelas crianças e
jovens desta terra indígena. Assim, a rezadora argumentou que os rapazes atualmente
não passam mais pelo importante ritual do kunumy pepy, nem as meninas respeitam as
interdições relativas ao período menstrual, gerando inúmeras consequências negativas
na aldeia.
Outra temática que aparece nas entrevistas e também nos conteúdos de suas
rimas, é a aproximação por parte dos jovens rappers da reserva de Dourados com um
contexto histórico, de certo modo, comum à realidade de todas periferias brasileiras.
Sobre esta taxativa, poderíamos citar um trecho de uma entrevista de um dos integrantes
do grupo de rap Brô MC’s: “Aldeia é como favela. O que muda é que lá eles usam fuzil
e aqui é facão”, compara Kelvin. Assim, estes agentes usualmente identificam os
problemas vividos no cotidiano da Reserva Indígena, como por exemplo, o preconceito
e a discriminação sofrida mediante aos brancos, questões envolvendo a posse e a
exploração da terra, conflitos internos inerentes à própria aldeia etc., com um passado
comum de opressão e exploração vivido cotidianamente no contexto urbano – que são
as temáticas recorrentes nas letras de Rap dos grupos mais conhecidos no Brasil, como
por exemplo, Racionais MC’s, RZO, Facção Central, dentre outros.
Levando em conta o trânsito entre as reservas e as cidades e a questão da
violência, bem como esta especificidade geracional salientada por Brand e Pimentel,
creio ser importante pensar em novas formas de resistência por parte dos jovens
ameríndios kaiowás. Assim, as tragédias ocorridas no interior das reservas e nos
acampamentos de beira de estrada são temáticas onipresentes nas letras dos rappers
kaiowás. Tal realidade é tomada por estes agentes como fonte de inspiração. “Para ter a

12
ideia, eu começo a pensar na morte e no suicídio que tem nas aldeias da região e como
eu posso mudar isso através da música”, explica Bruno, do grupo Brô MC’s.

3 – Nhande reko e Nhande cultura, Avá ne’e e Che língua: reflexividade e


objetivação da cultura10

Um fenômeno cada vez mais perceptível em meio aos coletivos ameríndios é o


da apropriação de categorias próprias ao universo antropológico e aos ambientalistas.
Neste sentido, categorias como tradição, cultura e meio-ambiente fazem parte do
vocabulário indígena. Tal analise geral é exemplificada já no título da presente sessão
que traz algumas categorias nativas do discurso kaiowá e guarani que se mesclam com
conceitos antropológicos. Assim sendo, em minhas observações participantes em
diversos espaços pude ouvir expressões como ñande cultura, em conjunto com a
constatação das mesmas nas letras de rap kaiowá, como che língua. Neste tópico,
pretendo situar o leitor diante da gênese do hip hop, com o objetivo de esboçar o
desdobramento desta prática mundial diante da realidade nacional e local da aldeia.
Feito isto, posteriormente poderemos discutir um pouco mais das representações e
objetivos dos grupos de rap Brô Mcs e Jovens Conscientes, a partir de suas falas e do
conteúdo de suas rimas.
O hip hop pode ser considerado como um fenômeno sociocultural que surgiu na
cidade de Nova Iorque, entre as décadas de 70 e 80. Ora classificado como um
movimento social, ora como uma “cultura de rua”, o fato é que hoje o hip-hop mobiliza
milhares de jovens pelo mundo afora. A expressão hip-hop - que significa, numa
tradução literal, movimentar os quadris, foi criado por aquele que atualmente é tido
como o pai fundador desta forma de expressão cultural, o DJ Afrika Bambaataa, em
1968 - foi criada para “nomear os encontros dos dançarinos de break, DJ’s (Disc-
Joquéis) e MC’s (Mestres de Cerimônias) nas festas de rua no bairro do Bronx, em
Nova York”. (ROCHA, DOMENICH, CASSEANO, 2001: p. 17)
Com o passar do tempo, o hip hop se consolida nos Estados Unidos, como
resultado da composição de quatro elementos: o break, o graffiti, os DJ’s e o Rap. Em
sua origem, o movimento hip hop tinha por base um caráter político e o objetivo de
promover a conscientização coletiva dos seus praticantes acerca dos problemas sociais
10
- Traduzindo as expressões nativas da língua guarani, temos: nhande = nosso; avá ne’e = língua kaiowá;
che língua = minha língua.

13
que assolavam as periferias das grandes metrópoles. Todavia, ao longo do tempo, o
movimento hip hop ganhou novas feições, sendo visto, muitas das vezes, somente como
uma manifestação artístico-cultural das periferias das grandes cidades. Também cabe,
portanto, a caracterização do hip hop como uma “cultura de rua”, que é o conceito mais
utilizado pelos seus próprios integrantes.
Em entrevista, Bruno, um dos integrantes do Brô MC’s11, afirma que começou
no rap a partir da influência de grupos como Racionais MC’s e Fase Terminal. E é a
partir destas influências que o Brô MC’s está fazendo a diferença em meio ao rap
nacional. Inicialmente, o grupo de rap era composto por quatro jovens kaiowás:
Clemerson, Kelvin, Bruno e Charlie. Os jovens ficaram conhecidos Brasil afora por
cantarem suas letras de rap em português e em guarani. Assim, antes que sejam
acusados de estarem relegando a sua cultura, os jovens se defendem afirmando que “a
nossa cultura é o nosso rosto, a nossa pintura, a nossa pele, nossa cor, nossas músicas,
nossa língua. Não deixamos a nossa cultura quando cantamos rap”.
Atualmente, o grupo é composto, além dos jovens kaiowás, por outros dois
integrantes não-índios do grupo de rap de Dourados Fase Terminal: Dani Muniz e
Higor Lobo que além de exercerem funções gerais na parte de produção do grupo
também atuam como backing vocals. Já o grupo Jovens Conscientes, é composto por
apenas dois jovens kaiowás, Sidney e Jânio, e encontra-se ainda em fase de
consolidação, e na luta pela gravação de seu primeiro CD. É importante lembrar que
este grupo pode ser considerado como caudatário do grupo Brô MC’s, e que ambos
surgiram a partir de um mesmo contexto, qual seja, em um primeiro momento, no
âmbito da escola, e posteriormente, sendo lapidados pelas oficinas de Rap e Breake
Dance da CUFA (Central Única das Favelas) nas escolas indígenas das aldeias em que
estes residem.
Em um primeiro momento, soa estranho aos ouvidos a mistura do português com
a língua kaiowá ao som do rap. Todavia, sem apelar para qualquer purismo, pelo
contrário, nos deparamos com um estilo que pode ser tido como uma mistura que se dá
entre as dimensões do global e o local. Sendo assim, percebemos, neste caso, que esse

11
Em entrevista ao portal Rap Nacional, os integrantes do grupo justificam a escolha do nome do grupo:
Por que Brô MC`s? (Bruno) Vem de irmão né?! Eu e ele (Clemerson e Bruno somos irmãos), o Kelvin e o
Charlie é irmão também, então é isso! – Brô na língua guarani significa irmão? (Kelvin) Não, Brô é
inglês, brother é irmão. – E irmão em guarani seria como? Se for mais velho é Xerykey, se for mais novo
é xeryvy.

14
novo estilo de rap que está surgindo a partir da interação de um modelo hegemônico
com a especificidade local. Desse modo, podemos dizer que existe, neste caso, um
saber local que resiste à uma influência global, na medida em que estes jovens vem
ressignificando a prática de se fazer rap a partir de um intercâmbio entre traços de
etnicidade e os modos usuais de se cantar rap – tais como, a vestimenta, gírias e a
corporalidade comum à maioria dos grupos de rap pelo Brasil afora.
Além de pensar como essas práticas estão sendo reinventadas pelos jovens da
reserva, se torna relevante refletir porque o rap foi eleito por estes agentes como um
referencial autoreflexivo, bem como sobre suas motivações e inspirações. A este
respeito, os rappers indígenas do Brô MC’s afirmam que
(Bruno) o rap pra nós é uma ferramenta pra própria defesa contra o preconceito e o racismo. E
mostrar que “nóis” somos índios e nossa voz nunca vai se calar. (Charlie) Por que também o
rap é protesto, por que aí a gente pode falar o que a gente pensa né! (Bruno) Então, a
inspiração é falar um pouco em guarani também, o guarani no rap, mostrar um pouco nossa
identidade, Guaraní-Kaiowá pro pessoal ver, e mesclar nossa língua com o português.

A explicação do uso do rap como uma ferramenta, tão presente em suas falas,
para justificar a escolha dessa prática como meio de objetivação de sua cultura e como
forma de interferência em seu contexto, nos permite trazer a baila um tema caro aos
escritos etnológicos que tratam os kaiowás, bem como o debate mais amplo da
etnologia brasileira. Algo que pretendo deixar mais claro nas linhas seguintes.
Não obstante suas especificidades, como bem destacou Pierre Clastres
(CLASTRES, 1990, 2013), o tema da palavra falada, cantada ou rezada é recorrente nas
etnografias que se debruçam sobre os grupos falantes da língua guarani. (sobre os
Mbya, ver PISSOLATO, 2007 e MACEDO 2009; sobre os kaiowás e nhandévas, ver
CHAMORRO, 2008 e MONTARDO, 2002) Neste sentido, é de suma importância
abordar a categoria nativa porahei, que de acordo com meus interlocutores pode ser
traduzido tanto como canto, quanto como reza. Tal expressão para os “antigos” -
categoria utilizada pelos meus interlocutores para designar os rezadores e as lideranças
“tradicionais” - a partir de minhas observações de campo, pode assumir várias funções,
como por exemplo, trazer esposas, cessar a fúria de uma tempestade, cumprir a função
da guerra em um canto de retomada, dentre outros.
Este estudo de caso nos instiga refletir sobre como estes agentes tratam - na
maioria das vezes, em um contexto interétnico, tendo em vista que estes se apresentam
tanto para índios de outras etnias como também para os não-índios – dos traços culturais

15
oriundos do contexto em que estão inseridos; em outras palavras, falando de sua cultura,
mas a partir de uma prática cultural que teve origem nos Estados Unidos dos anos 70, e
que com o passar do tempo foi reinventada no Brasil, e que está se reinventando a partir
da realidade local da reserva indígena.
Deste modo, além de manterem sinais diacríticos, estes agentes solidificam seus
sentimentos de pertencimento lançando mão do consumo de objetos e posturas que são,
originariamente, externos à sua própria cultura, tais como, o vestuário, a corporalidade
e, principalmente, produtos voltados para a prática do rap. Portanto, ao invés do
conceito de cultura entrar em desuso – ou em extinção – em função da globalização ou
das peripécias do capitalismo, utilizando aqui das expressões de Marshall Sahlins
(1997), percebemos que é justamente a partir deste contato que se produz a diferença.
Contra o pressuposto que advoga um “isomorfismo” entre a cultura e uma
determinada territorialidade, temos o exemplo dos jovens kaiowás que estão utilizando
do rap para falar de sua própria realidade, de sua “cultura”, de modo reflexivo, mas
lançando mão de práticas culturais oriundas de outros contextos. Sendo assim,
percebemos que, neste caso, ocorre uma desterritorialização da cultura kaiowá, em
função das relações entre os aspectos da cultura local com elementos de outras culturas
por meio do rap, mas que acabam por ser reterritorializados em função da própria
realidade local, que é ressignificada nas letras cantadas pelos jovens kaiowás e guaranis.
Ainda na temática das lutas pela terra, mas a partir de outro recorte geracional,
destacamos que o projeto dos nhanderus12 vai na direção contrária das teses clássicas
que relacionavam os guaranis com a incessante busca da “terra sem mal”13, aventada
principalmente por Nimuendaju (1987). Atualmente, Spensy Pimentel, a partir do
acompanhamento das reuniões das lideranças kaiowás e guaranis, conhecida como Aty
Guasu, destaca que
todo o movimento kaiowá e guarani em MS está construído sobre alguns supostos em torno do
sentido de voltar a viver em ao menos parte das terras que correspondem ao que a Constituição
de 1988 denomina de “tradicionalmente ocupadas”. É comum que fazendeiros e políticos
questionem a insistência em recuperar essas terras, considerando-se que boa parte delas
encontra-se imprestável, hoje, para a prática de atividades ditas “tradicionais” segundo o senso
comum dos karaí, como caça, pesca e coleta. (PIMENTEL, 2013, p. 141)

12
Usualmente, a reflexão mais densa é realizada pelos nhanderu e nhandesy, como são conhecidas
algumas pessoas de prestígio, em função de seus conhecimentos xamânicos e posição social.
(PIMENTEL, 2013, p. 141)
13
Para uma critica a essas simplificações, ver, por exemplo: Noelli (1999); Combès (2011); Chamorro
(2008); Pimentel (2012).
16
O que fundamenta a certeza dos coletivos kaiowás e guaranis de que a volta aos
chamados tekoha é viável é, entre outras coisas, o discurso profético dos nhanderu e
nhandesy. Deste modo, percebemos um claro contraste com a visão clássica sobre os
Guarani, como um povo “melancólico”, ou “pessimista”, aguardando o "mal do
mundo”, buscando evadir-se dele rumo a uma Terra sem Males que é vista como uma
espécie de Paraíso, em outra dimensão. Muito pelo contrário, ao etnografar uma Aty
Guasu, e ao ouvir as letras entoadas pelos shows percebemos que imobilidade e o
pessimismo não fazem parte de suas perspectivas.
Foi em uma conversa regrada a muito tereré, debaixo do pé de siriguela em seu
quintal, que Bruno - que é irmão de um outro integrante do Brô MC’s, qual seja,
Clemerson - me contou sobre o histórico de lideranças e de participação em Aty Guasu e
em lutas de retomada de sua família, demonstrando orgulho mas ao mesmo tempo
receio, haja visto que seu avô paterno, Marco Verón, foi morto por pistoleiros nas
imediações da aldeia Taquara – MS. Os outros dois irmãos que compõem o grupo
também possuem parentesco com outras lideranças en. Neste sentido, o contexto
familiar, acredito, possa ser visto como uma forma de motivação para o protagonismo
desempenhando por estes jovens.14
Embora os pensamentos e as ações dos jovens sejam convergentes aos dos mais
velhos, os rappers kaiowás, a princípio, sofreram resistência por parte das lideranças.
Assim, de acordo com um dos integrantes do Brô MC’s, os mais velhos diziam que:
esse não era o nosso futuro. Meu avô veio me perguntar por que a gente gravou isso. Foi aí que
eu peguei um CD e falei senta aqui que eu vou mostrar pra você. Presta a atenção nas letras. O
que tá falando é coisa da nossa realidade, da nossa cultura. E depois eu mostrei para todas as
lideranças da região e mostrei a música e a letra. Numa reunião onde estavam todas as
lideranças eles falaram: ‘está certo é isso mesmo que acontece’, relata Clemerson.

Em uma letra dos Jovens Conscientes, também podemos perceber e sentir a necessidade
dos jovens justificarem o seu ofício: Já não basta a violência na aldeia, ainda vem com
esse rap na ideia, deixando a sua cultura e pagando de bandido. Não Senhor, Hip Hop
é um dom, uma cultura, uma música realista. (Jovens Conscientes – “Não Julgue pelas
aparências”)
Selecionei, aqui, duas falas, cada uma representando o seu grupo, acerca desta
questão específica. Podemos perceber na primeira que, a princípio, houve a necessidade

14
Sobre o grupo Jovens Conscientes ainda detenho poucas informações, devido ao fato da pouca
articulação do grupo, mas, sobretudo, por conta do estágio inicial da presente etnografia.

17
de se explicar suas motivações, para só assim serem aceitos na reserva pelos anciãos.
Sendo assim, por mais inovadora que seja a prática do rap para os mais velhos,
podemos afirmar que esta é coerente com o campo de possibilidades deste universo
simbólico. Por outro lado, a resistência dos xamãs para com a prática do rap efetivada
pelos jovens kaiowás se explica pela resistência ao modo de ser dos não-índios – karai
reko. Neste sentido, “pegar o jeito do branco” é visto como algo negativo. Por conta
disso, os nhanderus não se cansam de apregoar a necessidade da volta ao nhande reko,
que seria o modo de ser e agir próprio dos avá kaiowás. Não se deve perder de vista que
retomar os tekoha, ou seja, os territórios tradicionais atualmente ocupados por
fazendeiros, é o mesmo que “recuperar hábitos e práticas dos antigos, hoje
impossibilitadas pelo ambiente (cada vez mais) urbano das grandes reservas”.
(VELDEN, 2013)
Em resumo, ainda em termos hipotéticos, presumo que pelo fato das
reivindicações dos jovens kaiowás irem ao mesmo sentido do movimento de
recuperação das terras que se dá não só pelos saberes xamânicos, mas também pelo
emprego dos cantos nas ações políticas (sejam as assembleias ou as retomadas de terra),
é que os jovens puderam continuar com esta prática, até então inovadora neste contexto.

Considerações Finais
Uma vez constatada a existência da relação entre o uso de tecnologias de
comunicação por indígenas e o processo de reflexividade cultural dentre os kaiowás,
que se dá neste caso através da produção, e da posterior representação do rap indígena,
nos vemos diante das seguintes questões: qual seria a relação entre esses usos e a gestão
de aspectos culturais tradicionais específicos da cultura kaiowá? Além disso, de que
modo essas tecnologias e processos produzem relações sociais no contexto nativo e na
esfera interétnica? Se, como propagou Carneiro da Cunha, “a lógica interna da cultura
não coincide com a lógica interétnica das ‘culturas’” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009,
51), que tipo de significado é produzido no diálogo entre essas novas formas de
representação da “cultura”?
O estudo de caso abordado no artigo Body paint, feathers, and vcrs: aesthetics
and authenticity in Amazonian activsm (1997), de Beth Conklin nos instiga a pensar
algumas questões sobre a presente pesquisa. Conklin examina como a propagação e o
crescimento do ambientalismo juntamente da difusão dos meios de tecnologias de
18
comunicação nos anos 80 vem transformando as políticas interétnicas de auto-
representação dos ativistas nativos. Neste sentido, para Conklin o que se observa neste
contexto é uma incorporação, por parte dos ativistas nativos amazônicos, de categorias
ocidentais em seus discursos, sobretudo, advindas dos ambientalistas não-índios. Assim,
a autora analisa as consequências das auto-representações imagéticas efetivadas por
meio dos adereços nativos como adornos de penas e pinturas corporais. Ao mesmo
tempo em que carregam um alto conteúdo simbólico de reivindicação, encerram os
índios dentro de sua representação mais comum, veiculada há tempos, qual seja, a do
primitivo e do exótico. Os efeitos negativos da propagação, e por que não da
atualização, deste estereótipo indígena pode ser observado na postura do governador do
Mato Grosso do Sul, André Pucinelli, que criticou abertamente a apresentação de rap
dos grupos Brô MC’s e Jovens Conscientes, na ocasião da apresentação dos mesmos na
inauguração da Vila Olímpica da aldeia Bororó, afirmando que o rap não faz parte da
cultura brasileira, muito menos do contexto indígena.
A análise das roupas ocidentais que complementa a autoimagem dos ativistas
indígenas amazônicos, nos instiga observar a conjunção de adereços nativos que se
conjuga com as roupas ocidentais, próprias ao universo do hip hop, apresentada pelos
jovens rappers kaiowás. Ou, ainda, como se pode facilmente observar dentre as
lideranças kaiowás mais antigas que constantemente utilizam adereços “tradicionais”
como cocares (jeguakas) sobre os seus bonés. Neste caso, embora a autora não tenha
tratado este ponto, suas observações nos levam a pensar nos processos criativos
efetivados pelos indígenas, como no caso do rap indígena, que se processa a despeito
dos estereótipos que teimam em encerrá-los em categorias e imagens paralisantes.
Além disso, dentro deste processo de objetivação da cultura kaiowá específico,
podemos observar como as noções de autenticidade e/ou de tradição são pensadas tanto
por “jovens” como pelos “antigos” (PEREIRA, 2004), uma vez que o processo de
objetificação da cultura desencadeia um ciclo de (re)atualização contínuo da “tradição”
dentre as diferentes perspectivas dos jovens e dos antigos acerca das transformações
ocorridas mediante a situação de contato com a sociedade envolvente. Em outras
palavras, primeiramente, podemos observar a performance da cultura e, posteriormente,
uma analise por parte das lideranças tradicionais destas formas de objetivação, que
possibilita uma atitude crítica e reflexiva mediante a tradição que permitirá ou não a
incorporação de novos elementos ao nhande reko (nosso jeito de ser).
19
Embora possamos observar um forte contraste, a nível de discurso e
performance entre as categorias nativas ava kaiowá e karai (respectivamente
representadas pelo nhande reko x karai reko), na prática, muitas das vezes não é o que
se percebe. Tendo em vista as inúmeras e intensas parcerias estabelecidas entre os
integrantes dos grupos de rap das aldeias com os não-índios, creio que uma analise
deste estudo de caso, pautada na linha dos estudos investigativos de fricção interétnica,
que delimitam atores sociais que se percebem de antemão como “culturalmente”
distintos, detendo-se apenas na dimensão performática e nos sinais diacríticos
envolvidos em determinados processos históricos, não seriam capazes de perceber a
“abertura ao outro” percebida nas múltiplas e intensivas relações observadas nas
relações entre os jovens kaiowás e os jovens karais do movimento hip hop de Dourados,
e também do Brasil afora.
Como sugeriu Aparecida Vilaça a partir de sua etnografia com os Waris de
Rondônia (VILAÇA, 2000, 2006), de acordo com minhas observações iniciais, ao
contrário da nossa concepção internalizante de “tradição”, os modos de ser kaiowá
(nhande reko) dizem respeito a todo um conjunto de práticas que estão relacionados ao
corpo e ao ato de compartilhar substâncias, como por exemplo, o rito de iniciação
masculino que consiste inserir um pequeno artefato no lábio inferior do jovem
conhecido como kunumi pepy, os tabus alimentares femininos, o dançar coletivamente o
guahu e o guaxire, ao hábito de produzir e tomar a chicha coletivamente, as prescrições
relacionadas aos cuidados para não passar por transformações animais conhecidas como
jepota, as pinturas e as ornamentações corporais, e neste caso, sobretudo à fala guarani
que é inscrita no corpo – no caso do ne’e na língua, e do ayvu na região do maxilar.
Dito de outro modo, podemos afirmar que o nhande reko diz respeito a um modo de
tradição exteriorizante, diferentemente da concepção teológica de cultura que nos é
própria. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 191)
Problematizando o grupo Brô MCs, composto tanto por kaiowás quanto por
karais, nos vemos diante da seguinte questão: a partir da perspectiva dos indígenas
envolvidos neste coletivo, será que é a partir do ne’e e do porahei que poderíamos
perceber o conteúdo diferenciante do rap kaiowá? Em termos nativos, neste contato
interétnico, promovido pelo rap, como poderíamos perceber o ore (nós exclusivo) rap e
o nhande (nós inclusivo) rap? Na aldeia Aroeira, em contato com Fabio e com seu avô,
o Senhor Lício, Fabio me explicou que “é muito difícil o karai aprender o guarani, pois
20
o guarani não se aprende”. Com o desenrolar da conversa e da explicação de Fabio, é
que pude entender que, ao contrário de nossa acepção moderna e multiculturalista de
língua e de cultura, os kaiowás não aprendem a falar o guarani, mas sim adquirem a
linguagem diretamente de nhanderu no ato da nominação, logo após o seu nascimento.
Dessa maneira, a cultura, que na fala nativa às vezes é tida como sinônimo da língua
guarani, e vice-versa, é da ordem do dado e não do adquirido, diferentemente de nossa
cosmologia ocidental karai, que concebe tanto a cultura como a língua como um
constructo histórico. Por conta destas diferenciações no modo nativo de se pensar a
linguagem e a palavra falada é que, por agora, intuo que será importante continuar
perseguindo a questão de como estas categorias nativas são pensadas pelos jovens
cantores de rap. O que pretendo deixar mais claro, em termos comparativos, para o
leitor nas linhas seguintes.

A partir da minha experiência de pesquisa pregressa em meio a coletivos de hip


hop nos estados de Minas Gerais e no Rio de Janeiro, bem como através dos meus
estudos sobre tal prática, é que afirmo que os tais organizações, sobretudo no rap, se
pautam por um determinado modus operandi que tangencia uma série de valores e
condutas pré-determinadas e esperadas dentre os seus pares. Em outras palavras, em
meio ao rap nacional, há uma expectativa, por exemplo, de que o MC tenha um
compromisso de atuação em seu bairro. Espera-se que este escreva e cante letras que
tenham um conteúdo que denuncie as mazelas sociais e, principalmente, que este
detenha uma postura ascética15, coletiva e humilde. Tais valores devem ser praticados,
pois se espera que a postura e as letras do cantor de rap tenham por efeito a adesão e a
conscientização dos jovens de periferia que se encontram em situação de
vulnerabilidade social.

Quero me concentrar aqui, por ora, na expressão conscientização, citada nas


linhas anteriores, na medida em que esta, creio eu, nos permitirá perceber o conteúdo
ameríndio diferenciante do rap kaiowá frente ao rap karai. Como esboçamos
anteriormente, será útil aqui ter em mente um apontamento destacado por Viveiros de
Castro sobre nossa lógica de cultura teológica, percebida como um “ ‘sistema de
15
A junção entre uma postura ascética - esperada e praticada - por parte daquele que está envolvido com
o movimento hip hop como um todo juntamente com o ascetismo cristão é algo que perseguiremos ao
longo da etnografia, dado que constatamos etnograficamente que a maioria dos integrantes do Brô MC’s
frequentam igrejas evangélicas e valorizam a leitura bíblica.

21
crenças’ a que os indivíduos aderem, por assim dizer religiosamente” (2002, p. 191).
Deste modo, os jovens não-índios absorvem e cultivam valores e experiências passadas
nas letras dos cantores que são referências em meio ao rap nacional - como MV BILL,
Mano Brown, GOG, Dexter. Comparativamente, nos vemos diante da seguinte questão:
dado que os guaranis como um todo pensam o poder e o dever da fala de modo diverso,
como se dá esse processo em meios aos jovens kaiowás? Ademais, partindo da
afirmação de um dos integrantes do Brô MC’s, no qual afirma que cantar rap não é
deixar de ser kaiowá, qual é a acepção, então, de cultura própria dos jovens kaiowás?
De todo modo, como o leitor pôde observar, principalmente neste tópico final, o
presente ensaio não possui maiores pretensões conclusivas, mas sim teve por objetivo
abrir uma densa e difícil discussão acerca da “cultura”, da reflexividade cultural, à luz
do estudo de caso dos jovens rappers ameríndios da reserva de Jaguaipirú e Bororó, no
estado de Mato Grosso do Sul. Assim, muitas questões ainda precisam ser repensadas,
como por exemplo: podemos pensar em “cultura” em um contexto intraétnico? – ao
utilizar do Rap em meio à aldeia, temos um exemplo de “cultura” na esfera local?
Apesar do caráter hipotético do texto e de nossas analises, creio que a noção de
“indigenização da modernidade”, proposta por Marshall Sahlins nos fornece uma
direção profícua para pensarmos este estudo de caso. Nas palavras de Sahlins, a
“modernização, com efeito, não tem sido a única alternativa, sequer na cidade. O efeito
inverso, a indigenização da modernidade, é no mínimo tão acentuado quanto o primeiro
– na cidade como no campo”. (SAHLINS, 1997, p. 114) Assim, a complexa dialética
cultural percebida através da analise da “terra natal” do rap e da reinvenção deste na
reserva indígena pelos jovens kaiowás nos permite concluir que as práticas e relações
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